WOLFGANG PANNEK | Sob o título Une Correspondence, a Nouvelle Revue Française (N.R.F.) publica
em 1924 o intercâmbio epistolar entre Antonin Artaud
e Jacques Rivière, o editor da revista. Segundo
seu livro C’était Antonin Artaud (Paris, Fayard, 2006; Eis Antonin Artaud, São Paulo, Perspectiva, 2010) Artaud
acede através dessa publicação ao reconhecimento
literário por intermediação de uma confissão de impotência que marca, ao mesmo tempo, na literatura
uma mudança de nível. Essa mudança demarcada por Une Correspondence e caraterizada pela abertura de um
território abissal […] de impossibilidade e falta, posteriormente interpretada por Gilles Deleuze como
melhor exemplificação da irrupção de um pensamento sem imagem, incentiva André Breton a entrar em contato com Antonin Artaud. A amizade
entre os poetas leva ao ingresso de Artaud na Central Surrealista onde atua como
inspirador-chave.
FLORENCE de MÈREDIEU | Você cita esta biografia de Artaud, publicada na França em 2006, e que foi magnificamente traduzida no Brasil pela editora Perspectiva. Desde então, ela tem permitido aos pesquisadores brasileiros obter informações – a respeito da obra e vida do poeta – a partir de fontes verificadas e de evitar o acúmulo de erros que não cessaram de abundar nas últimas décadas.
Dois eventos marcarão os primeiros anos parisienses de Artaud. Trata-se, por
um lado, da publicação
por Jacques Rivière (então diretor da prestigiosa revista das Edições Gallimard, La Nouvelle Revue Française),
não dos poemas enviados pelo poeta ao seu interlocutor, mas
da correspondência
então
estabelecida entre os dois homens. Essa correspondência gira em torno
da impotência de Artaud de pensar e se expressar. Rivière a vê primeiro como um problema psicológico, enquanto Artaud
lhe revela pouco a pouco a dimensão
propriamente metafísica dessa impotência.
Rivière compreende a partir
de então que se trata de um autor e de uma expressão inteiramente singulares, e empreende a publicação
dessa admissão de impotência tão
magistral em sua inexpressão.
O segundo acontecimento, a entrada – como escreveu o próprio Artaud – no “barco dos dadaístas” e do Surrealismo, decorre do primeiro. Breton leu a correspondência Artaud/Rivière. E Breton sabe ler. Ele imediatamente entendeu a importância e o caráter de novidade de uma tal escrita e então incita o poeta a se juntar a ele na aventura surrealista. Trata-se de fato de uma revolução literária, marcada não pelo polimento demasiado acentuado de símbolos, fórmulas ou ideias (e é aí – Rivière não se enganou em não publicar os poemas – o lugar onde Artaud, ainda, em termos literários, se situa), mas pela expressão fantástica de uma impotência que é analisada de maneira extralúcida. Toda uma parte da literatura e da análise literária do século XX se inscreverá nesse rastro… E teremos mais tarde os Blanchot, os Barthes,
os Cioran etc.
Estamos em 1924: Artaud ingressa na Central Surrealista. Ele desempenhará o
papel de um poderoso motor e de uma locomotiva. Ele não tem medo de nada e avança.
É por isso que Breton precisa dele. Não sei se “amizade” é
exatamente o termo a ser empregado. Ambos se viam como líderes poderosos
da guerra literária
e metafísica que deveria ser travada. Mas então eles se enfrentaram violentamente e
não hesitaram em rebaixar as conquistas um do outro. O vínculo que eles mantiveram
é de ordem quase familiar, o de um companheirismo compartilhado, de riscos assumidos juntos, de descobertas comuns
que os deslumbraram e que de repente se romperam e chegaram ao fim.
Esta correspondência Artaud/Rivière, seria ela, então, de obediência
“surrealista”? Ela apresenta afinidades com a estética surrealista? Sem dúvida não. De todo caso, ela provém de um contexto que nada tem a ver com a pesquisa de Breton
e seus amigos. Artaud não subscreveu de forma alguma qualquer estética. Trata-se de uma escrita espontânea, oriunda de uma forma de autoanálise e introspecção singular. Tampouco seu autor procurou se inscrever em uma espécie de contexto ou extensão da psicanálise. O que Breton
retém é
justamente a novidade de tom e forma do assunto. Ele não vê nele nenhum efeito de espelho e é precisamente isso que lhe interessa: uma nova expressão.
WOLFGANG PANNEK | Artaud exerce um “papel de farol” em La Revolution Surréaliste a ponto de assumir, em 1925 a direção da Central e da edição do número 3 de revista, intitulada
1925: fin de l’ère chrétienne. Um manifesto dessa época, atribuído à autoria ou influência de Artaud, defende a ideia de que a verdadeira
revolução surrealista – contra “pai, pátria, religião, família” – não ocorre
no plano das condições materiais da produção social, mas no plano [transcendental]
do espírito.
Em julho do mesmo ano, Breton, preocupado com o “misticismo de Artaud”, retoma a direção da Central Surrealista. Na sequência
desses acontecimentos, o movimento surrealista aproxima-se do marxismo; Artaud e
Roger Vitrac fundam o Théâtre Alfred Jarry. No panfleto Au Grand Jour [À plena luz do dia] e outras publicações do núcleo marxista do
Surrealismo, Artaud é acusado de ser canalha, de incompatibilidade com as metas
surrealistas e de espirito mercantil. Logo depois, Artaud, Vitrac e Philipp Soupault são expulsos do movimento. Ainda em 1936, no México,
Artaud critica por sua vez a incompatibilidade das revoluções surrealista e marxista.
Em Eis Antonin Artaud, a senhora ressalta os “laços profundos entre Artaud e os surrealistas”, mas aponta também para suas diferenças. Quais são, de seu ponto de vista,
as principais convergências, divergências e contribuições recíprocas entre o movimento surrealista
e Artaud, “o surrealista
que”, segundo Anaïs Nin “os surrealistas desacreditaram”?
FLORENCE de MÈREDIEU
| Sim, alguns (como Anaïs Nin) chegarão a considerar Artaud como “o mais surrealista de todos os surrealistas”. Ainda assim, chega um momento em que Artaud, por seu misticismo, seu niilismo,
seu até o limite, se destaca de Breton, empurrando o movimento em uma direção que Breton não quer de jeito nenhum. As exclusões fazem
parte da história do Surrealismo e o assunto era complexo. Como os dois homens. Artaud – digamos
– terá contribuído em parte para se excluir. Isso nada tem a ver com “partidos”,
“movimentos” que acabam se transformando em “instituições”. Artaud já está em outro lugar, em outro
terreno. Ele já não precisa mais de Breton para dar saltos. E Breton, por sua vez, só pode ficar constrangido com a crescente presença de Artaud no Movimento. A adesão de Breton e seus amigos ao marxismo, sua vontade, como diria Artaud,
de “fazer a revolução
com r pequeno e não com R grande” selará e cristalizará seu divórcio e suas divergências.
A guerra foi então dura entre os dois homens (e seus respectivos aliados). Artaud se volta, como você sublinha, para o teatro que deseja
refundar em bases diferentes da linguagem verbal pura. Eis
então a aventura do Teatro Alfred Jarry. Não esqueçamos que os surrealistas pouco se interessavam pela forma teatral,
preferindo a poesia e as artes plásticas (pintura,
escultura etc.). Quando, em junho de 1928, Artaud encenou a peça de Strindberg, Le
Songe, os surrealistas se precipitaram
para sabotar o espetáculo. Foi um grande
escândalo, um daqueles escândalos de que o movimento
então tanto gostava. Artaud sai dessa usando esse escândalo como uma espécie
de trampolim.
Artaud e Breton
terminarão cada um seguindo seu próprio caminho. Em vias radicalmente diferentes. Como “papa do Surrealismo”, muito envolvido
na vida literária e artística,
Breton lançará o Surrealismo em uma via decididamente internacional. Ao abrir amplamente as pesquisas
do movimento sobre as correntes de ideias da época: psicanálise, sociologia, retorno a um certo primitivismo, mediunidade etc. O percurso de Artaud, cujo
percurso se cruzará com as aventuras de muitos
outros personagens do teatro, da literatura e do cinema, da psicanálise e da psiquiatria, será de fato envolvido num processo mais individual. Em razão de seus problemas de saúde, problemas com drogas e da errância que não cesserá de marcar seu itinerário. Breton é um líder de grupo, enquanto Artaud traça
uma rota sinuosa e singular. Artaud,
porém, jamais esquecerá Breton. No México, ele fará a apologia do Surrealismo. Ele fica incontestavelmente orgulhoso de ter participado do que ele prontamente reconhece como uma importante corrente
artística.
