Caro Floriano Martins,
segue abaixo o artigo que gentilmente me convidastes para
escrever sobre Brassaï, foi difícil escrever algo que ainda não foi dito sobre ele,
minha pesquisa partiu dos artigos e materiais disponíveis na internet chegando até
as teses e dissertações. Nessa busca, acabei descobrindo escritos do Brassaï, cartas
que escrevia em forma de diários. Em 1935, enviou para a Alemanha, para a Editora
Brassói Lapok, uma compilação dessas cartas; já nessa época ele era conhecido por
toda a França como o olho de Paris. Brassaï colocou essas crônicas sob o título
de Cartas aos notívagos. Entrementes, esse material nunca foi publicado
na época por causa da ascensão nazista, o material no mínimo seria considerado degenerado,
ficando anos e anos esquecido nos depósitos da Lapok. No final dos anos 1980 foi
encontrado por um funcionário, e prontamente enviado para Gilberte, a esposa de
Brassaï, na época já estava na casa dos setentas. O material é aprovado por ela,
e publicado ainda em 1990, seis anos a morte de Brassaï. O livro saiu pela Editora
do próprio jornal Brassaï Lapok, numa clara homenagem e expressiva retribuição à
Brassaï sob o título de Briefe an die Nachtschwärmer. Gilberte iria vender também os direitos autorais, alguns anos depois para
a Skira (Lettres aux noctambules, 1995); pouco antes de a firma ser adquirida pelo
grupo editorial italiano Einaudi. Foram sobre essas duas traduções que baseei minha
tradução. Evidente que não traduzi a totalidade das 328 páginas da edição alemã,
nem tampouco as 249 da Skira. Propus-me a fazer um recorte destacando somente alguns
fragmentos que mais me entusiasmaram e, destarte jogam-nos na realidade de nosso
tempo. Acredito que esse livro de Brassaï seja ainda pouco conhecido no Brasil,
assim também esse Brassaï que se confessa nessas cartas. Não encontrei traduções
na língua espanhola e italiana. São muitas páginas nas quais ele descreve Paris
à noite, suas recordações, da década de 1920 até final da década seguinte, pelos
recônditos mais subterrâneos e inauditos. Sua linguagem nessas cartas é variada,
muitas vezes aproximando-se de seus contemporâneos e/ou amigos como Henry Miller,
Mac Orlan, Julien Green – viés mais da sexualidade–; por outro, próximo à escrita
surrealista de seus colegas do Le Minotaure, como Breton, Reverdy, Michaux. Aos leitores é preciso lembrar que antes
de ser um fotógrafo Brassaï foi jornalista, de certa forma um escritor. O material
surpreende pela erudição e reflexão sobre a fotografia, há extensas passagens que
honram as melhores teorias sobre o ato fotográfico. Selecionei vários fragmentos
e coloquei sob títulos curiosos que me ocorriam conforme ia traduzindo para melhor
conduzir e entreter o leitor. Nessas preciosas cartas em forma de diários, meu caro
Floriano, não há títulos somente datas; e em algumas delas também não há registro
do lugar onde foram escritas. Achei que perderia um pouco do surpreendente e das
reflexões extemporâneas de Brassaï sobre fotografia, se conservasse aquele formato
original. Confesso que se tornou exaustivo ver tantos pensamentos embaralhados.
Acredito ser meu lado racional e organizador de professor deixar tudo muito às claras.
Portanto, desculpo-me ante os leitores e amantes de Brassaï por essa pequena profanação
do material. Não é uma tradução fidedigna ao todo do original, remontei, organizei
esses fragmentos sob vários títulos como: Le monocle, as vespasianas, prisões, ou
mesmo muros onde insertei toda a problemática
da arte do graffite. Conservei ao máximo os parágrafos fragmentos selecionados dos
diários em sua íntegra, me esforcei ao máximo com as palavras para deixar o mais
fiel possível ao original. Espero que tenha conseguido. Descobri também que Brassaï
adorava brincar com as palavras e seus sentidos. Algumas dessas expressões tive
dificuldade de traduzir do alemão, e, sobretudo comparando com a versão em francês,
havia divergências entre uma e outra, e solicitei auxilio para o incansável colega
Hermann Blumen, que vive aqui em Porto Alegre. Acrescentei notas de pé de página,
no intento de elucidar algumas passagens que para o leitor julguei serem enigmáticas,
sobretudo quando se refere aos amigos de Brassaï, que não são poucos. Temo que ao
final, essa tradução tenha se tornado um pouco hermética para quem pouco conhece
Brassaï. As extensas notas de pé de página colocadas como notas do tradutor (N.T.)
considero ser mais uma mazela de minha formação acadêmica como professor, anos e
anos me debruçando e revisando teses, como bem sabes. Espero que não acarretem nenhum
prejuízo, somente tive a intenção de enriquecer o material. Nessas crônicas acabei
percebendo que a Paris dos anos 1930 pode ser hoje qualquer cidade no mundo: Fortaleza,
tua terra; Porto Alegre; e até mesmo uma São Paulo da vida. Os dramas seguem os
mesmos. Coloquei o título geral de EmBrassaï en le nuit (Beijado à noite), numa tentativa de explorar e resignificar o nome de
Brassaï, acrescentei um pequeno verbete logo no inicio com a finalidade, quiçá de
poetizar; antes de começar a tradução propriamente dita, apresentando-se como um
pequeno exórdio. Essas foram minhas inserções. Espero que gostes, e principalmente
aos leitores fiéis a Agulha Revista de Cultura.
EMBRASSAÏ EN LE NUIT
Em-Brassaï-ment: abraços, bisou, embrasser verbo beijar, embraçai
beijei. Abraço imobilizante, encanto, feitiço, petrificação. Glas. Diz-se
também do ato, do impacto de ser absorvido, tragado pelo mundo das paredes e muros.
EmBrassaï, passado simples.
Ato de beijar paredes com os olhos. Embrulhado, empacotado (Embroulle). Contração
de braços e (a)braços. Brassaï. Baiser Paris. Transar com Paris. Em
Brassaï Paris. Paris em Brassaï. Abraços à Brassaï.
Chers
maman et papa: j’aime Paris
Desde a infância adquiri
o gosto do proibido, o leite das tetas exuberantes de minha ama que escorriam por
minha boca; ela era farta de leite e imaginação. Talvez, a riqueza das ideias venha
dessa mistura. O nariz acordou primeiro que minha boca. Até hoje padeço do dilema
da escolha que a sociedade me impõe de ser uma única profissão: jornalista, desenhista,
fotógrafo, escritor, escultor. Não tolero e me enferma. Quero ser todos e ao mesmo
tempo nenhum. Quero mesmo é viver a vida e os prazeres em Paris. O jornalismo às vezes me entedia. Meu amigo Pierre Mac Orlan, escritor, conhece
cada recôndito da noite, se intitula um pornógrafo, me conduz pelas profundezas
de Paris. Esse mergulho parece não ter fim, lugares infotografáveis, receio até
descrevê-los nessas páginas, fazem os recônditos frequentados por Restif de la Bretonne
e Baudelaire parecerem jardim de infância. Pedi pra Pierre fazer o prefácio de Prazeres
de Paris, aceitou. Todo mundo adora ele, as putas adoram ele, paga tudo. Pierre
é muito generoso, assume às vezes as caras contas
da noite para mim. Foi uma sorte tê-lo conhecido nos primeiros tempos de Paris,
assim como Sra. Marianne Delaunay-Belleville, uma aristocrata de imensa riqueza,
vinte anos mais velha que eu. Suas amizades me propiciam relações com as quais nunca
teria, não fosse Marianne.
Hoje vendi várias fotos restantes do livro Paris à noite para a popular
revista Voilà, e dei início a mais uma fase de sua exploração da cidade,
agora mais intimista por assim dizer. Acabei de endereçar mais uma carta a Roger
Grenier, explicando-lhe das fotos que escolhi para colocar no livro Os segredos
de Paris. Venho trabalhando com os surrealistas na revista Le Minotaure,
confesso que suas ideias radicalizadas às vezes me incomodam,
mas adoro-os; é uma cumplicidade estranha, nessa cidade dobrada, um louco
amor. Albert Skira tem me ajudado muito. Mas, recusei o convite de Breton para juntar-me
ao grupo.
A Alemanha está agitada, sorte estar em Paris. Verdadeiras guerras campais são
travadas nas ruas entre os camisas pardas Sturmabteilung; uma milícia sob
o comando do pederasta general Ernst Röhm; e os comunistas desarmados, impotentes
frente à tamanha violência.
A cor parda provém dos fardamentos destinados às tropas alemãs que serviram na Tanzânia durante a Primeira Guerra Mundial, nunca devolveram. Após a guerra os nazistas compraram por
preços módicos, para vestir suas milícias. Foram terríveis os dias que passei prisioneiro.
Agora as coisas estão tomando um rumo macabro, acompanho as notícias diariamente.
As refeições estão a cada dia mais caras aqui em Paris, já é uma consequência desses
tempos. O que custava em Berlim 8 marcos agora custa 20 marcos, até os tickets de
trem subiram. Tempo de vacas magras. Os artistas estão debandando de Paris, Montparnasse
está esvaziando, os artistas mais lúcidos pressentem o que vem pela frente. A ascensão
do nazismo é pauta das notícias nos jornais. A crise chegou bem na hora em que eu
começava a ter uma renda decente, o Brassói Lapok reduziu meu salário. Os
jornais alemães estão estrangulando os gastos, reduzindo valores pagos, e também
a demanda por free lancers. Mas, aqui tudo ainda parece normal. Muito amor
no ar. Sigo hipocritamente vendendo para os alemães a imagem poética da extravagância
cultural e libertina de Paris. Os nazistas também amam Paris, é a capital dos séculos
XIX e XX. Não entendo como o povo alemão e os parisienses conseguem viver o cotidiano normalmente como
nada estivesse acontecendo, ou para acontecer. Tudo é muito insano; como meio de
sobrevivência tenho que me manter no jornalismo escrevendo sobre arte, cultura e
política. Mas, não vai durar muito. Por sorte, estou ficando conhecido por aqui. Melhor, parece que todos gostam das minhas fotografias. Amo
Paris.
Se eu tivesse tomado uma decisão tão consciente em favor da fotografia, poderia-se
perguntar: por que a ansiedade de me libertar dela o mais rápido possível? Por que
escrevi, naquela que foi sem dúvida a mais obscura de minhas cartas, datada de dois
de agosto de 1939. Era óbvio que, aconteça o que acontecer eu deveria me libertar
da fotografia. Ainda considero-a apenas um trampolim para o meu verdadeiro eu. Para
entender esse pensamento, não se esqueçam de que a fotografia é meu sustento, um meio de apoio que às vezes envolve trabalhos
que reluto aceitá-los. Era principalmente dessa subserviência que eu tentava escapar.
Por outro lado, durante minha antiga estada em Berlim, escrevi que havia começado
a surgir em mim uma ideia que havia se transformado em uma árvore com galhos largos.
Este era o tesouro de que falei, mas que não podia possuir plenamente. Fiquei atormentado
pelo medo de não conseguir trazê-lo à tona, e senti que era uma tarefa mais importante
do que criar uma obra fotográfica. Infelizmente, é-me impossível elaborar mais sobre
isso aqui.
Devo esclarecer outro ponto enganoso nas cartas que envio pra vocês, não quero
que interpretem mal o que digo. Elas sugerem que fui atraído para a fotografia por
considerações puramente práticas. Mas não é verdade, assim que aprendi a usar a
câmera perdi o interesse em ter minhas fotos publicadas como ilustrações de artigos
encomendados, e até mesmo de minhas reportagens e artigos. A partir do momento em
que percebi que a câmera era capaz de captar a beleza da noite parisiense (aquela
beleza pela qual me ‘apaixonei apaixonadamente’ durante minhas aventuras boêmias),
busquei a fotografia apenas para meu próprio prazer. Ao mesmo tempo, também entendi
que não era irrelevante a forma de expressão que um artista escolhe em uma determinada
época. Elas proporcionam prazer e dinheiro.
São tantos acontecimentos
e encontros no dia a dia que fica até difícil chegar em casa; acabo passando horas
nos cafés e em festas que me convidam, em vez de fazer meu trabalho. A cidade me
suga até a última gota de sangue. Abraça-me esmagadoramente, fico fascinado pelos
brioches, os croissants, coisas que na Alemanha não tinha tão frequentemente,
e tão barato. As vitrines e as mulheres são encantadoras. Às vezes, não faço nada o dia inteiro. Parece-me que a vida
em Paris é adoravelmente viscosa, coagulante. Assim, que começou meu mergulho na
vida de Paris, pouco a pouco fui levado à suas entranhas mais sedutoras e pecaminosas.
Perdoem-me, mas, não posso dar mais detalhes nesse momento. Durmo durante o dia e caminho
durante a noite. ‘Quem sou eu?’, o que estou me tornando. Estou muito pálido, não
tomo quase sol, e o inverno parece glacial.
André Kertész tem me acompanhado em algumas caminhadas noturnas, foi ele o culpado.
Sugeriu-me comprar uma máquina fotográfica. Depois de relutar, comprei o equipamento
fotográfico e também um ampliador que quase não utilizo. Resolvi prudentemente não
alugar nenhum ateliê, e sim um quartinho ao lado do meu. Recebo razoavelmente bem
como jornalista, parte desse dinheiro vem das fotografias que ilustram os artigos,
anteriormente pagava outros fotógrafos para fazerem; agora faço eu mesmo.
Gosto da vaporosidade, da neblina (nebel), o brouillard, a bruma,
as ruas escuras e sujas; não sei de onde vem esse prazer. Encanta-me as prostitutas,
a vadiagem, os homossexuais, os pervertidos e seu modo de vida. Passo boa parte
de meu tempo perambulando pela cidade. Paris exala sexo, seus odores bons e ruins,
há um air de Paris, Eros e Psique. Gosto da iluminação dos lampiões e suas sombras, os efeitos que via no expressionismo agora aparecem aqui.
Sombras e sobras nas ruinas e sarjetas. Meu reino é a noite, persigo as pegadas como um animal em busca de sua
presa. Caio nos mesmos lugares no fim da noite. Me lembrei do Kandinsky, para ele
a fumaça era o veículo do espiritual; para mim é mesmo o rastro do mistério, o que
se esconde na noite. Quanto mais bruma melhor. Meu espírito fica maravilhosamente
enevoado, não quero encerrar a noite sem ter esvaziado a última garrafa, e sentir
o cheiro da jovem da Rue des Marais.
Meu amigo Henry Miller insiste em dizer que o tempo continuará ruim, haverá mais calamidades, mais morte e desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma.
O câncer do tempo está nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando.
