Atualmente,
o contingente da produção de Ismael Nery segue colocando diversas questões, tanto
à crítica como à recente historiografia da arte brasileira, pontos inesgotáveis
sobre suas investigações ora formais, realizadas entre o desenho e a pintura, ora
temáticas e, entre outros contornos, pelas inúmeras representações do corpo e o
desenho autorreferente. Do mesmo modo, sua produção sugere ainda afinidades com
parte da recente produção artística do país e indica possíveis diálogos, principalmente,
com aquelas em que o sujeito artista se revela em sua obra. Contudo, outros eventos
merecem atenção já que prevalece o fato de Nery ter uma produção que não foi desvendada a seu tempo e que segue mantendo
uma possibilidade de análise que a alinhe ao surrealismo de Breton, ainda que o
artista conectasse sua obra de modo próprio e original ao seu sistema filosófico
(Essencialismo) e dialogasse com outros diferentes movimentos artísticos europeus.
O
tema nacional, próprio da modernidade brasileira foi marcado por diretrizes singulares,
guiadas pelos conceitos de originalidade e autoria, definidos pelas vanguardas artísticas
internacionais. Entretanto, algumas obras produzidas no período estimulavam a crítica
de arte escrita no Brasil a compreender a modernidade que se processava fora do
seu eixo hegemônico, fazendo-se necessário se deixar levar pela indagação e investigação,
entre o curioso e o inquieto, da proposição de determinados artistas. Na cidade
de São Paulo, considerada modelo de cidade industrial desenvolvida, na pintura moderna
dos anos 1920, era possível perceber duas diferentes características interligadas
(Cattani, 1994);
a primeira apontava a relação que alguns artistas mantinham com as escolas
europeias, a segunda indicava o desejo de atualização em face de produção
artística existente na Europa, o que fez
os criadores unirem de maneira complexa os conceitos de vanguarda e reconstrução,
ruptura e ordem.
A missão de enquadrar a obra de Ismael Nery no discurso da crítica modernista foi muito bem recusada por Mário de Andrade (São Paulo 1893-1945) que percebeu “com exceção duns poucos quadros, toda obra do pintor se ressentia de um inacabado muito inquieto, além de compreender que “o artista era preocupado com uns tantos problemas plásticos, principalmente a composição com figuras e a realização dum tipo ideal humano” deixando a impressão de que “os problemas se enunciavam nuns quadros, e eram
Nos
desenhos e pinturas de Nery, o domínio técnico não figurava como uma preocupação
manifesta, suas questões estavam colocadas na temática, que sugerem diferentes percepções
do humano, indagações sobre gênero, sexualidade e morte. Os corpos apresentados
em grande parte da sua obra realizam operações próprias à modernidade, pois ora
se trespassam, sugerindo a união do masculino e feminino que se revelam num só corpo,
ora se diluem, se fragmentam, se decompõem à maneira surrealista. De outra forma,
os corpos também aparecem multiplicados: há aquele descritivo do manequim, outro
que diz sobre união consumada (pela mistura dos materiais) e o corpo que é decomposto,
para ser indicado a partir de suas partes e de seus órgãos. Importa destacar que
“essa evocação da origem está na base da sensibilidade surrealista, como se fosse
possível reinventar o mundo a partir de um grau zero no qual todos os elementos
se encontrariam em constante transição” (Moraes, 2002), à maneira da Composição
Surrealista, s.d., em que uma face feminina é entrelaçada pelo abraço de um
corpo despedaçado, junto às raízes que atuam tais como mãos, e a protegem de feitios
cinzentos em frente a um horizonte claro e delineado.
De outra forma, sua obra igualmente apresenta
uma abertura para as representações do inconsciente, como propõe o exercício surrealista,
por onde o artista se aproxima da morte – sua própria morte, como foi apresentado
na aquarela Morte de Ismael Nery, 1932, em que ele se concebe deitado e parcialmente
despido no alto de um prédio. Ao fundo um dirigível sobrevoa a Baía da Guanabara,
ao lado uma vela acesa, abaixo uma mulher que olha pela janela. A natureza exuberante
contrasta com a cidade que cresce de forma irregular em meio aos sonhos de seus
moradores e, enquanto isso, o poeta/artista, entre o gesto e o pensamento, idealiza
sua morte e atribui à sua obra o inegável caráter autobiográfico.
Referências
ADES, Dawn.
O Dada e o Surrealismo. Barcelona: Editorial Labor, 1976.
AMARAL, Aracy.
Ismael Nery, 50 anos depois. São Paulo: MAC/USP, 1984.
CATTANI, Icleia
Borsa. As representações do lugar na pintura Moderna Brasileira: As obras de Tarsila
Amaral e Ismael Nery. Gávea: Revista de História da Arte e Arquitetura. Rio de Janeiro:
PUC Rio. Departamento de História, Vol. 11, n.11, abril de 1994.
MORAES, Eliane
Robert. O corpo impossível. A decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille.
São Paulo: Iluminuras, 2002.
PONGE, Robert. (Org.) Surrealismo e o Novo Mundo. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.
VIVIANE GIL | Graduada em Artes Visuais, Mestrado e Doutorado em História, Teoria e Crítica de Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS). Atualmente é professora na ESPM de Porto Alegre, com experiência na área de Artes, com ênfase em Fundamentos e Crítica das Artes, onde orienta pesquisas em História da Arte, Arte Contemporânea, Processos Criativos, História da Moda e Relações entre Arte, Corpo e Moda.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura. Realizou inúmeras capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), 120 noites de Eros - Mulheres surrealistas (ensaio, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Venezuela, 2021), e Un día fui Aurora Leonardos (poesia, Ecuador, 2022).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09
Número 208 | maio de 2022
Artista convidado: Floriano Martins (Brasil, 1957)
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