Da Irlanda, enviará cartas exaltadas nas quais reconhece nele uma espécie de líder espiritual, o equivalente a um bardo.
Breton se mostrará muito mais distante a partir do momento em que Artaud parece afundar em delírios indizíveis. Quando
este é internado no asilo de Ville-Evrard em fevereiro de 1939, Breton se recusa a visitar Artaud; é sua esposa Jacqueline que irá ver o poeta, descobrindo-o fazendo jardinagem e portador de uma barba. André
Breton, que foi estagiário de psiquiatria
durante a Primeira Guerra Mundial, poderia ter relativizado o fenômeno, mas ele somente parece tolerar a loucura revestida de aspectos surreais mas, antes de tudo, inteiramente literários e controláveis. A
guerra de 1939-1945 separará então radicalmente as trajetórias dos dois homens. André Breton vai para o exílio nos Estados Unidos, Artaud, por sua vez, vai passar 9 anos em asilos psiquiátricos franceses.
O acaso queria que fosse no mesmo dia – segunda-feira, 26 de maio de 1946 – que André Breton
(de volta da América) e Antonin Artaud (libertado do asilo de Rodez) retornassem a Paris. Breton estava então no auge de sua glória. Artaud é um louco, um pária cuidado por uma pequena parte da inteligência
(Dubuffet,
Jean Paulhan, Marthe Robert etc.) e por jovens que vão descobrir e redescobrir esse ser estranho.
No evento
realizado no Teatro Sarah Bernhardt
em 7 de junho de 1946, em homenagem e em benefício de Artaud, André
Breton fará o discurso de abertura. Ele hesitou, mas pretende saudar “o regresso de um amigo”. Ele se esforça ao máximo para não ofender o Dr. Ferdière, que ele conhece bem e que acaba de acompanhar seu famoso paciente a Paris.
Esta intervenção
é também para Breton uma forma de reinserção no seio da intelectualidade parisiense,
omnipresente nesta sessão e que colocou à venda obras para
garantir a sobrevivência material de Artaud quando saiu do manicômio (ver detalhamento disso tudo na minha biografia.
Os dois curtos anos que se seguem levam os dois homens a se reencontrearem e
friccionarem um no outro. Mas será, cada vez, sob a ordem do mal-entendido. Artaud foi convidado por Breton a participar da exposição surrealista
internacional de 1947, na Galeria Maeght, na Rua
de
Teerã em Paris. Ele se recusa, declarando que não quer acabar “na incubadora em uma vitrine”. Alguns suspeitam que ele teme uma espécie de enfeitiçamento
por parte de Breton e de seus amigos.
Artaud já não
é mais “o mesmo”. A sua identidade é
plural e polivalente. Os tratamentos psiquiátricos de choque, aos quais
é preciso acrescentar os efeitos da droga que ele então consumia em grandes quantidades, faziam com
que ele ficasse constantemente errante e dividido. Os personagens que ele encontra, seus amigos e o próprio
Breton não
são mais personagens reais para ele, mas duplos ou sósias do que eram. Artaud lhe diz isso, provocando um processo de negação por parte de Breton.
Ao assegurar-lhe que defendeu ele, Artaud, pessoalmente durante uma briga na Irlanda, Breton responde: “Mas não Artaud”. Lágrimas escorrem então pelas bochechas do poeta. Breton, que
outrora trabalhou para “imitar” doenças mentais, não suporta as
duplicações e
errâncias identitárias de Artaud que se pensa tanto como Cristo (crucificado em Jerusalém) quanto como um faraó distante ou um ser retornado
dos mortos (egípcio, tibetano ou outro).
Medimos a distância
– fenomenal – então instaurada entre os dois artistas. Eles se reencontraram, no entanto, em uma infinidade de questões. Em
particular sobre o esoterismo, a mediunidade e o surreal. Para Breton, o esoterismo,
sem dúvida, continua sendo uma questão poética, enquanto Artaud endossou totalmente a possibilidade de um mundo ou de mundos duplos e paralelos.
Na questão do inconsciente e da psicanálise, eles se opõem radicalmente, já que
Artaud há muito se recusou a ser conduzido justamente por esse inconsciente ao qual a
escrita automática (e o desenho) se abandona. Essa é uma pergunta delicada
e difícil, que vai além do escopo desta entrevista.
FLORIANO MARTINS | Rastreando o período passado por
Artaud no México, pensando especificamente em seu comportamento no ambiente literário,
recordo que o poeta guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón referia certa repugnância que o personagem provocava, citando casos como
os do poeta Xavier Villaurrutia e do artista plástico Agustín Lazo, ambos aproximados do Surrealismo, o que contrasta com a informação
de Paule Thévenin quando esta recorda que pelo menos Villaurrutia foi, naquele momento,
um dos tradutores de Artaud. Até que ponto a personalidade estranha de Artaud, a
quem o próprio Cardoza y Aragón chamava de voyou dificultou a sua temporada
no México?
FLORENCE de MÈREDIEU | Artaud é fundamentalmente um anarquista, um rebelde e um personagem de comportamento socialmente
“rude”. Isso poderia ter se
manifestado até
mesmo em seu modo de vida mexicano, inclusive no que diz respeito
àqueles que poderiam ser considerados seus pares ou colegas. Ele gosta de chocar,
ofender, confundir…
o público e o burguês, claro, mas também este mundo das letras e das artes a que de certa forma pertence, ao mesmo
tempo que se destaca dele. Seus colegas de então não foram exceção.
Quando Artaud chega ao México, ele está de
certa maneira rompido com a sociedade
e os círculos
artísticos. O fracasso público de seu espetáculo Les
Cenci, bem como suas dificuldades pessoais (saúde, drogas etc.) levam-no a fugir desta Europa que já não suporta mais e que reencontrará no México, através de todas as influências europeias que detecta na sociedade artística mexicana. Essas influências – além disso – estão associadas às de uma América (do Norte) todavia mais decadente do que o velho continente europeu. Quando
ele desembarca no México, uma revolução acaba de acontecer.
Os intelectuais mexicanos pouco se inclinavam a apreciar a distância que ele estabelecia com o pensamento marxista. Então, houve um certo número de mal-entendidos. Além de sua presença no Café do Instituto Francês, onde deixou suas marcas, a vida mesma que leva na Cidade do México pode ter desorientado alguns deles. Em constante busca de drogas, frequenta
“bairros sombrios”, reside por um tempo em um bordel. E então
ele se surpreende com esse interesse demonstrado por muitos pela cultura europeia.
Isso não o impede – como qualquer bom “missionário” representando
a França – de dar algumas palestras – muito apreciadas – sobre a cultura francesa.
O Surrealismo tem aí
o seu lugar, do qual Artaud sabe muito bem que é um movimento importante, que se internacionalizou e no qual ele próprio desempenhou um papel nada negligenciável. Recordará assim tudo o que este movimento “vestido de imagens”, de símbolos, foi capaz de trazer. Deixou-o, claro, para outros territórios, mais perigosos, mais aventureiros, mas – até ao fim da vida – conservará uma ligação com André Breton e com o
Surrealismo que de fato faz parte do seu porte. Com o passar dos meses e depois da aventura e a iniciação inacabada entre os Tarahumaras do noroeste do
México,
Artaud está cada vez mais à deriva. Na França, ele estava ligado à realidade por laços amigáveis, familiares e médicos (Dr. Toulouse, Dr. Allendy etc.). A viagem levou a melhor sobre as amarras
que o seguravam. Iya Abdy, seu intérprete favorito de
Os Cenci, que estava então no México, intervirá para repatriá-lo…
na Europa.
Tudo isso incomodou Artaud no México? Não: Artaud não veio à
terra vermelha para eventos sociais, conferências, discussões sobre o marxismo. Ele certamente confrontou suas ideias com
os outros, ficou curioso a respeito dos intelectuais e artistas que conheceu, mas sobretudo ele veio para respirar o ar do México antigo e se reencontrar em plena poesia. Uma poesia densa, carnal. Viva. É este México que ele quer reencontrar. Não nas ruínas arqueológicas, que parece ter
pouco frequentado, mas durante sua
jornada entre os Tarahumaras, atuais, vivos, e entre os quais ele passava perto de uma outra forma de iniciação
e de uma experiência muito mais importante.
