ANDRÉ BRETON
A obra toda de Toyen não
tem objetivo que não corrigir o mundo exterior segundo um desejo que se alimenta
da própria satisfação e nela cresce.
BENJAMIN PÉRET
Toyen, uma figura central,
encarnação elegíaca do orgulho e da nobreza livre de presunção. Ela falava pouco,
não escrevia, sua contribuição teórica é impalpável, ela deixa para trás apenas
uma produção pictórica imensa, mas sua presença carregava um peso emocional difícil
de imaginar.
ROBERT BENAYOUN
No começo dos anos 1970,
Petr Kral estava em visita a Conroy Maddox em Londres e fui convidado para um jantar
no apartamento de Maddox. Petr Kral falou de Toyen: “ela se cerca dos poetas e da
poesia mais aguçados, André Breton, Paul Éluard, Benjamin Péret, Jindrich Strysky,
Jindrich Heisler, Radovan Ivsic, Annie Le Brun, Georges Goldfayn, todos são bons
estimulantes e parceiros para sua capacidade”.
JOHN WELSON
Em meados dos anos 1970,
conversei com Vincent Bounoure em Paris sobre sexualidade e gênero e ele disse de
Toyen: “Em algum momento futuro, todos iremos chegar onde Toyen está agora, onde
já está há um bom tempo”.
JOHN WELSON
Selvagem, solitária, secreta,
Toyen incorporava paradoxalmente uma das mais belas imagens da amizade surrealista,
tanto na França quanto na Tchecoslováquia.
RADOVAN IVSIC
Presume-se que o nome “Toyen” seja derivado da palavra
francesa “citoyen”, que significa cidadão.
Toyen foi fundadora do grupo surrealista da Tchecoslováquia,
em 1934, e uma força e uma energia significativas em Paris de 1947 até sua morte.
Ao longo de meio século de criação, produziu um volume muito considerável de obras,
entre pinturas, colagens, desenhos e ilustrações. Foi excepcionalmente prolífica,
produzindo uma vasta obra em diferentes estilos ao longo de sua carreira. O conteúdo
e a intenção da obra também evoluíram ao longo dos anos, mas no cerne de seu trabalho
permanece uma qualidade altamente competente e confiante de desenhista, misturada
e fundida com uma imaginação sem limites. Na base formativa de sua carreira, ganhou
a vida produzindo ilustrações comerciais para livros, em diferentes estilos e tendências,
de livros de histórias infantis a obras traduzidas de autores tão diferentes quanto
H. G. Wells e Kafka. Continuou a ilustrar livros por toda a vida. Essas ilustrações
eram normalmente produzidas como contornos, mas ela também utilizava a colagem como
meio para atingir seu objetivo. Seu interesse nesse meio informou as imagens por
ela pintadas por toda a vida, mas também se sustenta por mérito próprio como importante
meio de expressão pessoal.
Em 1919, Toyen começou a estudar na Academia de Artes
de Praga – UMPRUM. Demonstrou talento e aptidão consideráveis para pintura e desenho
e isso lhe proporcionou “boas bases”. Também era dotada de uma mente curiosa e os
alunos da UMPRUM, assim como a cidade de Praga como um todo, serviram de trampolim
e fonte para aqueles que desejassem aprofundar sua compreensão das artes. Também
havia muitas oportunidades de intercâmbio intelectual e cultural e, para uma mente
decidida a desabrochar, ambientes assim são essenciais. Foi ali que ela conheceu
Jindrich Styrsky, poeta, pintor, escritor, teórico, um homem com uma fome insaciável
por aquilo que Jose Pierre chamou de “lucidez cruel”. Strysky e Toyen se tornaram
“parceiros de aventuras”: ambos eram curiosos e inquisidores, nutrindo um ao outro
em seus caminhos de investigação. Praga era um coração pulsante de trocas intelectuais,
um centro que atraía discurso, intercâmbio e fermentação culturais, tanto para o
s círculos Tchecos quanto além.
