segunda-feira, 9 de maio de 2022

Agulha Revista de Cultura # 208 | maio de 2022

 

∞ editorial | as estrelas cadentes & os vasos comunicantes

 


00 | A Agulha Revista de Cultura dedicou todo o ano de 2019 à comemoração do Centenário do Surrealismo, cujo índice geral se encontra no presente enlace: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/04/centenario-do-surrealismo-1919-2019.html. São edições que tratam de variados temas ligados direta e indiretamente ao movimento. Agora neste 2022 voltamos a tratar de Surrealismo, convidando estudiosos em vários países para que reflitam sobre criadores surrealistas nas mais diversas áreas artísticas. A série atual alcança hoje a soma de 90 ensaios, um marco na historiografia do movimento. Avancemos.

 

01 | Os nossos atos são como estrelas cadentes e jogam sempre com as sementes que se dispersam em meio ao gás dos sonhos. As fragrâncias que fazem com que até mesmo Dioniso desmaie com seus cantos de separação. As luzes sob os carros que deixam as ruas sem outro recurso senão a delicadeza jocosa do abismo. Os lábios tragados pela simpatia dos espasmos. As notícias do dia que se tornaram todas falsas. O homem abotoa os espaços regulares de seus pontos de vista e escreve a sangue nas paredes de um templo que deus foi a primeira distração e que agora já não há mais salmo ou pecado que abrigue a agonia das migrações. Os diários preferem ser apagados. Os vermes regurgitam os séculos. Não sobrou mais nenhuma janela pública por onde a realidade ganhar outra forma. E todos os dias escutamos a repetição de uma mesma intransigência surda que se arrasta sobre cadáveres com sua caligrafia mórbida. Contamos os mortos e nada mais. A noite se inclina ofegante sobre a virtude das fantasias. O homem era apenas isto.

 

02 | Ao dizer que a criação deve brotar alheia a toda preocupação estética ou moral, André Breton (1896-1966) deixou ao sol a má interpretação que seus acólitos acabaram por ver no Surrealismo uma ausência de moral e estética. Os fundamentos do Surrealismo dizem respeito ao imperativo de uma liberdade total na criação, o que inclui a não filiação alguma a quaisquer ordens. No entanto havia uma ordem por trás dessa cortina, cuja raiz era a própria razão de ser do movimento. Daí que o desafio maior de Breton tenha sido o de encontrar um equilíbrio entre essa aparente dicotomia. Em minhas conversas com a brasileira Leila Ferraz, que esteve em Paris ao final dos anos 1960, convivendo com alguns integrantes do grupo surrealista, embora sem ter conhecido pessoalmente Breton, ela me disse que não se pode esquecer que

 

Breton continha um conhecimento extraordinário. Introduziu no pensamento moderno, na arte e na poesia não apenas o seu genial trabalho, mas uma condição capaz de abrir para o universo artístico e pensante do início do século passado em diante uma ampla gama de mentes afins. Recolheu as preciosidades de todos os tempos e de centenas de culturas trançando uma forma e uma lógica, um mais além do real. E felizes os que perceberam a trajetória vinda à luz através de suas mãos. Se ele tinha um gênio forte e dominador? Não poderia sê-lo de outra forma. Caso contrário, a arte jamais teria tido a presença e o espaço que ganhou. Breton tinha um faro absoluto para as sutilezas humanas.

 

A rigor, foi uma figura admiravelmente controversa. Audacioso em todos os seus momentos, de aceitação ou rejeição, André Breton foi exímio experimentador, sendo vultosos seus exercícios em áreas como a colagem, o desenho, a fotografia, os objetos encontrados, a escrita automática etc. Sua conhecida resistência ao romance tem um argumento relevante: há certo estado do verdadeiro em que este é levado a tomar um valor inapreciável, único, e para tanto exige a total depuração do supérfluo. Essa depuração o levou a criar uma prosa poética que renovou o ambiente narrativo, de que são exemplos livros como Nadja (1928), Les vases communicants (1932) e O amor louco (1937). Em 1931 realizou uma série de colagens com Paul Éluard e Suzanne Muzard. Em 1938 os cadáveres deliciosos com Jacqueline Lamba e Yves Tanguy. Pôs em estado de moto-perpétuo a mais expressiva e contundente revolução alcançada pela criação artística no século XX, incessante mesmo após a sua morte.

A poesia completa de André Breton se encontra publicada apenas em francês. A princípio se supõe que a razão seja a dificuldade de se negociar seus direitos autorais com a Gallimard. Porém não deixa de ser interessante observar a perspectiva de uma resposta à rejeição que Breton sempre alardeou a qualquer outro idioma que não o seu.