O herói, então, não é o tempo, mas a ausência de tempo. Não há tempo pra nada. Precisamos
acertar o passo em ritmo acelerado. Não acompanho mais as datas. Há intervalos,
mas ficam entre sonhos; e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor
está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo. O homem é um câncer
que está comendo a si próprio. Estou pensando que quando o grande silêncio descer
sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para
o útero do tempo o caos será restabelecido. O caos, a guerra, a crueldades é a página
sobre a qual a realidade está sempre sendo escrita. Não sou nem eu, é o mundo morrendo,
deixando cair a pele do tempo. Sempre adormecendo cada dia mais. A fisiologia do
amor pulsa pouco, por isso a evocamos como uma prece libertina.
Cada dia mais as saídas me cansam, carregar o tripé, a máquina, as chapas pesadas,
os clichês. Na volta, parece que carrego o peso do mundo, sem ser nenhum santo.
Como desejaria que não demorasse tanto tempo para registrar uma cena. Minha medida
de tempo para registrar a imagem na chapa passa a ser o Gauloise. Parece
que trago o tempo enquanto faço tempo. Mato o tempo, mato tudo, enquanto espero
a câmara tragar a imagem que esta lá fora da caixa. Ah,
minha companheira inseparável a Voigtländer Bergheil. Ontem me desdobrei,
procurei um ângulo inusitado para controlar os halos que se formavam em volta dos
lampiões. Tive que buscar posições em que eles não aparecessem. Mas, a névoa é minha amiga,
ameniza a luz tornando-a indireta. Essa luz artificial cega e mata a fotografia.
Tudo o que sei de fotografia de dia não serve em nada para a noite.
Molhei-me demais, será resfriado na certa.
Louis Aragon chegou antes, Restif de La Bretonne muito antes. Esses notívagos
deixaram um legado na literatura, um roteiro de vagabundagem a ser seguido em suas
pegadas. Rastros sobre rastros. O camponês de paris de 1926 e Les nuits
de Paris, invejo-os. Ontem Prévert, me levou pra ver o Bassin de la
Villette à noite, lugar bastante
sinistro. Não é bem esse o tipo de perigo que gosto de vivenciar, lá é
desolado e descampado. Memorizei.
Muros
Existe um tipo de
vínculo sanguíneo que se dá há tempos entre o graffite e a câmera fotográfica.
Dois buracos se tornam os olhos da parede, uma boca; eis uma cara. Fotografei recolhi
vários deles. Os desenhos, as inscrições nas paredes desde pequeno me despertaram
a atenção, lembram inscrições rupestres das cavernas, lembram a infancia. Os graffites
me revolvem o inconsciente, me transportam para um mundo mágico, onde me entrego
à sorte do pensamento deles num delírio. O inusitado deles é que antes estavam nas
cavernas, nas grutas; agora estão irônicamente nas paredes das fábricas, penitenciárias,
nas ruas. Ontem, ao me aproximar da Opera indo ao bordel na Rue budapest,
encontrei sinais semelhantes aos da gruta de Dordonha, e fiquei pensando
que outrora era liberdade de expressão nas cavernas, hoje é o ‘proibido’ na cidade.
Por isso, crianças e adolescentes adoram grafitar, cifrar o muro, profanar os muros
virgens. Fico encantado, paralisado ante eles como um idiota, prontos a posar para
minha própria câmera fotográfica. As incisões, os grafiatos me remechem por sua
força arquetípica, são a origem da pintura, da escrita;
grafia da parede. Tristes crianças que não tem um muro para brincar, triste ver
que já ao nascer já tem um muro ali pronto para cerceá-las. Pior, não poderem riscar
nem dentro de suas casas. O muro é o companheiro da solidão.
Acho que todos que inscrevem nos muros e paredes querem ver o que tem dentro,
esburacar o mundo. Talvez uma tentativa de passar para o outro lado do muro, sair
do aprisionamento que se constitui a vida. É uma espécie de velo espesso entre o
aqui e o além. Quem será que inventou muros? Só pode ter coisa do diabo. O menino
ao tocar a parede estabelece o diálogo entre o visível e o invisível, entre o bem
e o mal, sua natureza é ocultar, dividir, separar, guardar, esconder os segredos
em suas vísceras. Triste espessura da vida, e são tão assustadores, ninguém
se atreve a experimentar e viver dentro deles, exceto os ‘civilizados’. As religiões
os utilizam como superficie sagrada, atestavam mesopotâmicos, egípcios, e góticos.
Nas caminhadas com o judeu errante, o Ahasverus, entre muros, penso que a
esperança está escondida justo ali na amaldiçoada parede. Triste revelação da fotogafia
ao registrar esses muros, essas casas, ali mora o lado terrível da civilização.
A contra-natureza. Tudo é uma questão de ponto de vista; se por um segundo apenas
abandonamos o fator tempo, e se ousarmos suspendê-lo, as analogias vivas brotarão
estabelecendo relações vertiginosas entre tempos longínquos. O grafitte é a arte
bastarda das ruas infames, a arte maldita, sem herança acadêmica, nem por isso menos
importante. É mais interessante que um Coubert. Esse aroma pervertido das paredes
mareja meus olhos de tesão fétida. Sinto vertigens, cambaleio, apoio-me neles inúmeras
vezes para poder viver. São meu encosto. Muito me acocorei neles para defecar o mundo. E,
tendo assim, controlado e acalmado meu espírito, comecei a puxar para dentro de
mim o olor fatal, em inspirações curtas. Levantei as calças, e segui adiante. Grafei,
gravei, fotografei as ruelas.
Quanto mais esburacado está o muro mais fascinio me desperta, mais informação,
mais seres profundos podem morar alí, assim acolhe tudo. Os buracos são os olhos
do muro e do mundo. Miro o muro, boca muro desdentada e imunda que grita le couer
de le monde. O pequenino coração gravado na parede. Não gosto de muros lisos
e brancos modernos. O tédio das paredes nuas e brancas me provoca náuseas, dá vontade
escupir nelas. É um sentimento de
absoluto suicídio, não registra a idade do tempo; ao contrário, apagam o tempo e
nem ao menos congelam como faz a fotografia. O muro sujo e carcomido, envelhecido,
poroso, rugoso, esse sim revela e conserva o passado, o mistério. Encripta. Ele
simultaneamente segrega e esconde; guarda o tempo e protege do vento. Atrás dele
pode se fazer tudo. O que é o muro senão uma superfície de contato sensível à luz e ao toque, a
alma e a casa do mundo do homem europeu. Para que isso? Se o mundo poderia ser tão mais simples, quando
a alma do mundo está no mundo animal e vegetal, e não nas pedras. Recordava-me quando
voltava a cheirá-los, de fato voltei a eles muitas vezes, para além do tempo que
estava ali, era uma espécie de droga alucinógena que me acariciava, sentia tudo
até o ato primeiro. De repente, me despertei, era de manhã, tudo que vi foi o ranho
escorrendo daquela menina que olhava pra mim.
Acariciar é um modo de ser e tratar as coisas no mundo, onde o contato com o
outro vai além do tato. O contato forma parte do mundo das trevas porque é cego,
produz sombra e ocultamentos. Busco representar incessantemente esses contatos,
sem ver se vendo. O acariciado é aquilo que vejo, toco a distância; toco sem tocar
através da lente, mas ele nunca é tocado de fato. Eis o que é a fotografia: o acariciado
sem toque, o que a carícia busca não é o aveludado, o sedoso; a fotografia não sabe
o que busca, só quer tocar tudo. O fotógrafo só quer retocar o mundo, voltar a sentir,
por isso seu toque é deficiente. Muitas vezes busca o rugoso da parede, ou o liso
e enigmático da unha. A caricia é cega por natureza, nunca está certa do que apalpou,
é insegura, lhe falta algo; e para ter certeza faço muitas chapas do objeto de meu
desejo, ter certeza exatamente do que sinto no momento mágico.
Cada ranhura, cada linha no muro é um traço (trait), um ‘re-traço’ (re-trait),
um retrato (retrait) que retraça apagando algo, e trazendo à tona outra coisa.
A ranhura (rainure) pertence à ordem do tempo e
do espaço. Isso é o que é a fotografia: um apagamento, uma ranhura, um buraco de
tempo e de espaço. Esses trous no muro
são os rastros do rompimento do homem com a natureza. A parede me toca, sou tocado
por ela, mas, por sortie (saída ou sorte), tanto o toque como a mirada pedem
reciprocidade. Essa ‘reci-pro-cidade’ também é o que foi re-trait
(retirado, apagado) do muro no retratado. O que ela retém e apaga assim como
o muro é o próprio tempo.
Apaga retraçando sem riscar e não se dá conta.
Os graffites não pertencem a uma rua específica ou a um autor específico, os
graffites são a ponte para uma infância universal, para a desdomesticação, uma reverência
ao selvagem. É a chave, a senha
para derreter-se na parede do passado, semelhante à escrita automática descrita
por Breton. Um cadáver muito exquisito. O muro é uma espécie de folha, página,
dobra do inconsciente coletivo, um palimpsesto; permite livremente o acesso ao inconsciente
da cidade. Não apaguem essas inscrições, não pintem, muito menos de branco, elas
são o passaporte, as passagens para viajar ao passado, porta de saída e de entrada.
É de dentro deles que surgem os espectros, as fantasmagorias. Em cada buraquinho
há um Janus. Deixem passar.
Viu mamãe e papai, esta arte “bastarda”, não tem pai nem mãe. Ninguém assume
sua criação, é comparável à figura da prostituta, ou
do bastardo. Ambas, são elementos marginais da cidade, aponta à ancestralidade,
a força anímica; erroneamente ao primitivo. Observem que, do lado direito da cara
desenhada na parede está inscrito um coração, mesmo antes da presença da mulher,
indicando o desejo sexual implícito na imagem Funciona como representação especular
da mulher encostada ao candeeiro, que retratei. Lamento, gosto da arte ilícita,
proibida, suja, anônima e de tudo que ainda não é arte. No muro estão e foram inscritos
os maiores amores, I was here. Não só palavrões, mas contatos, tamanhos
de penis, palavras de odio aos facistas, endereços, vaginas radiantes, e também
poemas, frases revolucionárias. Verdades ao pé da letra. Esse dito ‘vandalismo’,
essa arte degenerada não se explica pela necessidade de destruição do homem, seria
ingênuo e ridículo demais. Essa arte de abrir e esburacar é puro acolhimento, tanto
a parede como a folha da porta, quando rasgada, aberta, só acolhem. Ao inscrever
na parede, inoculo, disemino qualquer coisa. Roço, esfrego meus dedos, solto minhas
cacas do nariz, cuspo, urino. A inscrição no muro se trata de sobrevivência, um
grito a liberdade, um primal screeen. Assim como a origem da escrita e da
pintura está associada à incisão, o muro,
só ele suporta essa inscrição para viver alem da mortalidade dos homens. Parece
ter nascido para aqueles que não puderam, e nunca poderão, jamais erguer piramides
e catedrais para legar seus nomes à posteridade. Por isso ejaculem nas paredes.
Afinal, o que é a fotografia senão um jato luminoso dissimulado sobre uma superficie,
um gozo. Um prazer intenso.
Tenho medo que daqui uma semana esses graffites não estejam mais alí; que algum
higienista asqueroso tenha limpado para sempre, tenha apagado-os ou mesmo transfigurado-os.
Quando fotografo um graffite estou salvando, encomendando-o a outro mundo, para
o devenir, sou o Arconte dos graffites, o grande graffiteur. Ouço suas palavras
silenciosas: ‘o poema do cú e da rola’, ‘só o amor é luz’, ‘a bunda reaje a assaltos’.
Escuto o erotismo de seus pecados. Ali, na parede do banheiro qualquer um acredita
em Deus ao dar descarga do vaso. Mas ao mesmo tempo o espelho diante, interroga
quem é você? Quer ver o poder das paredes? Vá numa vespasiana.
O muro é meu mundo. Tudo fenece, desaparece, mas alguma coisa deve restar de
nós além do fossil no muro. Os graffites, quiza, como memória perdurem mais que
minhas fotografias, mesmo expostas e protegidas dentro das imaculadas paredes das
galerias e museus, ou até nas paginas das revistas e livros. Voltei varios anos
depois para visitá-los, como um apaixonado saudoso sem culpa do abandono; queria
saber se ainda estavam vivos e falantes. Era só o que me interassava desses filhos
meus. Ao fotografá-los parece que lhes dou alma. Receava serem apagados pela modernidade
puritana, tudo fenece ante a tempestade veloz do progresso. E ela vai nos apagar
também, temo que vá conseguir, mas não será fácil, nós ‘vivas almas’ da noite não existimos para dinamicidade
do dia, vagamos como penates, como seres lentos para compensar a ‘velozcidade’.
Tenho uma memória infalível, sei exatamente como e onde havia fotografado e cheirado
cada parede sete anos antes. Senti novamente aquele cheiro de pedra e de úmido frio,
um cheiro salino, tão nítido que nenhum vivente ou animal. Exatamente assim é que
aquela parede cheirava agora, que jubilo poder estar ali e me transportar mais uma
vez para aqueles antepassados. Sua pele carcomida, meu bilhete para viajar, cada
buraquinho meu túnel do tempo. Assim vi o nascimento do rosto humano no graffite,
rosto do mundo. Bastava ter dois buracos, e um terceiro para ter alma. Vivo no muro
da rua.
O esquecimento é uma noite de trevas que engole as lembranças, mas o esquecimento
está na memoria, o dia na noite, tudo é uma questão de orbita, de giro, de dobrar
sobre si mesmo. A parede se deixa inscrever, escrever, esfregar-se e apagar-se.
Ela é dura, mas posso penetrá-la. Circunscrevo. Ás vezes, os graffites surgem como flashes, relampiam como a
centelha da imagem, aproveito a capacidade de ver espectros, fantasmas, rostos e
figuras humanas nas paredes, pura pareidolia; me assombram, me arrepiam. Basta um
buraco ou dois, uma mancha para as beatas verem Jesus ou o diabo, que tristeza essa
gente. Cada um projeta o que quer ver. A primeira coisa que busco são os olhos,
a boca da figura humana. Os três buracos. Mas será mesmo que dois buracos são os
signos da cara, suficientes para evocar o humano? Ou, estou me tornando um olho
máquina que vê olhos em tudo. Quando o fotografo fica obcecado, enfermo, é culpa
dessa maldita e diabólica máquina que acha que para ser humano basta ter dois olhos.
O furo, o buraquinho, petit cul na parede é o binômio de disjunção, o
desejo no abismo, mora entre a presença e a ausência da luz, o fora e o dentro,
o ventilado e o abafado; ele faz o entre: o respirável. Encerra uma polaridade platônica
da luz e da escuridão, uma porta, um nascimento contínuo para a estranheza da vida,
para o desconhecido. O obscuro objeto do desejo, a escuridão que antecede a luminosidade
da vida, permite contrastar com o pálido branco do papel fotográfico.
