MARQUÊS DE SADE
Parte I – Origens e
preparativos
O anátema direcionado o pensamento livre – especialmente quando essa liberdade
garante a materialização de modalidades bem mais heterodoxas e heréticas – está
longe de ser um traço da atualidade, pois parece persistir desde os tempos em que
a organização social da humanidade era quase inexistente. Contudo, é interessante
destacar que tal anatematização costuma passar sempre pelo aspecto criminal
– pela punição imposta a partir da percepção que existe uma nódoa em determinada
sociedade, representada pelo indivíduo imoral. A repressão precisa, nesses casos,
ter intensidade, pegada: ser exemplar, pública, espetacular. No passado, os grandes
crimes, públicos ou privados, sempre passavam por algum aspecto de purgação moralista,
na forma de exposição pública dos cadáveres mutilados dos malfeitores. Evidente,
essa concepção nunca deixou de existir e sua essência se reflete, mesmo na atualidade,
nessa confusão perpétua entre o moral e o imoral, o criminoso e o honesto. O crime
está sempre do lado da imoralidade, e quanto pior o crime – ou, ao menos, sua percepção
– mais imoral o perpetrador.
Pois, de fato, a Arte surge dentro de uma perspectiva
de imoralidade, de um potencial inaceitável ou ao menos tão pouco convencional
que se torna incômodo – embora possa, em versões mais inofensivas, ser aceita no
cotidiano, ser compreendida como um ato extremo de uma figura quase xamânica,
o artista, a quem se permite essas fugas da moralidade convencional e do sentido
aceito pela comunidade, especialmente se essa fuga, sempre temporária, ocorrer em
uma direção abstrata, distanciada dos parâmetros reconhecíveis, dos elementos cotidianos.
Muitas vezes, essa permissão concedida aos artistas parece ultrapassar limites
mais ou menos estabelecidos: nesse ponto, a sensação inebriante de se deparar com
uma possibilidade realmente instigante, perigosa, garante um pequeno adicional
de liberdade à Arte para construir uma espécie de nova mitologia sangrenta. Talvez,
o primeiro autor a perceber – e explorar – essa possibilidade tenha sido escritor
britânico Thomas de Quincey (1785-1859), que escreveu sobre seu vício em ópio e
sobre um club social devotado ao assassinato como entretenimento estético;
nesse segundo caso, Do Assassinato considerado uma das Belas Artes, um texto
que o autor constantemente retomava. [1]
Estruturalmente é bastante complexo embora, em termos formais, esteja alinhado à
tradição inaugurada por Jonathan Swift em seu ensaio que causou furor em 1729, quando
foi publicado: A Modest Proposal, um texto que propunha como solução para
a terrível crise econômica e de abastecimento na Irlanda, que geraria um terrível
episódio de fome endêmica, o canibalismo – especificadamente, o sacrifício
das crianças irlandesas para alimentar os famélicos cidadãos irlandeses adultos.
Como no caso da apreciação estética do homicídio em De Quincey, o canibalismo de
Swift era uma ironia que se colocava dessa forma – assim, o distanciamento necessário
para a apreciação de tais obras automaticamente neutralizava as dúvidas colocadas
pela moralidade a respeito da abordagem, formato e ideias suscitadas por ambas.
No continente, notadamente na França, podemos observar que a existência de autores
como Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade ou Petrus Borel,
dito “O Licantropo”, indicavam naturalmente que havia excessos circunscritos ao
texto e aqueles que não o fossem (como era, inclusive, o caso do próprio
Sade) seriam abortados e punidos em sua migração para a prática. E o mesmo
se repetia em outros rincões na Europa e fora dela, com a percepção estética e satírica
pressionando um ou outro ponto sensível da racionalidade moralmente estruturada,
mas qualquer jornada além era abortada pelo próprio autor ou pelos vigilantes
disponíveis de tais sociedades. Mas houve, afinal, um momento de passagem, em que
surgiu a prática que parecia recuperar, em um frenesi sangrento, algo daquilo que
foi mapeado na literatura anterior que lidava com o crime, com os comportamentos
extremados: o caso do assassino de Whitechapel, no subúrbio operário de Londres,
mais conhecido pela alcunha de “Jack, o Estripador”, ocorrido no final do século
XIX, entre 1888 e 1891 – embora, pelo fato do assassino jamais ter sido capturado,
é difícil precisar se suas atividades como assassino em série se encerraram, de
fato, no ano de 1891. As ações de Jack impulsionaram novas percepções estéticas,
desta vez alimentadas pelas notícias sensacionalistas de uma mídia – impressa, à
época – que se tornava mais e mais poderosa, mais e mais insaciável na descoberta
de novos e potentes horrores que pudessem ser notícia.
