segunda-feira, 9 de maio de 2022

FERNANDO FREITAS FUÃO | Brassaï beijando as paredes com os olhos

 


Caro Floriano Martins,

segue abaixo o artigo que gentilmente me convidastes para escrever sobre Brassaï, foi difícil escrever algo que ainda não foi dito sobre ele, minha pesquisa partiu dos artigos e materiais disponíveis na internet chegando até as teses e dissertações. Nessa busca, acabei descobrindo escritos do Brassaï, cartas que escrevia em forma de diários. Em 1935, enviou para a Alemanha, para a Editora Brassói Lapok, uma compilação dessas cartas; já nessa época ele era conhecido por toda a França como o olho de Paris. Brassaï colocou essas crônicas sob o título de Cartas aos notívagos. Entrementes, esse material nunca foi publicado na época por causa da ascensão nazista, o material no mínimo seria considerado degenerado, ficando anos e anos esquecido nos depósitos da Lapok. No final dos anos 1980 foi encontrado por um funcionário, e prontamente enviado para Gilberte, a esposa de Brassaï, na época já estava na casa dos setentas. O material é aprovado por ela, e publicado ainda em 1990, seis anos a morte de Brassaï. O livro saiu pela Editora do próprio jornal Brassaï Lapok, numa clara homenagem e expressiva retribuição à Brassaï sob o título de Briefe an die Nachtschwärmer. Gilberte iria vender também os direitos autorais, alguns anos depois para a Skira (Lettres aux noctambules, 1995); pouco antes de a firma ser adquirida pelo grupo editorial italiano Einaudi. Foram sobre essas duas traduções que baseei minha tradução. Evidente que não traduzi a totalidade das 328 páginas da edição alemã, nem tampouco as 249 da Skira. Propus-me a fazer um recorte destacando somente alguns fragmentos que mais me entusiasmaram e, destarte jogam-nos na realidade de nosso tempo. Acredito que esse livro de Brassaï seja ainda pouco conhecido no Brasil, assim também esse Brassaï que se confessa nessas cartas. Não encontrei traduções na língua espanhola e italiana. São muitas páginas nas quais ele descreve Paris à noite, suas recordações, da década de 1920 até final da década seguinte, pelos recônditos mais subterrâneos e inauditos. Sua linguagem nessas cartas é variada, muitas vezes aproximando-se de seus contemporâneos e/ou amigos como Henry Miller, Mac Orlan, Julien Green – viés mais da sexualidade–; por outro, próximo à escrita surrealista de seus colegas do Le Minotaure, como Breton, Reverdy, Michaux. Aos leitores é preciso lembrar que antes de ser um fotógrafo Brassaï foi jornalista, de certa forma um escritor. O material surpreende pela erudição e reflexão sobre a fotografia, há extensas passagens que honram as melhores teorias sobre o ato fotográfico. Selecionei vários fragmentos e coloquei sob títulos curiosos que me ocorriam conforme ia traduzindo para melhor conduzir e entreter o leitor. Nessas preciosas cartas em forma de diários, meu caro Floriano, não há títulos somente datas; e em algumas delas também não há registro do lugar onde foram escritas. Achei que perderia um pouco do surpreendente e das reflexões extemporâneas de Brassaï sobre fotografia, se conservasse aquele formato original. Confesso que se tornou exaustivo ver tantos pensamentos embaralhados. Acredito ser meu lado racional e organizador de professor deixar tudo muito às claras. Portanto, desculpo-me ante os leitores e amantes de Brassaï por essa pequena profanação do material. Não é uma tradução fidedigna ao todo do original, remontei, organizei esses fragmentos sob vários títulos como: Le monocle, as vespasianas, prisões, ou mesmo muros onde insertei toda a problemática da arte do graffite. Conservei ao máximo os parágrafos fragmentos selecionados dos diários em sua íntegra, me esforcei ao máximo com as palavras para deixar o mais fiel possível ao original. Espero que tenha conseguido. Descobri também que Brassaï adorava brincar com as palavras e seus sentidos. Algumas dessas expressões tive dificuldade de traduzir do alemão, e, sobretudo comparando com a versão em francês, havia divergências entre uma e outra, e solicitei auxilio para o incansável colega Hermann Blumen, que vive aqui em Porto Alegre. Acrescentei notas de pé de página, no intento de elucidar algumas passagens que para o leitor julguei serem enigmáticas, sobretudo quando se refere aos amigos de Brassaï, que não são poucos. Temo que ao final, essa tradução tenha se tornado um pouco hermética para quem pouco conhece Brassaï. As extensas notas de pé de página colocadas como notas do tradutor (N.T.) considero ser mais uma mazela de minha formação acadêmica como professor, anos e anos me debruçando e revisando teses, como bem sabes. Espero que não acarretem nenhum prejuízo, somente tive a intenção de enriquecer o material. Nessas crônicas acabei percebendo que a Paris dos anos 1930 pode ser hoje qualquer cidade no mundo: Fortaleza, tua terra; Porto Alegre; e até mesmo uma São Paulo da vida. Os dramas seguem os mesmos. Coloquei o título geral de EmBrassaï en le nuit (Beijado à noite), numa tentativa de explorar e resignificar o nome de Brassaï, acrescentei um pequeno verbete logo no inicio com a finalidade, quiçá de poetizar; antes de começar a tradução propriamente dita, apresentando-se como um pequeno exórdio. Essas foram minhas inserções. Espero que gostes, e principalmente aos leitores fiéis a Agulha Revista de Cultura.

 

EMBRASSAÏ EN LE NUIT

 

Em-Brassaï-ment: abraços, bisou, embrasser verbo beijar, embraçai beijei. Abraço imobilizante, encanto, feitiço, petrificação. Glas. Diz-se também do ato, do impacto de ser absorvido, tragado pelo mundo das paredes e muros. EmBrassaï, passado simples. Ato de beijar paredes com os olhos. Embrulhado, empacotado (Embroulle). Contração de braços e (a)braços. Brassaï. Baiser Paris. Transar com Paris. Em Brassaï Paris. Paris em Brassaï. Abraços à Brassaï.

 

Chers maman et papa: j’aime Paris

Desde a infância adquiri o gosto do proibido, o leite das tetas exuberantes de minha ama que escorriam por minha boca; ela era farta de leite e imaginação. Talvez, a riqueza das ideias venha dessa mistura. O nariz acordou primeiro que minha boca. Até hoje padeço do dilema da escolha que a sociedade me impõe de ser uma única profissão: jornalista, desenhista, fotógrafo, escritor, escultor. Não tolero e me enferma. Quero ser todos e ao mesmo tempo nenhum. Quero mesmo é viver a vida e os prazeres em Paris. O jornalismo às vezes me entedia. Meu amigo Pierre Mac Orlan, escritor, conhece cada recôndito da noite, se intitula um pornógrafo, me conduz pelas profundezas de Paris. Esse mergulho parece não ter fim, lugares infotografáveis, receio até descrevê-los nessas páginas, fazem os recônditos frequentados por Restif de la Bretonne e Baudelaire parecerem jardim de infância. Pedi pra Pierre fazer o prefácio de Prazeres de Paris, aceitou. Todo mundo adora ele, as putas adoram ele, paga tudo. Pierre é muito generoso, assume às vezes as caras contas da noite para mim. Foi uma sorte tê-lo conhecido nos primeiros tempos de Paris, assim como Sra. Marianne Delaunay-Belleville, uma aristocrata de imensa riqueza, vinte anos mais velha que eu. Suas amizades me propiciam relações com as quais nunca teria, não fosse Marianne.

Hoje vendi várias fotos restantes do livro Paris à noite para a popular revista Voilà, e dei início a mais uma fase de sua exploração da cidade, agora mais intimista por assim dizer. Acabei de endereçar mais uma carta a Roger Grenier, explicando-lhe das fotos que escolhi para colocar no livro Os segredos de Paris. Venho trabalhando com os surrealistas na revista Le Minotaure, confesso que suas ideias radicalizadas às vezes me incomodam, mas adoro-os; é uma cumplicidade estranha, nessa cidade dobrada, um louco amor. Albert Skira tem me ajudado muito. Mas, recusei o convite de Breton para juntar-me ao grupo.

A Alemanha está agitada, sorte estar em Paris. Verdadeiras guerras campais são travadas nas ruas entre os camisas pardas Sturmabteilung; uma milícia sob o comando do pederasta general Ernst Röhm; e os comunistas desarmados, impotentes frente à tamanha violência. A cor parda provém dos fardamentos destinados às tropas alemãs que serviram na Tanzânia durante a Primeira Guerra Mundial, nunca devolveram. Após a guerra os nazistas compraram por preços módicos, para vestir suas milícias. Foram terríveis os dias que passei prisioneiro. Agora as coisas estão tomando um rumo macabro, acompanho as notícias diariamente. As refeições estão a cada dia mais caras aqui em Paris, já é uma consequência desses tempos. O que custava em Berlim 8 marcos agora custa 20 marcos, até os tickets de trem subiram. Tempo de vacas magras. Os artistas estão debandando de Paris, Montparnasse está esvaziando, os artistas mais lúcidos pressentem o que vem pela frente. A ascensão do nazismo é pauta das notícias nos jornais. A crise chegou bem na hora em que eu começava a ter uma renda decente, o Brassói Lapok reduziu meu salário. Os jornais alemães estão estrangulando os gastos, reduzindo valores pagos, e também a demanda por free lancers. Mas, aqui tudo ainda parece normal. Muito amor no ar. Sigo hipocritamente vendendo para os alemães a imagem poética da extravagância cultural e libertina de Paris. Os nazistas também amam Paris, é a capital dos séculos XIX e XX. Não entendo como o povo alemão e os parisienses conseguem viver o cotidiano normalmente como nada estivesse acontecendo, ou para acontecer. Tudo é muito insano; como meio de sobrevivência tenho que me manter no jornalismo escrevendo sobre arte, cultura e política. Mas, não vai durar muito. Por sorte, estou ficando conhecido por aqui. Melhor, parece que todos gostam das minhas fotografias. Amo Paris.

Se eu tivesse tomado uma decisão tão consciente em favor da fotografia, poderia-se perguntar: por que a ansiedade de me libertar dela o mais rápido possível? Por que escrevi, naquela que foi sem dúvida a mais obscura de minhas cartas, datada de dois de agosto de 1939. Era óbvio que, aconteça o que acontecer eu deveria me libertar da fotografia. Ainda considero-a apenas um trampolim para o meu verdadeiro eu. Para entender esse pensamento, não se esqueçam de que a fotografia é meu sustento, um meio de apoio que às vezes envolve trabalhos que reluto aceitá-los. Era principalmente dessa subserviência que eu tentava escapar. Por outro lado, durante minha antiga estada em Berlim, escrevi que havia começado a surgir em mim uma ideia que havia se transformado em uma árvore com galhos largos. Este era o tesouro de que falei, mas que não podia possuir plenamente. Fiquei atormentado pelo medo de não conseguir trazê-lo à tona, e senti que era uma tarefa mais importante do que criar uma obra fotográfica. Infelizmente, é-me impossível elaborar mais sobre isso aqui.

Devo esclarecer outro ponto enganoso nas cartas que envio pra vocês, não quero que interpretem mal o que digo. Elas sugerem que fui atraído para a fotografia por considerações puramente práticas. Mas não é verdade, assim que aprendi a usar a câmera perdi o interesse em ter minhas fotos publicadas como ilustrações de artigos encomendados, e até mesmo de minhas reportagens e artigos. A partir do momento em que percebi que a câmera era capaz de captar a beleza da noite parisiense (aquela beleza pela qual me ‘apaixonei apaixonadamente’ durante minhas aventuras boêmias), busquei a fotografia apenas para meu próprio prazer. Ao mesmo tempo, também entendi que não era irrelevante a forma de expressão que um artista escolhe em uma determinada época. Elas proporcionam prazer e dinheiro.

São tantos acontecimentos e encontros no dia a dia que fica até difícil chegar em casa; acabo passando horas nos cafés e em festas que me convidam, em vez de fazer meu trabalho. A cidade me suga até a última gota de sangue. Abraça-me esmagadoramente, fico fascinado pelos brioches, os croissants, coisas que na Alemanha não tinha tão frequentemente, e tão barato. As vitrines e as mulheres são encantadoras. Às vezes, não faço nada o dia inteiro. Parece-me que a vida em Paris é adoravelmente viscosa, coagulante. Assim, que começou meu mergulho na vida de Paris, pouco a pouco fui levado à suas entranhas mais sedutoras e pecaminosas. Perdoem-me, mas, não posso dar mais detalhes nesse momento. Durmo durante o dia e caminho durante a noite. ‘Quem sou eu?’, o que estou me tornando. Estou muito pálido, não tomo quase sol, e o inverno parece glacial.

André Kertész tem me acompanhado em algumas caminhadas noturnas, foi ele o culpado. Sugeriu-me comprar uma máquina fotográfica. Depois de relutar, comprei o equipamento fotográfico e também um ampliador que quase não utilizo. Resolvi prudentemente não alugar nenhum ateliê, e sim um quartinho ao lado do meu. Recebo razoavelmente bem como jornalista, parte desse dinheiro vem das fotografias que ilustram os artigos, anteriormente pagava outros fotógrafos para fazerem; agora faço eu mesmo.

Gosto da vaporosidade, da neblina (nebel), o brouillard, a bruma, as ruas escuras e sujas; não sei de onde vem esse prazer. Encanta-me as prostitutas, a vadiagem, os homossexuais, os pervertidos e seu modo de vida. Passo boa parte de meu tempo perambulando pela cidade. Paris exala sexo, seus odores bons e ruins, há um air de Paris, Eros e Psique. Gosto da iluminação dos lampiões e suas sombras, os efeitos que via no expressionismo agora aparecem aqui. Sombras e sobras nas ruinas e sarjetas. Meu reino é a noite, persigo as pegadas como um animal em busca de sua presa. Caio nos mesmos lugares no fim da noite. Me lembrei do Kandinsky, para ele a fumaça era o veículo do espiritual; para mim é mesmo o rastro do mistério, o que se esconde na noite. Quanto mais bruma melhor. Meu espírito fica maravilhosamente enevoado, não quero encerrar a noite sem ter esvaziado a última garrafa, e sentir o cheiro da jovem da Rue des Marais.


O dormente do dia é o vivo na noite. Adoráveis criaturas despertam a noite, fantasmagorias e espectros. Terça-feira fui numa sala de fantasmagorias, todo mundo ria sem parar daquela palhaçada, e batia os pés. As superstições também reinam por aqui. Um estranho egoísmo e individualidade vivem no ar, a alienação, tempos obtusos e ao mesmo tempo tão poéticos e surreais. O mundo prenunciando seu fim, os homens contra os homens; as pessoas vivendo sua vida normalmente; como pode acontecer isso. Fotografo a alta sociedade, na medida em que vou ficando conhecido começo a frequentar também os eventos dos famosos fantasmáticos de Paris. Até Picasso já conheci. Mas sigo fotografando, noite após noite as ruas como cenários de um crime, os rastros que guardam e resguardam o assassinato. Em cada rua, em cada lugar descubro um detalhe, uma nova imagem. Paro, reparo e retrato. Estou defronte as paredes da vida e até as das execuções, mas como desconheço, percebo somente depois que me contam. Só vejo o poético. Por que existe a noite? Já na primeira inalação notei que alguma coisa não estava certa, o ar não estava em ordem na indumentária aromática da cidade, esse véu tecido com milhares de fios, faltava o fio de ouro. O lençol estava tão impregnado de sudoração típica da correria do dia, que havia absorvido as suas emanações como uma pasta de enfleurage. O resultado foi fantasmagórico: em termos olfativos, meu nariz ressuscitou do mundo dos mortos, meus olhos se aguçaram, e me deparei num vazio horripilante.

