∞ editorial | as estrelas cadentes & os vasos comunicantes
01
| Os nossos atos são como estrelas cadentes e jogam sempre com as sementes que se
dispersam em meio ao gás dos sonhos. As fragrâncias que fazem com que até mesmo
Dioniso desmaie com seus cantos de separação. As luzes sob os carros que deixam
as ruas sem outro recurso senão a delicadeza jocosa do abismo. Os lábios tragados
pela simpatia dos espasmos. As notícias do dia que se tornaram todas falsas. O homem
abotoa os espaços regulares de seus pontos de vista e escreve a sangue nas paredes
de um templo que deus foi a primeira distração e que agora já não há mais salmo
ou pecado que abrigue a agonia das migrações. Os diários preferem ser apagados.
Os vermes regurgitam os séculos. Não sobrou mais nenhuma janela pública por onde
a realidade ganhar outra forma. E todos os dias escutamos a repetição de uma mesma
intransigência surda que se arrasta sobre cadáveres com sua caligrafia mórbida.
Contamos os mortos e nada mais. A noite se inclina ofegante sobre a virtude das
fantasias. O homem era apenas isto.
02
| Ao dizer que a criação deve brotar alheia a toda preocupação estética
ou moral, André Breton (1896-1966) deixou
ao sol a má interpretação que seus acólitos acabaram por ver no Surrealismo uma
ausência de moral e estética. Os fundamentos do Surrealismo dizem respeito ao imperativo
de uma liberdade total na criação, o que inclui a não filiação alguma a quaisquer
ordens. No entanto havia uma ordem por trás dessa cortina, cuja raiz era a própria
razão de ser do movimento. Daí que o desafio maior de Breton tenha sido o de encontrar
um equilíbrio entre essa aparente dicotomia. Em minhas conversas com a brasileira
Leila Ferraz, que esteve em Paris ao final dos anos 1960, convivendo com alguns
integrantes do grupo surrealista, embora sem ter conhecido pessoalmente Breton,
ela me disse que não se pode esquecer que
Breton continha um conhecimento extraordinário.
Introduziu no pensamento moderno, na arte e na poesia não apenas o seu genial trabalho,
mas uma condição capaz de abrir para o universo artístico e pensante do início do
século passado em diante uma ampla gama de mentes afins. Recolheu as preciosidades
de todos os tempos e de centenas de culturas trançando uma forma e uma lógica, um
mais além do real. E felizes os que perceberam a trajetória vinda à luz através
de suas mãos. Se ele tinha um gênio forte e dominador? Não poderia sê-lo de outra
forma. Caso contrário, a arte jamais teria tido a presença e o espaço que ganhou.
Breton tinha um faro absoluto para as sutilezas humanas.
A rigor,
foi uma figura admiravelmente controversa. Audacioso em todos os seus momentos,
de aceitação ou rejeição, André Breton foi exímio experimentador, sendo vultosos
seus exercícios em áreas como a colagem, o desenho, a fotografia, os objetos encontrados,
a escrita automática etc. Sua conhecida resistência ao romance tem um argumento
relevante: há certo estado do verdadeiro em que este é levado a tomar um
valor inapreciável, único, e para tanto exige a total depuração do supérfluo.
Essa depuração o levou a criar uma prosa poética que renovou o ambiente narrativo,
de que são exemplos livros como Nadja
(1928), Les vases communicants (1932)
e O amor louco (1937). Em 1931 realizou
uma série de colagens com Paul Éluard e Suzanne Muzard. Em 1938 os cadáveres deliciosos
com Jacqueline Lamba e Yves Tanguy. Pôs em estado de moto-perpétuo a mais expressiva
e contundente revolução alcançada pela criação artística no século XX, incessante
mesmo após a sua morte.
A poesia
completa de André Breton se encontra publicada apenas em francês. A princípio se
supõe que a razão seja a dificuldade de se negociar seus direitos autorais com a
Gallimard. Porém não deixa de ser interessante observar a perspectiva de uma resposta
à rejeição que Breton sempre alardeou a qualquer outro idioma que não o seu.
Também carecemos de
estudos críticos sobre esta poesia, suas origens e modelos, ousadias e encontros
essenciais. Neste caso, se pode dizer que o poeta André Breton foi quase que integralmente
absorvido pelas teorias do Surrealismo e suas polêmicas. Igualmente a prosa ou narrativa
mágica de sua poética do que o conjunto dos poemas. Mesmo na França, muitos de seus
livros só foram publicados de primeira mão quando da edição de suas Obras completas,
ou seja, sua vasta produção poética teve parte muito significativa que permaneceu
inédita até 1988, quando a Gallimard publica Oeuvres Complètes.
A despeito das consideráveis
oscilações, o que é natural em todo poeta, ainda mais no caso de Breton, pelos riscos
provocados pelas associações livres e a imaginação insaciável, em sua poesia encontramos
uma altíssima voltagem poética, que joga, sobretudo, com quatro imensas fontes:
Lautréamont, Novalis, Rimbaud e Reverdy. Recursos como reconfiguração léxica, analogia,
imagens híbridas, fagulhas reveladoras de uma tradição mágica, assim como – no dizer
de Xoán Abeleira, ao traduzir e prefaciar Pleamargen. Poesía 1940-1948 –
a elipse, unida quase sempre ao deslocamento e/ou à ambivalência sintática.