“Quando nossos olhos se tocam... é de dia ou de noite?” O muro é tempo sem tempo,
destinado a sobreviver a passagem do tempo. Toco o grafite, o graffe, sinto
a ranhura, minha fenda do prazer, sua textura, seus buracos. Gosto de fotografá-los,
tocá-los porque eles já são imóveis, não precisam ser preparados, ao contrario de
minhas cenas retratadas (retrait). Ao contrário da pintura, eles podem ser
tocados, esfregados, urinados, neles colocamos as cacas do nariz, enchemos de excrementos.
Não há nenhuma sacralidade nele. O muro desse lado da rua já nasce como o lugar
de que se pode fazer tudo, são profanos; ao contrario de seu lado interior, privado.
Destruir um graffite anônimo não é crime, ao passo que destruir uma obra de arte
sim. Toda grafia no muro não pertence a ninguém, minhas fotografias sim, só a mim.
A rua e suas paredes é uma espécie de cantoria, nenhum recital ou recitado, aqui
é tudo roubado mesmo, congelo e tomo como propriedade para comercializar. Percorro
o muro como uma lesma a esmo; arrasto-me sobre as ranhuras, dobro esquinas de letras,
atravesso corações lechados.
Algumas paredes me dão repulsa, tanto faz se é uma textura lisa ou porosa, algo
estranho me acontece com esse toque. Suspeito que esteja associado ás entranhas
de cada superfície, ou a mim mesmo. O mesmo sucede ás vezes com uma folha de papel, que eu tenho que escrever
algo sobre ela, não suporto folhas lisas demais. Numa dessas noites tinha um muro
com muitas lesmas gordas subindo, grandes escargots e em sua caminhada deixavam
um rastro brilhante no muro e no chão, suas secreções cintilavam; era muito fotogênico
mas, também nojento; deu-me asco, fui embora.
Toco a pele do corpo que desejo, a película, o muro, no limite desse tocar passo
automaticamente para o olhar, passo do toque tátil ao toque compulsivo da visão.
Minha caricia parece ter limites; caminhando pela rua tateio o mundo, ‘embraçando’
e gotejando a cada passo. Todos esses muros da cidade que me parecem familiar, desejantes,
foram também testemunhas de todos os martírios, de todos os atrasos inumanos aplicados
a nossa gente. Todo o drama que sofreram os adultos e todas as cruéis fantasias
de certa idade de tantas catástrofes pareciam agora abandonadas aos próprios impulsos,
desenhavam-se e se inscreviam no muro ao meu redor. Acho que é isso que alguns me
propiciam, medo e repulsa.
Graffite sim, porque grafa,
grifa, grava em sulcos fundos, o que é o disco, o fonografo senão o sulco sonoro, é da fricção que sai a musica. Em seus primórdios,
alguns povos faziam inscrições em pedras, na superfície da terra, em placas e rolos
de cerâmica, em árvores, em ossos e couros de animais; ou na própria pele – como
tatuagens, escarificação para que o tempo não os apagasse da história. A própria
epiderme se constituía na primeira superfície de inscrição, o primeiro suporte de
representação. Até pouco tempo atrás, alguns instrumentos de registro como a antiga
caneta de pena, ou a atual máquina de escrever seguem o mesmo princípio da escrita,
a perfuração, rasgar e rusgar
o papel. Até agora, não deixaram de executar a prática milenar
de marcar símbolos nas superfícies; no futuro não sei. A escrita se move entre
uma incisão, um corte e uma união, uma cola, uma ligação. O corte inscreve a diferença
na vida, no corpo, na figura, no texto, na palavra. O corte é a confecção do abismo,
da descontinuidade, do distanciamento entre os corpos, entre as linguagens. Profundidade
que induz comunicações, expressões, manifestações distintas. Quem explora tais superfícies
quer ver o que se esconde dentro, conhecer o abismo em suas entranhas, o segredo
de seu conteúdo. Será que inscrevo ou escrevo? Não posso dizer que tudo o que está
escrito aqui seja mentira ou exagero, e também não posso dizer que seja verdadeiro,
assim são minhas fotografias. Preparo a cena, como quem prepara uma ceia a partir
do que já estava fadado a acontecer, do que já aconteceu, do que esta sendo; congelo
para compor melhor e deixar o ar passar que quero abraçar.
Gosto do achatamento que o muro proporciona quando fotografo os graffites sem
perspectiva. Acho que sou o pioneiro em buscar o achatamento, o chapado. Foco apenas
na marca, nos buraquinhos, nas ranhuras. Quero uma profundidade milimétrica, a profundidade
da porosidade da pele. E, de repente adquirem uma profundidade histórica muito profunda
para alem de nossos tempos; a própria razão é impotente para descifrá-la. Me aproximo, esquadrinho no espaço
do visor, exploro extasiado o que vejo, sua maravilha. É o gozo de ter capturado
o passado lá trás.
O muro é de todos, mas só de um lado. Cada vez que fotografo me vem à mente
a origem da pintura do Plinio e a possessão amorosa de reter o ser amado para além
de sua vontade. Na noite anterior à partida do amado para a guerra, quando a filha
do oleiro observava a sombra do seu amado projetada na parede pela fogueira, resolve
sulcar o perfil, a silhueta projetada na parede. Para Plinio, nascia assim a pintura
pela fixação da sombra do amado na imobilidade da imagem e de sua alma; um trabalho
de fetiche; sem retirar nenhuma parte do corpo; como um pedaço de cabelo, ou qualquer
outra coisa. Esperança semelhante à encontrada na prática egípcia que guarda o ka
(a alma) nas estátuas dos mortos.
A incisão na parede é alma registrada, retida aprisionada, possessão. As figuras
desenhadas nas paredes são uma incessante transposição, transmutação de imagens que
se formam e se deformam, unem-se e desunem-se, mimetizam e se metamorfoseiam: uma
vagina ou um pênis podem se converter num rosto, o rosto em um coração, o coração
em uma flor. Esses encontros de diferentes grafias tornam-se ideogramas abstratos
herméticos, inacessíveis. Tudo está ali pra brotar, a parede é uma brotação de signos,
terra fecunda para o cultivo simbólico, mas também cheia de vírus latente. Cuidado,
as paredes, os muros são casas de bacilos dormentes. Descobri, tardiamente com a
declaração de um médico num almanaque, que a tuberculose podia se alojar na parede
durante séculos. Não é a toa que se pintam
as paredes de tempos em tempos, acho que essas pestes são a-históricas, não tem
passado nem futuro. Não acredito muito nisso dos muros serem moradas de bacilos; os muros são estigmatizados,
inventam essas histórias para pintarmos e encobrirmos o passado constantemente.
Gosto dos muros porque eles nos contam sobre a necessidade da porosidade da vida
e das relações, mesmo as paredes, as barreiras, os bloqueios entre países parecem
conter brechas invisíveis, que nos imploram para atravessar, explorá-los.
De dia no burburim das ruas meus olhos tocam todos os olhos,
cara na cara e pronto, desviamos nossos olhares para evitar uma aproximação, um
contato. Á noite tudo favorece
ao tocar, ao tocante, ao contato. Tudo vai ficando esfumaçado na embriaguez da noite
dos olhos, ao ponto de já não ver nada, tudo o que desejo é estar abraçado, beijado,
emBrassaï.
Batizei aquele graffite, ontem à noite de Lutécia;
uma gigantesca cidade de letras e ranhuras, a velha Paris, me perdi percorrendo
suas dobras vivendo e me embrenhando nessa perfuracidade, rugas e rusgas
por toda a parte formando um labirinto. É estranho, adoro a cidade grande, mas não gosto do glomus, da aglomeração para
fotografar. Onde há luz há gente nas calçadas, acotovelando-se, emitindo calor animal
através de sua roupa de baixo suja, e de seu hálito fétido e praguejante. É possível
que numa extensão de oito ou dez quarteirões haja uma aparência de alegria, mas
depois quando chega à noite, a noite lúgubre,
sórdida e preta como gordura gelada numa terrina de sopa, tudo muda, se cala. Quarteirões
e quarteirões de prédios de apartamentos fecham-se. Suas janelas de pronto fecham-se
hermeticamente, todas as frente das lojas também. Quilômetros e quilômetros de prisões
de pedra sem o mais débil brilho de calor; os cães e os gatos estão todos dentro
com os canários. As baratas e os percevejos também estão seguramente encarcerados.
Os políticos e os ditos cidadãos de bem dizem que o graffite é a praga do século,
uma mácula na “civilidade” das paredes das cidades. Para eles escrever na parede
é um ato inerentemente subversivo, uma espécie de violação da propriedade privada.
O graffite é um atentado a domesticação da representação, o oposto do quadro comportado
que esta lá do outro lado da parede. Os graffites representam uma arte ignorada
e ignorante, bruta, selvagem. A linguagem das imagens mais primitivas. Essa ‘arte
bastarda’ das ruas, menosprezada, quase incapaz de despertar o olho, tão incerta
devido às inclemências do tempo,
põe de pernas para o ar a arte tradicional e moderna. A beleza não é, na verdade
o objetivo de sua criação, mas a sua recompensa. Qual o limite para o graffite?
Até onde pode se disseminar?
O muro é a pedra indestrutível que inspira a ideia de eternidade, se congela
na matéria. O graffe é o riscado e não o pintado, o tratado como apagamento.
A parede: o suporte substancialmente idêntico ao papel fotográfico, sua estrutura
desempenha um papel ativo seja por sua força sugestiva ou por sua capacidade de
resistência. Um muro velho nunca está inerte, vibra em toda a sua superfície colorida
de camadas de tempo deslizando umas sobre as outras.
Essa manhã ataquei a primeira estátua de Picasso para fotografa-la:
a Cabeça da Morte, uma emocionante peça de trabalho do inventário fotográfico
que tenho que realizar, além de amigo me pagará muito bem. Mais uma cabeça petrificada
monumental com cavidades vazias, e com seu nariz corroído, e lábios caídos; uma
careta esqueleto sem carne. Um bloco de pedra perdido marcado com cavidades corroída
e polida, por ter rolado em torno de uma era para a outra. Fiz várias fotos. Picasso
insiste em ajudar. Meu método o intriga. Eu raramente olho através das lentes turvas;
apenas meço a distância com um barbante e às vezes ilumino a cena com pó de magnésio.
A explosão assusta e diverte Picasso. Me apelidou de terrorista, doravante adota
esse apelido para se referir a mim. Brassaï, disse ele, você sabia que Alfred Jarry
sempre tem uma coruja viva morando com ele? Fiquei pensando, o que ele queria dizer
com isso, por que me falou isso do nada. Corujas?!
Picasso acredita haver estilos de graffite para cada país,
os grafites italianos são distintos dos espanhóis, e não tem nenhuma semelhança
com o grafite parisiense. Explicou-me que, por exemplo, os falos que se vê nas paredes de Roma são especificamente italianos. Na verdade,
você sabe, disse ele, mesmo sem fotos o graffite existe, mas é como se eles não
existissem. Da mesma forma, afirmou, fiz objetos de papel que existirá apenas por
causa da fotografia. Se você voltar mais cedo amanhã, vou mostrá-los para você.
E você vai fotografá-los. Caso contrário, eles estarão também destinados à destruição.
Mostrei para Picasso alguns fotos dos graffites, ele olha para eles com interesse,
especialmente aqueles que mostram genitália. Retrucou, você pode ficar feliz em
saber que neste momento eu também estou grafitando. Mas eles são grafados não na parede, mas no concreto. Invenção de um norueguês artista. Meus graffites serão ampliados
e esculpidos com uma tesoura de eletricidade, e fará parte de um projeto para um
edifício sede dos arquitetos em Barcelona, cada um deles terá dois ou três andares
de altura. Me inspirei em você. Ao sair, tento recuperar minhas fotos de graffite.
Ele reluta para devolve-los. Picasso: você estaria disposto a deixá-los comigo até
amanhã? Eu gostaria de estudá-los esta noite. Sai sem minhas fotos.
Voltei até o muro do tempo para tocá-lo, minha doce Lutécia, fechei os olhos
e inflei as narinas. O aroma era tão excepcionalmente suave e fino nessa noite que
não conseguia retê-lo, me fugia sua percepção; estava encoberto pela fumaça da pólvora
dos petardos e bloqueado pela transpiração das massas humanas; despedaçado e esmigalhado
pelos milhares de outros cheiros da cidade. Não conseguia voltar no tempo. De repente,
a rua se esvaziou, então estava de novo aí, bastava só um pedacinho a ser aspirado
por um curto segundo, foi o suficiente para produzir o efeito. Pela primeira vez
não era apenas meu caráter ávido que experimentava algo doentio, mas o meu coração
que sofria. Palpitava a extraordinária sensação de que esse aroma seria a chave
para ordenar todos os outros aromas, e todos os outros graffites. Era assim que
entendia a história, ela precisa ser cheirada, não basta ser comunicada, lida. Precisava
tê-la como uma tela mesmo, não pela mera posse, mas finalmente para sossego do meu coração. Só aquele
graffite me transportava para Lutécia, beijar e abraçar a lamacenta Paris antiga,
quando os quarteirões e as casas eram tão próximas umas das outras, que para passar
só restava uma braça de largura. No tempo em que os transeuntes enterravam-se na
lama e no lodo, tinham de passar uns pelos outros se comprimindo contra as paredes.
Mesmo nas praças e nas poucas ruas mais largas, as carroças mal podiam desviar-se
umas das outras, regado com cheiro de mofo e urina de rato, era quase sufocante.
No entanto, apesar de toda a sujeira e aperto, a Lutécia pululava de atividades.
Às vezes temo ser chato ao devanear sobre os muros. Miller reclama
que falo demais. Ele mesmo sublinhou a singularidade da minha condição. ‘Diz-se
às vezes que este é o homem caça imagens. Mas ele não caça absolutamente nada. É
sim a presa, caçada por suas imagens. Vendo ele ainda armado com sua câmera, pensamos
que ele é um fotógrafo. Mas ele não tem estúdio, não ganha a vida fazendo retratos,
relatórios ou publicidade.’
Tapis
Um dia vou considerar
a fotografia como muro, vou desacralizá-la e dar espessura ao papel. Hoje tive duas
ideias: não sei quando terei tempo
para realiza-las. A primeira, abrupta, observando os muros e seus diversos graffites,
pensei então numa collage a partir das fotos dos graffites que tenho. Selecionar
alguns, dispor lado a lado aleatoriamente como se fosse um muro imaginário, uma
parede de um museu histórico. A outra, aconteceu no mesmo dia ao me deitar e olhar
o lençol, pensei que poderia estampar nele os diversos graffites como um santo sudário.