Meu amigo Henry Miller insiste em dizer que o tempo continuará ruim, haverá mais calamidades, mais morte e desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o tempo, mas a ausência de tempo. Não há tempo pra nada. Precisamos acertar o passo em ritmo acelerado. Não acompanho mais as datas. Há intervalos, mas ficam entre sonhos; e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo. O homem é um câncer que está comendo a si próprio. Estou pensando que quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo o caos será restabelecido. O caos, a guerra, a crueldades é a página sobre a qual a realidade está sempre sendo escrita. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Sempre adormecendo cada dia mais. A fisiologia do amor pulsa pouco, por isso a evocamos como uma prece libertina.

Cada dia mais as saídas me cansam, carregar o tripé, a máquina, as chapas pesadas, os clichês. Na volta, parece que carrego o peso do mundo, sem ser nenhum santo. Como desejaria que não demorasse tanto tempo para registrar uma cena. Minha medida de tempo para registrar a imagem na chapa passa a ser o Gauloise. Parece que trago o tempo enquanto faço tempo. Mato o tempo, mato tudo, enquanto espero a câmara tragar a imagem que esta fora da caixa. Ah, minha companheira inseparável a Voigtländer Bergheil. Ontem me desdobrei, procurei um ângulo inusitado para controlar os halos que se formavam em volta dos lampiões. Tive que buscar posições em que eles não aparecessem. Mas, a voa é minha amiga, ameniza a luz tornando-a indireta. Essa luz artificial cega e mata a fotografia. Tudo o que sei de fotografia de dia não serve em nada para a noite. Molhei-me demais, será resfriado na certa.

Louis Aragon chegou antes, Restif de La Bretonne muito antes. Esses notívagos deixaram um legado na literatura, um roteiro de vagabundagem a ser seguido em suas pegadas. Rastros sobre rastros. O camponês de paris de 1926 e Les nuits de Paris, invejo-os. Ontem Prévert, me levou pra ver o Bassin de la Villette à noite, lugar bastante sinistro. Não é bem esse o tipo de perigo que gosto de vivenciar, lá é desolado e descampado. Memorizei.

 

Muros

Existe um tipo de vínculo sanguíneo que se dá há tempos entre o graffite e a câmera fotográfica. Dois buracos se tornam os olhos da parede, uma boca; eis uma cara. Fotografei recolhi vários deles. Os desenhos, as inscrições nas paredes desde pequeno me despertaram a atenção, lembram inscrições rupestres das cavernas, lembram a infancia. Os graffites me revolvem o inconsciente, me transportam para um mundo mágico, onde me entrego à sorte do pensamento deles num delírio. O inusitado deles é que antes estavam nas cavernas, nas grutas; agora estão irônicamente nas paredes das fábricas, penitenciárias, nas ruas. Ontem, ao me aproximar da Opera indo ao bordel na Rue budapest, encontrei sinais semelhantes aos da gruta de Dordonha, e fiquei pensando que outrora era liberdade de expressão nas cavernas, hoje é o ‘proibido’ na cidade. Por isso, crianças e adolescentes adoram grafitar, cifrar o muro, profanar os muros virgens. Fico encantado, paralisado ante eles como um idiota, prontos a posar para minha própria câmera fotográfica. As incisões, os grafiatos me remechem por sua força arquetípica, são a origem da pintura, da escrita; grafia da parede. Tristes crianças que não tem um muro para brincar, triste ver que já ao nascer já tem um muro ali pronto para cerceá-las. Pior, não poderem riscar nem dentro de suas casas. O muro é o companheiro da solidão.

Acho que todos que inscrevem nos muros e paredes querem ver o que tem dentro, esburacar o mundo. Talvez uma tentativa de passar para o outro lado do muro, sair do aprisionamento que se constitui a vida. É uma espécie de velo espesso entre o aqui e o além. Quem será que inventou muros? Só pode ter coisa do diabo. O menino ao tocar a parede estabelece o diálogo entre o visível e o invisível, entre o bem e o mal, sua natureza é ocultar, dividir, separar, guardar, esconder os segredos em suas vísceras. Triste espessura da vida, e são tão assustadores, ninguém se atreve a experimentar e viver dentro deles, exceto os ‘civilizados’. As religiões os utilizam como superficie sagrada, atestavam mesopotâmicos, egípcios, e góticos. Nas caminhadas com o judeu errante, o Ahasverus, entre muros, penso que a esperança está escondida justo ali na amaldiçoada parede. Triste revelação da fotogafia ao registrar esses muros, essas casas, ali mora o lado terrível da civilização. A contra-natureza. Tudo é uma questão de ponto de vista; se por um segundo apenas abandonamos o fator tempo, e se ousarmos suspendê-lo, as analogias vivas brotarão estabelecendo relações vertiginosas entre tempos longínquos. O grafitte é a arte bastarda das ruas infames, a arte maldita, sem herança acadêmica, nem por isso menos importante. É mais interessante que um Coubert. Esse aroma pervertido das paredes mareja meus olhos de tesão fétida. Sinto vertigens, cambaleio, apoio-me neles inúmeras vezes para poder viver. São meu encosto. Muito me acocorei neles para defecar o mundo. E, tendo assim, controlado e acalmado meu espírito, comecei a puxar para dentro de mim o olor fatal, em inspirações curtas. Levantei as calças, e segui adiante. Grafei, gravei, fotografei as ruelas.

Quanto mais esburacado está o muro mais fascinio me desperta, mais informação, mais seres profundos podem morar alí, assim acolhe tudo. Os buracos são os olhos do muro e do mundo. Miro o muro, boca muro desdentada e imunda que grita le couer de le monde. O pequenino coração gravado na parede. Não gosto de muros lisos e brancos modernos. O tédio das paredes nuas e brancas me provoca náuseas, dá vontade escupir nelas. É um sentimento de absoluto suicídio, não registra a idade do tempo; ao contrário, apagam o tempo e nem ao menos congelam como faz a fotografia. O muro sujo e carcomido, envelhecido, poroso, rugoso, esse sim revela e conserva o passado, o mistério. Encripta. Ele simultaneamente segrega e esconde; guarda o tempo e protege do vento. Atrás dele pode se fazer tudo. O que é o muro senão uma superfície de contato sensível à luz e ao toque, a alma e a casa do mundo do homem europeu. Para que isso? Se o mundo poderia ser tão mais simples, quando a alma do mundo está no mundo animal e vegetal, e não nas pedras. Recordava-me quando voltava a cheirá-los, de fato voltei a eles muitas vezes, para além do tempo que estava ali, era uma espécie de droga alucinógena que me acariciava, sentia tudo até o ato primeiro. De repente, me despertei, era de manhã, tudo que vi foi o ranho escorrendo daquela menina que olhava pra mim.

Acariciar é um modo de ser e tratar as coisas no mundo, onde o contato com o outro vai além do tato. O contato forma parte do mundo das trevas porque é cego, produz sombra e ocultamentos. Busco representar incessantemente esses contatos, sem ver se vendo. O acariciado é aquilo que vejo, toco a distância; toco sem tocar através da lente, mas ele nunca é tocado de fato. Eis o que é a fotografia: o acariciado sem toque, o que a carícia busca não é o aveludado, o sedoso; a fotografia não sabe o que busca, só quer tocar tudo. O fotógrafo só quer retocar o mundo, voltar a sentir, por isso seu toque é deficiente. Muitas vezes busca o rugoso da parede, ou o liso e enigmático da unha. A caricia é cega por natureza, nunca está certa do que apalpou, é insegura, lhe falta algo; e para ter certeza faço muitas chapas do objeto de meu desejo, ter certeza exatamente do que sinto no momento mágico.

Cada ranhura, cada linha no muro é um traço (trait), um ‘re-traço’ (re-trait), um retrato (retrait) que retraça apagando algo, e trazendo à tona outra coisa. A ranhura (rainure) pertence à ordem do tempo e do espaço. Isso é o que é a fotografia: um apagamento, uma ranhura, um buraco de tempo e de espaço. Esses trous no muro são os rastros do rompimento do homem com a natureza. A parede me toca, sou tocado por ela, mas, por sortie (saída ou sorte), tanto o toque como a mirada pedem reciprocidade. Essa ‘reci-pro-cidade’ também é o que foi re-trait (retirado, apagado) do muro no retratado. O que ela retém e apaga assim como o muro é o próprio tempo. Apaga retraçando sem riscar e não se dá conta.

Os graffites não pertencem a uma rua específica ou a um autor específico, os graffites são a ponte para uma infância universal, para a desdomesticação, uma reverência ao selvagem. É a chave, a senha para derreter-se na parede do passado, semelhante à escrita automática descrita por Breton. Um cadáver muito exquisito. O muro é uma espécie de folha, página, dobra do inconsciente coletivo, um palimpsesto; permite livremente o acesso ao inconsciente da cidade. Não apaguem essas inscrições, não pintem, muito menos de branco, elas são o passaporte, as passagens para viajar ao passado, porta de saída e de entrada. É de dentro deles que surgem os espectros, as fantasmagorias. Em cada buraquinho há um Janus. Deixem passar.

Viu mamãe e papai, esta arte “bastarda”, não tem pai nem mãe. Ninguém assume sua criação, é comparável à figura da prostituta, ou do bastardo. Ambas, são elementos marginais da cidade, aponta à ancestralidade, a força anímica; erroneamente ao primitivo. Observem que, do lado direito da cara desenhada na parede está inscrito um coração, mesmo antes da presença da mulher, indicando o desejo sexual implícito na imagem Funciona como representação especular da mulher encostada ao candeeiro, que retratei. Lamento, gosto da arte ilícita, proibida, suja, anônima e de tudo que ainda não é arte. No muro estão e foram inscritos os maiores amores, I was here. Não só palavrões, mas contatos, tamanhos de penis, palavras de odio aos facistas, endereços, vaginas radiantes, e também poemas, frases revolucionárias. Verdades ao pé da letra. Esse dito ‘vandalismo’, essa arte degenerada não se explica pela necessidade de destruição do homem, seria ingênuo e ridículo demais. Essa arte de abrir e esburacar é puro acolhimento, tanto a parede como a folha da porta, quando rasgada, aberta, só acolhem. Ao inscrever na parede, inoculo, disemino qualquer coisa. Roço, esfrego meus dedos, solto minhas cacas do nariz, cuspo, urino. A inscrição no muro se trata de sobrevivência, um grito a liberdade, um primal screeen. Assim como a origem da escrita e da pintura está associada à incisão, o muro, só ele suporta essa inscrição para viver alem da mortalidade dos homens. Parece ter nascido para aqueles que não puderam, e nunca poderão, jamais erguer piramides e catedrais para legar seus nomes à posteridade. Por isso ejaculem nas paredes. Afinal, o que é a fotografia senão um jato luminoso dissimulado sobre uma superficie, um gozo. Um prazer intenso.

Tenho medo que daqui uma semana esses graffites não estejam mais alí; que algum higienista asqueroso tenha limpado para sempre, tenha apagado-os ou mesmo transfigurado-os. Quando fotografo um graffite estou salvando, encomendando-o a outro mundo, para o devenir, sou o Arconte dos graffites, o grande graffiteur. Ouço suas palavras silenciosas: ‘o poema do cú e da rola’, ‘só o amor é luz’, ‘a bunda reaje a assaltos’. Escuto o erotismo de seus pecados. Ali, na parede do banheiro qualquer um acredita em Deus ao dar descarga do vaso. Mas ao mesmo tempo o espelho diante, interroga quem é você? Quer ver o poder das paredes? Vá numa vespasiana.

O muro é meu mundo. Tudo fenece, desaparece, mas alguma coisa deve restar de nós além do fossil no muro. Os graffites, quiza, como memória perdurem mais que minhas fotografias, mesmo expostas e protegidas dentro das imaculadas paredes das galerias e museus, ou até nas paginas das revistas e livros. Voltei varios anos depois para visitá-los, como um apaixonado saudoso sem culpa do abandono; queria saber se ainda estavam vivos e falantes. Era só o que me interassava desses filhos meus. Ao fotografá-los parece que lhes dou alma. Receava serem apagados pela modernidade puritana, tudo fenece ante a tempestade veloz do progresso. E ela vai nos apagar também, temo que vá conseguir, mas não será fácil, nós ‘vivas almas’ da noite não existimos para dinamicidade do dia, vagamos como penates, como seres lentos para compensar a ‘velozcidade’. Tenho uma memória infalível, sei exatamente como e onde havia fotografado e cheirado cada parede sete anos antes. Senti novamente aquele cheiro de pedra e de úmido frio, um cheiro salino, tão nítido que nenhum vivente ou animal. Exatamente assim é que aquela parede cheirava agora, que jubilo poder estar ali e me transportar mais uma vez para aqueles antepassados. Sua pele carcomida, meu bilhete para viajar, cada buraquinho meu túnel do tempo. Assim vi o nascimento do rosto humano no graffite, rosto do mundo. Bastava ter dois buracos, e um terceiro para ter alma. Vivo no muro da rua.

O esquecimento é uma noite de trevas que engole as lembranças, mas o esquecimento está na memoria, o dia na noite, tudo é uma questão de orbita, de giro, de dobrar sobre si mesmo. A parede se deixa inscrever, escrever, esfregar-se e apagar-se. Ela é dura, mas posso penetrá-la. Circunscrevo. Ás vezes, os graffites surgem como flashes, relampiam como a centelha da imagem, aproveito a capacidade de ver espectros, fantasmas, rostos e figuras humanas nas paredes, pura pareidolia; me assombram, me arrepiam. Basta um buraco ou dois, uma mancha para as beatas verem Jesus ou o diabo, que tristeza essa gente. Cada um projeta o que quer ver. A primeira coisa que busco são os olhos, a boca da figura humana. Os três buracos. Mas será mesmo que dois buracos são os signos da cara, suficientes para evocar o humano? Ou, estou me tornando um olho máquina que vê olhos em tudo. Quando o fotografo fica obcecado, enfermo, é culpa dessa maldita e diabólica máquina que acha que para ser humano basta ter dois olhos.

O furo, o buraquinho, petit cul na parede é o binômio de disjunção, o desejo no abismo, mora entre a presença e a ausência da luz, o fora e o dentro, o ventilado e o abafado; ele faz o entre: o respirável. Encerra uma polaridade platônica da luz e da escuridão, uma porta, um nascimento contínuo para a estranheza da vida, para o desconhecido. O obscuro objeto do desejo, a escuridão que antecede a luminosidade da vida, permite contrastar com o pálido branco do papel fotográfico.


O muro vê; e sente-se vivo no mundo através do que se registrou nele; quando toco, abraço, beijo, lambo, passo meus dedos nele, acaricio. O que ele vê? é o que sente ao ser tocado e roçado, guarda e retêm impregnando as memorias do mundo, tal a fotografia no papel, acreditem. Passamos tudo pra ele, ele passa tudo pra mim, mas precisa ser tocado; carrega com o peso do mundo, só ele suporta; quando volto e beijo ele me retribui. Intercambiamos passado e presente, num tempo fora desse tempo. Estou no muro e ele em mim. Tudo não passa de um furtivo contato, uma pequena tatoo. A pele do mundo, retrato do mundo. Lembro-me que Proust, certa feita, me interrogou sobre o que seria então as lembranças-fantasmas, as quais não mais nos recordamos; então respondi a sua altura: ‘uma fotografia jamais revelada’. Uma parede, jamais riscada, está lá; para além desse mundo muro, aguardando a possibilidade. Outro amigo, o filosofo Rufino Becker, contou que as ideias que esquecemos vai para um determinado lugar, lugar sem lugar, como num depósito e ficam aguardando para que possam voltar à vida a qualquer momento, na cabeça de qualquer um, pois elas não são propriedade de ninguém. Ando pensando sobre isso.