Parte II – Modelagem
e estilização do assassinato
Em seu artigo jornalístico sobre Jack – publicado de forma seriada entre
29 de janeiro e 07 de fevereiro de 1928 no Paris-Matinal –, o grande poeta
surrealista Robert Desnos nos apresenta as possibilidades de compreender os crimes
sem solução e sem culpado em um breve capítulo intitulado “As Hipóteses”. Para Desnos,
como os crimes de Jack atiçaram a imaginação do público de forma indelével, com
uma mescla de terror e curiosidade, levando cada membro a interpretar o incognoscível
assassino através de suas paixões (e isso em um nível tanto individual quanto coletivo);
logo, o autor passa a enumerar algumas dessas interpretações possíveis, com cada
grupo identificando nos crimes as marcas esperadas: os antissemitas, os excessivamente
imaginativos, os que acreditavam em conspirações das elites. “Por fim”, conclui
Desnos, “os artistas viram em Jack, o Estripador a imagem sedutora do herói de romance
que, como Thomas De Quincey, considera o assassinato uma das belas artes.”
Portanto, com Desnos adentramos por fim ao século XX
e encontramos, em seu começo, justamente os surrealistas, próximos ao criminoso
real e imaginário mais célebre de todos nessa análise das paixões interpretativas
dos atos de Jack, o Estripador. Os surrealistas parecem ter, justamente, a paixão
percebida por Desnos a respeito dos crimes de Whitechapel em uma categoria algo
abstrata, os “artistas”. E nesse ponto encontramos o objeto de nosso ensaio: o artista
plástico e fotógrafo Man Ray. Nascido em 1890 e batizado com o nome de Emmanuel
Radnitzky na Filadélfia (EUA), filho de imigrantes judeus vindos da Rússia. Por
conta das perseguições antissemitas – o provável motivo dos Radnitzky terem deixado
sua Rússia natal – todos mudaram o sobrenome para “Ray”; como Emmanuel costumava
ser apelidado “Manny”, não tardou a utilizar o apelido ainda mais contraído como
um nome estranhamente significativo: “Man”, o termo que designa “homem” em inglês,
e um sobrenome que possuía uma estranha aura futurista, “Ray”. O pai de Man Ray
era operário, tendo uma confecção em sua casa; ele mesmo, como seus irmãos, auxiliava
o pai na manufatura enquanto sua mãe, em casa, produzia as roupas da família com
elementos da fábrica. Esse convívio fabril marcaria Man Ray de forma indelével
– sua obra se apropriaria de elementos fabris relacionados à confecção: de manequins
a ferros de passar, de máquinas de costura a agulhas, alfinetes e linhas, além de
padrões de tecido. Além disso, essa mesma atmosfera influenciaria o modo de composição
de Ray, seu trabalho com o seccionamento de elementos através do desfoco ou da seleção
de enquadramentos específicos, de interações de luz e sombra. Algumas das mais célebres
fotografias produzidas por Ray, dessa forma, possuem uma estranha ressonância fabril
na possibilidade de recomposição ou corte de peças, algo que funciona para
a matéria-prima de uma fábrica, mas que ganha o estatuto do insólito quando aplicado
ao retrato da figura humana. Logo voltaremos a esse tema, quando analisarmos o Minotauro
de Ray.
Man Ray teve uma sólida formação em desenho e ilustração
ainda na High School, mergulhando em museus e mostras artísticas para refinar,
de maneira autodidata, sua percepção. Mas sua formação teve um decisivo salto
quando de seu encontro – e amizade – com Marcel Duchamp em Nova Iorque, a partir
de 1915, tendo então participado ativamente do movimento dadaísta no novo continente;
esteve engajado em revistas e periódicos, exposições, na criação de readymades
e diversas outras atividades. Mas logo abandona o movimento, ao perceber que o caos
simulado da arte dadaísta não era capaz de rivalizar com o caos naturalizado
da metrópole do novo continente. Assim, decide mudar de ares: muda-se para Paris.
No velho mundo, se associaria aos surrealistas e atingiria o ápice de sua criatividade
na criação da imagem fotográfica através das novas possibilidades de manipulação
da luz que tal meio permitia. Faleceria em 1976, de uma infecção pulmonar, sendo
enterrado no cemitério de Montparnasse.