De pronto, a ideia saltou do lençol para o tapete; por que não um tapete de parede
(tapisserie), algo mais consistente e espesso. Um delírio, mas algum dia
faça. Ruminei. Quem poderia fazer tamanho tapete? Custaria uma fortuna, quem sabe
um dia possa cobrar mais por minhas fotos, e então pagar um tapete desses. Seria
como se fosse a reunião de todos graffites que fotografei juntos numa collage de
tempos e autores distintos. Não consigo fazer collage, parece que mato a mim mesmo,
se tiver que recortar minhas fotos. Alucinou-me a ideia do muro tombado e de poder
caminhar sobre ele no chão, ou um ‘muro tapiçado’ dependurado numa parede. Seria
como uma retribuição, uma devolução, mas num endereço errado. Tenho que rir da loucura
que me atravessa. Quando o futuro é sombrio a negação apenas atrasa o inevitável
– e muitas vezes pode tornar nossa queda em desgraça muito mais difícil. Para aqueles
que lançam ilusões para tentar se consolar, os sábios nos aconselham a ler “a escrita
na parede”. A parede tecida, a escrita da parede tecida, quantas sugestões podem
se depreender da imagem de um muro e de todas suas possíveis derivações. Separação,
clausura, muro de lamentações, prisão, superfícies lisas, serenas, brancas, superfícies
torturadas, velhas, decrépitas, restos de amor, dor, asco, desordem, prestígio romântico
das ruínas, explosões, tiros, marteladas, gritos, ecos. A partir dessa ideia louca,
a surpresa mais sensacional: descobrir um dia de repente que minhas fotos dos graffites
haviam se convertido em muros. Não sei se agora devo conversar com o muro ou com o tapete. Seria como
uma reciprocidade amorosa, devolver os grafites fotografados às paredes do que foi
retirado dela. Agora, nos bulevares só há paredes imaculadas estéreis, brancas puritanas asquerosas.
Falo sobre os muros, mas não ecoa nos artistas, não reflete. Os artistas por mais
transbordantes que sejam estão sujeitos ao suporte, não precisariam estar mais atados
ao paspatur ou à moldura, ou a superfície da parede do museu, a falsa puritana
branca, ou de uma cor só. Não sei a quem engana, e por que não a parede
preta, fuliginosa, enrugada. Penso também em algo mais simples nesse momento, juntar
esses graffites e imprimir num único papel fotográfico, uma collage, que seria a
matriz para a tapeçaria. Quando valorizo o muro penso que no futuro haverá uma horda
de artista tentando transcender a moldura, voltando-se ao muro, mas nunca conseguirão
ultrapassar a arché do muro.
Dizem que minhas fotos dos graffites são imagens ‘em
abismo’ (Mise en abyme), porque são signos de signos, a chapa e o chapado, da torpeza do muro multiplicando
e estendendo-se; mas, porque uma vez que essas fotos sejam exibidas elas se tornariam
parte da parede, parede sobre parede. Vou transferi-las. Nunca entendi muito bem
o que querem dizer com abismo. Vou devolver à parede o que tinha roubado dela, sua
alma. Balzac já comentou isso, a fotografia rouba a aura. Os graffites serão impressos
sobre papéis fotográficos, depois serão redesenhados em tapeçarias que serão dependuradas
sobre horríveis paredes brancas. Gostaria de dependurá-las nas paredes e muros da
rua.
A cidade radiosa
Terça feira estive
no apartamento de Le Corbusier na rue Jacob, era um caos a pilha de livros
na estante, pilhas de papeis na mesa, tudo num cenário onde se misturavam pequenas
esculturas, pinturas suas em torno a uma lareira, uma confusão total. E, ele querendo
posar com aquele ar de intelectual escrevendo. Acho que preparou aquele cenário,
vai ver ele acha que a bagunça e a desordem são sinal de inteligencia. Não entendo
como aquela bagunça escondia um arquiteto tão racionalista e tiranicamente ordenado.
Algo não casava. Antes de fotografá-lo fez questão de exibir-se, e me mostrou um
plano horrivel para Paris, eliminava todas as ruas sinuosas, becos e vielas de paris,
tudo que eu gosto ele fez desaparecer com uma borracha, as paredes envelhecidas,
os bordeis, os cabarets, os bailes do Magic City, o Chez Suzy,
Le Monocle. A cidade dele não tinha lugar para os desejos, era puritana e branca, virgem, asexuada. Tampouco, havia mais
paredes para as crianças brincarem e fazerem
seus graffites. Só existiriam crianças docéis e educadas. Era asséptica, uma cidade
para ser vista, não para ser tocada. Mas, nem vista. Meus olhos ficaram enauseados só de ver. Fingi não ver o que eu via. Comentou-me
que doravante as crianças brincariam na cobertura
dos edifícios. Nem paredes havia para se encostar e fumar um cigarro, não havia
um amparo, não havia mais lugares escondidos.
Nada a ser descoberto, tudo estava doentiamente às claras, observáveis, controláveis.
Até as vespasianas haviam desaparecido, fiquei imaginando onde se poderia urinar
na rua, um pesadelo. Imaginei que, uma vez construida a sorte de gente não geraria.
Tragédia. Tudo era um tal de pílotis que erguiam os edificios acima do solo, e no nivel do chão
só havia as entradas dos edificios, os elevadores e escadas. Nem comercio havia
embaixo, muito menos gente. Embora no desenho formigasse. Não tinha nada para fazer alí
embaixo, ele achava que tinha. Os carros se afundavam na terra. Não parava de falar, parecia obstinado, disse-me que na proxima semana teria um encontro com o presidente Doumergue
para vender o projeto, se não conseguisse iria enviar uma carta para Benito Mussolini;
e se não desse certo também iria para América, para Buenos Aires, e Brasil, lá com
certeza comprariam qualquer idéia sua para modernizar os trópicos. As pessoas são como chatos, penetram na pele da gente e
enterram-se lá. A gente coça e coça, até sair sangue, mas não pode livrar-se permanentemente
dos chatos. Não podia fugir dali estava preso naquele labirinto da mesmice dele e de seus
edifícios. Aquelas torres repetiam-se infinitamente em seu desenho, a
perder de vista naquela perspectiva. Já estava assustado, imaginei que haveria pouco
trabalho para um fotografo nessa cidade, bastava fotografar uma quadra ou um edifício
e teria fotografado toda a cidade, tudo era igual. Não havia mais motivos para vagabundear,
era um labirinto sem nada para descobrir. Acho que as ruas e avenidas nem nomes
tinham, deviam ser letras e numeros. Certamente, todas as pessoas ali se asemelhariam
como aquelas monstruosidades verticais. Apenas movia a cabeça concordando só para
não perder o pagamento. Não via a hora de disparar a fotografia e ir embora dali.
Ao chegar a casa fiquei pensando que naquela cidade que cabia descabidamente
tres milhoes de pessoas havia algo de diabólico. O corvo (Le corbu) assim
era seu apelido, num só registro havia posto abaixo toda a história de Paris, consagrada séculos após séculos em suas paredes. Nessa
cidade ‘dele’ não haveria lugar para escrever a historia dos que não tem espaço para escrever. Ela deveria cheirar toda igual de cabo a rabo. Nesse mesmo
dia logo após dormir um pouco, resolvi sair para a noite fria e gelada, vi um grupo
de trapeiros, esses que vivem em trapos nas ruas dormindo lado a lado na Bolsa de
Comercio, em meio às palhas embaixo das
arcadas. Estavam com uma aparência horrível. Um deles tinha os cabelos que ia até os joelhos, e a barba rala até o umbigo. As unhas
pareciam garras e, nos braços e nas pernas aonde os trapos não chegavam mais a cobrir
o corpo, a pele caía em pedaços. Novamente me atormentou a visão da cidade radiosa,
radiantemente horrorosa de Le Corbusier, assim estava escrito no seu plano: Cité
radieuse, com toda aquela luz e sem uma parede ou cobertura para os miseráveis
se abrigarem da chuva, do frio e do sol. Certamente que embaixo dos pilotis não
iriam ficar. Como pode o poeta viver sem muros. Esse ilustre arquiteto parecia não
saber que um flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, pela cidade nua, sem
pregas; mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, por suas populações abandonadas,
a pobreza. É a realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo
‘captura’, como um detetive captura um criminoso. Parece que ele não vivia nesse
mundo, e tampouco conhecia a luxuria e a liberdade sexual das Nuits de Paris.
A radiosa era uma cidade diurna, repleta de sol, sem nada para rastrear, caçar,
nem de dia e de noite. A Paris de Le nuit
que amo é oposta à Cité radieuse, é a Ville sombre, ville noire. Gosto de sair à noite, beber, fumar opio de vez em quando,
ir ao Les Bals-musette; sair em busca das minhas presas. Sim, sou ‘o olho
de Paris’. Miller assim me chamou, e aceitei, mas preferiria ser o parfumeur
parisien.
Vampirar
Meu nome é Brassaï,
venho do Brasso, Transilvânia, terra do Conde Drácula, com muito orgulho.
Usei o pseudônimo de Brassaï para me lembrar sempre de minhas origens, por mais
longe que estivesse da terra. Acho que deveria ter trazido um torrão de terra para
colocar embaixo de meu colchão. Não me chamo e não atendo mais por Gyula Halász.
Não tenho boas lembranças de lá. Exceto as tetas exuberantes
leitosas de minha ama de leite. Ela reclamava, as vezes, que eu mordia e machucava
ao ponto de sangrar, mas eu gostava daquele sangue que se misturava ao leite enquanto
me contava estórias, sei lá de que e quem. Durante os meus primeiros anos em Paris,
começando em 1924 vivia à noite, dormia ao amanhecer, despertava quando o sol se
punha, caminhava a esmo de Montparnasse à Montmartre, buscava e ainda
busco as ruas mais escuras, as mais tortuosas com seus saborosos muros. Até então, a fotografia não me atraia, fui inspirado em me tornar fotógrafo
pelo desejo de traduzir tudo o que via na Paris noturna. Estava ansioso para penetrar
no outro mundo, este mundo maldito que descrevia Baudelaire em seus Paraisos
artificiais. O mundo secreto e sinistro de mafiosos, párias, valentões, cafetões,
prostitutas, viciados, invertidos e pervertidos.
Não é por acaso que Paris graças a sua fama traz gente como nós a Paris. É simplesmente um palco
artificial, um palco giratório de espetáculos. Por si só, não inicia drama algum, os dramas começam em outro lugar qualquer. Paris é simplesmente
um instrumento obstétrico que arranca o embrião vivo do útero e coloca-o na incubadora.
Berço de nascimentos artificiais. Balançando-se aqui nesse berço, alcoolizado, percebo
que cada um acaba escorregando de volta para sua terra: sonha-se em voltar para
a Transilvânia, Berlim, Nova York, Chicago, Viena, Minsk. E, Viena nunca é mais
Viena do que em Paris. Tudo é elevado à apoteose. Gostaria de escapar dos abraços
de Paris, essa ursa maior. Afastar-me dos cheiros da noite que me cativam até o
último glóbulo de meu sangue, e aspiram até a ultima fibra. Não consigo. Não resisto, estou totalmente dependente de meus vicios,
do voyeurismo e da obcessão por putas e fotografias, vicioso em perambular em ruas
e bordeis; voltar me arrastando para casa. Meu dia, quando tenho compromissos, começa
ás 14 horas. Chego a pagar para fotógrafos fazerem as fotos
que ilustram as matérias que escrevo. Não me acordo. Dou a desculpa para eles que
só escrevo as matérias e artigos à noite para o Brassói
Lapok, por isso tenho tanto sono.
A noite sugere e não se exibe, mas encontra-nos e surpreende
por seu estranhamento. Liberta forças que o dia não consegue revelar porque estão
dominadas pela razão. A beleza noturna não é o projeto da criação, mas a sua recompensa.
Busco congelar isso sem cessar. Ah! Paris de Nuit degusto nos lábios, vejo
sempre deserta e envolta em sombras e nevoeiro. Assemelha-se a uma mulher misteriosa
e aparentemente inacessível, intocável. Esta desertificação nebulosa que recrio
e busco, sempre provoca essa inquietante estranheza (unheimlich) que falou Freud.
A cidade que durante o dia é familiar aos seus habitantes, de repente se vê transfigurada
pela noite, ameaçadoramente sedutora, sinistra. Quanto mais iluminamos a cidade
mais familiar ela se torna, reconhecível e nada surpreende. Amo a noite, o equilíbrio
entre os sons e silêncio, os lampiões. Suas sombras revelam mais do que ocultam
antropomorfizadas pelas fontes de luz que as criam. É a mudez da noite,
só quem vive só a noite em sua solidão, sabe o que
falo. Enchi a cara de absinto, não tardou cair a pestana e dar de cara com Restif
de La Bretonne e eu gato no parapeito da Ile Saint-Louis. Na escuridão de
minha reverie ele escalava as paredes da Notre Dame como uma lagartixa cinzenta.
Juro que vi também o quasimodo saltitando de mãos dadas com Mac Orlan. Uma prostituta
seminua, cafetões jogando cartas e dados, como as conchas do tempo de François Villon.
A flanerie é para gente diurna e também alguns noturnos; ‘vampirar ‘ é exclusiva
das almas da noite; nada de poesia, só carne e sangue. Passe fome, mas saia nas
ruas, escute as teorias estúpidas da arte e da vida da boca dos bebados, saia com
todos os tipos de gente, não fique recluso. A cidade brota como um enorme doente
em toda parte, sendo os bulevares apenas um pouco menos repelentes, porque foram
drenadas de seu pus. Está cheia de gente bem arrumada aparentemente, mas louca e
desorbitada, é à noite que parecem e brotam dos esgotos com suas loucuras; que felicidade vê-los
retornarem. Sigo preferindo as ruelas ás avenidas. As fotografias que faço nos bordeis
me excitam cada dia mais. Não sei o que acontece comigo. Entrego-me cada noite mais
a luxuria, sacio-me só com fotografar. Comando o jogo, estabeleço como quero retratar a cena; eles
atuam e tornam-se minhas marionetes, ficam imobilizados, suspensos pelos fios do
tempo necessário. Ninguém respira, quando digo: agora! Dura o tempo de fumar um
cigarro, às vezes menos. Trago o cigarro enquanto a ‘boca-olho’ chupa luz. Não consigo imaginar
a Medusa sem boca. Entumeço, e me satisfaço com esse ato orgástico até as entranhas.
Não suporto o cheiro de urina de gato daquele bordel
que vou. Ontem havia mais de 10 gatos, contei onze num intervalo de duas horas por
todo o bordel. As meninas acariciavam, colocavam entre suas pernas; esfregavam na
sua vagina provocando, tentando excitar seus clientes. Outros se esfregavam e miavam
nas pernas dos clientes, que imediatamente chutavam. Aqui, as regras domésticas
são abolidas, mas surgem outras capitaneadas pela cafetona-mor. Tem clientes que
vão todas as noites, quase nem vivem em suas casas. Coitados, a solidão da casa
é uma tumba, gastam fortunas só para conversar e beber.
Há dois tipos de flaneur: o diurno e o noturno. O noturno não gosta de
multidões, o diurno sim, adora se perder nela como um tonto. Eu? Sigo preferindo
perder meus passos na escuridão, nos odores fétidos dos bueiros, fitar ratos e lesmas.