“Quando nossos olhos se tocam... é de dia ou de noite?” O muro é tempo sem tempo, destinado a sobreviver a passagem do tempo. Toco o grafite, o graffe, sinto a ranhura, minha fenda do prazer, sua textura, seus buracos. Gosto de fotografá-los, tocá-los porque eles já são imóveis, não precisam ser preparados, ao contrario de minhas cenas retratadas (retrait). Ao contrário da pintura, eles podem ser tocados, esfregados, urinados, neles colocamos as cacas do nariz, enchemos de excrementos. Não nenhuma sacralidade nele. O muro desse lado da rua já nasce como o lugar de que se pode fazer tudo, são profanos; ao contrario de seu lado interior, privado. Destruir um graffite anônimo não é crime, ao passo que destruir uma obra de arte sim. Toda grafia no muro não pertence a ninguém, minhas fotografias sim, só a mim. A rua e suas paredes é uma espécie de cantoria, nenhum recital ou recitado, aqui é tudo roubado mesmo, congelo e tomo como propriedade para comercializar. Percorro o muro como uma lesma a esmo; arrasto-me sobre as ranhuras, dobro esquinas de letras, atravesso corações lechados.

Algumas paredes me dão repulsa, tanto faz se é uma textura lisa ou porosa, algo estranho me acontece com esse toque. Suspeito que esteja associado ás entranhas de cada superfície, ou a mim mesmo. O mesmo sucede ás vezes com uma folha de papel, que eu tenho que escrever algo sobre ela, não suporto folhas lisas demais. Numa dessas noites tinha um muro com muitas lesmas gordas subindo, grandes escargots e em sua caminhada deixavam um rastro brilhante no muro e no chão, suas secreções cintilavam; era muito fotogênico mas, também nojento; deu-me asco, fui embora.

Toco a pele do corpo que desejo, a película, o muro, no limite desse tocar passo automaticamente para o olhar, passo do toque tátil ao toque compulsivo da visão. Minha caricia parece ter limites; caminhando pela rua tateio o mundo, ‘embraçando’ e gotejando a cada passo. Todos esses muros da cidade que me parecem familiar, desejantes, foram também testemunhas de todos os martírios, de todos os atrasos inumanos aplicados a nossa gente. Todo o drama que sofreram os adultos e todas as cruéis fantasias de certa idade de tantas catástrofes pareciam agora abandonadas aos próprios impulsos, desenhavam-se e se inscreviam no muro ao meu redor. Acho que é isso que alguns me propiciam, medo e repulsa.

Graffite sim, porque grafa, grifa, grava em sulcos fundos, o que é o disco, o fonografo senão o sulco sonoro, é da fricção que sai a musica. Em seus primórdios, alguns povos faziam inscrições em pedras, na superfície da terra, em placas e rolos de cerâmica, em árvores, em ossos e couros de animais; ou na própria pele – como tatuagens, escarificação para que o tempo não os apagasse da história. A própria epiderme se constituía na primeira superfície de inscrição, o primeiro suporte de representação. Até pouco tempo atrás, alguns instrumentos de registro como a antiga caneta de pena, ou a atual máquina de escrever seguem o mesmo princípio da escrita, a perfuração, rasgar e rusgar o papel. Até agora, não deixaram de executar a prática milenar de marcar símbolos nas superfícies; no futuro não sei. A escrita se move entre uma incisão, um corte e uma união, uma cola, uma ligação. O corte inscreve a diferença na vida, no corpo, na figura, no texto, na palavra. O corte é a confecção do abismo, da descontinuidade, do distanciamento entre os corpos, entre as linguagens. Profundidade que induz comunicações, expressões, manifestações distintas. Quem explora tais superfícies quer ver o que se esconde dentro, conhecer o abismo em suas entranhas, o segredo de seu conteúdo. Será que inscrevo ou escrevo? Não posso dizer que tudo o que está escrito aqui seja mentira ou exagero, e também não posso dizer que seja verdadeiro, assim são minhas fotografias. Preparo a cena, como quem prepara uma ceia a partir do que já estava fadado a acontecer, do que já aconteceu, do que esta sendo; congelo para compor melhor e deixar o ar passar que quero abraçar.

Gosto do achatamento que o muro proporciona quando fotografo os graffites sem perspectiva. Acho que sou o pioneiro em buscar o achatamento, o chapado. Foco apenas na marca, nos buraquinhos, nas ranhuras. Quero uma profundidade milimétrica, a profundidade da porosidade da pele. E, de repente adquirem uma profundidade histórica muito profunda para alem de nossos tempos; a própria razão é impotente para descifrá-la. Me aproximo, esquadrinho no espaço do visor, exploro extasiado o que vejo, sua maravilha. É o gozo de ter capturado o passado lá trás.

O muro é de todos, mas só de um lado. Cada vez que fotografo me vem à mente a origem da pintura do Plinio e a possessão amorosa de reter o ser amado para além de sua vontade. Na noite anterior à partida do amado para a guerra, quando a filha do oleiro observava a sombra do seu amado projetada na parede pela fogueira, resolve sulcar o perfil, a silhueta projetada na parede. Para Plinio, nascia assim a pintura pela fixação da sombra do amado na imobilidade da imagem e de sua alma; um trabalho de fetiche; sem retirar nenhuma parte do corpo; como um pedaço de cabelo, ou qualquer outra coisa. Esperança semelhante à encontrada na prática egípcia que guarda o ka (a alma) nas estátuas dos mortos.

A incisão na parede é alma registrada, retida aprisionada, possessão. As figuras desenhadas nas paredes são uma incessante transposição, transmutação de imagens que se formam e se deformam, unem-se e desunem-se, mimetizam e se metamorfoseiam: uma vagina ou um pênis podem se converter num rosto, o rosto em um coração, o coração em uma flor. Esses encontros de diferentes grafias tornam-se ideogramas abstratos herméticos, inacessíveis. Tudo está ali pra brotar, a parede é uma brotação de signos, terra fecunda para o cultivo simbólico, mas também cheia de vírus latente. Cuidado, as paredes, os muros são casas de bacilos dormentes. Descobri, tardiamente com a declaração de um médico num almanaque, que a tuberculose podia se alojar na parede durante séculos. Não é a toa que se pintam as paredes de tempos em tempos, acho que essas pestes são a-históricas, não tem passado nem futuro. Não acredito muito nisso dos muros serem moradas de bacilos; os muros são estigmatizados, inventam essas histórias para pintarmos e encobrirmos o passado constantemente. Gosto dos muros porque eles nos contam sobre a necessidade da porosidade da vida e das relações, mesmo as paredes, as barreiras, os bloqueios entre países parecem conter brechas invisíveis, que nos imploram para atravessar, explorá-los.

De dia no burburim das ruas meus olhos tocam todos os olhos, cara na cara e pronto, desviamos nossos olhares para evitar uma aproximação, um contato. Á noite tudo favorece ao tocar, ao tocante, ao contato. Tudo vai ficando esfumaçado na embriaguez da noite dos olhos, ao ponto de já não ver nada, tudo o que desejo é estar abraçado, beijado, emBrassaï.

Batizei aquele graffite, ontem à noite de Lutécia; uma gigantesca cidade de letras e ranhuras, a velha Paris, me perdi percorrendo suas dobras vivendo e me embrenhando nessa perfuracidade, rugas e rusgas por toda a parte formando um labirinto. É estranho, adoro a cidade grande, mas não gosto do glomus, da aglomeração para fotografar. Onde há luz há gente nas calçadas, acotovelando-se, emitindo calor animal através de sua roupa de baixo suja, e de seu hálito fétido e praguejante. É possível que numa extensão de oito ou dez quarteirões haja uma aparência de alegria, mas depois quando chega à noite, a noite lúgubre, sórdida e preta como gordura gelada numa terrina de sopa, tudo muda, se cala. Quarteirões e quarteirões de prédios de apartamentos fecham-se. Suas janelas de pronto fecham-se hermeticamente, todas as frente das lojas também. Quilômetros e quilômetros de prisões de pedra sem o mais débil brilho de calor; os cães e os gatos estão todos dentro com os canários. As baratas e os percevejos também estão seguramente encarcerados.

Os políticos e os ditos cidadãos de bem dizem que o graffite é a praga do século, uma mácula na “civilidade” das paredes das cidades. Para eles escrever na parede é um ato inerentemente subversivo, uma espécie de violação da propriedade privada. O graffite é um atentado a domesticação da representação, o oposto do quadro comportado que esta lá do outro lado da parede. Os graffites representam uma arte ignorada e ignorante, bruta, selvagem. A linguagem das imagens mais primitivas. Essa ‘arte bastarda’ das ruas, menosprezada, quase incapaz de despertar o olho, tão incerta devido às inclemências do tempo, põe de pernas para o ar a arte tradicional e moderna. A beleza não é, na verdade o objetivo de sua criação, mas a sua recompensa. Qual o limite para o graffite? Até onde pode se disseminar?

O muro é a pedra indestrutível que inspira a ideia de eternidade, se congela na matéria. O graffe é o riscado e não o pintado, o tratado como apagamento. A parede: o suporte substancialmente idêntico ao papel fotográfico, sua estrutura desempenha um papel ativo seja por sua força sugestiva ou por sua capacidade de resistência. Um muro velho nunca está inerte, vibra em toda a sua superfície colorida de camadas de tempo deslizando umas sobre as outras.

Essa manhã ataquei a primeira estátua de Picasso para fotografa-la: a Cabeça da Morte, uma emocionante peça de trabalho do inventário fotográfico que tenho que realizar, além de amigo me pagará muito bem. Mais uma cabeça petrificada monumental com cavidades vazias, e com seu nariz corroído, e lábios caídos; uma careta esqueleto sem carne. Um bloco de pedra perdido marcado com cavidades corroída e polida, por ter rolado em torno de uma era para a outra. Fiz várias fotos. Picasso insiste em ajudar. Meu método o intriga. Eu raramente olho através das lentes turvas; apenas meço a distância com um barbante e às vezes ilumino a cena com pó de magnésio. A explosão assusta e diverte Picasso. Me apelidou de terrorista, doravante adota esse apelido para se referir a mim. Brassaï, disse ele, você sabia que Alfred Jarry sempre tem uma coruja viva morando com ele? Fiquei pensando, o que ele queria dizer com isso, por que me falou isso do nada. Corujas?!

Picasso acredita haver estilos de graffite para cada país, os grafites italianos são distintos dos espanhóis, e não tem nenhuma semelhança com o grafite parisiense. Explicou-me que, por exemplo, os falos que se nas paredes de Roma são especificamente italianos. Na verdade, você sabe, disse ele, mesmo sem fotos o graffite existe, mas é como se eles não existissem. Da mesma forma, afirmou, fiz objetos de papel que existirá apenas por causa da fotografia. Se você voltar mais cedo amanhã, vou mostrá-los para você. E você vai fotografá-los. Caso contrário, eles estarão também destinados à destruição. Mostrei para Picasso alguns fotos dos graffites, ele olha para eles com interesse, especialmente aqueles que mostram genitália. Retrucou, você pode ficar feliz em saber que neste momento eu também estou grafitando. Mas eles são grafados não na parede, mas no concreto. Invenção de um norueguês artista. Meus graffites serão ampliados e esculpidos com uma tesoura de eletricidade, e fará parte de um projeto para um edifício sede dos arquitetos em Barcelona, cada um deles terá dois ou três andares de altura. Me inspirei em você. Ao sair, tento recuperar minhas fotos de graffite. Ele reluta para devolve-los. Picasso: você estaria disposto a deixá-los comigo até amanhã? Eu gostaria de estudá-los esta noite. Sai sem minhas fotos.

Voltei até o muro do tempo para tocá-lo, minha doce Lutécia, fechei os olhos e inflei as narinas. O aroma era tão excepcionalmente suave e fino nessa noite que não conseguia retê-lo, me fugia sua percepção; estava encoberto pela fumaça da pólvora dos petardos e bloqueado pela transpiração das massas humanas; despedaçado e esmigalhado pelos milhares de outros cheiros da cidade. Não conseguia voltar no tempo. De repente, a rua se esvaziou, então estava de novo aí, bastava só um pedacinho a ser aspirado por um curto segundo, foi o suficiente para produzir o efeito. Pela primeira vez não era apenas meu caráter ávido que experimentava algo doentio, mas o meu coração que sofria. Palpitava a extraordinária sensação de que esse aroma seria a chave para ordenar todos os outros aromas, e todos os outros graffites. Era assim que entendia a história, ela precisa ser cheirada, não basta ser comunicada, lida. Precisava tê-la como uma tela mesmo, não pela mera posse, mas finalmente para sossego do meu coração. Só aquele graffite me transportava para Lutécia, beijar e abraçar a lamacenta Paris antiga, quando os quarteirões e as casas eram tão próximas umas das outras, que para passar só restava uma braça de largura. No tempo em que os transeuntes enterravam-se na lama e no lodo, tinham de passar uns pelos outros se comprimindo contra as paredes. Mesmo nas praças e nas poucas ruas mais largas, as carroças mal podiam desviar-se umas das outras, regado com cheiro de mofo e urina de rato, era quase sufocante. No entanto, apesar de toda a sujeira e aperto, a Lutécia pululava de atividades. Às vezes temo ser chato ao devanear sobre os muros. Miller reclama que falo demais. Ele mesmo sublinhou a singularidade da minha condição. ‘Diz-se às vezes que este é o homem caça imagens. Mas ele não caça absolutamente nada. É sim a presa, caçada por suas imagens. Vendo ele ainda armado com sua câmera, pensamos que ele é um fotógrafo. Mas ele não tem estúdio, não ganha a vida fazendo retratos, relatórios ou publicidade.’

 

Tapis

Um dia vou considerar a fotografia como muro, vou desacralizá-la e dar espessura ao papel. Hoje tive duas ideias: não sei quando terei tempo para realiza-las. A primeira, abrupta, observando os muros e seus diversos graffites, pensei então numa collage a partir das fotos dos graffites que tenho. Selecionar alguns, dispor lado a lado aleatoriamente como se fosse um muro imaginário, uma parede de um museu histórico. A outra, aconteceu no mesmo dia ao me deitar e olhar o lençol, pensei que poderia estampar nele os diversos graffites como um santo sudário. De pronto, a ideia saltou do lençol para o tapete; por que não um tapete de parede (tapisserie), algo mais consistente e espesso. Um delírio, mas algum dia faça. Ruminei. Quem poderia fazer tamanho tapete? Custaria uma fortuna, quem sabe um dia possa cobrar mais por minhas fotos, e então pagar um tapete desses. Seria como se fosse a reunião de todos graffites que fotografei juntos numa collage de tempos e autores distintos. Não consigo fazer collage, parece que mato a mim mesmo, se tiver que recortar minhas fotos. Alucinou-me a ideia do muro tombado e de poder caminhar sobre ele no chão, ou um ‘muro tapiçado’ dependurado numa parede. Seria como uma retribuição, uma devolução, mas num endereço errado. Tenho que rir da loucura que me atravessa. Quando o futuro é sombrio a negação apenas atrasa o inevitável – e muitas vezes pode tornar nossa queda em desgraça muito mais difícil. Para aqueles que lançam ilusões para tentar se consolar, os sábios nos aconselham a ler “a escrita na parede”. A parede tecida, a escrita da parede tecida, quantas sugestões podem se depreender da imagem de um muro e de todas suas possíveis derivações. Separação, clausura, muro de lamentações, prisão, superfícies lisas, serenas, brancas, superfícies torturadas, velhas, decrépitas, restos de amor, dor, asco, desordem, prestígio romântico das ruínas, explosões, tiros, marteladas, gritos, ecos. A partir dessa ideia louca, a surpresa mais sensacional: descobrir um dia de repente que minhas fotos dos graffites haviam se convertido em muros. Não sei se agora devo conversar com o muro ou com o tapete. Seria como uma reciprocidade amorosa, devolver os grafites fotografados às paredes do que foi retirado dela. Agora, nos bulevares paredes imaculadas estéreis, brancas puritanas asquerosas. Falo sobre os muros, mas não ecoa nos artistas, não reflete. Os artistas por mais transbordantes que sejam estão sujeitos ao suporte, não precisariam estar mais atados ao paspatur ou à moldura, ou a superfície da parede do museu, a falsa puritana branca, ou de uma cor só. Não sei a quem engana, e por que não a parede preta, fuliginosa, enrugada. Penso também em algo mais simples nesse momento, juntar esses graffites e imprimir num único papel fotográfico, uma collage, que seria a matriz para a tapeçaria. Quando valorizo o muro penso que no futuro haverá uma horda de artista tentando transcender a moldura, voltando-se ao muro, mas nunca conseguirão ultrapassar a arché do muro.

