segunda-feira, 9 de maio de 2022

VIVIANE GIL | Ismael Nery: as representações do corpo em diálogo com o Surrealismo

 


Conhecido por ser um artista múltiplo, Ismael Nery (1900-1934) conservou sua identidade criativa, quando no Brasil vigorava a cartilha da modernidade nacional e, do figurativo ao abstrato, manteve-se em constante busca pela representação dos seus anseios. Durante seus 34 anos de vida participou apenas de três exposições individuais e quatro outras coletivas. Seu trabalho foi reconhecido apenas por uns poucos intelectuais e artistas progressistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, a exemplo de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Mario de Andrade e Antônio Bento. A partir de VIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1965, que tinha como objetivo confirmar o fim do tema nacional, sua obra foi revitalizada, lembrada e homenageada por diversas exposições, além de passar a constar em dezenas de importantes referências bibliográficas. 

Atualmente, o contingente da produção de Ismael Nery segue colocando diversas questões, tanto à crítica como à recente historiografia da arte brasileira, pontos inesgotáveis sobre suas investigações ora formais, realizadas entre o desenho e a pintura, ora temáticas e, entre outros contornos, pelas inúmeras representações do corpo e o desenho autorreferente. Do mesmo modo, sua produção sugere ainda afinidades com parte da recente produção artística do país e indica possíveis diálogos, principalmente, com aquelas em que o sujeito artista se revela em sua obra. Contudo, outros eventos merecem atenção já que prevalece o fato de Nery ter uma produção que não foi desvendada a seu tempo e que segue mantendo uma possibilidade de análise que a alinhe ao surrealismo de Breton, ainda que o artista conectasse sua obra de modo próprio e original ao seu sistema filosófico (Essencialismo) e dialogasse com outros diferentes movimentos artísticos europeus.

O tema nacional, próprio da modernidade brasileira foi marcado por diretrizes singulares, guiadas pelos conceitos de originalidade e autoria, definidos pelas vanguardas artísticas internacionais. Entretanto, algumas obras produzidas no período estimulavam a crítica de arte escrita no Brasil a compreender a modernidade que se processava fora do seu eixo hegemônico, fazendo-se necessário se deixar levar pela indagação e investigação, entre o curioso e o inquieto, da proposição de determinados artistas. Na cidade de São Paulo, considerada modelo de cidade industrial desenvolvida, na pintura moderna dos anos 1920, era possível perceber duas diferentes características interligadas (Cattani, 1994); a primeira apontava a relação que alguns artistas mantinham com as escolas europeias, a segunda indicava o desejo de atualização em face de produção artística existente na Europa, o que fez os criadores unirem de maneira complexa os conceitos de vanguarda e reconstrução, ruptura e ordem.


Nesse contexto Ismael Nery foi apontado, como um dos artistas precursores do Surrealismo no Brasil, tendo realizado a maior parte de sua produção no Rio de Janeiro, afastado das vanguardas paulistas, mas informado dos acontecimentos artísticos nacionais e europeus. Em suas obras, ele evidenciou os signos da modernidade, como a geometrização das figuras, a fase azul e as figuras oníricas que o ligavam respectivamente ao cubismo de Braque, a Picasso e a Chagall. Entretanto, observa-se que manteve uma aproximação mais inventiva com o Surrealismo, provavelmente pela abertura que esse oferecia para Nery abordar mais livremente seus próprios interesses artísticos. O movimento surrealista harmonizava, em suas diretrizes, peculiaridades como a de apontar o “poder enigmático, alucinante ou revelador da imagem” (ADES, 1976) e ainda oferecia a possibilidade aos artistas de executarem uma “multiplicidade de experimentações formais e técnicas”. Assim, principalmente para a temática da figura humana e suas feições esses procedimentos pareciam se mostrar mais adequados.

A missão de enquadrar a obra de Ismael Nery no discurso da crítica modernista foi muito bem recusada por Mário de Andrade (São Paulo 1893-1945) que percebeu “com exceção duns poucos quadros, toda obra do pintor se ressentia de um inacabado muito inquieto, além de compreender que “o artista era preocupado com uns tantos problemas plásticos, principalmente a composição com figuras e a realização dum tipo ideal humano” deixando a impressão de que “os problemas se enunciavam nuns quadros, e eram


desenvolvidos noutros para terminar noutros” (Andrade ap. Amaral, 1984). Assim, ele realizava as representações do corpo autorreferente junto e além do contexto do encontro amoroso. Identificados, os corpos nas obras se desdobram (e se diluem) cuidadosamente de uma superfície a outra, a exemplo da pintura Sem Título, de 1920, em que figura por meio de nanquim e aquarela, um casal que se desnuda de suas vestimentas em estampas ao estilo art déco. Em outra imagem, Casal em vermelho, s.d. a experiência formal que o artista alcança concebe a união dos corpos por meio da transparência dos materiais que, associada à pintura Origem 4Etapa Final, s.d., revela que permanecem apenas os contornos e as sobreposições de algo que se pressupõe humano, mas que efêmero, se transformou tornando-se mancha.