À noite e seu silêncio
realçam todas as imagens do mundo, os leves ruídos do bico de gás, o deslizamento
discreto da água corrente; tudo faz do feio mictório um pequeno monumento estranho
e delicado. Eu quero externar o interior, nada mais que o interior do mundo, o desejo.
A escuridão do interior considero-a mais maravilhosa do que tudo que existe, desconjuro
a dita flor do sol e sua hipocrisia, Heliópolis. Minha exterioridade é a interioridade
velada da noite, na multidão. O flâneur diurno estabelece sua casa, na escuridão
faço minha outra casa, secreta, cheia de pecados, minha amada: Psique. De
dia o flaneur, de noite eu o vampiro Brassaï que abraça e beija Paris. Não quero
só flanar como os demais poetas, quero mais: quero ser sugado, devorado. Esse trabalho
começa com o chamado da noite, devo sair. É preciso habitar a noite, é preciso sair.
O mote é ver e viver a liberdade
individual, a importância da experiência. Fome de viver ou viver na fome, não importa.
Sexo sem tabus é o que diz a noite de Paris, a expressão radical dos sentimentos
marginais, o Império do egoísmo do consumo; e também a vontade de ser conhecido
na multidão entre as almas da noite, assim é viver Paris nos anos 30. Todos os poetas
surrealistas dizem o mesmo.
Como um homem pode vaguear o dia inteiro com a barriga vazia, e ainda assim
ter uma ereção todas as noites. É um desses mistérios, que só podem ser explicados
pelo desejo, e com uma excessiva facilidade pelos “anatomistas da alma”. Em Paris
vive mais gente do que em qualquer outra cidade do mundo, seiscentas, setecentas
mil pessoas moram em Paris. As ruas e praças pululam de gente, as casas são atopetadas
do porão até o telhado. Não há um canto em Paris que não esteja cheio de gente,
nenhuma pedra, nenhum pedacinho de terra que não cheire a gente procriando.
Eu quero essa fotografia nesse momento. Não daquele modo tão inútil, brutal
como obtivera a fotografia da garota da Rue des Marais, essa tinha apenas
sorvido, chupado sua alma pra dentro da máquina, e com isso, destruído tudo. O que
realmente queria agora era sorver a fragrância da jovem atrás da muralha, extraí-la
como uma pele, fazer dela o meu próprio odor, levar pra casa na chapa. As pessoas
que acham que retrato Paris se equivocam, estão cegos. Quem vive à noite sabe que
o que eu quero mesmo é captar aquele momento do olor, o perfume, o cheiro que entumece
a alma. Mas, ninguém conseguirá re-sentir isso ao olhar uma foto minha, só eu. A
fotografia não tem cheiro, mas faz sentir, reviver até os sons mais longínquos.
Acordava ao anoitecer, farejava na direção de todos os pontos cardeais, só quando
a noite com seus supostos perigos haviam varrido os homens do dia é que me arrastava para
fora de meu apartamento e para rua. Estava seguro. Não precisava de luz para ver. Já antes, quando ainda caminhava durante o dia, com
frequência mantivera durante horas os olhos cerrados, só caminhando orientado pelo
nariz, guardando os lugares por seu cheiro. Não sei como esses fotógrafos conseguem
registrar o mundo sem cheiros, que tristeza parece que foram acometidos por um vírus
que suprime o olfato e o paladar. Doía-me a imagem viva da paisagem sem cheiro e
muito iluminada nesses retratos; retraços e regaços sem cheiros, sem alma. A fotografia
é um objeto de rememoração individual; não faz sentido para todos demais. Para agradar esses
demais é que se criou a categoria estética. Essas fotografias ofuscantes que exaltam
a luz me fazem mal, doem meus olhos. Só a luz do luar me ilumina.
A fotografia é a grafia da luz ou da escuridão? Talvez devêssemos chamá-la de
érebosgrafia, ou ainda nixgrafia. Para muitos as trevas é o terreno
dos fracassados e dos miseráveis, para mim não. Essa gente de heliopólis esquece-se que
viver no mundo da escuridão é também uma forma de estar no mundo, do outro lado.
E, que noturnamente preparamos o mundo para que esteja tudo igual quando amanheça. A luz do luar não conhece cores, só vagamente assinala os
contornos do terreno. Percorre o campo cinza-sujo cintilando de prata, e estrangulando
a vida. Esse mundo da fotografia, como que fundido em chumbo, no qual nada se mexe
nem mesmo o vento, hoje caiu como uma sombra sobre as ruas cinzentas; nada parece
viver ali, exceto os odores da noite nua. Não seguia nenhuma bússola, apenas meu nariz.
As fotos que fiz para o Sr. Baldini o velho tarado ficaram fantásticas. Coitado,
ficou logo com os olhos marejados, parado junto à mesa de trabalho, respirando.
Cerrou os olhos e pude ver nele despertadas às recordações mais sublimes. Depois me contou que se viu– caminhando
em Nápoles, jovem, por jardins à noite que exalavam cheiro de jasmim; viu-se deitado
nos braços de uma mulher com negras franjas, viu a silhueta de um ramalhete de rosas
no peitoril da janela pela qual soprava um vento noturno; ouviu pássaros cantando
e, de longe a música de uma taberna; ouviu coisas sussurradas bem pertinho do seu
ouvido. Longe dos excrementos de seiscentos mil parisienses no calor abafado e pesado
do alto verão. Esse sabia ver uma fotografia.
E a tísica não dava tréguas. É preciso enfiar-se na vida outra vez
para ter carne. O verbo tem que se fazer carne, a alma está sedenta, toda migalha que meus olhos veem, pego, devoro,
retrato, e apago. Se o que está acima de tudo é viver, então vou viver mesmo se
tiver de virar canibal. Parece que é isso que todos querem hoje, devorar uns aos
outros. Hoje depois de tanto andar não podia cheirar mais nada, estava quase sem respirar. Apenas escrevo algumas notas,
penso como pode um fotografo e ou um jornalista não farejar. Para se fazer fotografia
é preciso farejar antes de apertar o botão.
Hoje, Miller me explicou a escolha do titulo do Tropico de câncer. O
câncer, disse-me simboliza a doença da civilização. O ponto final do caminho errado,
a necessidade de mudar de rumo radicalmente para começar tudo de novo a partir do
zero. Parece que estamos aproximando da dobra, da inflexão e esse cheiro de sofrimento
vem da Alemanha, e de minha terra. Não quero ver. Aqui fiquei até o
início da Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas entraram em Paris, perambulando
por pensões vagabundas, bares suspeitos, e prostíbulos; entre outros ambientes nada
familiares, até a coisa queimar pra valer em Paris. Pobre Lutécia. O sol vai-se
pondo depressa. As cores morrem. Mudam de púrpura para sangue seco; de nácar para
bistre, de cinzentos frios e mortos para excremento de pombos. Noite após noite,
eu voltava à velhos trechos da cidade, me esgueirando dos guardas, e atraído por
certas ruas leprosas que só revelavam seu sinistro esplendor quando a luz do sol
se esvaía. Quase toda noite mostrava meus documentos. Nas ruas, as prostitutas prontas
para os alemães que começavam a ocupar seus postos. Há os que se entregam como prostitutas
e os que resistem; não sei em que situação estou, acho que não dou a devida importância ao que acontece, pesa-me a consciência. Nas ruelas laterais às Rues Saint-Denis e Saint-Martin,
em meio ao desespero da fome, as pessoas viviam tão amontoadas, as casas pareciam
estar mais perto umas das outras como nunca, com cinco, seis andares. Não conseguia ver o céu pela infinidade de roupas dependuradas
nas sacadas, embaixo no chão o ar circulava em canais úmidos, repletos
de odores a peixe. Misturavam-se tudo, odores de pessoas e de animais, vapores de
comidas e de doenças, de água e pedra e cinza e couro, de sabão; e de pão recém-assado
e de ovos fritos no azeite, de massas e de latão esfregado até o branco, de salva
e cerveja e lágrimas; de gordura e de palha molhada e seca. Queria registrar, mas
abandonei a ideia, ardia demais. Milhares e milhares de odores, milhares e milhares
de quadros, frames, constituíam para mim um mingau invisível que enchia as
gargantas das ruazinhas volatilizando-se por cima dos telhados. As pessoas que viviam
nesse mingau já não cheiravam mais nada em especial; nem pareciam mais gente se
comparadas com o corpo da riqueza.
Ao entrar nos bares e prostibulo, a primeira coisa é olhar se tem espelhos,
não porque tenha medo. Os espelhos funcionam como fotografias reduzidas, miniaturizadas,
contidas no campo da fotografia principal, implicam numa espécie de decomposição da realidade por um procedimento ótico e, depois, recomposto e reescrito. Fascinam,
enfeitiçam, me torno presa deles. Evito aparecer refletido nele. De inicio busquei
a fotografia apenas para o próprio prazer. Nunca gostei da luz, os archotes artificiais
são a desgraça da imagem, o sepulcro do olho, mas às vezes utilizo. Os labios sentem mais a noite, quando o capullo
desabrocha.
Havia farejado todo o bairro entre Saint-Eustache e o Hotel de Ville,
na escuridão. Não gosto de luz artificial, só quando se emiscui na neblina.
A estátua do marechal no nevoeiro atesta isso, quando fotografei hoje. Desconfio
das luzes da cidade, e também das cidades muito iluminadas, aquelas que não enchergo
as estrelas. Paris é assim super iluminada, não é à toa seu título de ‘Cidade luz’,
por isso busco meu sombrero. Depois que os nazi invadiram Paris, evito usar até
um flash. Está proibido. Com nazistas
ou sem nazistas, as pessoas seguem saindo a noite; até porque eles adoram nossas
prostitutas. De repente, surgindo do nada na rua apareceram dois amantes; de poucos
em poucos passos paravam e abraçavam-se. Quando não pude mais segui-los com os olhos,
segui o som de seus passos. Ouvi a parada abrupta, e depois o andar lento e serpeante.
Lambi a parede a meu lado de tão excitado que estava. Podia sentir o abandono orgástico
de seus corpos quando se encostavam a parede. Ouvia os sapatos rangerem quando os
músculos se retesavam para o abraço. Atravessaram a cidade andando ao acaso em ruas
tortuosas e sinistras, foram em direção ao canal vidrado onde se dissolveram na
água preta como carvão.
Um dia topei com mais um escritor, estava escrevendo sobre o submundo de Paris
e suas prostitutas dos bordéis baratos. Havia muito deles. Perguntei se ele queria
posar para mim, já que se vangloriava tanto das noites e das
prostitutas e de seus feitos, imaginei que deveria ter um membro descomunal. Sugeri
que poderia posar com as calças abaixadas, e em outras posições. Riu. Disse-me:
‘como aqueles anõezinhos magricelas, parecidos com “boys”, e mensageiros de hotel,
que a gente vê ocasionalmente em cartões-postais pornográficos nas vitrinas de lojinhas?! Os misteriosos fantasmas que habitam a Rue de Ia Lune
e outras áreas malcheirosas da cidade’. Não gostei muito da resposta irônica, apenas ri. Garanti que as fotografias
eram para uma coleção estritamente particular e destinada a um degenerado em Munique.
Aí, ele aceitou. Aliás, gosto dessa palavra degenerado, da arte degenerada. Quando
não estamos em nossa cidade podemos permitir-nos a essas pequenas liberdades, particularmente
por motivo tão digno como o de ganhar o pão cotidiano. Tornamo-nos amigos. Não íamos
aos locais de diversões conhecidos pelos turistas, mas à pequenos estabelecimentos
cuja atmosfera era mais agradável, onde podíamos jogar uma partida de cartas à tarde,
antes de iniciarmos o trabalho. Miller era um bom companheiro. Mostrei-lhe a cidade
de alto a baixo, e os muros particularmente e o sentimento que tinha em relação
a eles. Ficou chocado. Contei-lhe, também sobre Goethe, os dias do Hohenstaufen,
e o massacre dos judeus durante o reinado da Peste Negra, falei de Dante, Leonardo
da Vinci, e Rembrandt, do matadouro de Villette. Exploramos inteiramente o 5.°,
o 13.°, o 19.° e o 20.° arrondissements. Mas, confesso que às vezes Miller e Perles me entediam.
As ruas são meu refúgio, parecem ser a saída para o encarceramento doméstico.
Nenhum ser humano, homem ou mulher pode compreender o encanto das ruas até ser obrigado
a procurar refúgio nelas, viver nelas todo o dia, faze-las sua casa; até ter-se
tornado uma palha jogada para cá e para lá pelo próprio zéfiro que sopra. Passa-se
ao longo de uma rua num dia invernoso e, vendo um cão à venda, fica-se comovido
até às lágrimas, mas não corre uma lágrima ao ver um ser humano. Olho para o outro
lado da rua, alegre como um cemitério ergue-se uma miserável construção que se intitula
“Hotel du Tombeau des Lapins”. Isso faz a gente rir. Até, a gente notar que
há hotéis por toda parte, para coelhos, cães, piolhos, imperadores, ministros de
gabinete, agiotas, abatedores de cavalos e assim por diante. E quase um em cada
dois se chama Hotel de L’Avenir. E para quem não tem onde morar...à sarjeta.
Acordei cedo. Para eles, um dia bonito – até agora. A Rue de Buci está
viva, fervilhante. Os bares e cafés todos abertos e as esquinas cheias de bicicletas.
Todos os mercados de carne e hortaliças em pleno funcionamento. Passo pela praça
de Furstemberg. Parece diferente agora, ao meio-dia. Outra noite, quando
passei por ela, estava deserta, desolada, espectral. No meio da praça quatro árvores
pretas que ainda não começaram a florir. Árvores intelectuais, alimentadas pelas
pedras do calçamento. À noitinha, de vez em quando, caminhando ao longo das paredes
do cemitério, topo com as odaliscas fantásticas de Matisse amarradas em árvores,
ensopadas de seiva e as cabeleiras emaranhadas. Meio-dia em ponto
e aqui estou eu em pé com a barriga vazia, mais uma vez, na confluência de todas
estas ruas tortuosas que rescendem cheiro de comida. Diante de mim está o Hotel
de Louisiane, velho e sombrio, conhecido dos maus rapazes da Rue de Buci.
Hotéis e comida, e eu caminhando de um lado para outro como um leproso, enquanto
caranguejos vão me roendo as entranhas.
Fomos todos jantar juntos Breton, Péret, Henri Michaux. Benjamin Péret acabou
de voltar do Brasil estava entusiasmadíssimo, quiçá, um dia tenha oportunidade de
ir ao Brasil pela Harper’s Bazaar, e conhecer os famosos
rituais de macumba e vodoo que tanto fala Péret. Apresentaram-me Raymond
Queneau, pediu-me para indicar-lhe lugares incomuns para crônicas em L’Intransigeant.
Não quis nem comentar por onde andava.