Também carecemos de estudos críticos sobre esta poesia, suas origens e modelos, ousadias e encontros essenciais. Neste caso, se pode dizer que o poeta André Breton foi quase que integralmente absorvido pelas teorias do Surrealismo e suas polêmicas. Igualmente a prosa ou narrativa mágica de sua poética do que o conjunto dos poemas. Mesmo na França, muitos de seus livros só foram publicados de primeira mão quando da edição de suas Obras completas, ou seja, sua vasta produção poética teve parte muito significativa que permaneceu inédita até 1988, quando a Gallimard publica Oeuvres Complètes.

A despeito das consideráveis oscilações, o que é natural em todo poeta, ainda mais no caso de Breton, pelos riscos provocados pelas associações livres e a imaginação insaciável, em sua poesia encontramos uma altíssima voltagem poética, que joga, sobretudo, com quatro imensas fontes: Lautréamont, Novalis, Rimbaud e Reverdy. Recursos como reconfiguração léxica, analogia, imagens híbridas, fagulhas reveladoras de uma tradição mágica, assim como – no dizer de Xoán Abeleira, ao traduzir e prefaciar Pleamargen. Poesía 1940-1948a elipse, unida quase sempre ao deslocamento e/ou à ambivalência sintática.

 

03 | O artista convidado desta edição é o brasileiro Floriano Martins (1957). Reproduzimos a íntegra de uma série fotográfica intitulada “Abismos acidentais”, acompanhada do texto abaixo, que ele escreveu ao concluir a série, em 2014. Também sugerimos visitar o vídeo que foi editado com a série completa: https://www.youtube.com/watch?v=xxdQ7mJLzHU.

 


Manhã em Sidney. Fui visitar a livraria de um museu e ali me encontrou um livro com reproduções de máscaras tribais daquela região do planeta, em especial Austrália e Nova Zelândia. A ideia de que algo se modifique ao ponto de que o mistério de sua existência não se deixe deformar em essência me pareceu o começo de um bom diálogo com aquelas máscaras que eram a visível ocultação de uma vida, porém ao mesmo tempo me sugeriam a entrada em um bastidor que me mostraria de quem se tratava cada figura, desde que eu identificasse seu esconderijo. De volta à casa de minha filha, no extenso trajeto do ônibus eu refletia sobre o que seria um símbolo de derivação. Recordei então um livro precioso de minha adolescência, O ramo de ouro. As máscaras sugerem transformações, porém apontam na direção de uma ambiguidade. Não são o que são, mas antes o que esperamos delas. Não exprimem conversão, mas sim a identificação com outro modo de ser. As máscaras são uma pedra de libertação. Guardei comigo por décadas a ideia que James Frazer havia anotado acerca das máscaras na Oceania. Elas nos limpam a alma. No dia seguinte fiz fotos de rosto de minha mulher, minha filha e minha neta. Uma abundância de esgares que deveriam contrastar com a imobilidade de máscaras ritualísticas que a partir daquele momento comecei a fotografar em vários lugares. Um encontro entre dois tempos: o da concepção de uma máscara como a transfiguração de um rosto à qual ela se aplica e a teatralização de um significado que expressa a mística de sua recepção. Tinha comigo um primeiro estoque de máscaras e rostos e fui recordando leituras, viagens e outras formas de visitação. No voo de volta ao Brasil eu matutava acerca da mitologia e suas máscaras. Personagens como Circe e Medusa são o disparador de uma expansão insaciável de imagens. Uma tem por tática a transfiguração. A outra, a imobilidade. O mundo foi ficando seco em seus atributos mitológicos. Uma parte se identifica com eles como um código inquestionável que necessita uma guarda permanente. A outra parte não é menos vítima, recolhe as sobras, intui o desgaste, vai vivendo. Haverá então uma máscara por detrás da máscara? Uma essência dentro de outra? Isto resulta indagar acerca da morada do homem. Quando regressei ao Brasil fui buscar outros rostos que falassem comigo. E os diversos olhares sobre uma máscara que até então eu vinha anotando em meu espírito me levaram a buscar mais fontes mitológicas.

Foram quase duas mil máscaras fotografadas. Museus, aldeias, coleções particulares. Viagens por uns 20 países. O exagero na formação de um acervo delas contrapunha-se à economia (ou precisão) na escolha do rosto certo das sete modelos encontradas. A essas mulheres eu dedicaria a mágica de sondar outros perfis do mistério. E foram elas que definiram o tempo de trabalho, desde o primeiro olhar, fotografado em Sidney, até o encontro final com um rosto na Lagoa do Bonfim, nordeste brasileiro. Em todos eles eu busquei um metal e fui surpreendido com outra joia. O metal definia-se por uma mescla de coloração e formato do rosto. A joia se apresentou na forma de um teatro, a variação estonteante de feições que a câmara capturou. O risco convertido em dádiva. A vida é de uma imperfeição feliz.