Muito tempo depois, entre 2006 e 2008, o canal de televisão
Discovery colocou no ar uma série de documentários que abordavam a perversidade
criminosa a partir de uma escala da maldade, de título Most Evil. Dr. Michael
Stone, o psiquiatra forense que estabelecera a escala, apresentava o programa, que
a cada episódio abordava uma série de assassinos seriais, seus métodos, psicologia
e as formas de investigação de cada caso. A escala, muito utilizada por profilers
do FBI nos EUA, é caligaresca no mais alto grau: parte da “normalidade” (quem mata
por legítima defesa, por exemplo) até atingir o limite criminoso extremo, que envolveria
tortura lenta e assassinato, com bizantinas gradações entre torturadores que optam
por infligir suplícios leves, mas que acabam matando a vítima involuntariamente
no processo, até os que torturam para assassinar depois. Terroristas entram na lista,
assim como líderes carismáticos que apreciavam assassinatos em massa, como Jim Jones,
mas não soldados que obedeciam a ordens (como as guarnições SS alemãs) e extraíam
prazer no assassinato e na tortura após alguma ideologia legitimar o desvio da norma.
A teoria do Dr. Stone costura a trama de cada episódio do programa, cuja estrutura
documental é convencional, soi disant “informativa”, mas com frequentes manipulações
e distorções, além de forte tendência ao sensacional fait divers.
Steve Hodel divulgara sua tese em um livro lançado em
2003 (relançado em 2006 em edição ampliada e com mudança no título, que era Black
Dahlia Avenger: A Genius for Murder), no livro de título sensacionalista Black
Dahlia Avenger: The True Story, grande sucesso de vendas. Pela tese de Hodel,
o culpado pelos crimes seria seu próprio pai, Dr. George Hodel, médico especializado
em doenças venéreas de fama à época do crime em Hollywood. A tese de Steve Hodel
associa fatos da vida do pai (“gênio” de elevado QI na infância e adolescência,
jornalista policial improvisado fascinado pela violência do Bas Fond californiano,
médico competente com muita experiência em cirurgia) com reduções apriorísticas
(o preconceito que associa inteligência a isolamento e potencialmente crime, o moralismo
que julga pulsões sexuais diversas como automaticamente criminosas). Mas o centro
da especulação do ex-policial se centra em outro ponto: a proximidade do Dr. George
Hodel com artistas e intelectuais de Hollywood, especialmente o pintor surrealista
Man Ray. Para Steve Hodel, o surrealismo teria influenciado a forma e o conteúdo
do crime. Assim, a disposição do corpo (encontrado com os braços para cima) reproduziria
a fotografia Minotauro (ca. 1935) de Man Ray. Por outro lado, a ideologia
surrealista, na visão de Steve Hodel, teria levado seu pai, mentalmente perturbado,
aos umbrais do crime violento, uma vez que o policial aposentado interpretaria o
surrealismo como uma visão imoral e anti-humana que atacava vigorosamente os salutares
limites da normalidade, estetizando o crime, e o assumindo como obra de arte. No
livro de Steve Hodel, Man Ray é pintado como uma caricatura de vilão, misógino e
vingativo, espécie de master mind e homicida por procuração que alegremente
inspirava mentes perturbadas a executar aquilo que, covarde, apenas vislumbrava
em suas construções artísticas. Provavelmente, Hodel, investido da função de investigador
estético e também criminal, deve ter recuperado a percepção fabril
na criação de Man Ray, a maneira como ele seccionava elementos em novas combinações,
como um patchwork de tecidos díspares, mas dessa vez realizado com a imagem
humana. O Minotauro, nesse sentido, a forma da cabeça do touro humanoide
se forma pela maneira como os braços (seccionados na altura do antebraço por uma
massa de sombras) e a cabeça (que sofreu o mesmo tratamento) são articulados para
que o torso se transforme no rosto mitológico do monstro. Nessa imagem, Hodel só
conseguia perceber a antecipação de um assassinato.
No episódio do Discovery, a tese de Steve Hodel
é vista como a mais adequada (por essa tese, Dr. George Hodel também seria culpado
pelo assassinato de Suzanne Degnan, crime nunca resolvido atribuído ao assim chamado
“assassino do batom”), embora inconsistências diversas minem tal especulação. Em
primeiro lugar, Steve Hodel afirma que ele teria estabelecido a relação entre seu
pai e os crimes, omitindo o fato de que o Dr. George Hodel foi suspeito e investigado
rigorosamente no final dos anos 1940, uma vez que sua filha com 14 anos à época,
Tamar Hodel, o havia denunciado por ele a molestar sexualmente. O irmão não estava
a par disso? Para o Discovery, o ex-policial afirma que as informações sobre
seu pai relacionadas ao caso “haviam desaparecido”, sugerindo uma conspiração do
silêncio a impedir encontrar o criminoso, percepção de mundo paranoide que os produtores
da série, nesse momento, não puderam escamotear. Por outro lado, o retrato grosseiro
de Man Ray (que inclui equívocos primários, como o desconhecimento do fato de que
ele viveu nos EUA de 1940 a 1951 e de que esse pintor não levara suas obras na mala
para mostrar em festas de Hollywood, pois Minotaure só seria largamente conhecida
e disponível em catálogos nos anos 1950-60), implicado indiretamente no crime, e
a falta de fatos concretos e não interpretações e extrapolações, torna a tese risível.