Nos desenhos e pinturas de Nery, o domínio técnico não figurava como uma preocupação manifesta, suas questões estavam colocadas na temática, que sugerem diferentes percepções do humano, indagações sobre gênero, sexualidade e morte. Os corpos apresentados em grande parte da sua obra realizam operações próprias à modernidade, pois ora se trespassam, sugerindo a união do masculino e feminino que se revelam num só corpo, ora se diluem, se fragmentam, se decompõem à maneira surrealista. De outra forma, os corpos também aparecem multiplicados: há aquele descritivo do manequim, outro que diz sobre união consumada (pela mistura dos materiais) e o corpo que é decomposto, para ser indicado a partir de suas partes e de seus órgãos. Importa destacar que “essa evocação da origem está na base da sensibilidade surrealista, como se fosse possível reinventar o mundo a partir de um grau zero no qual todos os elementos se encontrariam em constante transição” (Moraes, 2002), à maneira da Composição Surrealista, s.d., em que uma face feminina é entrelaçada pelo abraço de um corpo despedaçado, junto às raízes que atuam tais como mãos, e a protegem de feitios cinzentos em frente a um horizonte claro e delineado.


Assim, salvo de maneira crítica, os temas pátrios do modernismo estão afastados da obra de Nery. Nos desenhos e pinturas autorreferentes, o artista aparece figurado como alguém que se percebe dividido, enfrentando um impasse, que primeiramente pode ser refletido como resultante de um preceito ideológico, visto a sua relação com os dois mundos distintos, Brasil e Europa. Exemplar é o óleo sobre tela, Auto-retrato, 1927, nele o autor se representa no centro da tela. Está sentado e leva a mão direita em direção à paisagem do subúrbio carioca, conferindo lugar de destaque à mulata, que de braços estendidos, apresenta as tradicionais casas coloridas. A palmeira, o mar azul e o Pão de Açúcar ao fundo realçam a paisagem do Rio de Janeiro. À esquerda, fora do eixo vertical, árvores e prédios parisienses se inclinam à maneira da representação da Torre Eiffel.

De outra forma, sua obra igualmente apresenta uma abertura para as representações do inconsciente, como propõe o exercício surrealista, por onde o artista se aproxima da morte – sua própria morte, como foi apresentado na aquarela Morte de Ismael Nery, 1932, em que ele se concebe deitado e parcialmente despido no alto de um prédio. Ao fundo um dirigível sobrevoa a Baía da Guanabara, ao lado uma vela acesa, abaixo uma mulher que olha pela janela. A natureza exuberante contrasta com a cidade que cresce de forma irregular em meio aos sonhos de seus moradores e, enquanto isso, o poeta/artista, entre o gesto e o pensamento, idealiza sua morte e atribui à sua obra o inegável caráter autobiográfico.

 

Referências

ADES, Dawn. O Dada e o Surrealismo. Barcelona: Editorial Labor, 1976.

AMARAL, Aracy. Ismael Nery, 50 anos depois. São Paulo: MAC/USP, 1984.

CATTANI, Icleia Borsa. As representações do lugar na pintura Moderna Brasileira: As obras de Tarsila Amaral e Ismael Nery. Gávea: Revista de História da Arte e Arquitetura. Rio de Janeiro: PUC Rio. Departamento de História, Vol. 11, n.11, abril de 1994.

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. A decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2002.

PONGE, Robert. (Org.) Surrealismo e o Novo Mundo. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999. 

 


VIVIANE GIL | Graduada em Artes Visuais, Mestrado e Doutorado em História, Teoria e Crítica de Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS). Atualmente é professora na ESPM de Porto Alegre, com experiência na área de Artes, com ênfase em Fundamentos e Crítica das Artes, onde orienta pesquisas em História da Arte, Arte Contemporânea, Processos Criativos, História da Moda e Relações entre Arte, Corpo e Moda.




FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura. Realizou inúmeras capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), 120 noites de Eros - Mulheres surrealistas (ensaio, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Venezuela, 2021), e Un día fui Aurora Leonardos (poesia, Ecuador, 2022).
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09

Número 208 | maio de 2022

Artista convidado: Floriano Martins (Brasil, 1957)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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