A chave do México
para Artaud está na serra que deve ser buscada: nas danças e rituais dos
índios.
Por ocasião de seu retorno do México, seus amigos descobrem um Artaud excitado e vociferante que desembarcou em Montparnasse
com sua mala. Anaïs Nin dirá que Artaud voltou “magrinho”,
“drogado” (sem dúvida, mais ainda do que o habitual).
Suas relações com Artaud se tornarão difíceis e ela dificilmente o verá mais. Ele morará aqui e alí, com
amigos, experimentará o que alguns chamarão
de “início de vagabundagem”. Foi a época em que se plantou diante das pessoas no Boulevard Montparnasse, perto do
Dôme, exigindo dinheiro que considerava devido, dada sua infelicidade e seu gênio.
O retorno de Breton dos Estados Unidos foi – como dissemos – então saudado por
toda a intelectualidade francesa como um evento. O discurso de Breton em homenagem
a Artaud foi uma homenagem a um homem que a psiquiatria havia – de fato – destruído enormemente.
“O naufrágio” ainda produzirá um
grande número de textos extraordinários, como Van Gogh,
o suicídado da sociedade,
Para dar um fim ao julgamento de Deus ou os textos dos pequenos cadernos do retorno a Paris. A Paul Claudel, assustado com a ideia de aparecer em uma revista
literária ao lado de Artaud, este último dirá “Meu querido Cloclo” a lembrá-lo
que: “Sim, ele é um autêntico “clodo”. Um “autêntico alienado”.
Estamos muito longe, de fato, do dandismo de Breton. E mais, os tempos mudaram. A guerra aconteceu: os campos de
extermínio, Hiroshima e Nagasaki atormentam o pós-guerra. Artaud
mergulha cada vez mais fundo em uma forma de niilismo muitas vezes barroco,
suntuoso, mas de uma crueldade radical. Breton volta a ser líder de partido.
FLORIANO MARTINS | Entre os artigos na imprensa e as conferências, foram
sempre polêmicas as declarações de Artaud, e aqui quero destacar duas delas, uma
sobre as relações entre México e continente europeu:
– O
México atual copia a Europa e para mim é a civilização europeia que deve arrancar
do México seu segredo. A cultura racionalista da Europa fracassou e eu vim à terra
do México para buscar as raízes de uma cultura mágica que ainda é possível desentranhar do solo indígena –,
a outra
sobre Marx e Surrealismo:
– Se
o considero em sua essência mesma, o Surrealismo foi para mim uma reivindicação
da vida contra todas as suas caricaturas e a revolução inventada por Marx é uma
caricatura da vida.
Foi verdadeiramente
injusta, para não dizer covarde, a declaração assinada, 1927, por Louis Aragon,
Benjamin Péret, Pierre Unik e Paul Éluard, ao dizer
de Artaud que seus ódios – e sem dúvida atualmente seu ódio ao Surrealismo –
são ódios sem dignidade, acrescentando que esse inimigo da literatura e das
artes só intervém quando o aconselham seus interesses literários, que sua eleição
se dirige sempre aos objetos mais insignificantes, carentes do mais essencial para
o espírito e para a vida. Como tratar essa violência verbal despejada contra
a figura de Artaud da parte de muitos de seus companheiros surrealistas? Recordo
que ele mesmo teria escrito a Breton, em 1937, o considerando o Homem mais justo
que até aqui encontrei.
FLORENCE de MÈREDIEU | São brigas de grupo. Virulentas.
Excessivas. E parcialmente exageradas, teatralizadas. Cada um delimita e defende seu território.
A violência e o poder dos argumentos de uns e dos outros muitas vezes estão lá para consolidar e reforçar a importância dos protagonistas
presentes. Uma anedota transmite bem o tom dessas brigas e desses escândalos. Chamada durante uma dessas brigas „surrealistas”,
a polícia – em seu relatório – especifica
que havia apenas alguns curiosos e „velhas senhoras” (sic). Os movimentos literários de vanguarda
se alimentam de querelas, manifestos e panfletos. – O que seriam os futuristas,
dadaístas e surrealistas se removêssemos com uma varinha
de condão a acrimônia e a virulência que lhes deram todo o tempero e que fornecem – afinal – ao pesquisador
um amontoado de anedotas e arquivos a serem explorados?
Os surrealistas se uniram fortemente contra Artaud, mas ele lhes retribuiu todos os insultos com o conjunto dos “palavrões” necessários. Ninguém, nesse tipo de querela, ficou de fora.
No que diz respeito à
cultura mexicana que ele encontra ao chegar a esta terra em
1936, ela é
bem marcada tanto pelo marxismo quanto por uma certa influência europeia (o Surrealismo é uma delas). Não é isso que Artaud veio procurar. Há, portanto, um duplo mal-entendido com o qual Artaud nada tem a ver. Em suas
conferências, ele desenvolverá sistematicamente seu ponto de vista, passando alegremente por cima daquilo que poderia separá-lo de seus interlocutores.
Ele relembra a trajetória da pintura francesa naqueles anos, destacando um pintor como Balthus que
não é propriamente
falando um pintor surrealista,
ainda que o surreal esteja bastante presente em sua obra. Também não
é o marxismo que ele veio buscar, mas a antiga cultura indígena e o que ele quer propor é a indianidade. Essa não era então a maior preocupação
dos mexicanos.
A grande lição
de vida, de cultura, ele a encontrará entre os Tarahumaras, na serra. Estamos então a
mil léguas tanto do marxismo quanto do Surrealismo. Ainda assim, o governo mexicano e algumas
personalidades que conheceu no local, como Luis Cardoza y Aragon, deram-lhe a oportunidade
de encontrar o que queria e ele foi quase o único a procurar
e encontrar isso naquele momento. Será necessário aguardar a publicação – muito mais tarde – de seus diversos textos sobre
os Tarahumaras para que uma compreensão de sua abordagem se torne possível.
WOLFGANG PANNEK | No contexto da afinidade/rivalidade
entre Artaud e Breton, a senhora afirma que esses autores desempenham “papeis muito
diferentes” na discussão das relações entre Surrealismo e loucura. Breton, ex-estudante
de psiquiatria e estudioso de Freud, baseia a escritura automática em parte
na teoria do automatismo psíquico freudiano e procura em L’Immaculée Conception
(1930) simular dimensões discursivas de doenças mentais. Artaud, por outro lado,
recusa todo tipo de automatismo e defende um corpo como “um volonté que decide de
soi a chaque instant” (Lettre à Pierre Loeb, 23/04/1947) e alcança, segundo
sua interpretação, em Os Cadernos de Rodez “o automatismo mais puro, mas profundo, mais efervescente”, ao escrever “os
verdadeiros ‘campos magnéticos’ do século XX.” De seu ponto de vista, além da questão
das divergências ideológicas em torno do marxismo, seria possível afirmar que Breton somente cortejava a ideia da erosão mental,
isto é, uma realidade que Artaud de fato a vivenciava?
FLORENCE de MÈREDIEU | A questão do automatismo e do controle de si mesmo, de seu ser, até mesmo de seu inconsciente é para Artaud uma questão
cardinal. Não há um “soltar as rédeas” em Artaud, que quer controlar tudo, dominar tudo. A questão dos tratamentos
psiquiátricos e do eletrochoque encontra-se, portanto, no centro da questão. Na
medida em que o eletrochoque traz uma forma radical de “soltar as rédeas”, entendemos que Artaud vivenciava cada sessão como uma forma de violentação, de desapropriação radical de si mesmo. Daí
então o impossível: retomar o domínio. Controlar o incontrolável.
Isso será feito pela escritura e pelo conjunto dos pequenos Cadernos do asilo, escritos a toda velocidade, de maneira
“taquigráfica”. E
então vemos Artaud praticando
essa forma de automatismo e escrita automática que outrora
ele havia recusado, mas que se impõe a ele,
nesse processo de criação estranho e singular que entrelaça indissoluvelmente o controle e o abandono. Através de uma forma de
“ressurreição”
criativa original e singular.
Aquilo que
Georges Bataille entendeu ao evocar os escritos de
Artaud da época
de Rodez: “O que há de singular nesses escritos é o choque e a ultrapassagem
brutal dos limites habituais, o lirismo cruel que corta seus próprios efeitos, ao deixar de tolerar a própria coisa à qual dá a expressão mais segura.” (Georges Bataille, Le
Surréalisme au jour le jour).