Strysky e Toyen partiram em busca de novos ares no final
de 1925, ambos atraídos por Paris. Ali, formaram o próprio grupo de apenas dois
membros chamado “Artificialismo”. Não estavam convencidos, naquela altura, da “aventura
surrealista”. Decerta a conheciam e sem dúvida foram por ela informados. Produziram
o próprio manifesto, desposando as teorias do “artificialismo” e, em paralelo com
sua ocupação formal como ilustradores comerciais, praticaram novas formas artísticas,
obras semi-abstratas, formas e contornos fluidos compostos de tinta espessa e materiais
como areia. As obras compartilham das aventuras empreendidas por André Masson em
alguns de seus trabalhos. Surrealistas como Miró eram entusiastas da criação de
superfícies tridimensionais em lugar das pinturas bidimensionais. Pinturas como
“Midi”, de 1929, são tanto livres quanto semi-abstratas, mas, ao mesmo tempo, há
nela olhos claramente perceptíveis e um quadro por trás do qual se pode ver um
“fantasma erguido”, uma figura cara a Toyen por toda a sua carreira. José Pierre
escreveu: “ela se sentia especialmente atraída por cascas de árvore, muros velhos
e detritos trazidos pela maré. Mas a lição ‘paranoica’ transmitida através de Leonardo
da Vinci, Ernst e Dalí assumiu em sua obra um aspecto inimitavelmente invocador,
como se ela procurasse arrancar dessas superfícies fascinantes seres nelas aprisionados.
Daquela época em diante, por meio de modificações variáveis de seu idioma, Toyen
permaneceu fiel a essa técnica mágica do “fantasma erguido”. Decerto, sua motivação
básica para pintar era evocar esses espectros, arrancá-los de sua cômoda invisibilidade,
e trazê-los para a luz do dia para que pudessem emprestar um elemento inesperado
à vida rotineira”. Nezvel os descreveu como “objetos espectrais”, ou “objetos alucinatório-espectrais”.
Os “fantasmas erguidos” surgem regularmente nas pinturas
de Toyen; “Fantasma Rosa” e “Fantasma Amarelo”, ambos de 1934, trazem figuras inferidas,
quase como se emergissem do fundo e se metamorfoseassem em personagens que Toyen
escolheu capturar nesse estado de transformação. Alternativamente, podemos imaginar
que já eram figuras sólidas e estão no processo de fundir-se novamente com o fundo.
Essas personagens podem muito bem ser uma declaração de Toyen a respeito da interpretação
que escolheu para si, uma vez que sempre optou por se retirar de situações públicas.
Benayoun fez referência a essa característica da artista e refletiu que ela conferia
a Toyen uma aura enigmática.
Depois de quatro anos, Strysky e Toyen retornaram a
Praga. Ela sentia uma maior afinidade com o surrealismo e sua obra se aproximou
cada vez mais dele. Em 1932, Toyen ilustrou a tradução tchecoslovaca de Justine, de Sade, publicada pela Editions
69, de Strysky, que publicou diversas obras eróticas, com Toyen responsável por
ilustrar algumas delas. Toyen e Strysky tinham interesse em imagens eróticas e essa
área permaneceria uma linha de inspiração durante toda a vida criativa da artista.
É interessante observar como todas as fases iniciais
de desenvolvimento de Toyen informam sua obra posterior. Ela parecia reticente,
hesitante, ou talvez tenha optado deliberadamente por não escrever sobre si, sobre
seu processo criativo, ou sobre os fatores de motivação e inspiração de sua obra.