Dizem que minhas fotos dos graffites são imagens ‘em abismo’ (Mise en abyme), porque são signos de signos, a chapa e o chapado, da torpeza do muro multiplicando e estendendo-se; mas, porque uma vez que essas fotos sejam exibidas elas se tornariam parte da parede, parede sobre parede. Vou transferi-las. Nunca entendi muito bem o que querem dizer com abismo. Vou devolver à parede o que tinha roubado dela, sua alma. Balzac já comentou isso, a fotografia rouba a aura. Os graffites serão impressos sobre papéis fotográficos, depois serão redesenhados em tapeçarias que serão dependuradas sobre horríveis paredes brancas. Gostaria de dependurá-las nas paredes e muros da rua.


Mas isso é tudo falso, lido com a falsidade com naturalidade. Pergunto-me, se ao fazer isso não estaria transformando a liberdade do muro numa moldura, num monstruoso quadro para enfeitar paredes, onde se pode dependurar qualquer coisa como um casaco ou chaves. Onde começa e termina um muro? A escrita já nasce remendada, essa é a mais cruel verdade. Não existe parede, muro ou coisa nenhuma que não tenha uma incisão, um recado, uma letra para o futuro. O muro é masculino ou feminino? A natureza do muro é acolher incondicionalmente, mas por desgraça delimitamos o que pode e não pode. Os que estão por vir talvez nunca entendam a questão arquetípica do muro e as coisas que grafamos neles. Os muros já estão amadurecidos. Nunca entenderam que o muro nasce exatamente para o registro, a grafia; fora disso não tem sentido nenhum. Ouvi falar dos povos na América que não tem muros, paredes sólidas, e que não precisam dessas bobagens para se perpetuar e viverem felizes. Acho que foi Benjamin Péret que me falou.

 

A cidade radiosa

Terça feira estive no apartamento de Le Corbusier na rue Jacob, era um caos a pilha de livros na estante, pilhas de papeis na mesa, tudo num cenário onde se misturavam pequenas esculturas, pinturas suas em torno a uma lareira, uma confusão total. E, ele querendo posar com aquele ar de intelectual escrevendo. Acho que preparou aquele cenário, vai ver ele acha que a bagunça e a desordem são sinal de inteligencia. Não entendo como aquela bagunça escondia um arquiteto tão racionalista e tiranicamente ordenado. Algo não casava. Antes de fotografá-lo fez questão de exibir-se, e me mostrou um plano horrivel para Paris, eliminava todas as ruas sinuosas, becos e vielas de paris, tudo que eu gosto ele fez desaparecer com uma borracha, as paredes envelhecidas, os bordeis, os cabarets, os bailes do Magic City, o Chez Suzy, Le Monocle. A cidade dele não tinha lugar para os desejos, era puritana e branca, virgem, asexuada. Tampouco, havia mais paredes para as crianças brincarem e fazerem seus graffites. Só existiriam crianças docéis e educadas. Era asséptica, uma cidade para ser vista, não para ser tocada. Mas, nem vista. Meus olhos ficaram enauseados de ver. Fingi não ver o que eu via. Comentou-me que doravante as crianças brincariam na cobertura dos edifícios. Nem paredes havia para se encostar e fumar um cigarro, não havia um amparo, não havia mais lugares escondidos. Nada a ser descoberto, tudo estava doentiamente às claras, observáveis, controláveis. Até as vespasianas haviam desaparecido, fiquei imaginando onde se poderia urinar na rua, um pesadelo. Imaginei que, uma vez construida a sorte de gente não geraria. Tragédia. Tudo era um tal de pílotis que erguiam os edificios acima do solo, e no nivel do chão só havia as entradas dos edificios, os elevadores e escadas. Nem comercio havia embaixo, muito menos gente. Embora no desenho formigasse. Não tinha nada para fazer alí embaixo, ele achava que tinha. Os carros se afundavam na terra. Não parava de falar, parecia obstinado, disse-me que na proxima semana teria um encontro com o presidente Doumergue para vender o projeto, se não conseguisse iria enviar uma carta para Benito Mussolini; e se não desse certo também iria para América, para Buenos Aires, e Brasil, lá com certeza comprariam qualquer idéia sua para modernizar os trópicos. As pessoas são como chatos, penetram na pele da gente e enterram-se lá. A gente coça e coça, até sair sangue, mas não pode livrar-se permanentemente dos chatos. Não podia fugir dali estava preso naquele labirinto da mesmice dele e de seus edifícios. Aquelas torres repetiam-se infinitamente em seu desenho, a perder de vista naquela perspectiva. Já estava assustado, imaginei que haveria pouco trabalho para um fotografo nessa cidade, bastava fotografar uma quadra ou um edifício e teria fotografado toda a cidade, tudo era igual. Não havia mais motivos para vagabundear, era um labirinto sem nada para descobrir. Acho que as ruas e avenidas nem nomes tinham, deviam ser letras e numeros. Certamente, todas as pessoas ali se asemelhariam como aquelas monstruosidades verticais. Apenas movia a cabeça concordando só para não perder o pagamento. Não via a hora de disparar a fotografia e ir embora dali.

Ao chegar a casa fiquei pensando que naquela cidade que cabia descabidamente tres milhoes de pessoas havia algo de diabólico. O corvo (Le corbu) assim era seu apelido, num só registro havia posto abaixo toda a história de Paris, consagrada séculos após séculos em suas paredes. Nessa cidade ‘dele’ não haveria lugar para escrever a historia dos que não tem espaço para escrever. Ela deveria cheirar toda igual de cabo a rabo. Nesse mesmo dia logo após dormir um pouco, resolvi sair para a noite fria e gelada, vi um grupo de trapeiros, esses que vivem em trapos nas ruas dormindo lado a lado na Bolsa de Comercio, em meio às palhas embaixo das arcadas. Estavam com uma aparência horrível. Um deles tinha os cabelos que ia até os joelhos, e a barba rala até o umbigo. As unhas pareciam garras e, nos braços e nas pernas aonde os trapos não chegavam mais a cobrir o corpo, a pele caía em pedaços. Novamente me atormentou a visão da cidade radiosa, radiantemente horrorosa de Le Corbusier, assim estava escrito no seu plano: Cité radieuse, com toda aquela luz e sem uma parede ou cobertura para os miseráveis se abrigarem da chuva, do frio e do sol. Certamente que embaixo dos pilotis não iriam ficar. Como pode o poeta viver sem muros. Esse ilustre arquiteto parecia não saber que um flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, pela cidade nua, sem pregas; mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, por suas populações abandonadas, a pobreza. É a realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo ‘captura’, como um detetive captura um criminoso. Parece que ele não vivia nesse mundo, e tampouco conhecia a luxuria e a liberdade sexual das Nuits de Paris. A radiosa era uma cidade diurna, repleta de sol, sem nada para rastrear, caçar, nem de dia e de noite. A Paris de Le nuit que amo é oposta à Cité radieuse, é a Ville sombre, ville noire. Gosto de sair à noite, beber, fumar opio de vez em quando, ir ao Les Bals-musette; sair em busca das minhas presas. Sim, sou ‘o olho de Paris’. Miller assim me chamou, e aceitei, mas preferiria ser o parfumeur parisien.

 

Vampirar

Meu nome é Brassaï, venho do Brasso, Transilvânia, terra do Conde Drácula, com muito orgulho. Usei o pseudônimo de Brassaï para me lembrar sempre de minhas origens, por mais longe que estivesse da terra. Acho que deveria ter trazido um torrão de terra para colocar embaixo de meu colchão. Não me chamo e não atendo mais por Gyula Halász. Não tenho boas lembranças de lá. Exceto as tetas exuberantes leitosas de minha ama de leite. Ela reclamava, as vezes, que eu mordia e machucava ao ponto de sangrar, mas eu gostava daquele sangue que se misturava ao leite enquanto me contava estórias, sei lá de que e quem. Durante os meus primeiros anos em Paris, começando em 1924 vivia à noite, dormia ao amanhecer, despertava quando o sol se punha, caminhava a esmo de Montparnasse à Montmartre, buscava e ainda busco as ruas mais escuras, as mais tortuosas com seus saborosos muros. Até então, a fotografia não me atraia, fui inspirado em me tornar fotógrafo pelo desejo de traduzir tudo o que via na Paris noturna. Estava ansioso para penetrar no outro mundo, este mundo maldito que descrevia Baudelaire em seus Paraisos artificiais. O mundo secreto e sinistro de mafiosos, párias, valentões, cafetões, prostitutas, viciados, invertidos e pervertidos.

Não é por acaso que Paris graças a sua fama traz gente como nós a Paris. É simplesmente um palco artificial, um palco giratório de espetáculos. Por si só, não inicia drama algum, os dramas começam em outro lugar qualquer. Paris é simplesmente um instrumento obstétrico que arranca o embrião vivo do útero e coloca-o na incubadora. Berço de nascimentos artificiais. Balançando-se aqui nesse berço, alcoolizado, percebo que cada um acaba escorregando de volta para sua terra: sonha-se em voltar para a Transilvânia, Berlim, Nova York, Chicago, Viena, Minsk. E, Viena nunca é mais Viena do que em Paris. Tudo é elevado à apoteose. Gostaria de escapar dos abraços de Paris, essa ursa maior. Afastar-me dos cheiros da noite que me cativam até o último glóbulo de meu sangue, e aspiram até a ultima fibra. Não consigo. Não resisto, estou totalmente dependente de meus vicios, do voyeurismo e da obcessão por putas e fotografias, vicioso em perambular em ruas e bordeis; voltar me arrastando para casa. Meu dia, quando tenho compromissos, começa ás 14 horas. Chego a pagar para fotógrafos fazerem as fotos que ilustram as matérias que escrevo. Não me acordo. Dou a desculpa para eles que só escrevo as matérias e artigos à noite para o Brassói Lapok, por isso tenho tanto sono.

A noite sugere e não se exibe, mas encontra-nos e surpreende por seu estranhamento. Liberta forças que o dia não consegue revelar porque estão dominadas pela razão. A beleza noturna não é o projeto da criação, mas a sua recompensa. Busco congelar isso sem cessar. Ah! Paris de Nuit degusto nos lábios, vejo sempre deserta e envolta em sombras e nevoeiro. Assemelha-se a uma mulher misteriosa e aparentemente inacessível, intocável. Esta desertificação nebulosa que recrio e busco, sempre provoca essa inquietante estranheza (unheimlich) que falou Freud. A cidade que durante o dia é familiar aos seus habitantes, de repente se vê transfigurada pela noite, ameaçadoramente sedutora, sinistra. Quanto mais iluminamos a cidade mais familiar ela se torna, reconhecível e nada surpreende. Amo a noite, o equilíbrio entre os sons e silêncio, os lampiões. Suas sombras revelam mais do que ocultam antropomorfizadas pelas fontes de luz que as criam. É a mudez da noite, só quem vive a noite em sua solidão, sabe o que falo. Enchi a cara de absinto, não tardou cair a pestana e dar de cara com Restif de La Bretonne e eu gato no parapeito da Ile Saint-Louis. Na escuridão de minha reverie ele escalava as paredes da Notre Dame como uma lagartixa cinzenta. Juro que vi também o quasimodo saltitando de mãos dadas com Mac Orlan. Uma prostituta seminua, cafetões jogando cartas e dados, como as conchas do tempo de François Villon. A flanerie é para gente diurna e também alguns noturnos; ‘vampirar ‘ é exclusiva das almas da noite; nada de poesia, só carne e sangue. Passe fome, mas saia nas ruas, escute as teorias estúpidas da arte e da vida da boca dos bebados, saia com todos os tipos de gente, não fique recluso. A cidade brota como um enorme doente em toda parte, sendo os bulevares apenas um pouco menos repelentes, porque foram drenadas de seu pus. Está cheia de gente bem arrumada aparentemente, mas louca e desorbitada, é à noite que parecem e brotam dos esgotos com suas loucuras; que felicidade vê-los retornarem. Sigo preferindo as ruelas ás avenidas. As fotografias que faço nos bordeis me excitam cada dia mais. Não sei o que acontece comigo. Entrego-me cada noite mais a luxuria, sacio-me com fotografar. Comando o jogo, estabeleço como quero retratar a cena; eles atuam e tornam-se minhas marionetes, ficam imobilizados, suspensos pelos fios do tempo necessário. Ninguém respira, quando digo: agora! Dura o tempo de fumar um cigarro, às vezes menos. Trago o cigarro enquanto a ‘boca-olho’ chupa luz. Não consigo imaginar a Medusa sem boca. Entumeço, e me satisfaço com esse ato orgástico até as entranhas.

Não suporto o cheiro de urina de gato daquele bordel que vou. Ontem havia mais de 10 gatos, contei onze num intervalo de duas horas por todo o bordel. As meninas acariciavam, colocavam entre suas pernas; esfregavam na sua vagina provocando, tentando excitar seus clientes. Outros se esfregavam e miavam nas pernas dos clientes, que imediatamente chutavam. Aqui, as regras domésticas são abolidas, mas surgem outras capitaneadas pela cafetona-mor. Tem clientes que vão todas as noites, quase nem vivem em suas casas. Coitados, a solidão da casa é uma tumba, gastam fortunas só para conversar e beber.

Há dois tipos de flaneur: o diurno e o noturno. O noturno não gosta de multidões, o diurno sim, adora se perder nela como um tonto. Eu? Sigo preferindo perder meus passos na escuridão, nos odores fétidos dos bueiros, fitar ratos e lesmas. À noite e seu silêncio realçam todas as imagens do mundo, os leves ruídos do bico de gás, o deslizamento discreto da água corrente; tudo faz do feio mictório um pequeno monumento estranho e delicado. Eu quero externar o interior, nada mais que o interior do mundo, o desejo. A escuridão do interior considero-a mais maravilhosa do que tudo que existe, desconjuro a dita flor do sol e sua hipocrisia, Heliópolis. Minha exterioridade é a interioridade velada da noite, na multidão. O flâneur diurno estabelece sua casa, na escuridão faço minha outra casa, secreta, cheia de pecados, minha amada: Psique. De dia o flaneur, de noite eu o vampiro Brassaï que abraça e beija Paris. Não quero só flanar como os demais poetas, quero mais: quero ser sugado, devorado. Esse trabalho começa com o chamado da noite, devo sair. É preciso habitar a noite, é preciso sair. O mote é ver e viver a liberdade individual, a importância da experiência. Fome de viver ou viver na fome, não importa. Sexo sem tabus é o que diz a noite de Paris, a expressão radical dos sentimentos marginais, o Império do egoísmo do consumo; e também a vontade de ser conhecido na multidão entre as almas da noite, assim é viver Paris nos anos 30. Todos os poetas surrealistas dizem o mesmo.