Enquanto caminhava sem rumo por aquela enlameada ruela salpicada de sangue,
fragmentos do passado também se destacavam e flutuavam languidamente diante dos
meus olhos, insultando-me com os mais horrendos presságios. Vi meu próprio sangue
derramado, o lamacento caminho manchado. Por amigos tinha as ruas, e as ruas falavam-me
naquela linguagem amarga e triste composta de miséria humana, aspiração, remorso,
fracasso, esforços desperdiçados ao traçar desvios. É essa espécie de crueldade que está encravada
nas ruas. É isso que olho nas paredes e me aterroriza,
quando de repente nossas almas são invadidas por um pânico doentio, ao
contrário dos flaneurs que andam a esmo de dia como caipiras. É isso que dá aos postes
de iluminação suas contorções vampirescas, que faz com que eles nos chamem e nos
atraiam para seu abraço estrangulador. É isso que faz com que certas casas pareçam
as guardiãs de crimes secretos e suas janelas escuras parecerem as órbitas vazias
de olhos que viram demais. É essa espécie de coisa, escrita na fisionomia humana
das ruas, que me faz fugir quando no alto vejo de repente escrito Impasse Satan.
Não quero que tudo que está fora esteja dentro,
meu olho não vê tudo, não quero ver tudo, apenas sentir. A visão atrapalha. Me dá muito trabalho seccionar
a cidade, tudo tem que estar ao alcance de meu abraço até os cheiros irre-trait-áveis. Incidência e coincidência é disso que se trata a fotografia.
Essa visão intuitiva que caracteriza a fotografia não vem meramente do tato, mas
ela se torna contato, abraço; é de sua natureza mesmo, absorver as pessoas e o mundo.
Há anos me engano com a clareza. Ultimamente, tem sido impressionante
como admiro o que não consigo ver numa fotografia. Quero ver a escuridão física
real, é muito emocionante ver a escuridão novamente retratada. É ela que na verdade emoldura
o que pode ser visto; o contexto para cada imagem é a própria noite, o negrume.
As imagens dos jogadores nos mundos secretos de Paris é iluminada momentaneamente
pelo olhar que eles buscam na câmera, mas ameaça escurecer a qualquer momento.
A cidade parece diferente à luz da madrugada, as coisas correm pacificamente
durante um mês ou mais, mas nem sempre. A vizinhança agradava-me, particularmente
à noite quando sua esqualidez e lugubridade se faziam sentir. A pequena Place, tão encantadora e tranquila ao crepúsculo,
assumia o mais desolador e sinistro aspecto quando caía a escuridão. Havia ali,
aquele comprido e alto muro fechando um dos lados da prisão, contra o qual sempre
se via um casal abraçando-se furtivamente – muitas vezes sob a chuva. Era deprimente,
mas ao mesmo tempo excitante, ver dois amantes apertados contra um muro de prisão
sob a melancólica luz da rua; como se tivessem sido levados até os últimos limites.
Ele embaixo do sobretudo reteso sobre o mal tempo perfurava-a como se perfurasse
o muro. Do outro lado, a coisa era deprimente mesmo.
A prisão, pobre Genet
Jean Genet chegou
ao meu apartamento na rue du Faubourg Saint Jacques para ser fotografado.
Entraram ele e seu namorado como dois autômatos; ele foi logo para a janela olhar.
Sabia que não podia mais desprender-se dela, era também mais um voyeur. Ficou em
pé observando o pardal que bicava excremento fresco. Aproximei-me para ver o que
bisbilhotava. Então esbarrou sua mão sutilmente em minha bunda, fiz que não houvesse
percebido. Seu namorado se aproximou. Não se contentando, assim que pode passou a mão no bulto do namorado. Disse
com um tom apertado: aqui do apartamento posso ver a Prisão da Saúde, desde cima.
Genet dirige-se ao namorado, com seu cabelo abrilhantinado, parecia um pirralho
nazista. Não tá vendo?! Não tá vendo, disse ele. O menino não reagia. “Mas, afinal”, disse
Genet, “você não o reconhece? É a Penitenciaria Saúde! – Eu só a conheço
de dentro para fora!”, disse ele. Nossa senhora das flores!
Contei-lhe que, numa noite da ocupação pude testemunhar uma rebelião da janela.
Foi horrível, um espetáculo macabro. A prisão inteira caiu nas mãos dos insurgentes.
A repressão chegou só ao amanhecer com a ajuda dos soldados alemães. Vinte e um
líderes foram fuzilados.
Fotografei Genet encostado na parede, dobrou as mangas da camisa até em cima,
abriu um pouco para exibir seu peito; tinha os olhos tristes. Genet era baixinho
e fedia, felizmente o retrato não exalaria nada. Escrevia muito bem, quem dera puder
fotografar a metade do que ele escreve. Disse-me que estava fazendo um filme, e
se chamaria ‘Um canto de amor’ (Un chant d’amour), era sobre sua estância
na prisão e de seus amores lá dentro. Iria registrar a história de um pequeno buraquinho
no qual passava a fumaça de um cigarro através dele, de uma cela para outra onde
estava seu amado. Registraria os graffites na parede, essa seria a abertura do filme.
Sussurrou-me ao ouvido, que seu namoradinho era um
ignorante, mas se comportava reservadamente como uma vadia durante todo o tempo
que estava ao seu lado. Olhando-me profundamente nos olhos, disse que também buscava
a superfície das paredes só que na prisão; buscava um graffite, qualquer registro
em busca do traço fraternal de um amigo. Eu nunca soube o que poderia ser exatamente
a amizade, que vibrações a amizade de dois homens constroem em seus corações, e
talvez nas suas peles, na prisão. Genet ansiava em cada prisão ter uma amizade fraternal
sempre com um homem da sua idade, bonito, que tivesse completa confiança e que fosse
cúmplice dos seus amores, dos seus roubos e dos seus desejos criminosos. Porém,
disse Genet: não encontrei jamais senão algumas raras palavras gravadas sobre o
gesso com um alfinete, fórmulas de amor e de ódio, geralmente de resignação. Falou-me
depois, que o cheiro da prisão é um cheiro de urina, formol e de pintura. Em todas
as cadeias da Europa que esteve reconhecia que este cheiro era o cheiro do seu destino.
E que, todas as vezes que ia para a prisão procurava nas paredes os traços das suas
prisões anteriores. Ou seja: seus desesperos anteriores, remorsos, desejos que outro
detento tenha ‘gravado’ para ele.
Quando descemos os três, do meu pequeno apartamento de dois quartos, em direção
a um café cruzamos com Samuel Beckett, era quase um vizinho. Mais adiante topamos
com Blaise Cendrars que morava logo atrás da prisão, passeava com seu asqueroso
cachorrinho na Avenida Aragão. Reconheceu Genet, mas não lhe dirigiu nenhuma palavra.
Disse-me, havia acabado de reunir numa coletânea uma série de artigos que havia
publicado no jornal Paris Soir, sobre um famoso criminoso no Brasil. Estava
enfeitiçado pelas histórias incríveis que descobriu quando esteve lá em 1927.
Senti cheiro de maldade noir. Queria sair dali, mas Cendrars insistia
em detalhar a vida do criminoso. Teve dezenas de passagens pela polícia por fraude, chantagem, roubo e vadiagem, disse ele. Numa dessas detenções, em 1920 na prisão de Ilha Grande,
começou a ler a Bíblia nos intervalos da praxiterapia; durante a noite
teve a visão de uma mulher de longos cabelos que o escolhera como o Filho da Luz. Os olhos de Cendrars
arregalaram-se. Segundo a visão, deveria tatuar-se e tatuar meninos, ainda que com
emprego de força física, com as letras D C V X V I, que significava Deus, Caridade,
Virtude, Santidade, Vida, Ímã da vida. A tatuagem deveria servir como talismã para aqueles que a exibissem no corpo.
E, tatuou também a frase ‘Eis o Filho da Luz’ em seu peito como se fosse numa parede; e em toda
a circunferência de seu tronco as letras D C V X V I. Uma loucura, reforçou. Você
tem que ver, tenho essa foto, Brassaï. ‘Tatuou e assassinou muitos jovens’. Apoderou-se,
também do diploma de um dentista, abriu um consultório no Centro do Rio de Janeiro,
e extraia sadicamente vários dentes sadios daqueles coitados que buscavam
sua assistência. Cendrars ria de nervoso, a esta altura já quase gritava. Escreveu
também um livro que chamou As revelações do Príncipe do Fogo, com mensagens incompreensíveis tiradas das experiências oníricas, uma escrita
fantástica surrealista. Não foi para prisão, foi declarado psicopata,
pervertido, homossexual com pulsões sádicas. Estava agora no manicômio no Rio de
janeiro. A essas alturas achei que aquela conversa não era por acaso, estava tentando
humilhar Genet. Só podia ser inveja. Fascinante e assustador; disse-lhe, mas, estamos
apressados para um encontro. Boa tarde. Lembro que abracei o ombro do Genet, estava
de cabeça baixa e demos as costas.
A micarena
Tzara me confessou
estar agitadíssimo. Hoje a noite vai pra Micarena (Mi-carême), o famoso baile
dos invertidos e travestidos de Paris, no antigo Parque de diversões Magic City.
Prepara sua fantasia a uma semana atrás, está numa felicidade só, olha e se reolha
no espelho. Esses bailes agitam toda Paris, me avivam por sua variedade de gente,
a alegria dilacerante que vivem naquelas poucas horas como borboletas em sua curta
existência, como se o fim do mundo acontecesse atrás da porta da saída. Acontecem
desde os anos 20, frequentam ricos e pobres. Enfim, hoje é a noite da Micarena,
a grande festa gay, dos invertidos e dos tapetes, as mulheres masculinizadas.
Extrapolam a descrição do capitulo ‘Sodoma e Gomorra’ de meu amigo Proust. Não há
preconceitos de idade, raça ou classe; só importa o carinho e, naturalmente o tamanho
do prazer. Encontro muitos dos frequentadores anônimos da noite, um momento de muita
alegria quando se reconhecem, outros se esquivam de serem reconhecidos mesmo embaixo
de suas mascaras. Magic City foi construída em 1900 no terreno antigamente
ocupado pelos militares pelo dono da Samaritaine, Sr. Ernest Cognacq, ficava duas quadras da Eiffel.
Mas, desapareceu em 1926 por causa de um loteamento para um bairro novo. Em fevereiro
de 1934 Magic City foi fechado por decisão das autoridades. Após o encerramento
do parque de diversões, restou apenas esse grande salão de dança, onde antes dançavam
tango mal bailado. Esse salão lindíssimo acomoda mais de 3.000 pessoas e é onde acontece a Micarena, parte da lenda da vida noturna
parisiense. Até então, as mariquitas de Paris só se reuniam em festas particulares,
evitando a perseguição policial. A única exceção são essas
festas de carnaval que são permitidas aos ‘homens’ saírem fantasiados de mulher.
Depois da Primeira Guerra, esses bailes foram se naturalizando e até o Pigalle já conta com seus primeiros bailes dos invertidos.
Frequentam marinheiros robustos, trabalhadores, prostitutas, homossexuais, masculinos
e femininos, todos em busca do prazer que um corpo pode oferecer. Uma fraternidade
imensa calorosa e impulsiva. Nesse ano, o anuncio da Micarême mostra uma
forte pressão sobre a direção do Magic-City, avisando seus clientes que assistirão
a um baile à fantasia muito alegre e de bom gosto, mas os homens disfarçados de
mulheres não serão admitidos. A proibição das travestis parece marcar o fim da era
da prosperidade dos bailes homossexuais na Cidade Mágica. Mas, Tzara não
deu a menor importância, disse que ia levar sua fantasia na bolsa e chegando lá
“ia se montar”, já havia combinado com suas amigas.
Preparação
Diante de cada pessoa,
de uma cena encontro uma solução original até absurda. Tive que esperar os trapeiros
dormirem e pararem de coçar suas picadas de piolho para retratá-los. Todos sabem
que estou fotografando-os, não fotografo sem cumplicidade, a maioria das fotos revelam
claramente à câmara sua sedução
e petrificação. Quero que sejam completamente cientes do ato do qual participam
expondo a cumplicidade amorosa. Prefiro encoraja-los a serem desajeitados, isto
é, posar. Forçar o modelo a se comportar como se o fotógrafo não estivesse lá é
realmente fazer representar uma comédia. O natural não é esconder essa presença.
O natural nessa situação é que o modelo pose honestamente. Muitas dessas cenas com
bandidos e as prostitutas fiz com a cooperação deles. Meus amigos me admiram, como
alguém que conhece a pecaminosa e secreta Paris. Naquela época, inicio dos 30, comecei
usando equipamentos pesados e volumosos, uma camara
fotografica que utilizava placas, tinha que carregar pelas ruas às vezes 24 quadros,
placas. Esse peso me obrigou a ser racional e econômico ao extremo, e pensar com
cuidado antes de fazer qualquer foto. Como nem sempre se chegava de carro até o
local, era preciso carregar todo o equipamento: uma sacola de couro com a câmera
e parte das chapas, o back com o resto das chapas e mais uma sacola com as
objetivas. Parecia que carregava o proprio caixão. Então escolhia o local para armar
a câmera e também a objetiva a ser usada, pois não havia como ampliar as chapas.
Fazia então negativos, que eram copiados. Não havia ampliações. As cópias eram no
tamanho da chapa original. A questão é tratar desde o começo de não fazer erros,
é preciso ser exato. Infelizmente, assim se perde a espontaneidade e a vivacidade
da fotografia, mas até prefiro o exibicionismo de posar ante a câmera do que capturar
suas almas sem perceberem. Esse antigo processo é diferente agora dos rolos de filme
em que o contato se perde. Assim conseguia também o efeito de invertido fotográfico
nos graffites.
Aquele cheiro de creolina impregnado no piso misturava-se com o da urina de
gato. Não sei como podiam estar naquele quarto
do bordel, não dava sequer
para olhar os lençóis. Os azulejos caídos
na parede, um enorme furo no chão dava pra ver o quarto debaixo. Havia um armário
velho com espelho, resolvi colocá-los na frente sem deixar ver seus rostos, parecia
ser o único lugar fotografável. Sugeri a ela ficar nua na minha frente à esquerda
com as nadegas voltada para o espelho; ele também na minha frente em primeiro plano
à direita próximo ao espelho numa posição muito particular, onde o espelho não refletia
seu rosto. Estavam anônimos. Tive que montar o peep show rapidamente, o cheiro
era insuportável. Os espelhos me atraem, são uma espécie de terceiro personagem. Os braços dela eram muito alvos e as mãos estavam amarelas
das cascas de nectarinas cortadas ainda sobre a cama. Estando próximo a ela, aspirava
agora o seu odor sem qualquer mistura, tal como subia de sua nuca, dos seus cabelos,
deixando-o fluir para dentro de mim como uma brisa suave. Abrí o diafragma. Tudo
tinha de ser reduzidos à imobilidade, e isso de modo tão súbito que nem sequer chegassem
a ter medo ou a resistir.