Ainda é
necessário precisar
que não se trata – nos dois casos (Artaud e Breton) – da mesma profundidade ou do mesmo nível do inconsciente. Breton permanece na superfície, no domínio pelicular lá onde Artaud perfura e mergulha até a raiz, chegando ao que se poderia qualificar quase como grau zero do inconsciente.
É por isso que considero a escrita dos 406 Cadernos
escolares de Artaud como a expressão
mais perfeita daquilo que Breton e Éluard chamaram
de Os Campos Magnéticos, tendo a eletricidade, aliás, no caso de Artaud, desempenhado um papel efetivo (o choque elétrico)
e não
somente metafórico.
Aqui seria necessário reler todos
os textos que dediquei ao eletrochoque e ao papel fundamental que ele desempenhou
na concretização da especificidade dos últimos escritos
de Artaud, este, de algum modo, tendo
reagido de forma exagerada ao que veio a destruir e aniquilá-lo (v. Florence
de Mèredieu, Sur l’électrochoc, le Cas Antonin Artaud,
Paris, Blusson, 1996).
Você fala em “erosão mental”. Sim: foi isso
que Artaud experimentou durante o período de asilo e contra
o que ele se levantou, curando-se “como Jó em seu esterco”.
Mas aquilo teve um preço – de “regressão”, sofrimento e distanciamento – terrível.
Compreende-se
então a relutância de Breton face à loucura de Artaud. Ele pretendia se ater à simulação
simples, ao simples aparecer e não a “realmente” experimentar o transtorno psiquiátrico.
WOLFGANG PANNEK | A concepção artaudiana do teatro da crueldade se estende por um período de quase duas décadas, ou seja, desde o início dos anos 1930, resultando na
coletânea de textos intitulada O teatro e seu duplo (1937), até os últimos escritos artaudianos. Aparentemente,
o teatro da crueldade concebido por Artaud oscila desde o princípio entre a ideia de uma nova estética teatral e um projeto de uma transformação metafísica do ser humano. Ainda nas cartas de Artaud, escrita em torno de Pour en finir avec le jugement de dieu (1948) percebe-se uma certa ambivalência. De um lado, Artaud parece
investido em uma forma revolucionária do fazer teatral e, por outro
lado, persegue uma ideia muito mais radical; a da transformação do próprio corpo e modo de ser humano. Como analisa a evolução do pensamento de
Artaud em torno do teatro da crueldade e até que ponto considera haver conexões
conceituais entre o programa teatral artaudiano e a estética do Surrealismo?
FLORENCE de MEREDIEU | Em relação ao teatro e em relação à crueldade, há na obra de Artaud uma cesura fundamental. Esta se
situa e se articula precisamente – é o que marquei nitidamente na biografia que escrevi sobre o poeta – no espaço/tempo das duas “grandes viagens” feitas por ele em 1936-1937: o México, depois a Irlanda. É preciso repetir: essas duas jornadas (empreendidas,
aliás, uma quase depois da outra) são fundamentais. Este é o momento em que Artaud larga as amarras: no sentido próprio e figurado. Ele se liberta então de todos esses laços sociais e familiares e se reencontra sozinho com seus demônios e no coração
de dois espaços/tempos míticos.
No entanto, essa cesura se articula em torno de uma verdadeira reversão em sua concepção do teatro. Em uma carta a Jean-Louis Barrault,
endereçada do navio que o leva ao México no verão de 1936, Artaud, retomando sua concepção do teatro que se define,
declara:
“Trate-se talvez não de
um teatro em cima de pranchas”.
Este ponto é
fundamental. Artaud está em vias de liquidar todas as concepções clássicas do teatro. Ele volta à origem. Ao que ficará marcado pela carne, pelo inconsciente e esse encanto do corpo que anda. Artaud agora deliberadamente
“entrou na crueldade”. Ele não sairá mais.
Já não
se trata da mesma crueldade. E muito menos do “mesmo teatro”. Estes ganharam em intensidade, em concentração. E em natureza. O eletrochoque foi, então (desde 1942-43), essa grande crueldade que
faz perder a maestria e todo o controle. E que mata a essência do que foi
a primeira concepção de “crueldade segundo Artaud”, a saber: a lucidez e a consciência.
Será preciso que Artaud recupere essa lucidez, essa consciência. Em uma palavra, recuperar o controle do eletrochoque que é “perda de consciência”, “coma”, MORTE. Essa será a função da escrita e dos cadernos pequenos, a função também de todos esses gris-gris, desses grafites que povoam os caderninhos. Formas grosseiras
que surgem sutilmente do limbo e do caos das formas. Artaud é agora o Anti-Leonardo da Vinci. Anti-arte e anti-teatro ocidentais.
FLORIANO MARTINS | É muito bonito o que Artaud fala
a Anaïs Nin, em uma de suas cartas, testemunho do que chamas de amor abstrato:
Muitas coisas nos aproximam terrivelmente, mas uma sobretudo: nosso
silêncio. Tens o mesmo silêncio que eu. E foste a única pessoa diante de quem o
meu próprio silêncio não me incomodou. Em seguida ele remete a um silêncio veemente, dizendo que os dois sentem o murmúrio silencioso e secreto da terra. Recorda-nos aqui como se encerra essa relação tão
intensa: como o silêncio se instala entre ambos como um selo final?
FLORENCE de MÈREDIEU | Conhecida hoje pelas
cartas que trocaram e pelos poucos
relatos que Anaïs Nin deixou,
a relação dos
dois escritores era singular – em suas respectivas
imagens. Mas fugaz.
Em primeiro lugar, deve-se notar que essa relação não tem nada a ver com o Surrealismo, ainda que Anaïs
Nin não
ignorou a adesão temporária de Artaud ao movimento. Quando se encontram, Artaud já havia deixado o Surrealismo e não intenciona de maneira alguma retornar a ele. Anaïs
Nin não tem contato com o movimento. Foi durante a guerra, e quando
Breton e muitos artistas e escritores se mudaram para Nova York, que Anaïs
Nin, que se transferiu com seu marido Hugo aos Estados Unidos em 1939, procurou entrar em contato com Breton e seus amigos.
Eles então considerarão a jovem como uma socialite e não abrirão a porta para o
movimento.
Em 1932-1933, os círculos frequentados por Artaud e Anaïs Nin eram diferentes do movimento surrealista. É a proximidade dos dois com
o Dr. Allendy, psicanalista e líder de um importante grupo
de pesquisa cultural da Sorbonne, que favoreceu o encontro entre Artaud e Anaïs Nin. Allendy – que teve Anaïs como paciente e como amante – fará a ela uma advertência ao lhe recomendar não “brincar de coquete com Artaud”,
em razão da fragilidade deste último.
Ocorreu um encontro entre esses dois seres, ambos frágeis (porque sensíveis), mas, além disso, também
dotados de dois caráteres fortes. Um encontro efetuado no seio do que se pode chamar de “universo de poesia e sensibilidade”, articulado numa experiência comum (ainda que diferente)
da escrita.
Anaïs
Nin brincará de
namoro, demonstra atenção, tentando a sedução. Artaud é tentado, seduzido, mas também horrorizado pela liberdade
sexual de Anaïs,
tão
longe de seu pudor. Em razão, sem dúvida, de seu uso de opiáceos, Artaud se mostra impotente. Resta o silêncio, esse silêncio que eles compartilharam e um amor que permaneceu abstrato e, sem dúvida, fortemente encenado, teatralizado.
Artaud adora bancar o amante. Muito mais, ele precisa.
Durante toda a sua vida, ele se cercou de mulheres bonitas, sensíveis, inteligentes e que tiveram como
vocação entreter um certo estado de tensão passional ao redor dele. Vibrações de lindas borboletas que reavivaram esse sentimento vital que nele estava em uma situação de perda constante. Uma espécie de bateria elétrica
amorosa permanente
e sem consequência real, que tem como função elevar o nível muito baixo de um impulso vital fortemente perturbado.
Este fenómeno é particularmente
flagrante num certo número de escritos – ainda hoje inéditos
– que eu pude
consultar na Biblioteca Nacional. Trata-se de algumas
pequenas
agendas que lhe serviam como cadernos de anotação, no
início da década de 1930. Artaud descreve aí,
dia a dia, suas
aventuras e suas experiências femininas. São encontros reais e precisos;
as mulheres são nomeadas lá, as circunstâncias minuciosamente descritas. E tudo aquilo que poderia ocorrer.