Assim, cabe ao espectador deduzir e buscar por pistas na obra em si. Cada fase cronológica,
a de inspiração cubista, a Devetsil, a naive,
a das Editions 69/Erotika Revue, a artificialista, contém expressões individuais
poderosas de realização criativa, mas é relevante que todas carregam uma aura embrionária,
uma sensação de que um “todo” mais focado irá emanar dessas energias quando elas
forem reunidas. É como se fossem fios de pulsão, partes de um todo que irá desabrochar
em uma direção investigativa coerente. Como analogia, as costelas existem como entidades
em separado, mas, quando fixadas à coluna vertebral, tornam-se a caixa torácica.
Depois de uma exposição em Praga em 1932, houve um claro
posicionamento em direção ao surrealismo e, por fim, Nezval viajou a Paris em 1934
para se encontrar com André Breton e informar a formação de um grupo surrealista
em Praga. O lançamento bem-sucedido do grupo e suas atividades foram o bastante
para justificar, pouco tempo depois, a ida de André Breton e Paul Éluard a Praga,
onde ofereceram palestras. Ao longo de todo esse período, Toyen se envolveu dedicadamente
em todas as atividades do grupo. Expôs com os surrealistas em grandes mostras em
Londres (1936) e Paris (1938), e continuou a participar de exposições surrealistas
por toda a vida, compartilhando sua visão e conquistando o profundo respeito de
todos que viam sua obra. Suas pinturas se deslocaram mais enfaticamente no sentido
da utilização da iconografia surrealista como meio de transmissão de sua mensagem.
A pintura “The Sleeper”, de 1938, mostra uma figura feminina de costas para o observador,
o casaco longo aberto na parte de trás, revelando a ausência de torso, um “receptáculo
vazio”; a figura traz na mão uma rede de caçar borboletas e parece fitar uma paisagem
vazia e estéril. Toyen se tornou a voz da inquietude, montando calmamente uma cena
e criando o enigmático por ingerência, sempre permeada de inquietude e desconforto.
Este seria seu forte ao longo do restante de sua vida criativa, com imagem após
imagem criando cenas calmas com um pulsar de inquietude suficiente para perturbar
a montagem.
Como se deu nos projetos em colaboração com Strysky,
as aventuras com Heisler foram projetos de mão-dupla, há entre eles uma simbiose
palpável, foram colaborações em que ambos ofereciam e recebiam, respondendo e reagindo.
“Specters of the Desert” foi publicado em 1939. “War, Hide Away” e “The Shooting
Gallery” estão entre as mais impressionantes colaborações entre Heisler e Toyen;
embora os poemas sejam de Heisler e os desenhos de Toyen, o diálogo entre os dois
é tal que a energia parece ser de uma só pessoa. As imagens de Toyen utilizam o
motivo de um pássaro em muitos dos desenhos, mas também incluem a evolução continuada
dos “fantasmas erguidos”, frequentemente duplicados como imagens refletidas, o
“fantasma” mirando-se no espelho. A ilustração de textos foi um componente importante
dos anos de guerra. Após o armistício, surgem pinturas como “The Myth of Light”,
de 1946, que retrata uma silhueta de Heisler por trás de uma porta de vidro, segurando
um vaso de flores que cresceram através da porta; defronte, um par de mãos enluvadas
lançando sombras na forma de um lobo; e “At the Chateau La Coste”, do mesmo ano,
e também mostrando uma raposa emergindo da parede enquanto dá o bote em um pombo.
Ambas são pinturas poderosas, obra de uma artista confiante no meio e na mensagem.
Elas trazem uma marca e uma identidade pessoal, são pinturas de “Toyen”, têm a atmosfera
de Toyen, a realidade enquanto realidade, mas com uma pequena alteração ou transformação,
algo que afeta a aparência da imagem e nossa percepção dela e, novamente, um eco
de inquietude que surge para o espectador.