03 | O artista
convidado desta edição é o brasileiro Floriano Martins (1957). Reproduzimos a íntegra
de uma série fotográfica intitulada “Abismos acidentais”, acompanhada do texto abaixo,
que ele escreveu ao concluir a série, em 2014. Também sugerimos visitar o vídeo
que foi editado com a série completa: https://www.youtube.com/watch?v=xxdQ7mJLzHU.
Foram quase duas mil máscaras fotografadas.
Museus, aldeias, coleções particulares. Viagens por uns 20 países. O exagero na
formação de um acervo delas contrapunha-se à economia (ou precisão) na escolha do
rosto certo das sete modelos encontradas. A essas mulheres eu dedicaria a mágica
de sondar outros perfis do mistério. E foram elas que definiram o tempo de trabalho,
desde o primeiro olhar, fotografado em Sidney, até o encontro final com um rosto
na Lagoa do Bonfim, nordeste brasileiro. Em todos eles eu busquei um metal e fui
surpreendido com outra joia. O metal definia-se por uma mescla de coloração e formato
do rosto. A joia se apresentou na forma de um teatro, a variação estonteante de
feições que a câmara capturou. O risco convertido em dádiva. A vida é de uma imperfeição
feliz.
Ao aventurar-me por diversos lugares
eu tinha em mente que o regresso à mesa de edição exigia que todas as pistas fossem
apagadas: máscaras mortuárias, máscaras emblemáticas ligadas às religiões e à cultura
de massas, eu deveria inseri-las em meus rostos de modo a sugerir uma distinta forma
de impacto. O símbolo não é mais uma sinalização do mistério ou de identificação
ritualística. Ele se projeta por imposição de meios. Não é mais associado ao acaso
ou à corrente afetiva entre os seres. Seu grau de influência – melhor diria interferência
– é definido pelo mercado. A minha ideia então se ocupava de uma restauração do
mito em seu estado natural. Ao mudar uma pedra de lugar descobrimos que as formas
não existem em estado puro. Uma mudança de ângulo será suficiente para deslocar
a compreensão do mundo. As repetições de estratégias que garantem manutenção de
poder são orientadas por essa mesma perspectiva. Temos uma compreensão elíptica
da história. Máscaras formam ou deformam o mito?
O homem não é consciente da extensão
de sua queda pela simples razão de que não se distancia de seu pendão cotidiano,
jamais compreende a si mesmo como parte de algo. Diante do espelho fantasia uma
existência devotada a driblar analogias. Uma operação secreta de deslocamento de
conjugações verbais. O que foi, o que é, o que será. A configuração de um mundo
pronominalmente desacreditado. Eu nunca nada. Tu nem pensar. Nós jamais existimos.
Eles constituem o martelo da paranoia. Até mesmo os diabos menores se divertem com
as imagens arrematadas em leilão. O verbo se cansa. Até mesmo as sombras se desgastam.
O mito não depende de si.
Os sete rostos que fotografei me ensinaram
a descascar o visível até que outro mundo deixasse entrever seus anagramas. Não
importa o que sentimos em relação ao outro. Trazemos dentro de nós veneno e antídoto.
Sete mulheres me olharam diante de uma Canon e me surpreenderam pelo desprendimento
de seu espírito. Quando fotografei as máscaras elas mesmas me diziam com quais rostos
queriam dialogar. Eu me entreguei a um mundo de cada vez, buscando uma configuração
distinta para cada mito, uma atualização de cenário e bastidor, a recuperação de
uma sinceridade cênica. Um dia precisaremos saber até onde estamos dispostos a ir.
O olhar define a arte de um modo enganoso. Quando passamos de uma escala do mistério para outra, da pintura para a música, compreendemos algo distinto. O mundo deixa de ser o que vemos e passa a ser o que ouvimos. O sentido não define a arte. Tampouco é definido por ela. O caráter inquieto e criativo de cada um de nós é o que ordena a rota alusiva de nossa existência. Um estado permanente de correspondência entre o que imagino ser e o que me falta. A forma não existe senão como uma impureza do ser. É o que expurgo de mim, o gráfico de uma libertação. O cenário cósmico dos símbolos integra ansiedades, afinidades, com uma força anímica que muitos não dão por sua atuação. A máscara é um gráfico. Não convidamos o mito a fazer parte de nossa vida. Não expressa uma realidade em si, mas antes uma rede de conexões que nos permite definir ou corrigir o modelo apresentado. A máscara é um desafio para que o símbolo configure nova essência. Uma manifestação da inquietude do ser.
Floriano
Martins
∞ índice
ALFONSO PEÑA | Leila
Ferraz y los puentes infinitos de la memoria
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CAMILO HOYOS GÓMEZ | Louis Aragon y el quotidien merveilleux surrealista
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CARLOS M. LUIS |
Víctor Brauner, el mago
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paredes com os olhos
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LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Aimé Césaire
entre surrealismo, contos orais e artes visuais ou explorando um pequeno poema da
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RAY ELLENWOOD | Françoise Sullivan and the question of myth
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VIVIANE GIL | Ismael Nery: as representações
do corpo em diálogo com o Surrealismo
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/viviane-gil-ismael-nery-as.html
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Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09
Número 208 | maio de 2022
Artista convidado: Floriano Martins (Brasil, 1957)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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