Mas não…
A grafia é difícil de ler, mas entende-se que sobretudo faz parte
de fantasias que não chegam
a se
concetrizar. Fica-se com aproximações e preliminares de
preliminares, na fantasia sobre tudo o que
poderia vir a acontecer… mas que não
sai. Estamos de fato numa espécie de pináculo da impotência, que se toma como objeto, se vê vendo a si mesmo e mantém um universo de limbo…
Essa impotência de Artaud – no sentido fisiológico – e que se
duplica em um sentimento de impotência psíquica e metafísica, lembro-me de tê-la
evocado em uma conferência sobre Artaud que dei em Pequim, na China, diante de uma plateia composta
por estudantes e gente do teatro. Isso então chocou um pouco alguns membros da plateia. Anaïs Nin, no início dos anos 1932-33, descobre essa impotência, não guarda nenhuma animosidade em relação ao poeta, mas logo percebe que ela
está associada a outras rachaduras.
Artaud, portanto, compartilhou alguns momentos fugazes com Anaïs Nin. Eu os descrevo com bastante precisão em minha biografia.
Esta, mais tarde, recordará, recontará, reconstruirá… Artaud, nestas mesmas agendas inéditas mencionadas anteriormente,
e em 1933, ao regressar de uma visita de Anaïs Nin a Louveciennes,
nota claramente que ela “precisou escrever e reescrever os acontecimentos para acreditar neles”.
Do lado de Artaud e na sequência de sua vida, nota-se um certo desaparecimento da própria personagem de Anaïs Nin, que acabará sendo associada de forma bastante redutiva ao seu amante Henry Miller, cuja
vida dissoluta ele jamais cessará de denunciar. A borboleta terá voado para longe. Outras formas
femininas – mais atuais, mais marcantes (como Yvonne Allendy ou Dona Régis, enfermeira-chefe de Rodez) tomaram seu lugar. Anaïs também não será uma das filhas de coração de Antonin Artaud, essas figuras femininas com as quais ele
cercará sua existência durante os dois curtos anos de seu retorno a Paris.
WOLFGANG
PANNEK | Nos textos
artaudianos, anteriores e durante o período surrealista, a ideia da investigação
e a da revolução do espírito, inclusive como precondição de qualquer revolução social,
ocupa um lugar preeminente no pensamento de Artaud. Em Le pese-nerfs, ao abordar “cet état d’absurde impossible, pour essayer
de faire naître en moi de la pensée”, Artaud define
A surrealidade é como um estreitamento
da osmose, uma espécie de comunicação
reversa. Longe de ver nisso
uma diminuição do controle, vejo, ao contrário, um controle
maior, mas um controle
que, em vez de agir, desconfia, um controle que impede os encontros da realidade
ordinária e permite encontros mais sutis e rarefeitos, encontros afinados até o filamento
que pega fogo e não rompe jamais. Imagino uma alma trabalhada e como enxofre e fósforo por esses encontros, como o único estado aceitável de realidade.
Neste mesmo texto, Artaud descreve o estado surreal como
um devir virtual e declara que “toute l’écriture est dela cochonnerie” e que “le
gens qui sortent du vague pour essayer de préciser quoi que ce soit qui se passe
dans leur pensée, sont de cochons.” O texto culmina, junto à negação
da linguagem e de seus efeitos literários, na negação do espírito: “pas d’esprit”. Mais tarde, Artaud dirá “merda” ao espírito e em Suppôts
et Suppliciations (1947), este embate com o espírito leva o poeta a opor ao
espírito puro um corpo puro, um corpo-sem, desinstrumentalizado
e livre de qualquer atributo, qualificação ou função
possíveis. Esse corpo sem órgãos invocado em Pour
en finir avec le jugement de dieu (1948) já não diz respeito a estados-encontros
extáticos como realidades espirituais, mas à criação de um corpo novo por
meio do teatro da crueldade. Como
a senhora avalia a transformação do pensamento artaudiano em torno de sua ruptura
com o espirito e a favor do corpo (sem órgãos)
e de uma carne que transcende o espirito?
FLORENCE de MÈREDIEU | O que você está evocando
é a velha separação entre espírito e matéria (aqui: a carne) e esse dualismo
– corpo/espírito – que Artaud rejeita com todo o seu ser enquanto o expressa e sente (no
corpo e na mente) como um espinho no coração do
ser Mal Feito,
não
Feito e Perdido por Deus. A
questão
– digamos – é insolúvel. E Artaud também se encontra plantado (crucificado, pode-se dizer) no coração do escândalo dessa contradição.
O que ele procura e encontra é, portanto, ora
a separação violenta, a cisão
entre corpo e mente, ora sua abrasão recíproca, a fusão incestuosa e antinatural dos dois dentro de algo que não é nem corpo nem espírito e cujo amálgama soa como um golpe
numa tábua de açougue.
Toda a obra de Artaud, o conjunto de seus gestos, escritas, grafites, grafias
e rumores, se situa no pleno coração desta “usina superaquecida”. Verdadeira usina nuclear. Uma Chernobyl física
e mental. Metafísica.
A questão
central acabará por se tornar – no manicômio e nos últimos anos do poeta: “como não ser”. Todo o problema finalmente seria escapar do ser. Não mais ser. Cortar o ser pela raiz. Neste ponto onde Deus nos plantou – de maneira distorcida e desconjuntada – no coração
daquilo que é apenas um substituto do
ser. Esta problemática percorre todos os “Cahiers de Rodez” [Cadernos de Rodez] e os “Cahiers du retour à
Paris” [Cadernos do retorno a Paris].
Como escapar do eletrochoque? Como escapar do sofrimento do ser? Do seu absurdo ou seu horror?
O conjunto dessas questões reaviva todas as grandes questões metafísicas que a filosofia sempre se colocou. Artaud sabe disso. E é nessa imensa trajetória que remonta muito, muito longe, até os pré
– socráticos e bem antes, que ele pretende se situar. Este cisma
de corpo e mente, ele o vive e o viveu até as profundezas de seu corpo e de seu ser. É isto o que cada eletrochoque põe
em obra. A obliteração
da carne, da consciência. O retorno
às dores
anteriores ao estado zero.
FLORIANO MARTINS | Ao final de seu livro anoto essas palavras: O corpo de Artaud parece ter
acabado com deus, com o mundo, com os homens e com a medicina. Ele próprio dirá, em sua resposta à enquete surrealista sobre o suicídio: Não sinto o apetite da morte, sinto o apetite de não ser. Nessa permanente luta interior com o eu deste
enfermo errante – o eu de Antonin Artaud, sobre o qual dizia: Ninguém como
ele sentiu a fraqueza que é a fraqueza principal, essencial da humanidade. A ser
destruída, a não existir –, o suicídio seria inevitável? Recordo
que em carta a Peter Watson, 1946, ele mesmo diria: se é difícil viver, cada
vez se torna mais impossível e ineficaz morrer. Até que ponto teria sido eficaz a morte de Artaud?
FLORENCE de MÈREDIEU | De
início, é preciso esclarecer que Artaud não acreditava
na morte. Esta é
apenas uma passagem, para outra realidade. É por isso que minha biografia do personagem
termina por lembrar do Livro Egípcio dos Mortos, que o poeta conhecia bem. O suicídio é, neste sentido, estritamente impossível. Passamos apenas
de um envelope para outro, ou para a ausência de qualquer
envelope. De uma realidade para uma outra. Deve-se notar que isso leva a uma espécie de necessidade terrível de imortalidade. Não há escapatória. Nenhum suicídio permite, de repente, livrar-se de si mesmo. O ser está assim condenado a
uma espécie de eternidade feroz.
Artaud sobrevive e sobrevive a si – para o melhor, mas também para pior – em todos os seus comentadores, seus duplos, nos inesgotáveis empréstimos e nas glosas dos quais não cessa de ser o objeto e que continuam a sugar
e a absorver aquilo que havia nele de medula substancial. E
isso certamente teria sido um
horror para ele, ele que tanto temia os íncubos e súcubos que via circulando ao seu redor.
O que poderia ser mais aterrorizante em muitos aspectos do que esta vida póstuma de artistas que são desossados e dissecados muito além do osso, em que se estudam esplendores e torpezas, que são manipulados e distorcidos em todos sentidos. Toda cultura é canibal. Artaud sabia-o bem.