O publico verá somente imagens ao ver as fotos; eu, entretanto, rememorarei
somente o cheiro que me transportará para além daquela pálida imagem. O perfume
vive no tempo; tem a sua juventude, a sua maturidade e a sua velhice. A foto é só
velhice, uma mumificação do instante. Na fotografia tudo vira mais ou menos falsidade,
torno o verdadeiro momento numa artificialidade. Para capturar aquele instante imaginado
ou real sou obrigado a paralisar os outros, o mundo. Suspender a respiração, construí-lo
artificialmente até impregnar na chapa. Algo nesse processo se perde, e algo se
ganha. Uma vez capturada, posso outra vez respirar. Um dia esse exercício da respiração
provavelmente vai desaparecer. Tudo que está à volta se vê tragado quando abro a
lente para a absorção da luz.
Le monocle
Parece que virou moda
falar e escrever sobre prostitutas, michês e pederastas. Prostitutas e vida livre
parecem sinônimo de modernidade e erotização da cidade moderna. Todo meu trabalho
dependeu da deambulação por Paris. Percebo que o sentido privilegiado da deambulação
urbana, a flanêrie tem sido a visão base do poder masculino, e da sua posição superior na hierarquia sexual. As recatadas esposas
burguesas não podem vagabundear muito menos colocar seu corpo a serviço do prazer
dos outros, ou a seu próprio prazer. Só as prostitutas podem
caminhar à noite, talvez seja isso que me atraia também. A prostituta é uma das
poucas presenças femininas que pode andar a noite sem um homem. A mulher da rua,
a mulher de rua. Quando um homem estrangeiro chega à cidade e conquista uma mulher, simultaneamente conquista
a cidade. Mas o caráter da prostituição mudou muito. A liberação sexual a privou
dos jovens. [...] E as pessoas respeitosas que ainda montam sua facção nas calçadas
só atraem velhos, não amados, solitários, estranhos, viciados.
Nunca tinha visto-a assim, seus olhos pareciam nadar em esperma, estava bêbada
de tantos pedidos e elogios que lhe faziam. Aquela noite o corpo de balé não valia
muito e nem a dança da Conchita. Mas, seu corpo esguio e seus seios morenos firmes
salvaram a noite. Mais uma vez, a mulher enorme da portaria não tinha mentido: a
gente conseguiu o que pagou, e foi bom.
Paris a capital do beijo. Parece que todos os apaixonados se beijam nas ruas.
A indulgência de seus habitantes para com os casais de namorados é surpreendente,
o beijo na boca não é proibido em Paris, coitados daqueles que não tem namorado
ou namorada. Gosto de retratar esse momento mágico precisamente de um casal prestes
a se beijarem. São várias as imagens de casais que retratei, ou até mesmo de trios.
Paris, a velha e doce Lutécia parece ser sexualmente livre, permissível, onde tudo
é possível. Os prazeres de Paris a noite.
Ontem aluguei a orelha de Miller. Nossos lugares de repouso favoritos eram as
áreas lúgubres como Place Nationale, Place dês Peupliers, Place Contrescarpe,
Place Paul-Verlaine. Muitos desses lugares já me eram familiares, mas agora
eu os via todos sob uma luz diferente, dado o raro sabor de sua conversa. Se hoje
eu descesse casualmente a Rue du Château-des-Rentiers, por exemplo, aspirando
o cheiro fétido dos leitos de hospital que o 13.° arrondissement exala, minhas narinas
sem dúvida abrir-se-iam de prazer, porque, misturado com aquele cheiro de mijo velho
e formaldeído, haveria os odores de nossas viagens imaginárias através do matadouro
da Europa que a Peste Negra criara. Por intermédio do Miller fiquei conhecendo um
indivíduo de mentalidade espiritual chamado Kruger, que era escultor e pintor. Kruger
gostou de mim por alguma razão; tornou-se impossível livrar-me dele após haver descoberto
que eu estava disposto a ouvir suas histórias “esotéricas”. Há pessoas, neste mundo,
para as quais a palavra “esotérica” parece atuar como licor divino, como, para Herr
Peeperkorn de “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Kruger era um desses santos que
se desencaminharam, um masoquista, um tipo anal cuja lei é o escrúpulo, a retidão
e a consciência, mas que num mau dia faz um homem engolir os próprios dentes com
um soco sem o menor escrúpulo. Parecia pensar que eu, justo eu, estava maduro para
passar a outro plano, “um plano mais alto”, como ele dizia.
Miller nunca quer sair comigo para o bordel, com exceção daquela primeira vez
que o encontrei, que pedi para ele baixar as calças e posar para mim. Fizemos muitos
passeios noturnos juntos, mas na hora que convidava para ir ao bordel, ele ia para
casa; penso que continua achando que vou convidá-lo mais uma vez para posar para
fotografias pornográficas. Nem no Monocle, um bar lesbiano, cheio de gente,
ele quer ir mais. O “templo do amor sáfico”, em Montparnasse. Le Monocle
tem um cheiro característico de uma falsa masculidade, de lésbicas exóticas que
usam o cabelo curto e se perfumam com cheiros estranhos, mais como âmbar ou incenso,
do que rosas e violetas. A fotografia das pessoas em si era para mim indiferente,
tratava-se de uma fotografia que qualquer um podia fazer ou imitar. O que ambicionava
ali era a fragrância de certas pessoas, daquelas extremamente raras que inspiram
e exalam amor. Essas são as minhas vítimas prediletas. Vivem o amor impossível,
e dentro dessa impossibilidade vivem o possível. Algumas mulheres vão vestidas como
homens, totalmente masculinos na aparência, tanto é que à primeira vista me confundia
sempre. Depois de muito frequentar já conhecia muitas delas. O que mais gosto do
Le Monocle é alegria e a felicidade reinante no
ambiente, até mesmo nas noites mais difíceis. Mesmo
com temporal, lá estavam ‘eles’, os tapetes, quase todas as noites. Le Monocle era quase como
a outra casa para todos nós. Não só para elas, para mim também. Adorava ver quando
se beijavam e se entregavam nas caricias dos lábios. Acho que ontem vi Gertrude
Stein.
A mulher está presente na origem da fotografia, posa congelada enquanto a maquina
devora. As prostitutas e as miseráveis sempre foram o objeto dos voyeurs
e dos pintores, o modelo nu, as que se desnudam, posam para os homens. Não faço
diferente. A mulher que posa nua e se petrifica ante o olho mecânico é Ló, a mulher
de Abraão. Penso loucamente que a fotografia é um olhar condenatório que se volve
para trás, para o passado, um olhar cristão condenatório salinizante, semelhante
a Ló por ter escolhido Sodoma. Quanta religiosidade existe por
trás da fotografia. Miller já admitiu que algumas vezes se prostituiu para ganhar
a vida, na América.
Por trás desse mundo em preto e branco do Le Monocle havia musicas alegre,
muita fumaça, profusões de perfumes, em meio a gargalhadas. O mais engraçado que
quando solicitava para fotografar os casais, eles, elas se transfiguravam automaticamente,
ela o senhor no caso assumia um ar severo, o mesmo ar de um homem que possa, não
sorri, ficam serias e até carrancudas e com ar de maldade. Quem vê essas fotos imagina
que Le monocle é algo entediante. Fico pensando como similarmente a maquina
e fotografo podem travestir o mundo, e talvez isso é o que me fascina na fotografia,
transformar o mundo sem mudar nada. Transgeneros? Mas todos fazem gênero na frente
da lente. As mulheres se vestiam como homens; mas algumas estavam vestidas com roupas
femininas; os smokings indicavam o estado de luto dos machos. Me atrai a escuridão
dos mundos noturnos, nos quais frequentam as lésbicas, essas mulheres que encarnam
a masculinidade, tudo parece inautêntico em relação à estranheza e à heterossexualidade.
Ao observar as mulheres dançando juntas no bar: pensei em Marcel Proust, de seus ciúmes, de sua curiosidade doentia
sobre o pedido estrangeiro, certezas de Gomorra. Briga por ciúme. Essas situações
em ambientes fechados muitas vezes não eram menos tensas, e muitas vezes mais apertadas
ainda para um fotógrafo com um tripé.
Possuir uma puta é como entrar nas entranhas da cidade,
percorrer seu corpo enquanto fendas. Miller me dizia que ter uma namorada prostituta
era uma demonstração de exibição de conhecer a cidade. Ela é por um lado a chave
para conquistar a cidade, mas por outro a impossibilidade de uma possessão absoluta,
escapando frequentemente ao indivíduo. A figura da prostituta é parte integrante
dessa paisagem urbana, sendo ela uma forma de comunicar-se com a cidade, principalmente
à noite. Erotizo Paris cada dia mais, confirmando a fama das prostitutas francesas
desde o século XIX. Paris não só das prostitutas conhecidas mundialmente, mas a cidade da liberdade sexual, da
tolerância, das praticas amorosas de toda espécie. A cidade é também uma erotização
desse corpo social. Nunca vi um lugar comparável à Paris. Assim que a mulher perde
um dente da frente, um olho ou uma perna, cai na farra. Na América morreria de fome
se não tivesse outra coisa a recomendá-la além de uma mutilação. Aqui é diferente.
A falta de um dente, um nariz comido ou um útero caído, qualquer infortúnio que
agrave a feiura natural da fêmea, parece ser considerado como condimento, um estimulante
para o esgotado apetite do macho.
Miller só escreve sobre vaginas, nádegas, seios, vermes, todo tipo de asco; não sei de onde inventa tanta
bobagem. De uma breve aventura faz um livro, seus 15 cm peniano, um osso de 15 cm
como ele mesmo diz, não justificam tanta tara, acho que inventa tudo isso em seus
romances. Não faz nem a metade. Seu mundo parisino
ainda é muito restrito a suas prostitutas, e sempre sem um tostão. Paris é como
uma puta, a distância parece arrebatadora, e você mal pode esperar até tê-la nos
braços. E, cinco minutos depois você está vazio, desgostoso consigo mesmo. Sente-se
logrado. O labirinto moderno da capital está associado à figura da prostituta; com
o surgimento das grandes cidades, a prostituição passou a possuir novos arcanos.
Entre os primeiros, um deles é o caráter labiríntico da própria cidade. O labirinto,
tem que tornar-se parte da carne e do sangue do flâneur, e a ilusão pode fazer o
indivíduo perder-se, quando pensou que encontrou o que buscava: o amor. Os prostibulos
em sua maioria por mais vulgares que sejam procuram sempre ter mecanismos que permitem
um homem entrar e sair sem nunca ser visto. Criticam-me que as mulheres que fotografo,
são um objeto passivo do desejo sexual machista na fotografia, e que me escondo
desse teatro que monto ficando atrás da câmera. Gilberte se referiu a isso como
uma espécie de “auto apagamento”, mas acho que isso funciona como uma espécie de
assinatura minha, quer pelos temas recorrentes, como a noite, a cidade ou os graffite.
Para meus amigos surrealistas esses espaços dedicados
à prostituição adquirem grande importância na cidade moderna; fazem parte das inúmeras áreas na cidade
onde os homens encontram a sua liberdade fora da vida burguesa, e os artistas seu
ambiente, agora mais do que nunca longe da rigidez dos lares mofados. As putas são
as protagonistas dessa cidade secreta a que nem todos têm acesso. Nesses ambientes
muitos possuem um aroma humano essencial, sudorento e gorduroso de queijo azedo,
um tema em si bastante nojento, que impregnava igualmente todos os homens. Paris
é a grande babilônia, quem quer saber até que ponto estamos em suas vísceras, deve
deixar que a vertigem conduza pelas ruas. A cafetona velha, a decrépita Madame
Gaillard, dona do bordel já tinha vivido a sua vida. Por fora, aparentava a
sua idade real e, ao mesmo tempo, uns 200 ou 300 anos mais velha, era a múmia de
uma jovem; por dentro estava morta há muito até a gente falar de não querer pagar
a noite de luxuria com suas meninas. Ao mundo não dava senão as suas fezes e cheiro
de peixe do seu sexo.
Aquele bordel era uma palhoça nos arrabaldes da cidade, não sei como fui
parar lá junto com Mac
Orlan. Parecia um lupanário.
Acho que é exatamente esse afastamento do centro da cidade que suscita e excita-nos. O bordel
camuflado, escondido, o lar das prostitutas, dos cafetões, dos veados e lésbicas pobres, é o outro lado do fascínio da
cidade. O gozo e o anonimato, a miséria opulenta e o luxo miserável, tudo se mistura. Entramos,
aquela pequena sala com um balcão já estava saturada do terrível perfume de Amor e Psique.
Mas, aquela palhoça á medida em que íamos adentrando se transformava num labirinto
escuro. Os corredores estavam cobertos de papel higiênico, grudava nos pés da gente
como papel pega-mosca. O prestigio diabólico dos babilônicos se perdia na medida
em que íamos descascando e nos perdendo nele. Meu código moral me bloqueia, gostaria de
ter fotografado bem de perto aquela penetração adentrando a fenda. Todos alredor
observavam cada detalhe. Nunca me permiti, achei também que não me permitiriam.
Ademais, os atores teriam que ficar imobilizados, mais duros que estavam naquela
apresentação. Sorte não ter vindo a Bergheil.
A cidade e fotografia se correspondem, uma com a outra; uma na outra. O quarto
escuro (Le chambre noir) é a mãe da fotografia. A casa de Psique. O buraco: a casa do voyeur.
Sim, sou voyeur, minha paixão é olhar o mundo pelo buraco, penetrar o mundo
com meus olhos. Aproximando-me da Place Clichy ao anoitecer, passo ao lado
da pequena prostituta com coto de pau que fica todos os dias diante do Gaumont
Palace. Ela não aparenta mais de dezoito anos. Tem fregueses regulares, sempre.
Ao redor de Aubervilliers, enfiamo-nos em um lugarzinho barato e imediatamente
estamos com um bando delas nas mãos. Alguns minutos depois ele dança com uma puta
nua, uma enorme loura com dobras no pescoço. Posso ver-lhe a bunda nua refletida
uma dúzia de vezes nos espelhos que forram o aposento – e aqueles seus dedos ossudos
agarrando-a tenazmente. A mesa está cheia de garrafas de cerveja, a pianola chia
e arqueja. As mulheres desocupadas ficam sentadas placidamente nos bancos de couro,
coçando-se pacificamente como uma família de chimpanzés. Abri uma das portas sem
querer, e a luz deu em cheio no rosto deles. O quartinho estava como que tomado
por prata flutuante, tudo brilhava tive de fechar por um momento os olhos.
Vespasianas
Aqui dobrando no Bulevar Aragão tem uma vespasiana, adoro as vespasianas,
gosto de adentrar no cubículo, descarregar e observar como os homens sacodem seus
pênis após urinarem. Meneiam suas pirocas dos mais variados tamanhos. Os mais dotados
ficam horas ali se exibindo, por puro prazer, ou até encontrar um cliente. Essa
mistura de cheiro à urina e erotismo é algo irretratável. Às vezes se formam filas, então todos
são obrigados a sair o mais rápido possível, alguns ainda fechando as braguilhas.