Como um homem pode vaguear o dia inteiro com a barriga vazia, e ainda assim ter uma ereção todas as noites. É um desses mistérios, que só podem ser explicados pelo desejo, e com uma excessiva facilidade pelos “anatomistas da alma”. Em Paris vive mais gente do que em qualquer outra cidade do mundo, seiscentas, setecentas mil pessoas moram em Paris. As ruas e praças pululam de gente, as casas são atopetadas do porão até o telhado. Não há um canto em Paris que não esteja cheio de gente, nenhuma pedra, nenhum pedacinho de terra que não cheire a gente procriando.

Eu quero essa fotografia nesse momento. Não daquele modo tão inútil, brutal como obtivera a fotografia da garota da Rue des Marais, essa tinha apenas sorvido, chupado sua alma pra dentro da máquina, e com isso, destruído tudo. O que realmente queria agora era sorver a fragrância da jovem atrás da muralha, extraí-la como uma pele, fazer dela o meu próprio odor, levar pra casa na chapa. As pessoas que acham que retrato Paris se equivocam, estão cegos. Quem vive à noite sabe que o que eu quero mesmo é captar aquele momento do olor, o perfume, o cheiro que entumece a alma. Mas, ninguém conseguirá re-sentir isso ao olhar uma foto minha, só eu. A fotografia não tem cheiro, mas faz sentir, reviver até os sons mais longínquos.

Acordava ao anoitecer, farejava na direção de todos os pontos cardeais, só quando a noite com seus supostos perigos haviam varrido os homens do dia é que me arrastava para fora de meu apartamento e para rua. Estava seguro. Não precisava de luz para ver. Já antes, quando ainda caminhava durante o dia, com frequência mantivera durante horas os olhos cerrados, só caminhando orientado pelo nariz, guardando os lugares por seu cheiro. Não sei como esses fotógrafos conseguem registrar o mundo sem cheiros, que tristeza parece que foram acometidos por um vírus que suprime o olfato e o paladar. Doía-me a imagem viva da paisagem sem cheiro e muito iluminada nesses retratos; retraços e regaços sem cheiros, sem alma. A fotografia é um objeto de rememoração individual; não faz sentido para todos demais. Para agradar esses demais é que se criou a categoria estética. Essas fotografias ofuscantes que exaltam a luz me fazem mal, doem meus olhos. a luz do luar me ilumina.

A fotografia é a grafia da luz ou da escuridão? Talvez devêssemos chamá-la de érebosgrafia, ou ainda nixgrafia. Para muitos as trevas é o terreno dos fracassados ​​e dos miseráveis, para mim não. Essa gente de heliopólis esquece-se que viver no mundo da escuridão é também uma forma de estar no mundo, do outro lado. E, que noturnamente preparamos o mundo para que esteja tudo igual quando amanheça. A luz do luar não conhece cores, só vagamente assinala os contornos do terreno. Percorre o campo cinza-sujo cintilando de prata, e estrangulando a vida. Esse mundo da fotografia, como que fundido em chumbo, no qual nada se mexe nem mesmo o vento, hoje caiu como uma sombra sobre as ruas cinzentas; nada parece viver ali, exceto os odores da noite nua. Não seguia nenhuma bússola, apenas meu nariz.

As fotos que fiz para o Sr. Baldini o velho tarado ficaram fantásticas. Coitado, ficou logo com os olhos marejados, parado junto à mesa de trabalho, respirando. Cerrou os olhos e pude ver nele despertadas às recordações mais sublimes. Depois me contou que se viu– caminhando em Nápoles, jovem, por jardins à noite que exalavam cheiro de jasmim; viu-se deitado nos braços de uma mulher com negras franjas, viu a silhueta de um ramalhete de rosas no peitoril da janela pela qual soprava um vento noturno; ouviu pássaros cantando e, de longe a música de uma taberna; ouviu coisas sussurradas bem pertinho do seu ouvido. Longe dos excrementos de seiscentos mil parisienses no calor abafado e pesado do alto verão. Esse sabia ver uma fotografia.

E a tísica não dava tréguas. É preciso enfiar-se na vida outra vez para ter carne. O verbo tem que se fazer carne, a alma está sedenta, toda migalha que meus olhos veem, pego, devoro, retrato, e apago. Se o que está acima de tudo é viver, então vou viver mesmo se tiver de virar canibal. Parece que é isso que todos querem hoje, devorar uns aos outros. Hoje depois de tanto andar não podia cheirar mais nada, estava quase sem respirar. Apenas escrevo algumas notas, penso como pode um fotografo e ou um jornalista não farejar. Para se fazer fotografia é preciso farejar antes de apertar o botão.

Hoje, Miller me explicou a escolha do titulo do Tropico de câncer. O câncer, disse-me simboliza a doença da civilização. O ponto final do caminho errado, a necessidade de mudar de rumo radicalmente para começar tudo de novo a partir do zero. Parece que estamos aproximando da dobra, da inflexão e esse cheiro de sofrimento vem da Alemanha, e de minha terra. Não quero ver. Aqui fiquei até o início da Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas entraram em Paris, perambulando por pensões vagabundas, bares suspeitos, e prostíbulos; entre outros ambientes nada familiares, até a coisa queimar pra valer em Paris. Pobre Lutécia. O sol vai-se pondo depressa. As cores morrem. Mudam de púrpura para sangue seco; de nácar para bistre, de cinzentos frios e mortos para excremento de pombos. Noite após noite, eu voltava à velhos trechos da cidade, me esgueirando dos guardas, e atraído por certas ruas leprosas que só revelavam seu sinistro esplendor quando a luz do sol se esvaía. Quase toda noite mostrava meus documentos. Nas ruas, as prostitutas prontas para os alemães que começavam a ocupar seus postos. Há os que se entregam como prostitutas e os que resistem; não sei em que situação estou, acho que não dou a devida importância ao que acontece, pesa-me a consciência. Nas ruelas laterais às Rues Saint-Denis e Saint-Martin, em meio ao desespero da fome, as pessoas viviam tão amontoadas, as casas pareciam estar mais perto umas das outras como nunca, com cinco, seis andares. Não conseguia ver o céu pela infinidade de roupas dependuradas nas sacadas, embaixo no chão o ar circulava em canais úmidos, repletos de odores a peixe. Misturavam-se tudo, odores de pessoas e de animais, vapores de comidas e de doenças, de água e pedra e cinza e couro, de sabão; e de pão recém-assado e de ovos fritos no azeite, de massas e de latão esfregado até o branco, de salva e cerveja e lágrimas; de gordura e de palha molhada e seca. Queria registrar, mas abandonei a ideia, ardia demais. Milhares e milhares de odores, milhares e milhares de quadros, frames, constituíam para mim um mingau invisível que enchia as gargantas das ruazinhas volatilizando-se por cima dos telhados. As pessoas que viviam nesse mingau já não cheiravam mais nada em especial; nem pareciam mais gente se comparadas com o corpo da riqueza.

Ao entrar nos bares e prostibulo, a primeira coisa é olhar se tem espelhos, não porque tenha medo. Os espelhos funcionam como fotografias reduzidas, miniaturizadas, contidas no campo da fotografia principal, implicam numa espécie de decomposição da realidade por um procedimento ótico e, depois, recomposto e reescrito. Fascinam, enfeitiçam, me torno presa deles. Evito aparecer refletido nele. De inicio busquei a fotografia apenas para o próprio prazer. Nunca gostei da luz, os archotes artificiais são a desgraça da imagem, o sepulcro do olho, mas às vezes utilizo. Os labios sentem mais a noite, quando o capullo desabrocha.

Havia farejado todo o bairro entre Saint-Eustache e o Hotel de Ville, na escuridão. Não gosto de luz artificial, só quando se emiscui na neblina. A estátua do marechal no nevoeiro atesta isso, quando fotografei hoje. Desconfio das luzes da cidade, e também das cidades muito iluminadas, aquelas que não enchergo as estrelas. Paris é assim super iluminada, não é à toa seu título de ‘Cidade luz’, por isso busco meu sombrero. Depois que os nazi invadiram Paris, evito usar até um flash. Está proibido. Com nazistas ou sem nazistas, as pessoas seguem saindo a noite; até porque eles adoram nossas prostitutas. De repente, surgindo do nada na rua apareceram dois amantes; de poucos em poucos passos paravam e abraçavam-se. Quando não pude mais segui-los com os olhos, segui o som de seus passos. Ouvi a parada abrupta, e depois o andar lento e serpeante. Lambi a parede a meu lado de tão excitado que estava. Podia sentir o abandono orgástico de seus corpos quando se encostavam a parede. Ouvia os sapatos rangerem quando os músculos se retesavam para o abraço. Atravessaram a cidade andando ao acaso em ruas tortuosas e sinistras, foram em direção ao canal vidrado onde se dissolveram na água preta como carvão.

Um dia topei com mais um escritor, estava escrevendo sobre o submundo de Paris e suas prostitutas dos bordéis baratos. Havia muito deles. Perguntei se ele queria posar para mim, que se vangloriava tanto das noites e das prostitutas e de seus feitos, imaginei que deveria ter um membro descomunal. Sugeri que poderia posar com as calças abaixadas, e em outras posições. Riu. Disse-me: ‘como aqueles anõezinhos magricelas, parecidos com “boys”, e mensageiros de hotel, que a gente vê ocasionalmente em cartões-postais pornográficos nas vitrinas de lojinhas?! Os misteriosos fantasmas que habitam a Rue de Ia Lune e outras áreas malcheirosas da cidade’. Não gostei muito da resposta irônica, apenas ri. Garanti que as fotografias eram para uma coleção estritamente particular e destinada a um degenerado em Munique. Aí, ele aceitou. Aliás, gosto dessa palavra degenerado, da arte degenerada. Quando não estamos em nossa cidade podemos permitir-nos a essas pequenas liberdades, particularmente por motivo tão digno como o de ganhar o pão cotidiano. Tornamo-nos amigos. Não íamos aos locais de diversões conhecidos pelos turistas, mas à pequenos estabelecimentos cuja atmosfera era mais agradável, onde podíamos jogar uma partida de cartas à tarde, antes de iniciarmos o trabalho. Miller era um bom companheiro. Mostrei-lhe a cidade de alto a baixo, e os muros particularmente e o sentimento que tinha em relação a eles. Ficou chocado. Contei-lhe, também sobre Goethe, os dias do Hohenstaufen, e o massacre dos judeus durante o reinado da Peste Negra, falei de Dante, Leonardo da Vinci, e Rembrandt, do matadouro de Villette. Exploramos inteiramente o 5.°, o 13.°, o 19.° e o 20.° arrondissements. Mas, confesso que às vezes Miller e Perles me entediam.


Não sei se foi por eu ter tantas vezes caminhado por essas ruas em amargura e desespero, ou a lembrança de uma frase que ela disse uma noite, quando estávamos na Place Lucien Herr. “Porque não me mostra aquela Paris”, disse ela, “que você fotografa de noite?” Uma coisa eu sei, que ao ouvir aquelas palavras percebi, de repente, a impossibilidade de revelar-lhe totalmente a Paris proibida que eu conhecia. A Paris impronunciável, cujos arrondissements são indefinidos, principalmente sobre os efeitos do álcool; uma Paris que nunca existiu, a não ser em virtude de minha solidão, de minha fome e tesão por ela. Uma Paris tão vasta! Demoraria uma vida inteira para explorá-la de novo. Esta Paris, cuja chave só eu possuo, não se presta bem a uma excursão, nem mesmo como um guia de perversidades turística, mesmo com a melhor das intenções. É uma Paris que tem de ser vivida, que tem de ser experimentada cada dia em mil formas diferentes de tortura, uma cidade que cresce dentro da gente, cresce e cresce até nos devorar. Caminho pelas ruas, tudo me parece horrível quando estou carregando uma câmera, um tripé, e uma sacola pesada.

As ruas são meu refúgio, parecem ser a saída para o encarceramento doméstico. Nenhum ser humano, homem ou mulher pode compreender o encanto das ruas até ser obrigado a procurar refúgio nelas, viver nelas todo o dia, faze-las sua casa; até ter-se tornado uma palha jogada para cá e para lá pelo próprio zéfiro que sopra. Passa-se ao longo de uma rua num dia invernoso e, vendo um cão à venda, fica-se comovido até às lágrimas, mas não corre uma lágrima ao ver um ser humano. Olho para o outro lado da rua, alegre como um cemitério ergue-se uma miserável construção que se intitula “Hotel du Tombeau des Lapins”. Isso faz a gente rir. Até, a gente notar que há hotéis por toda parte, para coelhos, cães, piolhos, imperadores, ministros de gabinete, agiotas, abatedores de cavalos e assim por diante. E quase um em cada dois se chama Hotel de L’Avenir. E para quem não tem onde morar...à sarjeta.

Acordei cedo. Para eles, um dia bonito – até agora. A Rue de Buci está viva, fervilhante. Os bares e cafés todos abertos e as esquinas cheias de bicicletas. Todos os mercados de carne e hortaliças em pleno funcionamento. Passo pela praça de Furstemberg. Parece diferente agora, ao meio-dia. Outra noite, quando passei por ela, estava deserta, desolada, espectral. No meio da praça quatro árvores pretas que ainda não começaram a florir. Árvores intelectuais, alimentadas pelas pedras do calçamento. À noitinha, de vez em quando, caminhando ao longo das paredes do cemitério, topo com as odaliscas fantásticas de Matisse amarradas em árvores, ensopadas de seiva e as cabeleiras emaranhadas. Meio-dia em ponto e aqui estou eu em pé com a barriga vazia, mais uma vez, na confluência de todas estas ruas tortuosas que rescendem cheiro de comida. Diante de mim está o Hotel de Louisiane, velho e sombrio, conhecido dos maus rapazes da Rue de Buci. Hotéis e comida, e eu caminhando de um lado para outro como um leproso, enquanto caranguejos vão me roendo as entranhas.

Fomos todos jantar juntos Breton, Péret, Henri Michaux. Benjamin Péret acabou de voltar do Brasil estava entusiasmadíssimo, quiçá, um dia tenha oportunidade de ir ao Brasil pela Harper’s Bazaar, e conhecer os famosos rituais de macumba e vodoo que tanto fala Péret. Apresentaram-me Raymond Queneau, pediu-me para indicar-lhe lugares incomuns para crônicas em L’Intransigeant. Não quis nem comentar por onde andava.

Enquanto caminhava sem rumo por aquela enlameada ruela salpicada de sangue, fragmentos do passado também se destacavam e flutuavam languidamente diante dos meus olhos, insultando-me com os mais horrendos presságios. Vi meu próprio sangue derramado, o lamacento caminho manchado. Por amigos tinha as ruas, e as ruas falavam-me naquela linguagem amarga e triste composta de miséria humana, aspiração, remorso, fracasso, esforços desperdiçados ao traçar desvios. É essa espécie de crueldade que está encravada nas ruas. É isso que olho nas paredes e me aterroriza, quando de repente nossas almas são invadidas por um pânico doentio, ao contrário dos flaneurs que andam a esmo de dia como caipiras. É isso que dá aos postes de iluminação suas contorções vampirescas, que faz com que eles nos chamem e nos atraiam para seu abraço estrangulador. É isso que faz com que certas casas pareçam as guardiãs de crimes secretos e suas janelas escuras parecerem as órbitas vazias de olhos que viram demais. É essa espécie de coisa, escrita na fisionomia humana das ruas, que me faz fugir quando no alto vejo de repente escrito Impasse Satan.