Teorias como as de Steve Hodel equacionam arte e crime
em um mesmo plano, como se a filosofia liberadora do surrealismo – contraditória
e problemática, sem dúvida – devesse sofrer condenação judicial e não discussão
no campo das ideias, pois “alimentariam” crimes. A melhor refutação a tão maldosa
teorização aparece, como sugeriu Luiz Nazario, no monólogo final de James Stewart
no filme Rope (Festim diabólico,
1948), de Alfred Hitchcock, que reflete sobre a leitura nazista da filosofia nietzschiana:
“Eu posso ter dito algo assim [sobre a superioridade da elite intelectual em relação
às massas]”, diz o professor chocado, “mas nunca pensei que minhas ideias pudessem
levar a um assassinato... Fui irresponsável, mas dentro de mim nunca houve o desejo
de matar... Você distorceu minha filosofia para justificar algo de ruim que já existia
dentro de você...”
NOTA
1. De fato, o livro teve ao menos três diferentes encarnações: o primeiro texto, publicado na revista Blackwood’s Magazine em 1827; depois, uma espécie de “sequência” desse primeiro ensaio (algo que o autor anuncia já no título); por fim, encerrou sua trilogia com um “Pós-escrito” em 1854. Se o primeiro ensaio estabelecia, em tom de deboche, as ideias estéticas do club imaginário de aficionados no assassinato, sempre em torno do caso dos crimes da Ratcliff Highway; o segundo texto, bem mais narrativo, apresenta uma espécie de contextualização histórica, recuperando as diferentes tradições do assassinato como fato estético; o “pós-escrito”, por fim, recupera a questão central da proposta do autor, retomando igualmente o formato ensaístico.
Referências Bibliográficas
MIGUEL, Alcebiades Diniz
(org.). O assassinato como obra de arte total. São Paulo: Perspectiva, 2021.
ROCHA, Servando. “Sinceramente
suyo, Jack el Destripador”. In: Jack el Destripador em España, Revista
Agente Provocador, 2. Época, n. 2, Madrid, 2020.
SCHWARZ, Arturo. Art Dossier: Man Ray. Giunti: Firenze, 1998.
SWIFT, Jonathan. Modesta proposta e outros textos satíricos. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
ALCEBÍADES DINIZ MIGUEL | Graduado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2000), com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (com estágio na Brunel University, em Londres). Trabalha com questões de literatura, discurso e ficção, tendo experiência como docente (pela Unicamp), supervisor técnico (como revisor gramatical e de conteúdo), tradutor (tanto de textos técnicos e manuais quanto de obras literárias como de J. G. Ballard, H. G. Wells ou Nathanael West) e pesquisador em diversos centros como o Grupo de Pesquisa da Discriminação (USP), o Margens (IEL-Unicamp) e da Fundação Biblioteca Nacional. Também criou roteiros, animações, contos e interfaces de jogos. O núcleo de suas pesquisas gira em torno da Literatura Fantástica e dos deslocamentos provocados pelo exílio e seus efeitos na narrativa e na linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: antissemitismo, literatura, teatro e cinema.
ENRIQUE DE SANTIAGO | Chile, 1961. Artista visual, poeta, investigador, ensayista, editor, curador y gestor cultural. Ha dictado charlas en diversas universidades, museos y centros culturales. Estudió Licenciatura en arte en la Universidad de Chile y en el Instituto de Arte Contemporáneo (Chile). Desde el año 1984, que expone en muestras individuales y colectivas en diversos países, contando a su haber alrededor de más de 120 exhibiciones. Tiene a su haber 6 libros de poesía. Ha participado en variadas antologías de poesía, tanto en Chile como en el extranjero. Colaboró en el diario La Nación con artículos de arte de los nuevos medios, y en revistas como Derrame, Escaner Cultural y Labios Menores en Chile, Brumes Blondes en Holanda, Adamar de España, Punto Seguido de Colombia, Sonámbula de México, Agulha Revista de Cultura de Brasil, InComunidade de Portugal, Styxus de Rep. Checa, Canibaal de Valencia, España, Materika de Costa Rica y otras publicaciones impresas y digitales. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10
Número 209 | maio de 2022
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)
Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek
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