Em 1947, Heisler e Toyen mudaram-se para Paris um ano
antes de a Tchecoslováquia cair perante o comunismo. Toyen teve uma mostra individual
em Paris e foi lá que se estabeleceu pelo restante da vida. Ali, fez parte do grupo
surrealista parisiense, frequentando suas reuniões. De 1948 até sua morte, em 1980,
representou um pulso de energia e criatividade que perpassou gerações, formando
relacionamentos criativos e amizades com aqueles de cuja imaginação se sentia parte.
Quando, depois do falecimento de Breton, a natureza e o formato do grupo e da atividade
coletiva se transformaram, ela optou por se relacionar com um círculo íntimo de
amigos surrealistas em “solidão compartilhada”. A amizade e a afinidade espiritual
de Toyen com André Breton e com Benjamin Peret eram constantes e, em 1948, numa
estadia na Bretanha com Breton, Peret e Heisler, ela começou a trabalhar em “Neither
Wings nor Stones: Wings and Stones”. A obra refletia sobre os novos horizontes e
direções do surrealismo e – importante – oferecia ainda outra encarnação dos “fantasmas
erguidos”, uma vez que os protagonistas das gravuras pareciam deslizar sobre o palco
de ação, esvoaçando uns sobre os outros, compartilhando sua energia em uma transação
de carícias fragmentadas. Era como se algumas transmutações alquímicas entremeassem
caminhos entre pena, bico e ondulações.
O período entre o fim da década de 1950 e o fim da década
de 1970 testemunhou a continuidade da evolução e do desenvolvimento da abordagem
de Toyen, cuja visão evoluía e se desenvolvia constantemente. Sua obra e a percepção
que a informou sempre foram de origem orgânica, crescendo em milhares de maneiras
e direções, as formas se tornando difusas, quase nebulosas, silhuetas e sombras,
uma fluidez formal. Annie Le Brun, amiga e colaboradora poética durante essa fase,
disse de Toyen naquele período: “Não há, na verdade, qualquer pintura dos anos 1950
e 1960 em que o fundo não ganhe vida, como algum tipo de tecido orgânico, numa espécie
de mil-e-uma-noites de interação. Mesmo em uma olhada rápida, podemos ver que cada
aparição é induzida pelas texturas em constante mutação da autora”.
O encontro com Radovan Ivsic em meados da década de
1950 induziu ainda outro surto de trocas poéticas, “Le Puits dans le tour”, uma
colaboração de alguns anos depois que reúne doze desenhos. Toyen se referia a eles
como “os resquícios de sonhos” aos quais Ivsic oferece a poesia do voo alado.
A importância de Toyen persiste. Ela era fugidia. Por
opção, Toyen era distante, demonstrando humildade e modéstia consideráveis. Ela
julgava que a obra falava em seu nome e, assim, nos fica o enigma que é a sombra
da silhueta, o segredo a um só tempo guardado e compartilhado.
NOTA
Tradução: Allan Vidigal.
JOHN WELSON | País de Gales, 1953. Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
ENRIQUE DE SANTIAGO | Chile, 1961. Artista visual, poeta, investigador, ensayista, editor, curador y gestor cultural. Ha dictado charlas en diversas universidades, museos y centros culturales. Estudió Licenciatura en arte en la Universidad de Chile y en el Instituto de Arte Contemporáneo (Chile). Desde el año 1984, que expone en muestras individuales y colectivas en diversos países, contando a su haber alrededor de más de 120 exhibiciones. Tiene a su haber 6 libros de poesía. Ha participado en variadas antologías de poesía, tanto en Chile como en el extranjero. Colaboró en el diario La Nación con artículos de arte de los nuevos medios, y en revistas como Derrame, Escaner Cultural y Labios Menores en Chile, Brumes Blondes en Holanda, Adamar de España, Punto Seguido de Colombia, Sonámbula de México, Agulha Revista de Cultura de Brasil, InComunidade de Portugal, Styxus de Rep. Checa, Canibaal de Valencia, España, Materika de Costa Rica y otras publicaciones impresas y digitales. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10
Número 209 | maio de 2022
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)
Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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