Bem no final de meu livro, L’Affaire Artaud (Paris, Fayard, 2009),
que trata especificamente da vida póstuma de Artaud,
clarifico que ainda não terminamos de desenvolver todas faixas e fitas das letras
desse corpo (ou corpus) literário e metafísico dos pequenos Cadernos
de escritos que se encontram (essencialmente) em Paris, na Biblioteca Nacional
da França. Artaud e seu trabalho (seu corpo de papel) terão sido abusados de uma maneira, é preciso dizê-lo, bastante furiosa. O livro que dediquei ao tratamento do corpo póstumo de Artaud, L’Affaire Artaud, refaz a história de algumas dessas manipulações.
WOLFGANG PANNEK | Em Eis Antonin Artaud, a senhora destaca”a amizade” entre Artaud e o pintor André Masson como uma relação afetiva que “precede a aventura surrealista”. Seu livro menciona ainda que Masson “serviria de
intermediário” entre os surrealistas e Artaud. Segundo seus estudos,
o pintor teve uma consciência aguda do jogo de seduções e
tensões entre Artaud e Breton. Artaud, por sua vez, descreveu a pintura de Masson
“como espírito que se vê e se oculta”
e Masson retribuiu a admiração mútua com um dos mais belos retratos feitos de Artaud.
Aparentemente, havia um período de colaboração intensa e consistente
entre o poeta e o pintor na Central Surrealista e Masson não estava envolvido na
posterior expulsão de Artaud do movimento. De que maneira a senhora situa a relação
entre Artaud e Masson mediante o pano de fundo do Surrealismo?
FLORENCE de MÈREDIEU | Sua amizade precede a adesão de Artaud ao Surrealismo. Trata-se de um encontro que aconteceu muito cedo, a partir de 1922 quando
nenhum dos dois ainda conhecia André Breton. Este duplo
encontro, do poeta e do pintor,
terá lugar em 1924. É necessário evocar aqui o que se
chamou “o grupo da rua Blomet”, cristalizado em torno do ateliê (muito aberto) de André
Masson. Juan Miró teve outro ateliê adjacente e muitos artistas
e homens de letras passaram por lá (Dubuffet,
Leiris, Artaud etc.). Masson e Artaud também se encontraram durante as noites organizadas pelo marchand
Henri Kahnweiler. Artaud redigia belos textos para evocar as obras de Masson (cf. “Un ventre fin”, extrato de L’Ombilic des limbes, 1925, ecoando a pintura de Masson, “Homme”, 1924: “O ventre evoca a cirurgia e o necrotério, o canteiro de obras, o local público e a mesa de
operação. O corpo do ventre parece feito de granito, ou de mármore, ou de gesso endurecido. Há espaço para uma montanha. A espuma do céu faz à montanha um contorno translúcido e fresco.”).
É juntos
que eles ocuparão a Central Surrealista, imprimindo nela sua marca, antes de se afastarem um do outro. A seguir,
Artaud
e Masson manterão distância. Um em relação ao outro e em relação ao grupo dos surrealistas. Eles
simplesmente não precisavam extrair sua energia da força ou do poder de um grupo. Eles
tinham dentro de si toda a potência, riqueza e força que lhes permitiam definir-se e funcionar.
É o que se chama de “potência criativa”, que deixa de lado tudo o que “gravita” ou “gira ao redor”.
André Masson se estabelecerá rapidamente no sul da França. Ele acabará por romper com Breton
e aproximar-se de Georges Bataille, de quem ilustrará vários textos. Masson e Breton ainda terão a oportunidade de se encontrar durante
a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, ambos se refugiando por lá; eles vão ficar intrigados. Artaud, por sua vez, está internado durante esse tempo em asilos psiquiátricos franceses.
Mais tarde, quando Paule Thévenin – após a morte do poeta em 1948
– procurará federar os “Amigos de Artaud” para se opor à família do poeta, Masson começará por assinar a sua adesão à “Société
des Amis d’Artaud”. A seguir, mudou de opinião e retirou a sua assinatura.
Os estatutos do novo grupo (e em particular
certas alterações evocando uma possível exclusão de vários membros) lhe lembravam demasiado
a exclusão de Artaud do grupo surrealista, da qual não havia participado.
Convem observar que os desenhos automáticos de André
Masson (1923-1928) antecedem o seu encontro com Breton. Eles
são como a contrapartida da escrita automática. Ao tomar conhecimento
desses desenhos, Breton abriu imediatamente a porta da Centrale ao jovem pintor.
O Manifesto do Surrealismo de 1924 terá como pilar e fundamento essa questão
do automatismo. No entanto, rapidamente surgirão divergências de opinião entre o pintor e André Breton, suspeitando
Masson que este último tenha uma concepção mais
intervencionista e menos espontânea do ato automático.
O pintor defenderá a ideia de uma extrema fragilidade do desenho automático, cuja pureza depende
de um soltar as amarras e deixar acontecer, comparável a um processo de não condução consciente e – claro – de não retomada (A respeito dessa questão, ver o estudo publicado por mim em 1988,
André Masson, les dessins automatiques, Paris, Blusson, 1988).
Importa, pois, constatar que Artaud e Masson muito contribuíram para o
Surrealismo: Masson, a errância, o nervosismo e a intensidade automáticos; Artaud manifestando-se pela acrimônia de seus comentários e, em particular, pela série de “Cartas” virulentas que ele
patrocinará ou escreverá pelo menos parcialmente: Cartas aos
Médicos Chefes dos Asilos de Insanos, aos Reitores das Universidades, ao Papa
etc.
O Surrealismo trouxe-lhes – em troca – a possibilidade de uma cristalização
coletiva de afetos e ideias que continuarão a explorar de maneira mais ampla durante suas vidas. Ao lado de uma forma de reconhecimento
futuro claramente marcado, a noção de “Surrealismo” funciona hoje como uma logomarca de fábrica universal.
FLORIANO MARTINS | Poeta
atípico, cujo poema era um grito ecoado das entranhas de seu teatro da crueldade,
a obra de Artaud – cartas, teatro, ensaios, conferências, poemas – encontra-se radicada
no centro dessa metafísica da palavra evocada por ele, refletindo, como afirma
Aldo Pellegrini, na apresentação de sua tradução de Van Gogh o suicidado pela
sociedade, essa verdadeira realidade do homem que a sociedade proíbe.
E Pellegrini acrescenta: O ciclo de contradições em Artaud não apenas está muito
distante de ser gratuito, como tem um profundo sentido: o de conquistar a essência
mesma do processo vital. Esta é também a sua opinião? Como observar os reflexos
de sua obra em um tempo atual em que essa nova linguagem buscada por Artaud contrasta com o desmantelamento patético
de toda uma sociedade?
FLORENCE
de MÈREDIEU
| As “contradições”:
vitais, apaixonadas, políticas e metafísicas, são o que constitui
o sal do pensamento
de Artaud, minando e arruinando na base, mordiscando de forma conscienciosa os próprios fundamentos do nosso racionalismo
ocidental. É
–
de resto – tão
bom de estar em desacordo com este
mundo terrível, absurdo e indigente que
esta última
década nos
propõe, nos impõe. Ser
inatual tornou-se necessário. Uma questão de simples sobrevivência. De si mesmo
e da espécie. Os
desenvolvimentos dramáticos que estamos experimentando no início de 2022 seguem
uma exacerbação constante (intensiva e sem dúvida quantitativa) da crueldade do
mundo.
Eu gostaria de invocar mais esta única questão: cardeal. A da guerra. Desta guerra que volta com
força para nós e que nos leva hoje a evocar uma possível 3ª Guerra Mundial. Esse fenômeno, analiso em meu livro
Antonin
Artaud dans la guerre. De Verdun a Hitler (Paris,
Blusson, 2013), especificando o resto dos estatutos e das posições precisas, tanto de Artaud quanto de Breton (e também de tantos outros,
como André
Masson, Louis-Ferdinand Céline ou Blaise Cendrars que foram feridos durante a primeira guerra) na guerra
e no pós-guerra de 14/18 e 39/45.
Desde os anos 1920 e 1930,
na esteira da guerra de 14/18, Artaud se debruça sobre a questão
“europeia” e o futuro deste antigo continente, certamente reservatório de uma imensa cultura, mas da qual ele pressente a possível decadência, a submissão a imperativos técnicos e políticos que lhe parecem distorcer a questão humana.