Não quero que tudo que está fora esteja dentro, meu olho não vê tudo, não quero ver tudo, apenas sentir. A visão atrapalha. Me muito trabalho seccionar a cidade, tudo tem que estar ao alcance de meu abraço até os cheiros irre-trait-áveis. Incidência e coincidência é disso que se trata a fotografia. Essa visão intuitiva que caracteriza a fotografia não vem meramente do tato, mas ela se torna contato, abraço; é de sua natureza mesmo, absorver as pessoas e o mundo. Há anos me engano com a clareza. Ultimamente, tem sido impressionante como admiro o que não consigo ver numa fotografia. Quero ver a escuridão física real, é muito emocionante ver a escuridão novamente retratada. É ela que na verdade emoldura o que pode ser visto; o contexto para cada imagem é a própria noite, o negrume. As imagens dos jogadores nos mundos secretos de Paris é iluminada momentaneamente pelo olhar que eles buscam na câmera, mas ameaça escurecer a qualquer momento.

A cidade parece diferente à luz da madrugada, as coisas correm pacificamente durante um mês ou mais, mas nem sempre. A vizinhança agradava-me, particularmente à noite quando sua esqualidez e lugubridade se faziam sentir. A pequena Place, tão encantadora e tranquila ao crepúsculo, assumia o mais desolador e sinistro aspecto quando caía a escuridão. Havia ali, aquele comprido e alto muro fechando um dos lados da prisão, contra o qual sempre se via um casal abraçando-se furtivamente – muitas vezes sob a chuva. Era deprimente, mas ao mesmo tempo excitante, ver dois amantes apertados contra um muro de prisão sob a melancólica luz da rua; como se tivessem sido levados até os últimos limites. Ele embaixo do sobretudo reteso sobre o mal tempo perfurava-a como se perfurasse o muro. Do outro lado, a coisa era deprimente mesmo.

 

A prisão, pobre Genet

Jean Genet chegou ao meu apartamento na rue du Faubourg Saint Jacques para ser fotografado. Entraram ele e seu namorado como dois autômatos; ele foi logo para a janela olhar. Sabia que não podia mais desprender-se dela, era também mais um voyeur. Ficou em pé observando o pardal que bicava excremento fresco. Aproximei-me para ver o que bisbilhotava. Então esbarrou sua mão sutilmente em minha bunda, fiz que não houvesse percebido. Seu namorado se aproximou. Não se contentando, assim que pode passou a mão no bulto do namorado. Disse com um tom apertado: aqui do apartamento posso ver a Prisão da Saúde, desde cima. Genet dirige-se ao namorado, com seu cabelo abrilhantinado, parecia um pirralho nazista. Não tá vendo?! Não tá vendo, disse ele. O menino não reagia. “Mas, afinal”, disse Genet, “você não o reconhece? É a Penitenciaria Saúde! – Eu só a conheço de dentro para fora!”, disse ele. Nossa senhora das flores!

Contei-lhe que, numa noite da ocupação pude testemunhar uma rebelião da janela. Foi horrível, um espetáculo macabro. A prisão inteira caiu nas mãos dos insurgentes. A repressão chegou só ao amanhecer com a ajuda dos soldados alemães. Vinte e um líderes foram fuzilados.

Fotografei Genet encostado na parede, dobrou as mangas da camisa até em cima, abriu um pouco para exibir seu peito; tinha os olhos tristes. Genet era baixinho e fedia, felizmente o retrato não exalaria nada. Escrevia muito bem, quem dera puder fotografar a metade do que ele escreve. Disse-me que estava fazendo um filme, e se chamaria ‘Um canto de amor’ (Un chant d’amour), era sobre sua estância na prisão e de seus amores dentro. Iria registrar a história de um pequeno buraquinho no qual passava a fumaça de um cigarro através dele, de uma cela para outra onde estava seu amado. Registraria os graffites na parede, essa seria a abertura do filme.

Sussurrou-me ao ouvido, que seu namoradinho era um ignorante, mas se comportava reservadamente como uma vadia durante todo o tempo que estava ao seu lado. Olhando-me profundamente nos olhos, disse que também buscava a superfície das paredes só que na prisão; buscava um graffite, qualquer registro em busca do traço fraternal de um amigo. Eu nunca soube o que poderia ser exatamente a amizade, que vibrações a amizade de dois homens constroem em seus corações, e talvez nas suas peles, na prisão. Genet ansiava em cada prisão ter uma amizade fraternal sempre com um homem da sua idade, bonito, que tivesse completa confiança e que fosse cúmplice dos seus amores, dos seus roubos e dos seus desejos criminosos. Porém, disse Genet: não encontrei jamais senão algumas raras palavras gravadas sobre o gesso com um alfinete, fórmulas de amor e de ódio, geralmente de resignação. Falou-me depois, que o cheiro da prisão é um cheiro de urina, formol e de pintura. Em todas as cadeias da Europa que esteve reconhecia que este cheiro era o cheiro do seu destino. E que, todas as vezes que ia para a prisão procurava nas paredes os traços das suas prisões anteriores. Ou seja: seus desesperos anteriores, remorsos, desejos que outro detento tenha ‘gravado’ para ele.

Quando descemos os três, do meu pequeno apartamento de dois quartos, em direção a um café cruzamos com Samuel Beckett, era quase um vizinho. Mais adiante topamos com Blaise Cendrars que morava logo atrás da prisão, passeava com seu asqueroso cachorrinho na Avenida Aragão. Reconheceu Genet, mas não lhe dirigiu nenhuma palavra. Disse-me, havia acabado de reunir numa coletânea uma série de artigos que havia publicado no jornal Paris Soir, sobre um famoso criminoso no Brasil. Estava enfeitiçado pelas histórias incríveis que descobriu quando esteve lá em 1927.

Senti cheiro de maldade noir. Queria sair dali, mas Cendrars insistia em detalhar a vida do criminoso. Teve dezenas de passagens pela polícia por fraude, chantagem, roubo e vadiagem, disse ele. Numa dessas detenções, em 1920 na prisão de Ilha Grande, começou a ler a Bíblia nos intervalos da praxiterapia; durante a noite teve a visão de uma mulher de longos cabelos que o escolhera como o Filho da Luz. Os olhos de Cendrars arregalaram-se. Segundo a visão, deveria tatuar-se e tatuar meninos, ainda que com emprego de força física, com as letras D C V X V I, que significava Deus, Caridade, Virtude, Santidade, Vida, Ímã da vida. A tatuagem deveria servir como talismã para aqueles que a exibissem no corpo. E, tatuou também a frase ‘Eis o Filho da Luz’ em seu peito como se fosse numa parede; e em toda a circunferência de seu tronco as letras D C V X V I. Uma loucura, reforçou. Você tem que ver, tenho essa foto, Brassaï. ‘Tatuou e assassinou muitos jovens’. Apoderou-se, também do diploma de um dentista, abriu um consultório no Centro do Rio de Janeiro, e extraia sadicamente vários dentes sadios daqueles coitados que buscavam sua assistência. Cendrars ria de nervoso, a esta altura já quase gritava. Escreveu também um livro que chamou As revelações do Príncipe do Fogo, com mensagens incompreensíveis tiradas das experiências oníricas, uma escrita fantástica surrealista. Não foi para prisão, foi declarado psicopata, pervertido, homossexual com pulsões sádicas. Estava agora no manicômio no Rio de janeiro. A essas alturas achei que aquela conversa não era por acaso, estava tentando humilhar Genet. Só podia ser inveja. Fascinante e assustador; disse-lhe, mas, estamos apressados para um encontro. Boa tarde. Lembro que abracei o ombro do Genet, estava de cabeça baixa e demos as costas.

 

A micarena

Tzara me confessou estar agitadíssimo. Hoje a noite vai pra Micarena (Mi-carême), o famoso baile dos invertidos e travestidos de Paris, no antigo Parque de diversões Magic City. Prepara sua fantasia a uma semana atrás, está numa felicidade só, olha e se reolha no espelho. Esses bailes agitam toda Paris, me avivam por sua variedade de gente, a alegria dilacerante que vivem naquelas poucas horas como borboletas em sua curta existência, como se o fim do mundo acontecesse atrás da porta da saída. Acontecem desde os anos 20, frequentam ricos e pobres. Enfim, hoje é a noite da Micarena, a grande festa gay, dos invertidos e dos tapetes, as mulheres masculinizadas. Extrapolam a descrição do capitulo ‘Sodoma e Gomorra’ de meu amigo Proust. Não há preconceitos de idade, raça ou classe; só importa o carinho e, naturalmente o tamanho do prazer. Encontro muitos dos frequentadores anônimos da noite, um momento de muita alegria quando se reconhecem, outros se esquivam de serem reconhecidos mesmo embaixo de suas mascaras. Magic City foi construída em 1900 no terreno antigamente ocupado pelos militares pelo dono da Samaritaine, Sr. Ernest Cognacq, ficava duas quadras da Eiffel. Mas, desapareceu em 1926 por causa de um loteamento para um bairro novo. Em fevereiro de 1934 Magic City foi fechado por decisão das autoridades. Após o encerramento do parque de diversões, restou apenas esse grande salão de dança, onde antes dançavam tango mal bailado. Esse salão lindíssimo acomoda mais de 3.000 pessoas e é onde acontece a Micarena, parte da lenda da vida noturna parisiense. Até então, as mariquitas de Paris só se reuniam em festas particulares, evitando a perseguição policial. A única exceção são essas festas de carnaval que são permitidas aos ‘homens’ saírem fantasiados de mulher. Depois da Primeira Guerra, esses bailes foram se naturalizando e até o Pigalle já conta com seus primeiros bailes dos invertidos. Frequentam marinheiros robustos, trabalhadores, prostitutas, homossexuais, masculinos e femininos, todos em busca do prazer que um corpo pode oferecer. Uma fraternidade imensa calorosa e impulsiva. Nesse ano, o anuncio da Micarême mostra uma forte pressão sobre a direção do Magic-City, avisando seus clientes que assistirão a um baile à fantasia muito alegre e de bom gosto, mas os homens disfarçados de mulheres não serão admitidos. A proibição das travestis parece marcar o fim da era da prosperidade dos bailes homossexuais na Cidade Mágica. Mas, Tzara não deu a menor importância, disse que ia levar sua fantasia na bolsa e chegando lá “ia se montar”, já havia combinado com suas amigas.

 

Preparação

Diante de cada pessoa, de uma cena encontro uma solução original até absurda. Tive que esperar os trapeiros dormirem e pararem de coçar suas picadas de piolho para retratá-los. Todos sabem que estou fotografando-os, não fotografo sem cumplicidade, a maioria das fotos revelam claramente à câmara sua sedução e petrificação. Quero que sejam completamente cientes do ato do qual participam expondo a cumplicidade amorosa. Prefiro encoraja-los a serem desajeitados, isto é, posar. Forçar o modelo a se comportar como se o fotógrafo não estivesse lá é realmente fazer representar uma comédia. O natural não é esconder essa presença. O natural nessa situação é que o modelo pose honestamente. Muitas dessas cenas com bandidos e as prostitutas fiz com a cooperação deles. Meus amigos me admiram, como alguém que conhece a pecaminosa e secreta Paris. Naquela época, inicio dos 30, comecei usando equipamentos pesados ​​e volumosos, uma camara fotografica que utilizava placas, tinha que carregar pelas ruas às vezes 24 quadros, placas. Esse peso me obrigou a ser racional e econômico ao extremo, e pensar com cuidado antes de fazer qualquer foto. Como nem sempre se chegava de carro até o local, era preciso carregar todo o equipamento: uma sacola de couro com a câmera e parte das chapas, o back com o resto das chapas e mais uma sacola com as objetivas. Parecia que carregava o proprio caixão. Então escolhia o local para armar a câmera e também a objetiva a ser usada, pois não havia como ampliar as chapas. Fazia então negativos, que eram copiados. Não havia ampliações. As cópias eram no tamanho da chapa original. A questão é tratar desde o começo de não fazer erros, é preciso ser exato. Infelizmente, assim se perde a espontaneidade e a vivacidade da fotografia, mas até prefiro o exibicionismo de posar ante a câmera do que capturar suas almas sem perceberem. Esse antigo processo é diferente agora dos rolos de filme em que o contato se perde. Assim conseguia também o efeito de invertido fotográfico nos graffites.

Aquele cheiro de creolina impregnado no piso misturava-se com o da urina de gato. Não sei como podiam estar naquele quarto do bordel, não dava sequer para olhar os lençóis. Os azulejos caídos na parede, um enorme furo no chão dava pra ver o quarto debaixo. Havia um armário velho com espelho, resolvi colocá-los na frente sem deixar ver seus rostos, parecia ser o único lugar fotografável. Sugeri a ela ficar nua na minha frente à esquerda com as nadegas voltada para o espelho; ele também na minha frente em primeiro plano à direita próximo ao espelho numa posição muito particular, onde o espelho não refletia seu rosto. Estavam anônimos. Tive que montar o peep show rapidamente, o cheiro era insuportável. Os espelhos me atraem, são uma espécie de terceiro personagem. Os braços dela eram muito alvos e as mãos estavam amarelas das cascas de nectarinas cortadas ainda sobre a cama. Estando próximo a ela, aspirava agora o seu odor sem qualquer mistura, tal como subia de sua nuca, dos seus cabelos, deixando-o fluir para dentro de mim como uma brisa suave. Abrí o diafragma. Tudo tinha de ser reduzidos à imobilidade, e isso de modo tão súbito que nem sequer chegassem a ter medo ou a resistir.

O publico verá somente imagens ao ver as fotos; eu, entretanto, rememorarei somente o cheiro que me transportará para além daquela pálida imagem. O perfume vive no tempo; tem a sua juventude, a sua maturidade e a sua velhice. A foto é só velhice, uma mumificação do instante. Na fotografia tudo vira mais ou menos falsidade, torno o verdadeiro momento numa artificialidade. Para capturar aquele instante imaginado ou real sou obrigado a paralisar os outros, o mundo. Suspender a respiração, construí-lo artificialmente até impregnar na chapa. Algo nesse processo se perde, e algo se ganha. Uma vez capturada, posso outra vez respirar. Um dia esse exercício da respiração provavelmente vai desaparecer. Tudo que está à volta se vê tragado quando abro a lente para a absorção da luz.


Estou agora recuperando a prática do negativo de cristal, tão cara aos fotógrafos do final do século XIX, agora raspo nesses negativos de vidro, arranho, repinto velhos negativos, muitos deles de nudez, até transformá-los em uma nova imagem surrealista. Como um escultor ataquei essas placas quase mecanicamente. Esses nus modificam-se com a ponta de um instrumento que destrói a fotografia original. Apareceu aí uma estranha obsessão de transformar a forma humana em instrumento de música: mulher-guitarra, mulher-bandolim. Descobri a collage, a meu modo. Paris de la Nuit também foi concebida como uma collage simples, duplas de imagens em cada página que dialogam entre si, mas não posicionadas por simples acaso. Os espaços da cidade, os tipos de edificações, as altas e as baixas luzes; o casal de apaixonados no parque justapostos à dupla de gatos cujo provérbio francês descreve: À noite todos os gatos são pardos. Tudo premeditado.

 

Le monocle

Parece que virou moda falar e escrever sobre prostitutas, michês e pederastas. Prostitutas e vida livre parecem sinônimo de modernidade e erotização da cidade moderna. Todo meu trabalho dependeu da deambulação por Paris. Percebo que o sentido privilegiado da deambulação urbana, a flanêrie tem sido a visão base do poder masculino, e da sua posição superior na hierarquia sexual. As recatadas esposas burguesas não podem vagabundear muito menos colocar seu corpo a serviço do prazer dos outros, ou a seu próprio prazer. as prostitutas podem caminhar à noite, talvez seja isso que me atraia também. A prostituta é uma das poucas presenças femininas que pode andar a noite sem um homem. A mulher da rua, a mulher de rua. Quando um homem estrangeiro chega à cidade e conquista uma mulher, simultaneamente conquista a cidade. Mas o caráter da prostituição mudou muito. A liberação sexual a privou dos jovens. [...] E as pessoas respeitosas que ainda montam sua facção nas calçadas só atraem velhos, não amados, solitários, estranhos, viciados.