Ao aventurar-me por diversos lugares eu tinha em mente que o regresso à mesa de edição exigia que todas as pistas fossem apagadas: máscaras mortuárias, máscaras emblemáticas ligadas às religiões e à cultura de massas, eu deveria inseri-las em meus rostos de modo a sugerir uma distinta forma de impacto. O símbolo não é mais uma sinalização do mistério ou de identificação ritualística. Ele se projeta por imposição de meios. Não é mais associado ao acaso ou à corrente afetiva entre os seres. Seu grau de influência – melhor diria interferência – é definido pelo mercado. A minha ideia então se ocupava de uma restauração do mito em seu estado natural. Ao mudar uma pedra de lugar descobrimos que as formas não existem em estado puro. Uma mudança de ângulo será suficiente para deslocar a compreensão do mundo. As repetições de estratégias que garantem manutenção de poder são orientadas por essa mesma perspectiva. Temos uma compreensão elíptica da história. Máscaras formam ou deformam o mito?

O homem não é consciente da extensão de sua queda pela simples razão de que não se distancia de seu pendão cotidiano, jamais compreende a si mesmo como parte de algo. Diante do espelho fantasia uma existência devotada a driblar analogias. Uma operação secreta de deslocamento de conjugações verbais. O que foi, o que é, o que será. A configuração de um mundo pronominalmente desacreditado. Eu nunca nada. Tu nem pensar. Nós jamais existimos. Eles constituem o martelo da paranoia. Até mesmo os diabos menores se divertem com as imagens arrematadas em leilão. O verbo se cansa. Até mesmo as sombras se desgastam. O mito não depende de si.

Os sete rostos que fotografei me ensinaram a descascar o visível até que outro mundo deixasse entrever seus anagramas. Não importa o que sentimos em relação ao outro. Trazemos dentro de nós veneno e antídoto. Sete mulheres me olharam diante de uma Canon e me surpreenderam pelo desprendimento de seu espírito. Quando fotografei as máscaras elas mesmas me diziam com quais rostos queriam dialogar. Eu me entreguei a um mundo de cada vez, buscando uma configuração distinta para cada mito, uma atualização de cenário e bastidor, a recuperação de uma sinceridade cênica. Um dia precisaremos saber até onde estamos dispostos a ir.

O olhar define a arte de um modo enganoso. Quando passamos de uma escala do mistério para outra, da pintura para a música, compreendemos algo distinto. O mundo deixa de ser o que vemos e passa a ser o que ouvimos. O sentido não define a arte. Tampouco é definido por ela. O caráter inquieto e criativo de cada um de nós é o que ordena a rota alusiva de nossa existência. Um estado permanente de correspondência entre o que imagino ser e o que me falta. A forma não existe senão como uma impureza do ser. É o que expurgo de mim, o gráfico de uma libertação. O cenário cósmico dos símbolos integra ansiedades, afinidades, com uma força anímica que muitos não dão por sua atuação. A máscara é um gráfico. Não convidamos o mito a fazer parte de nossa vida. Não expressa uma realidade em si, mas antes uma rede de conexões que nos permite definir ou corrigir o modelo apresentado. A máscara é um desafio para que o símbolo configure nova essência. Uma manifestação da inquietude do ser. 

Floriano Martins

 

 

∞ índice

 

ALFONSO PEÑA | Leila Ferraz y los puentes infinitos de la memoria

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CAMILO HOYOS GÓMEZ | Louis Aragon y el quotidien merveilleux surrealista

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CARLOS M. LUIS | Víctor Brauner, el mago

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ENRIQUE DE SANTIAGO | Ludwig Zeller, doble estación de los vértigos

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FERNANDO FREITAS FUÃO | Brassaï beijando as paredes com os olhos

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LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Aimé Césaire entre surrealismo, contos orais e artes visuais ou explorando um pequeno poema da sua fase inicial

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LUIZ NAZARIO | Em defesa de Germaine Dulac

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MÁRCIO CATUNDA | A memória ardente de Jacques Prévert

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/marcio-catunda-memoria-ardente-de.html

 

RAY ELLENWOOD | Françoise Sullivan and the question of myth

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VIVIANE GIL | Ismael Nery: as representações do corpo em diálogo com o Surrealismo

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Floriano Martins


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09

Número 208 | maio de 2022

Artista convidado: Floriano Martins (Brasil, 1957)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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