FLORIANO MARTINS &
WOLFGANG PANNEK | Esquecemos algo?
FLORENCE de MÈREDIEU | Espero que SIM: que
“nos esqueçamos de
alguma coisa”. Esquecida ou “ainda não percebida”… Coisas infinitas. Que tomarão forma mais tarde, na sequência. No futuro… O estudo de um ou dois autores – como seu confronto – nunca
deve visar qualquer tipo de fechamento, mas deve permanecer aberto… à medida de sua profundidade… de seu poder de fricção… Chega de “palavras definitivas”! Os textos críticos “definitivos”
são perturbadores. Sua única função
é reduzir e simplificar autores cuja amplitude nada tem a ver
com esses limites que qualquer explicação definitiva representaria.
Um ponto, porém, que representou um elemento importante para Artaud: os escândalos
surrealistas. Breton, como sabemos, tinha uma estratégia bem ensaiada de comunicação e extensão de seu território, que consistia na produção – muito teatral – de escândalos mundanos da sociedade durante os quais os vários protagonistas acabaram por se despedaçar. O “gerente” do Surrealismo tinha, deste ponto de vista (como de muitos outros) aprendido
a lição do Dada e do Cabaret Voltaire. Tratava-se de fazer o máximo de barulho possível, chocar, provocar, ofender: o público,
os adversário, a opinião pública, as instituições e os poderes
públicos. A imprensa e os diversos meios de comunicação apoderam-se
então do acontecimento, que é repercutido e acaba por
deixar vestígios. Esses vestígios, esses fatos e pequenos acontecimentos que nós críticos e historiadores buscamos pacientemente em tratados, resenhas, memórias e crônicas etc. E que acrescentaram o sal ao
que – de outro modo – poderia se tornar demasiado
insípido.
Associado a um certo sentido de festa, de tumulto, do maravilhoso e de conversas
ácidas, o escândalo faz milagres. Ele assegura a cada evento aquele quarto de hora de celebridade (e muitas
vezes um pouco ou muito mais) do qual o grande mestre da mídia, Andy Warhol, será mais tarde o campeão. Isso, Artaud imediatamente adorou, ele que, em sua infância e adolescência, gostava de organizar o que hoje chamamos de “happenings” ou performances. Chocar.
Assustar. Desencadear atos insólitos. Perturbar os dados da situação
e do contexto em que nos encontramos.
Eis o que Artaud encontra no Surrealismo e ao que se entrega de coração alegre. Ele torna-se assim uma espécie
de mestre e mágico no domínio da provocação. As famosas
“Cartas” que mencionamos e que foram publicadas na Revolução Surrealista participam da mesma forma do
grande
reboliço surrealista, de busca do bizarro e do surreal em que Artaud e Breton se encontram.
Esse sentido de provocação (essa hidratação das instituições) será, aliás, levado
tão longe por Artaud que Breton acabará por se inquietar com isso, expulsando Artaud do grupo e “retomando o comando”.
Isso não impediu que Breton e seus amigos provocassem o famoso escândalo em Le Songe [O Sonho], durante a apresentação da peça de Strindberg montada por Artaud. A estreia
será devidamente sabotada. Artaud será acusado de ter chamado a polícia. O
que retém boa parte da opinião
pública então
não
é (só ou de maneira alguma) a peça, mas o
burburinho e o barulho que a cerca.
O último grande escândalo de sua vida será a gravação radiofônica de Para dar um fim ao Juízo de Deus, em 1948, que lhe valerá a ira da censura e a proibição da emissão.
Só será transmitido em 1973. Artaud, o rebelde, jamais
terá baixado a guarda.
POST SCRIPTUM: UMA QUESTÃO ESQUECIDA
FLORIANO MARTINS & WOLFGANG PANNEK
| Ao reler suas respostas, chegamos
à conclusão que, de fato, “esquecemos” uma pergunta importante. Esta questão que ainda gostaríamos de acrescentar não diz respeito a Artaud e sua relação
com o Surrealismo mas ao seu processo de pesquisa em torno da vida e obra do poeta:
Como a senhora avalia esse processo a partir de um ponto de vista atual? Quais foram
suas motivações iniciais, como essas motivações mudaram ao longo dos anos e que
influência sua escrita sobre Artaud exerceu
sobre seu própro desenvolvimento?
FLORENCE DE MÈREDIEU: SIM, obrigado
por esta pergunta que – após 52 anos de pesquisa aprofundada sobre o
trabalho e a vida de Artaud – pode fazer sentido. Todavia, deve-se ressaltar que
Artaud não foi meu único objeto
de pesquisa, que se estende ao conjunto da arte moderna e contemporânea (e para muito além disso). Esta pesquisa,
portanto, nada tem
de mono-maníaca;
bem ao contrário, ela
se alimentou de tudo que descobri
no campo da arte e das ideias. Além disso, minhas pesquisas também são alimentadas
pelas ciências humanas e filosóficas, tanto da história das ciências quanto das tecnologias (médica e outras).
Tudo isso se inscreve
no
coração de um campo cultural muito amplo. Minha formação inicial
como filósofa tem muito
a ver com isso. Nos anos 1963-68, o curso
dos estudos filosóficos (que segui na Sorbonne) foi resolutamente polivalente.
Estudamos a história da filosofia e metafísica, a lógica, a ética (e política), mas também a história das ciências; descobrimos a
sociologia, a psicologia
e a psicanálise. Eu fiz até um curso
de “semiologia da doença mental” com a apresentação de pacientes
em Sainte Anne (sic). A própria estética, a questão do belo e
da arte, se encontrava no programa de agregação [para a qualificação de ensino de
segundo grau; NT].
Além disso, obtive também um certificado em estética.
Essa formação pluridisciplinar
me serviu muito. Bastava então – diante de um objeto de estudo específico – aprofundar
cada faceta da questão por meio de leituras e de pesquisas apropriadas.
É o que eu sempre fiz. Progressivamente, isto levou a
constituir uma
base suficientemente
sólida em
diversas disciplinas, como por exemplo a história da medicina (eu tinha feito uma tese de mestrado com Ferdinand
Alquié sobre “Le vivant chez Aristote et Descartes” [O vivo em Aristóteles e
Descartes].
Paralelamente as
minhas próprias pesquisas, fui encarregada
por editores a escrever uma história da arte que se tornaria a Histoire matérielle
et imatérielle de l’art moderne et contemporain (Bordas, 1994, depois
Larousse, 2017) que muitas pessoas conhecem. Aqui novamente o campo de pesquisa
era imenso… e Artaud encontrou seu lugar nele.
Entre as “encomendas” editoriais, duas
foram importantes: a biografia de Artaud, C’était Antonin Artaud e
o livro L’Affaire Artaud, dois livros “propostos” em 2000, e que
serão lançados em 2006 e 2009, respectivamente. Claude Durand, o diretor das
Edições Fayard, me deu carta branca. Relativo ao conteúdo e à quantidade. Foram
duas investigações longas e apaixonantes apoiadas em tudo o que eu já sabia e
havia acumulado nos anos anteriores. Lá novamente as descobertas – na Biblioteca
Nacional onde desnudei, de A a Z e meticulosamente, os arquivos deixados por
Paule Thévenin ou nos vários lugares por onde Artaud passou etc. – frequentemente
me deslumbravam e espantavam. Era tão emocionante quanto um romance policial. E
isso será notado por muitos leitores por ocasião da publicação. Essas obras – durante
sua gestação – permaneceram “secretas”. Sobretudo L’Affaire Artaud:
as pessoas informadas mal poderiam ser contadas nos dedos de uma mão. O
resultado satisfez Claude Durand além do esperado e o deixou encantado, ainda
que L’Affaire Artaud lhe tenha causado alguma preocupação
junto à intelegência e à mídia, que responderam com censura.
Quais foram minhas
motivações iniciais?
No início, eu queria
“escrever”, o que nunca deixou de ser o caso. Depois de 1968, quando se tratou de prosseguir
com a pesquisa acadêmica, eu me interessei
pela relação entre ART
e FOLIE. Bernard Teyssèdre (da Universidade de Paris I) me aconselhou a interessar-me
pelo personagem de Artaud. Descobri
uma história extraordinária, um personagem singular e – sobretudo – uma linguagem
deslumbrante. Como jovem professora, dei muito rapidamente cursos sobre Artaud, primeiro na escola
secundária, depois
na universidade.