Nunca tinha visto-a assim, seus olhos pareciam nadar em esperma, estava bêbada de tantos pedidos e elogios que lhe faziam. Aquela noite o corpo de balé não valia muito e nem a dança da Conchita. Mas, seu corpo esguio e seus seios morenos firmes salvaram a noite. Mais uma vez, a mulher enorme da portaria não tinha mentido: a gente conseguiu o que pagou, e foi bom.

Paris a capital do beijo. Parece que todos os apaixonados se beijam nas ruas. A indulgência de seus habitantes para com os casais de namorados é surpreendente, o beijo na boca não é proibido em Paris, coitados daqueles que não tem namorado ou namorada. Gosto de retratar esse momento mágico precisamente de um casal prestes a se beijarem. São várias as imagens de casais que retratei, ou até mesmo de trios. Paris, a velha e doce Lutécia parece ser sexualmente livre, permissível, onde tudo é possível. Os prazeres de Paris a noite.

Ontem aluguei a orelha de Miller. Nossos lugares de repouso favoritos eram as áreas lúgubres como Place Nationale, Place dês Peupliers, Place Contrescarpe, Place Paul-Verlaine. Muitos desses lugares já me eram familiares, mas agora eu os via todos sob uma luz diferente, dado o raro sabor de sua conversa. Se hoje eu descesse casualmente a Rue du Château-des-Rentiers, por exemplo, aspirando o cheiro fétido dos leitos de hospital que o 13.° arrondissement exala, minhas narinas sem dúvida abrir-se-iam de prazer, porque, misturado com aquele cheiro de mijo velho e formaldeído, haveria os odores de nossas viagens imaginárias através do matadouro da Europa que a Peste Negra criara. Por intermédio do Miller fiquei conhecendo um indivíduo de mentalidade espiritual chamado Kruger, que era escultor e pintor. Kruger gostou de mim por alguma razão; tornou-se impossível livrar-me dele após haver descoberto que eu estava disposto a ouvir suas histórias “esotéricas”. Há pessoas, neste mundo, para as quais a palavra “esotérica” parece atuar como licor divino, como, para Herr Peeperkorn de “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Kruger era um desses santos que se desencaminharam, um masoquista, um tipo anal cuja lei é o escrúpulo, a retidão e a consciência, mas que num mau dia faz um homem engolir os próprios dentes com um soco sem o menor escrúpulo. Parecia pensar que eu, justo eu, estava maduro para passar a outro plano, “um plano mais alto”, como ele dizia.

Miller nunca quer sair comigo para o bordel, com exceção daquela primeira vez que o encontrei, que pedi para ele baixar as calças e posar para mim. Fizemos muitos passeios noturnos juntos, mas na hora que convidava para ir ao bordel, ele ia para casa; penso que continua achando que vou convidá-lo mais uma vez para posar para fotografias pornográficas. Nem no Monocle, um bar lesbiano, cheio de gente, ele quer ir mais. O “templo do amor sáfico”, em Montparnasse. Le Monocle tem um cheiro característico de uma falsa masculidade, de lésbicas exóticas que usam o cabelo curto e se perfumam com cheiros estranhos, mais como âmbar ou incenso, do que rosas e violetas. A fotografia das pessoas em si era para mim indiferente, tratava-se de uma fotografia que qualquer um podia fazer ou imitar. O que ambicionava ali era a fragrância de certas pessoas, daquelas extremamente raras que inspiram e exalam amor. Essas são as minhas vítimas prediletas. Vivem o amor impossível, e dentro dessa impossibilidade vivem o possível. Algumas mulheres vão vestidas como homens, totalmente masculinos na aparência, tanto é que à primeira vista me confundia sempre. Depois de muito frequentar já conhecia muitas delas. O que mais gosto do Le Monocle é alegria e a felicidade reinante no ambiente, até mesmo nas noites mais difíceis. Mesmo com temporal, lá estavam eles, os tapetes, quase todas as noites. Le Monocle era quase como a outra casa para todos nós. Não só para elas, para mim também. Adorava ver quando se beijavam e se entregavam nas caricias dos lábios. Acho que ontem vi Gertrude Stein.

A mulher está presente na origem da fotografia, posa congelada enquanto a maquina devora. As prostitutas e as miseráveis sempre foram o objeto dos voyeurs e dos pintores, o modelo nu, as que se desnudam, posam para os homens. Não faço diferente. A mulher que posa nua e se petrifica ante o olho mecânico é Ló, a mulher de Abraão. Penso loucamente que a fotografia é um olhar condenatório que se volve para trás, para o passado, um olhar cristão condenatório salinizante, semelhante a por ter escolhido Sodoma. Quanta religiosidade existe por trás da fotografia. Miller já admitiu que algumas vezes se prostituiu para ganhar a vida, na América.

Por trás desse mundo em preto e branco do Le Monocle havia musicas alegre, muita fumaça, profusões de perfumes, em meio a gargalhadas. O mais engraçado que quando solicitava para fotografar os casais, eles, elas se transfiguravam automaticamente, ela o senhor no caso assumia um ar severo, o mesmo ar de um homem que possa, não sorri, ficam serias e até carrancudas e com ar de maldade. Quem vê essas fotos imagina que Le monocle é algo entediante. Fico pensando como similarmente a maquina e fotografo podem travestir o mundo, e talvez isso é o que me fascina na fotografia, transformar o mundo sem mudar nada. Transgeneros? Mas todos fazem gênero na frente da lente. As mulheres se vestiam como homens; mas algumas estavam vestidas com roupas femininas; os smokings indicavam o estado de luto dos machos. Me atrai a escuridão dos mundos noturnos, nos quais frequentam as lésbicas, essas mulheres que encarnam a masculinidade, tudo parece inautêntico em relação à estranheza e à heterossexualidade. Ao observar as mulheres dançando juntas no bar: pensei em Marcel Proust, de seus ciúmes, de sua curiosidade doentia sobre o pedido estrangeiro, certezas de Gomorra. Briga por ciúme. Essas situações em ambientes fechados muitas vezes não eram menos tensas, e muitas vezes mais apertadas ainda para um fotógrafo com um tripé.

Possuir uma puta é como entrar nas entranhas da cidade, percorrer seu corpo enquanto fendas. Miller me dizia que ter uma namorada prostituta era uma demonstração de exibição de conhecer a cidade. Ela é por um lado a chave para conquistar a cidade, mas por outro a impossibilidade de uma possessão absoluta, escapando frequentemente ao indivíduo. A figura da prostituta é parte integrante dessa paisagem urbana, sendo ela uma forma de comunicar-se com a cidade, principalmente à noite. Erotizo Paris cada dia mais, confirmando a fama das prostitutas francesas desde o século XIX. Paris não das prostitutas conhecidas mundialmente, mas a cidade da liberdade sexual, da tolerância, das praticas amorosas de toda espécie. A cidade é também uma erotização desse corpo social. Nunca vi um lugar comparável à Paris. Assim que a mulher perde um dente da frente, um olho ou uma perna, cai na farra. Na América morreria de fome se não tivesse outra coisa a recomendá-la além de uma mutilação. Aqui é diferente. A falta de um dente, um nariz comido ou um útero caído, qualquer infortúnio que agrave a feiura natural da fêmea, parece ser considerado como condimento, um estimulante para o esgotado apetite do macho.

Miller só escreve sobre vaginas, nádegas, seios, vermes, todo tipo de asco; não sei de onde inventa tanta bobagem. De uma breve aventura faz um livro, seus 15 cm peniano, um osso de 15 cm como ele mesmo diz, não justificam tanta tara, acho que inventa tudo isso em seus romances. Não faz nem a metade. Seu mundo parisino ainda é muito restrito a suas prostitutas, e sempre sem um tostão. Paris é como uma puta, a distância parece arrebatadora, e você mal pode esperar até tê-la nos braços. E, cinco minutos depois você está vazio, desgostoso consigo mesmo. Sente-se logrado. O labirinto moderno da capital está associado à figura da prostituta; com o surgimento das grandes cidades, a prostituição passou a possuir novos arcanos. Entre os primeiros, um deles é o caráter labiríntico da própria cidade. O labirinto, tem que tornar-se parte da carne e do sangue do flâneur, e a ilusão pode fazer o indivíduo perder-se, quando pensou que encontrou o que buscava: o amor. Os prostibulos em sua maioria por mais vulgares que sejam procuram sempre ter mecanismos que permitem um homem entrar e sair sem nunca ser visto. Criticam-me que as mulheres que fotografo, são um objeto passivo do desejo sexual machista na fotografia, e que me escondo desse teatro que monto ficando atrás da câmera. Gilberte se referiu a isso como uma espécie de “auto apagamento”, mas acho que isso funciona como uma espécie de assinatura minha, quer pelos temas recorrentes, como a noite, a cidade ou os graffite.

Para meus amigos surrealistas esses espaços dedicados à prostituição adquirem grande importância na cidade moderna; fazem parte das inúmeras áreas na cidade onde os homens encontram a sua liberdade fora da vida burguesa, e os artistas seu ambiente, agora mais do que nunca longe da rigidez dos lares mofados. As putas são as protagonistas dessa cidade secreta a que nem todos têm acesso. Nesses ambientes muitos possuem um aroma humano essencial, sudorento e gorduroso de queijo azedo, um tema em si bastante nojento, que impregnava igualmente todos os homens. Paris é a grande babilônia, quem quer saber até que ponto estamos em suas vísceras, deve deixar que a vertigem conduza pelas ruas. A cafetona velha, a decrépita Madame Gaillard, dona do bordel já tinha vivido a sua vida. Por fora, aparentava a sua idade real e, ao mesmo tempo, uns 200 ou 300 anos mais velha, era a múmia de uma jovem; por dentro estava morta há muito até a gente falar de não querer pagar a noite de luxuria com suas meninas. Ao mundo não dava senão as suas fezes e cheiro de peixe do seu sexo.

Aquele bordel era uma palhoça nos arrabaldes da cidade, não sei como fui parar lá junto com Mac Orlan. Parecia um lupanário. Acho que é exatamente esse afastamento do centro da cidade que suscita e excita-nos. O bordel camuflado, escondido, o lar das prostitutas, dos cafetões, dos veados e lésbicas pobres, é o outro lado do fascínio da cidade. O gozo e o anonimato, a miséria opulenta e o luxo miserável, tudo se mistura. Entramos, aquela pequena sala com um balcão estava saturada do terrível perfume de Amor e Psique. Mas, aquela palhoça á medida em que íamos adentrando se transformava num labirinto escuro. Os corredores estavam cobertos de papel higiênico, grudava nos pés da gente como papel pega-mosca. O prestigio diabólico dos babilônicos se perdia na medida em que íamos descascando e nos perdendo nele. Meu código moral me bloqueia, gostaria de ter fotografado bem de perto aquela penetração adentrando a fenda. Todos alredor observavam cada detalhe. Nunca me permiti, achei também que não me permitiriam. Ademais, os atores teriam que ficar imobilizados, mais duros que estavam naquela apresentação. Sorte não ter vindo a Bergheil.

A cidade e fotografia se correspondem, uma com a outra; uma na outra. O quarto escuro (Le chambre noir) é a mãe da fotografia. A casa de Psique. O buraco: a casa do voyeur. Sim, sou voyeur, minha paixão é olhar o mundo pelo buraco, penetrar o mundo com meus olhos. Aproximando-me da Place Clichy ao anoitecer, passo ao lado da pequena prostituta com coto de pau que fica todos os dias diante do Gaumont Palace. Ela não aparenta mais de dezoito anos. Tem fregueses regulares, sempre.

Ao redor de Aubervilliers, enfiamo-nos em um lugarzinho barato e imediatamente estamos com um bando delas nas mãos. Alguns minutos depois ele dança com uma puta nua, uma enorme loura com dobras no pescoço. Posso ver-lhe a bunda nua refletida uma dúzia de vezes nos espelhos que forram o aposento – e aqueles seus dedos ossudos agarrando-a tenazmente. A mesa está cheia de garrafas de cerveja, a pianola chia e arqueja. As mulheres desocupadas ficam sentadas placidamente nos bancos de couro, coçando-se pacificamente como uma família de chimpanzés. Abri uma das portas sem querer, e a luz deu em cheio no rosto deles. O quartinho estava como que tomado por prata flutuante, tudo brilhava tive de fechar por um momento os olhos.

 

Vespasianas

Aqui dobrando no Bulevar Aragão tem uma vespasiana, adoro as vespasianas, gosto de adentrar no cubículo, descarregar e observar como os homens sacodem seus pênis após urinarem. Meneiam suas pirocas dos mais variados tamanhos. Os mais dotados ficam horas ali se exibindo, por puro prazer, ou até encontrar um cliente. Essa mistura de cheiro à urina e erotismo é algo irretratável. Às vezes se formam filas, então todos são obrigados a sair o mais rápido possível, alguns ainda fechando as braguilhas. Paris tem várias vespasianas, mais de mil esparramadas pelos parques e praças; coisa que em outras cidades não acontece. Charles Marville, no século passado já as fotografava. Miller me falou que os americanos quando vem a Paris a primeira coisa que chama a atenção deles são as vespasianas. Ficam loucos para entrarem e urinarem na rua, acham muito divertido, surreal. Certa feita, quando estava numa dessas vespasianas fechadas, um sujeito de mal aspecto, quase um trapeiro, vendo que o fitava ao urinar, perguntou ‘se eu gostava do que havia visto’, disse-me: ‘pode tocar não vai te custar quase nada’. O zelador que observava mandou o sujeito se retirar. Saiu rapidamente como quem carrega uma linguiça no bolso. Baixei a cabeça e sai também furtivamente. O vagabundo é sempre esse outro em trapos, nunca o bem vestido. Interesso-me por suas vidas, gostaria de fotografar essa proximidade, mas não faço nenhum esforço para romper esses limites, apenas olho e me comovo quando dormem nas arcadas das ruas aos bandos. Infelizmente acabo reduzindo esses infelizes que dormem ao relento a mais um registro da cidade.

Em Paris como em todas as grandes cidades é proibido satisfazer as necessidades naturais na rua, se não fosse essas centenas de vespasianas a cidade se tornaria uma imensa cloaca. Mesmo assim não são suficientes. As vespasianas costumam ser um ponto de encontro não só de pederastas, mas também de traficantes. O jovem escritor Julien Green que tive o prazer de conhecer, disse-me reservadamente, após ver uma foto que fiz de uma vespasiana, que costuma frequentar e descrever esses encontros secretos em seus diários, com pseudônimo. As pessoas quando são pegas em fragrante ou denunciadas a policia pelos pedestres ou pelos usuários, na maioria das vezes tem que pagar uma multa, e o mais terrível estão também propensas à prisão de três a seis meses. Green me reportou um desses casos. Essas pequenas violações têm consequências duras, dramáticas, ruinosas que levam até o suicídio; todos ficam sabendo, colegas de trabalho, família, pois os culpados tem que explicar o motivo do encarceramento, mesmo que por poucas horas. O lugar predileto de dia para os pervertidos segue sendo as vespasianas, também conhecidas por vários nomes como ‘copos’, pissotières (mijadouros), colunas Rambuteau. Proust se refere assim; seus amigos que conheci do 16 arrondissement referem-se a ‘tocas’ ou ‘buracos’. Contaram-me que frequentavam também a piscina Molitor, os banheiros e vestiários, discretamente marcavam encontros lá, em meio as sagradas famílias.