Este ensino foi
importante por se tratar de um conhecimento e um saber compartilhados com um auditório,
e com indivíduos singulares. Para mim, os cursos
sempre desempenharam o papel de uma “caixa de ressonância” para minhas
ideias e meu pensamento. Com o acréscimo de uma certa dimensão teatral inerente
à função e ao
papel do professor.
Então tudo se desdobrou e se
desenvolveu por si mesmo, sem que
eu tivesse de intervir
muito no plano do encadeamento
dos eventos. Uma coisa levou à outra, eu conheci – no que
diz respeito a Artaud – um certo número de
personagens e rapidamente compreendi que havia ali uma espécie de terreno de jogo mítico, muito protegido,
coberto de decretos, de interdições. Minha curiosidade e minha força de caráter não se satisfazendo com decretos,
me vi rapidamente
querendo perfurar
ainda mais e procurar o que se escondia por trás dessa mitologia toda que então assolava
o personagem de Artaud: poeta maldito e louco, nascido e renascido, e interditado
por uma parte da inteligência.
Eu então não procurei nada
e de repente me vi – por causa do meu interesse nos desenhos de Artaud – face a uma querela já antiga.
L’Affaire Artaud, publicado pela
editora Fayard em 2009, conta essa história espantosa da vida
póstuma do poeta
e como, um belo dia em 1981, eu me encontrei no coração do jogo.
Então, ou se desiste e deita,
que é o que tudo
mundo me pediu para
fazer, ou se persevera e
batalha. Em 1994
(quando descobri a maneira como as obras inéditas de Artaud
eram gerenciadas), escolhi
a batalha: pelas
ideias e pela simples necessidade de defender uma obra.
Então sim: tudo isso
teve influência sobre
meus modos de escrita, e na minha vida eu aprendi (sem preocupação nem esforço, devo dizer)
a lidar com o princípio da
“Carta Aberta” e também aprendi como não sendo ninguém, uma certa
forma de agitprop, pode permitir contrariar
(até certo ponto) os poderosos.
Meu trabalho sobre o eletrochoque
só
foi possível devido
a uma série de circunstâncias: antes de tudo, por meu interesse pela
psiquiatria. Em segundo lugar, pelo fato de
eu dispor (por razões familiares)
de um amplo
arquivo de psiquiatria relativo ao período das duas guerras
mundiais. Percebi então que um número substancial de livros,
periódicos
e de observações
de pacientes etc., estava à minha disposição. A seguir, complementei sistematicamente
com pesquisas nas bibliotecas das Faculdades de Medicina (sem esquecer Sainte-Geneviève (que
em 1992-96) tinha muitas teses psiquiátricas. Mais uma vez, como se vê, é uma questão
de pesquisa, de trabalho. Preciso. Referenciado.
O mesmo se aplica
ao meu trabalho sobre a guerra
nutrido pelas revistas
neurológicas do
tempo da guerra e pelos arquivos disponíveis nos diversos museus e
arquivos de guerra. O que também me permitiu retratar
o personagem Louis-Ferdinand Céline, cujo texto Guerre, que acaba de
ser lançado pela Gallimard (maio de 2022) era de fato o famoso elo
perdido no corpus celineano. Essa questão da
Primeira Guerra Mundial, que põe
em cena personagens literárias tão importantes quanto Louis-Ferdinand Céline, Antonin
Artaud ou André Breton, eu havia desenvolvido em meu livro Antonin Artaud
dans la guerre. De Verdun a Hitler (Paris, Blusson, 2013).
Com
a ajuda de documentos inéditos encontrados nos Arquivos do Hospital Val-de-Grâce em Paris.
Meu trabalho, portanto,
nunca parou de evoluir. Cada livro aponta para um campo particular – desenho, artes
plásticas, Antonin
Artaud, Portraits et gris-gris (Paris, Blusson, 1994 e 2019), Van Gogh, psiquiatria,
viagens, guerra, a
psiquiatria e suas técnicas, o Oriente (Japão e China etc.). Também tenho
livros inéditos e quase completos sobre assuntos bem diferentes.
Portanto, para mim não se trata
de repetir ou colar novamente o que já foi dito (o que todos fazem o tempo todo, sendo Artaud um
tema inesgotável de glosas,
paráfrases e
de cópias ou
repetições mais ou menos coerentes). Cada vez, trata-se
para mim de penetrar num
território não desbravado e de cavar, perfurar.
O trabalho e a vida
de Artaud são cada vez relidos e revisitados de outra
maneira, à luz de um ou mais contextos históricos específicos. Em segundo
plano, se desenha cada vez
uma época, com seus
hábitos, costumes
e tendências. Um exemplo: o Centro Pompidou apresenta atualmente
uma vasta exposição dedicada à Alemanha nas décadas de 1920 e 1930 (August Sander, a Nova Objetividade etc.). O
interesse desta exposição reside no fato de que estes são elementos fortes pouco conhecidos
na França e quase nunca mostrados em sua
amplitude e seus detalhes.
Aconteceu ainda no final de 2019,
quando dedicava um livro
às
relações (complexas) do trio: BACON ARTAUD VINCI, Une blessure
magnifique (Paris, Blusson,
2019), que
descobri que um elemento unia Antonin Artaud e Francis Bacon: viagens feitas
(com leve defasagem
temporal)
a Berlim (a Berlim dos
anos 1930). Os dois ficarão
igualmente maravilhados e invadidos pela atmosfera então particularmente teatral
de estupor, brilho e “realismo” da Berlim da época. Muitos dos artistas
e autores que conheceram então são mencionados nesta exposição de 2022, o que aumenta meu
conhecimento das viagens de Artaud a Berlim, quando ele foi lá para rodar filmes,
em particular com Pabst.
Isto adensa e torna mais carnal, vivo e pictórico
o duplo conhecimento de
Berlim
de Francis Bacon e de
Antonin Artaud. Fico feliz aqui por poder evocar, na hora, a impressão deixada
em mim por esta exposição no Centre Pompidou.
Entre 1969 e 2022,
muitos eventos ocorreram em minha vida intelectual como escritora e pesquisadora.
Pois se tratava
de fato de pesquisa
e de descobertas
que – às vezes, muitas vezes – me surpreenderam. De algum modo, o Todo
deve constituir (e se eu acrescentar o conjunto de minhas obras inéditas) uma
espécie de Grande Obra que espero seja abundante, diversa e ENCARNADA.
Uma palavra – para
“terminar” – Cada um destes livros cobre uma parte da vida. Hélène Guillaume,
que foi uma de minhas editoras na Fayard, disse-me uma vez: “Não estou preocupada
com você. Você está – em relação a L’Affaire Artaud – totalmente por
fora e totalmente por dentro. Isto pode ser dito de toda minha relação com Artaud
e suas obras, assim como de todos os meus escritos. Uma vez que um livro foi escrito, me sinto
cada vez renovada. E pronta para começar
uma vida totalmente nova.
WOLFGANG PANNEK | Ator, diretor, autor e produtor de artes performativas, alemão radicado no Brasil desde 1992. Codiretor da Taanteatro Companhia. M.A. Formação em filosofia, letras e psicologia, pela FernUniversität Hagen (Alemanha). Doutorando em filosofia na Academia de Belas Artes de Leipzig.
FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.
ENRIQUE DE SANTIAGO | Chile, 1961. Artista visual, poeta, investigador, ensayista, editor, curador y gestor cultural. Ha dictado charlas en diversas universidades, museos y centros culturales. Estudió Licenciatura en arte en la Universidad de Chile y en el Instituto de Arte Contemporáneo (Chile). Desde el año 1984, que expone en muestras individuales y colectivas en diversos países, contando a su haber alrededor de más de 120 exhibiciones. Tiene a su haber 6 libros de poesía. Ha participado en variadas antologías de poesía, tanto en Chile como en el extranjero. Colaboró en el diario La Nación con artículos de arte de los nuevos medios, y en revistas como Derrame, Escaner Cultural y Labios Menores en Chile, Brumes Blondes en Holanda, Adamar de España, Punto Seguido de Colombia, Sonámbula de México, Agulha Revista de Cultura de Brasil, InComunidade de Portugal, Styxus de Rep. Checa, Canibaal de Valencia, España, Materika de Costa Rica y otras publicaciones impresas y digitales. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10
Número 209 | maio de 2022
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)
Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
ARC Edições © 2022
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/floriano.agulha/
https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/
Nenhum comentário:
Postar um comentário