As ‘conservadoras’ assim são conhecidas as vespasianas de dois lugares opostos, onde um não consegue ver o outro. Os orientais, em Paris as chamam de ‘pagodes’. A arquitetura das vespasianas é muito curiosa, os homens podem urinar sem quem passe pelo lado da rua os veja; nessas vespasianas metade aberta metade fechada se pode saber quantas pessoas estão dentro, a chapa metálica não cobre todo o corpo, fica a descoberto uma parte que permite ver o numero de pés, e que distancia estão uns dos outros. Nessas chapas tem reclames e muitos grafites, com endereços e frases obscenas. Nas vespasianas da rua Aragão havia muitas escritas nas paredes, “chupo”, “dou o rabo”, e muitos endereços. Quem vê os rostos desde a rua, não descobre outra coisa senão o olhar da indiferença, a cabeça faz com que se ignore os atos dos braços que se movem lentamente por trás da tapadeira. Quando a policia observa quatro pés pertos vai lá conferir. Assim que se dá o controle. Mas, a força do desejo parece maior que os riscos, o temor, a vergonha, a angustia; nada parece impedir que esses aficionados se encontrem ali furtivamente. Os olhares são de uma prudência extrema, o drama passa-se nos olhos para não violar a intimidade do outro. Quando os homens urinam um ao lado do outro, seus olhos não têm muito para onde ir, olham para cima, para a parede, ou para o próprio ato de urinar, quando se desvia para o lado é sugestivo. A policia de controle fixa em uma média de três minutos o tempo normal, é o tempo de irem até a esquina e voltarem, e passarem na frente da vespasiana. Gostaria muito de fotografar essas vespasianas de dia quando o movimento é mais intenso, mas chamaria muito a atenção, resta fazer fotos à noite. Esses ‘merodeadores’ (caçadores, saqueadores) pertencem a todas as classes sociais e todas as idades. Todas as profissões parecem estar representadas.

Desde o café (Le petit Paris) sentado observo durante horas que alguns homens já são familiares, vão todos os dias a mesma hora; outros eventuais, e outros ainda varias vezes ao dia, entram, saem e depois de meia hora, voltam outra vez. Depois das 18 horas há filas, saem do trabalho e ali se dirigem antes de pegar suas conduções.

O caso de Eugene de Germiny no final do século passado é emblemático dessa perseguição aos frequentadores dos urinários públicos. Filho de um ex-prefeito de uma cidade francesa e depois Ministro das Finanças de Paris, foi fragado numa vespasiana numa posição indecente com um jovem de 18 anos. Eugéne era um hipócrita moralista como tantos hoje que condenam as vespasianas e os graffites. Era um proeminente político católico, um bastião da direita reacionária e defendia uma sociedade baseada na família, religião e um retorno à monarquia. Deu a desculpa que fazia pesquisas. O escritor Gustav Flaubert descreveu o escândalo como um “conforto que estimula a vontade de viver”. Germiny foi enviado para a prisão de La Santé , e se exilou na Argentina sob o nome de Lebègue, onde faleceu.

Minha querida Gilberte critica-me que a cidade que eu retrato, desenha-se como uma cidade nada pudica, e que não tenho vergonha de exibir o que se costuma esconder. Gilberte me chama atenção que essa exibição que falo é masculina, pois não existem vespasianas femininas. São sempre os excessos masculinos que precisam ser canalizados, e a mulher continua cativa em seu símbolo da ordem familiar; ou o outro lado, da prostituição, o esgoto que liberta a cidade do desejo excessivo masculino. A cidade é ostensivamente destinada aos homens. Até as vespasianas se parecem a gigantescos falos, onde rinamos sobre elas, Freud que está na moda poderia explicar isso facilmente. Mas Gilberte tem toda razão, é necessário criar urinários femininos urgentemente, as mulheres também têm vontade urinar, ainda que cruelmente reprimidas desde crianças, para não fazerem suas necessidades em banheiros públicos ou na casa dos outros.

Ouvi dizer que em Barcelona os anarquistas costumam colocar bombas nesses urinários públicos. A Praça Real é um desses lugares prediletos já no final do século XIX. Desde então virou prática explodir vespasianas matando dezenas de pessoas. Os espanhóis não fabricam, compram as vespasianas francesas com sua estrutura metálica de forma circular que cabem até seis pessoas, igual às daqui tapadas de publicidade. Os anarquistas põem as bombas dentro de panelas, ou enterram no piso. Genet me narrou esse fato, no dia em que foi no meu apartamento, de uma procissão fúnebre de pederastas e travestis catalães em direção a uma ex-vespasiana, rendendo honras aos veados que ali morreram. Contava a noticia de um jornal do mês passado, que um senhor teve sua perna decepada devido a mais uma explosão numa vespasiana na Rambla. A situação se tornou tão alarmante que contrataram um inspetor da Scotland Yard, que obviamente nada pode fazer. Parece que, finalmente as autoridades vão por um fim na ‘maldição das vespasianas’ das Ramblas, transladando sua localização para um bairro boêmio próximo. Fico imaginando se isso vira moda em Paris.

Os banhos públicos. Encontrei Rogier Grenier no banho publico, havia gostado daquela carta que lhe escrevi sobre Goethe. Disse ele, enxugando–se com uma cueca suja, vou mostrar-lhe a resposta dentro de um minuto – estou incluindo-a em meu livro. O vestiário estava cheio de homens despidos, alguns com ceroulas compridas, outros com barbas, a maioria ratos pálidos e magricelas com chumbo nas veias da guerra. Ao baixar os olhos em direção aos pés saltavam as unhas enormes não aparadas, e já retorcidas. Um cheiro nauseabundo percorria todo vestiário. Até hoje nunca fotografei um vestiário. Dentro da privada a gente podia fazer um inventário dos pensamentos ociosos deles, as paredes estavam cobertas de desenhos e epítetos, graffites, todos jocosamente obscenos, fáceis de compreender e em geral muito alegres e simpáticos. Precisar-se-ia de escada para atingir certos lugares, mas acho que valeria a pena fazer isso, embora para olhá-los só do ponto de vista psicológico. Às vezes, enquanto estava lá em pé urinando, eu ficava imaginando que impressão isso daria àquelas elegantes damas que se observa entrar e sair dos belos lavatórios nos restaurantes no Champs-Elysées. Imaginava, se elas ergueriam tanto seus rabos se pudessem ver o que se pensava de uma bunda aqui. Em seu mundo, sem dúvida, tudo era gaze e veludo; ou elas nos faziam pensar assim, com os belos odores que desprendiam ao passar zunindo ao nosso lado.

 

Passagens

Hoje ao beber um café no conhecido Deux Magots, ao final da tarde, encontrei um senhor no café sentado numa mesa na rua, estava muito concentrado no que escrevia em seu pequeno caderno de notas. Está uma tarde muito fria, comentei; prontamente ajeitando seus óculos redondos respondeu-me que sim, e foi logo falando que estava cansado de caminhar a esmo pelas ‘passagens’, principalmente a Verdeau, agora estava fazendo algumas anotações para não fugirem de sua mente. Trocamos algumas frases, contei que fazia fotografias e que caminhava pela labiríntica Paris à noite. Contou-me que também gostava de caminhar e deambular, mas preferia o dia, não fazia fotografias, mas adorava e era um deleite apreciá-las. O labirinto, disse em tom de especialista, tem muitas entradas que levam ao interior, por meio do que ele chamou de ‘conhecidos primitivos’; repetidamente, ao longo de nossas vidas somos guiados por passagens para certos tipos de pessoas, até que tudo se contraia em uma figura, um símbolo. Pensei nos graffites e o que sentia por eles. Lamentou-se que vive numa penúria de uma bolsa de pesquisa, e passava frio em seu minúsculo estúdio. Estava escrevendo um livro constituído de fragmentos de diversos tipos sobre Paris. Arrematou: acabei de escrever uma pequena historia da fotografia. Parecia cansado, magro e bastante deprimido. Contou-me, não sei por que, de suas viagens sob o efeito do haxixe, da mescalina e opio quando caminhava em Berlim. Falou-me dessas experiências, assim como a ideia que lhe ocorreu da iluminação profana, da memória involuntária; explicou-me sobre a palavra mêmite, um sentimento de felicidade que ele saboreava com um cuidado particular. Na nossa época, comentou, já nada é verdade e tudo é permitido, e que a tarefa do escritor é somente conscientizar os leitores sobre o que eles já sabem; mas sem estarem cientes disso, se pode inventar como cartas não reais, falsos diários, falsos livros, o importante é convencer. Já era noite e ele estava muito preocupado com a iminência dos nazistas chegarem à França, do jeito que falava até parecia que eles já estavam entre nós infiltrados. Repetia que eles invadiriam a França inevitavelmente, mesmo que a maioria dos franceses não acreditasse, e não déssemos a mínima importância. Fiquei pensando nisso. Deixou umas moedas e se foi. Nem me falou seu nome. Achei que o encontraria outro dia, mas nunca mais o vi.

 

Retocar

O dia é Eros, a noite Psique. Daí o nome do terrível perfume Eros e Psique, dá para usar tanto de dia como de noite. Paris parece hoje uma cidade banhada não pelo Sena, mas pelo grande vidro de perfume vulgar de Eros e Psique. Le air de Paris. Perfume as vezes barato, as vezes muito caro. O perfume da noite deve ser mais barato ou mais caro? Os bons perfumes têm bergamota e alecrim demais, e óleo de rosa de menos, também um toque de vetiver e estoraque. Para mim, o bom perfume é aquele que me faz desejar fixar o tempo.

Podia lamber as paredes com minhas orelhas, tocá-las com minha língua, beijar com meus olhos. Sim, naquele momento podia beijar toda nudez de seu corpo, enquanto urinava com o rosto quase tocando o muro. O olho ao contrário do que se pode pensar é um sentido tátil, apalpador tal como a mão ou ouvido, ele toca e é tocado. A mão então toca para cheirar, se impregnar e transportar para o nariz o cheiro. Assim o tato olfateia. Por isso os animais se roçam nas coisas para se impregnarem. Na visão e na vida tanto o olho quanto o buraco trazem simultaneamente mistérios e revelações. O olho é um ovo esburacado; a pupila um diafragma por onde passa a luz que vai se projetar sobre a superfície concava da retina. A córnea é uma puta, é penetrada por qualquer coisa se deixarmos aberta, mesmo sem consentimento; a luz penetrante na caverna platônica do olho é instantaneamente transformada em impulso pelo nervo ótico e em campo visual pelo cérebro. Entra luz e sai visão ativa que vai flechar o mundo. No buraco sem fundo do mundo fomos jogados. Aqui é só buraco dentro de buraco. No buraco cabe o mundo, mas cabe sem cabimento, porque ele é ao mesmo tempo, “a” e “multi” dimensional, universos inteiros passam por ele. A fenda é o inicio do abismo da existência, assim análogo é o mundo do pequeno orifício da câmera fotografia.

O olho toca para as mãos verem, ou é o contrário? Penso que o buraco da câmera se trata mais de uma boca (bucca) que um olho; uma bucca, uma bucetta, uma pequena caixa, uma pequena bolsa onde reina o caos e o mistério da existência. A boca aberta é surpreendente.

A abertura da vagina é o primeiro transporte, abre e se distende como um diafragma, um obturador. Mas é o ego que faz abrir a boca, a lente, a abertura da criação. E le boucette virou boëte, depois boîte, (boate), o lugar da festa.

É preciso esperar a noite chegar para ver-se no outro, conjugar fotografia e desejo manifesto. Assim tocava teus lábios com meus olhos, pois na noite, a gentesó vê tocando, se sente abraçando. A noite o olhar toca mais ou toca menos? À noite toco o intocável, a bruma, as luzes da cidade, uma escumosa esterilidade pairando sobre a cidade. Passei a noite na neblina, sinto que estou me resfriando outra vez.

A fotografia é só o petisco para o banquete da memória que se avizinha, um lenitivo, um pequeno entorpecente. Ela transfere e faz viajar do mundo visível para o invisível. Abraçai-vos quer dizer deslocar o sentido da visão para mão, para o braço, para corpo. A fotografia como abraço imobilizador é a experiência salinizante, congelante que glasifica tudo com seu toque. Sou reconfortado, a cada dia, pela fotografia, maas esse misterioso acolhimento entra pelos olhos ou pela boca? Pelo nariz ou pelas orelhas? O olho vê mas não sente de verdade, falta-lhe lábios, tímpano. Posso fechar meus olhos, minha boca, meus ouvido, jamais meu nariz. Essas fotos somente têm cheiros e sons para mim, só faz sentido para mim e para alguns tarados. Para todo resto, são insípidas, apenas um tempo de ‘outro’. Veja bem, querido Miller, a quina fotográfica se parece mais como uma boca, um focinho que um olho, até como uma teta mecânica. Quando a lente abre, aspira o mundo transformando tudo em fantasmas e fantasias, devora tudo aquilo que o tamanho de sua boca pode tragar de luz. O movimento da objetiva da câmara é o mesmo da boca, das mãos, dos olhos, e principalmente da respiração (inspiração e expiração). Por isso o fole (folle) da câmera como pulmão da imagem; é desse folle que faço minha folie. O fôlego. A fotografia respira; muitas vezes igual a simples respiração do corpo. Nos primeiros tempos, o retratado precisava de folego para prender a respiração, para não se mexer ante a câmera; agora cada dia menos graças a química.

Como fazer uma fotografia tocar, o que faz com que ela toque os outros? Para mim só importa o que eu fotografo, o ângulo e o que engulo como alimento, ela é o ar que respiro, o quinalo. Essa imagem respirante sacia meu desejo e de outros tantos, despertando mais desejo, mais ego. A fotografia na verdade toca sem tocar, toca alguns, outros nada; para alguns fotógrafos é pura visibilidade, malabarismo da visão: visão de rã, vista de pássaro; uma visão inusitada, um olho especulativo. Tá cheio de fotografo que se ajoelha, se deita, sobe em cima de cadeira., em busca de uma imagem inusitada. Me fazem rir. O respirar sem sentir os cheiros só pode ser enfermidade, prenuncio da morte. Como pode o olho ver sem respirar, não se pode ver sem tocar, sem focar, sem andar. As vezes, penso que tenho os olhos nos pés. Cinquenta metros adiante, dobrei à direita na Rue des Marais, uma viela escura, mal tendo uma braça de largura. Estranhamente o aroma não se tornou muito mais forte, apenas mais puro e, através da sua pureza crescente adquiriu um poder de atração cada vez maior. Caminhava, já sem vontade própria, sem folego, de pronto, o aroma puxou-me abruptamente para a direita e o muro de uma casa me abraçou. Do muro saltava um pequeno telhado oblíquo, fui absorvido por suas lembranças, meu corpo se deliciava com seu toque, logo me transportei.

A fotografia alterou o modo ver e tocar o mundo, desviou os sentidos, alterou tudo, sobretudo a imaginação de todos os artistas; vejam o caso do Proust, é revelador na narratividade de seus romances. Ele não procede de maneira cinematográfica, mas nos apresenta uma série de instantâneos. Por exemplo, um personagem que sai de uma casa é descrito por toda uma série pequenas fotos, não há um filme contínuo. Acho que é preciso parar de pensar fotográficamente nesse sentido de pura visibilidade e de nova objetividade. Penso um dia escrever algo sobre quando o olho dá lugar à orelha, e o olhar à escuta.

A fotografia é ‘chapa-contato’ que quer também tocar o intocável, morder o tempo. Quando os olhos riem, a boca se ‘desculpa’, sorry, gosto de ler as bobagens que escrevem sobre minhas fotografias, as alabanças, o que eles veem não é o que eu vejo. Se a pele da minha mão fosse tão sensível como são meus olhos veria através de minha mão. Quando te beijo com a língua vejo mais que os olhos, um sentido sem sentido. É preciso abraçar a cidade. 

 

 


FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/.
 

 


FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura. Realizou inúmeras capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas (ensaio, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Venezuela, 2021), e Un día fui Aurora Leonardos (poesia, Ecuador, 2022).


 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09

Número 208 | maio de 2022

Artista convidado: Floriano Martins (Brasil, 1957)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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