Paris tem várias vespasianas, mais de mil esparramadas pelos parques e praças; coisa
que em outras cidades não acontece. Charles Marville, no século passado já as fotografava. Miller me falou que
os americanos quando vem a Paris a primeira coisa que chama a atenção deles são as vespasianas. Ficam loucos para entrarem e urinarem
na rua, acham muito divertido, surreal. Certa feita, quando estava numa dessas vespasianas
fechadas, um sujeito de mal aspecto, quase um trapeiro, vendo que o fitava ao urinar,
perguntou ‘se eu gostava do que havia visto’, disse-me: ‘pode tocar não vai te custar
quase nada’. O zelador que observava mandou o sujeito se retirar. Saiu rapidamente
como quem carrega uma linguiça no bolso. Baixei a cabeça e sai também furtivamente. O vagabundo
é sempre esse outro em trapos, nunca o bem vestido. Interesso-me por suas vidas,
gostaria de fotografar essa proximidade, mas não faço nenhum esforço para romper
esses limites, apenas olho e me comovo quando dormem nas arcadas das ruas aos bandos.
Infelizmente acabo reduzindo esses infelizes que dormem ao relento a mais um registro
da cidade.
Em Paris como em todas as grandes cidades é proibido satisfazer as necessidades
naturais na rua, se não fosse essas centenas de vespasianas a cidade se tornaria
uma imensa cloaca. Mesmo assim não são suficientes. As vespasianas costumam
ser um ponto de encontro não só de pederastas, mas também de traficantes. O jovem
escritor Julien Green que tive o prazer de conhecer, disse-me reservadamente, após
ver uma foto que fiz de uma vespasiana, que costuma frequentar
e descrever esses encontros secretos em seus diários, com pseudônimo. As pessoas
quando são pegas em fragrante ou denunciadas a policia pelos pedestres ou pelos
usuários, na maioria das vezes tem que pagar uma multa, e o mais terrível estão
também propensas à prisão de três a
seis meses. Green me reportou um desses casos. Essas pequenas violações têm consequências duras, dramáticas, ruinosas que levam até
o suicídio; todos ficam sabendo, colegas de trabalho, família, pois os culpados
tem que explicar o motivo do encarceramento, mesmo que por poucas horas. O lugar
predileto de dia para os pervertidos segue sendo as vespasianas, também conhecidas
por vários nomes como ‘copos’, pissotières (mijadouros), colunas Rambuteau.
Proust se refere assim; seus amigos que conheci do 16 arrondissement referem-se
a ‘tocas’ ou ‘buracos’. Contaram-me que frequentavam também a piscina Molitor,
os banheiros e vestiários, discretamente marcavam encontros lá, em meio as sagradas
famílias.
As ‘conservadoras’ assim são conhecidas as vespasianas de dois lugares opostos,
onde um não consegue ver o outro. Os orientais, em Paris as chamam de ‘pagodes’.
A arquitetura das vespasianas é muito curiosa, os homens podem urinar sem quem passe
pelo lado da rua os veja; nessas vespasianas metade aberta metade fechada se pode
saber quantas pessoas estão dentro, a chapa metálica não cobre todo o corpo, fica
a descoberto uma parte que permite ver o numero de pés, e que distancia estão uns
dos outros. Nessas chapas tem reclames e muitos grafites, com endereços e frases
obscenas. Nas vespasianas da rua Aragão havia muitas escritas nas paredes, “chupo”,
“dou o rabo”, e muitos endereços. Quem vê os rostos desde a rua, não descobre outra
coisa senão o olhar da indiferença, a cabeça faz com que se ignore os atos dos braços
que se movem lentamente por trás da tapadeira. Quando a policia observa quatro pés
pertos vai lá conferir. Assim que se dá o controle. Mas, a força do desejo parece
maior que os riscos, o temor, a vergonha, a angustia; nada parece impedir que esses
aficionados se encontrem ali furtivamente. Os olhares são de uma prudência extrema,
o drama passa-se nos olhos para não violar a intimidade do outro. Quando os homens
urinam um ao lado do outro, seus olhos não têm muito para onde ir, olham para cima,
para a parede, ou para o próprio ato de urinar, quando se desvia para o lado é sugestivo.
A policia de controle fixa em uma média de três minutos o tempo normal, é o tempo
de irem até a esquina e voltarem, e passarem na frente da vespasiana. Gostaria muito
de fotografar essas vespasianas de dia quando o movimento é mais intenso, mas chamaria
muito a atenção, resta fazer fotos à noite. Esses ‘merodeadores’ (caçadores, saqueadores)
pertencem a todas as classes sociais e todas as idades. Todas as profissões parecem
estar representadas.
Desde o café (Le petit Paris) sentado observo durante horas que alguns
homens já são familiares, vão todos os dias a mesma hora; outros eventuais,
e outros ainda varias vezes ao dia, entram, saem e depois de meia hora, voltam outra
vez. Depois das 18 horas há filas, saem do trabalho e ali se dirigem antes de pegar
suas conduções.
O caso de Eugene de Germiny no final do século passado é emblemático
dessa perseguição aos frequentadores dos urinários públicos. Filho de um ex-prefeito
de uma cidade francesa e depois Ministro das Finanças de Paris, foi fragado numa
vespasiana numa posição indecente com um jovem de 18 anos. Eugéne era um hipócrita
moralista como tantos hoje que condenam as vespasianas e os graffites. Era um proeminente
político católico, um bastião da direita reacionária e defendia uma sociedade baseada
na família, religião e um retorno à monarquia. Deu a desculpa que fazia pesquisas.
O escritor Gustav Flaubert descreveu o escândalo como um “conforto que estimula
a vontade de viver”. Germiny foi enviado para a prisão de La Santé , e se exilou
na Argentina sob o nome de Lebègue, onde faleceu.
Minha querida Gilberte critica-me que a cidade que eu retrato, desenha-se como
uma cidade nada pudica, e que não tenho vergonha de exibir o que se costuma esconder.
Gilberte me chama atenção que essa exibição que falo é só masculina, pois não existem vespasianas femininas.
São sempre os excessos masculinos que precisam ser canalizados, e a mulher continua
cativa em seu símbolo da ordem familiar; ou o outro lado, da prostituição, o esgoto que liberta a
cidade do desejo excessivo masculino. A cidade é ostensivamente destinada aos homens.
Até as vespasianas se parecem a gigantescos falos, onde rinamos sobre elas, Freud
que está na moda poderia explicar isso facilmente. Mas Gilberte tem toda razão,
é necessário criar urinários femininos urgentemente, as mulheres também têm vontade urinar, ainda que cruelmente reprimidas desde crianças,
para não fazerem suas necessidades em banheiros públicos ou na casa dos outros.
Ouvi dizer que em Barcelona os anarquistas costumam colocar bombas nesses urinários
públicos. A Praça Real é um desses lugares prediletos já no final do século
XIX. Desde então virou prática explodir vespasianas matando dezenas de pessoas.
Os espanhóis não fabricam, compram as vespasianas francesas com sua estrutura metálica
de forma circular que cabem até seis pessoas, igual às daqui tapadas de publicidade. Os anarquistas põem as bombas dentro
de panelas, ou enterram no piso. Genet me narrou esse fato, no dia em que foi no
meu apartamento, de uma procissão fúnebre de pederastas e travestis catalães em
direção a uma ex-vespasiana, rendendo honras aos veados que ali morreram. Contava
a noticia de um jornal do mês passado, que um senhor teve sua perna decepada devido
a mais uma explosão numa vespasiana na Rambla. A situação se tornou tão alarmante que contrataram um inspetor
da Scotland Yard, que obviamente nada pode fazer. Parece que, finalmente as autoridades
vão por um fim na ‘maldição das vespasianas’ das Ramblas, transladando sua
localização para um bairro boêmio próximo. Fico imaginando se isso vira moda em
Paris.
Os banhos públicos. Encontrei Rogier Grenier no banho publico, havia gostado
daquela carta que lhe escrevi sobre Goethe. Disse ele, enxugando–se com uma cueca
suja, vou mostrar-lhe a resposta dentro de um minuto – estou incluindo-a em meu
livro. O vestiário estava cheio de homens despidos, alguns com ceroulas compridas,
outros com barbas, a maioria ratos pálidos e magricelas com chumbo nas veias da
guerra. Ao baixar os olhos em direção aos pés saltavam as unhas enormes não aparadas,
e já retorcidas. Um cheiro nauseabundo percorria todo vestiário. Até hoje nunca
fotografei um vestiário. Dentro da privada a gente podia fazer um inventário dos
pensamentos ociosos deles, as paredes estavam cobertas de desenhos e epítetos, graffites,
todos jocosamente obscenos, fáceis de compreender e em geral muito alegres e simpáticos.
Precisar-se-ia de escada para atingir certos lugares, mas acho que valeria a pena
fazer isso, embora para olhá-los só do ponto de vista psicológico. Às vezes, enquanto
estava lá em pé urinando, eu ficava imaginando que impressão isso daria àquelas
elegantes damas que se observa entrar e sair dos belos lavatórios nos restaurantes
no Champs-Elysées. Imaginava, se elas ergueriam tanto seus rabos se pudessem
ver o que se pensava de uma bunda aqui. Em seu mundo, sem dúvida, tudo era gaze
e veludo; ou elas nos faziam pensar assim, com os belos odores que desprendiam ao
passar zunindo ao nosso lado.
Passagens
Hoje ao beber um café
no conhecido Deux Magots, ao final da tarde, encontrei um senhor no café
sentado numa mesa na rua, estava muito concentrado no que escrevia em seu pequeno
caderno de notas. Está uma tarde muito fria, comentei; prontamente ajeitando seus
óculos redondos respondeu-me que sim, e foi logo falando que estava cansado de caminhar
a esmo pelas ‘passagens’, principalmente a Verdeau, agora estava fazendo
algumas anotações para não fugirem de sua mente. Trocamos algumas frases, contei
que fazia fotografias e que caminhava pela labiríntica Paris à noite. Contou-me
que também gostava de caminhar e deambular, mas preferia o dia, não fazia fotografias,
mas adorava e era um deleite apreciá-las. O labirinto, disse em tom de especialista,
tem muitas entradas que levam ao interior, por meio do que ele chamou de ‘conhecidos
primitivos’; repetidamente, ao longo de nossas vidas somos guiados por passagens
para certos tipos de pessoas, até que tudo se contraia em uma figura, um símbolo.
Pensei nos graffites e o que sentia por eles. Lamentou-se que vive numa penúria
de uma bolsa de pesquisa, e passava frio em seu minúsculo estúdio. Estava escrevendo
um livro constituído de fragmentos de diversos tipos sobre Paris. Arrematou: acabei
de escrever uma pequena historia da fotografia. Parecia cansado, magro e bastante
deprimido. Contou-me, não sei por que, de suas viagens sob o efeito do haxixe, da
mescalina e opio quando caminhava em Berlim. Falou-me dessas experiências, assim
como a ideia que lhe ocorreu da iluminação profana, da memória involuntária; explicou-me
sobre a palavra mêmite, um sentimento de felicidade que ele saboreava com
um cuidado particular. Na nossa época, comentou, já nada é verdade e tudo é permitido,
e que a tarefa do escritor é somente conscientizar os leitores sobre o que eles
já sabem; mas sem estarem cientes disso, se pode inventar como cartas não reais,
falsos diários, falsos livros, o importante é convencer. Já era noite e ele estava
muito preocupado com a iminência dos nazistas chegarem à França, do jeito que falava até parecia que eles já estavam
entre nós infiltrados. Repetia que eles invadiriam a França inevitavelmente, mesmo
que a maioria dos franceses não acreditasse, e não déssemos a mínima importância.
Fiquei pensando nisso. Deixou umas moedas e se foi. Nem me falou seu nome. Achei
que o encontraria outro dia, mas nunca mais o vi.
Retocar
O dia é Eros, a noite
Psique. Daí o nome do terrível perfume Eros e Psique, dá para usar tanto de dia
como de noite. Paris parece hoje uma cidade banhada não pelo Sena, mas pelo grande
vidro de perfume vulgar de Eros e Psique. Le air de Paris. Perfume as vezes
barato, as vezes muito caro. O perfume da noite deve ser mais barato ou mais
caro? Os bons perfumes têm bergamota e alecrim
demais, e óleo de rosa de menos, também um toque de vetiver e estoraque. Para mim,
o bom perfume é aquele que me faz desejar fixar o tempo.
Podia lamber as paredes com minhas orelhas, tocá-las com minha língua, beijar
com meus olhos. Sim, naquele momento podia beijar toda nudez de seu corpo, enquanto
urinava com o rosto quase tocando o muro. O olho ao contrário do que se pode pensar
é um sentido tátil, apalpador tal como a mão ou ouvido, ele toca e é tocado. A mão
então toca para cheirar, se impregnar e transportar para o nariz o cheiro. Assim
o tato olfateia. Por isso os animais se roçam nas coisas para se impregnarem. Na
visão e na vida tanto o olho quanto o buraco trazem simultaneamente mistérios e
revelações. O olho é um ovo esburacado; a pupila um diafragma por onde passa a luz
que vai se projetar sobre a superfície concava da retina. A córnea é uma puta, é
penetrada por qualquer coisa se deixarmos aberta, mesmo sem consentimento; a luz
penetrante na caverna platônica do olho é instantaneamente transformada em impulso
pelo nervo ótico e em campo visual pelo cérebro. Entra luz e sai visão ativa que
vai flechar o mundo. No buraco sem fundo do mundo fomos jogados. Aqui é só buraco
dentro de buraco. No buraco cabe o mundo, mas cabe sem cabimento, porque ele é ao
mesmo tempo, “a” e “multi” dimensional, universos inteiros passam por ele. A fenda
é o inicio do abismo da
existência, assim análogo é o mundo do pequeno orifício da câmera fotografia.
O olho toca para as mãos verem, ou é o contrário? Penso que o buraco da câmera
se trata mais de uma boca (bucca) que um olho; uma bucca, uma bucetta,
uma pequena caixa, uma pequena bolsa onde reina o caos e o mistério da existência.
A boca aberta é surpreendente.
A abertura da vagina é o primeiro transporte, abre e se distende como um diafragma,
um obturador. Mas é o ego que faz abrir a boca, a lente, a abertura da criação.
E le boucette virou boëte, depois boîte, (boate), o lugar da
festa.
É preciso esperar a noite chegar para ver-se no outro, conjugar fotografia e
desejo manifesto. Assim tocava teus lábios com meus olhos, pois na noite, a gentesó
vê tocando, se sente abraçando. A noite o olhar toca mais ou toca menos? À noite toco o intocável,
a bruma, as luzes da cidade, uma escumosa esterilidade pairando sobre a cidade.
Passei a noite na neblina, sinto que estou me resfriando outra vez.
A fotografia é só o petisco para o banquete da memória que se avizinha, um lenitivo,
um pequeno entorpecente. Ela transfere e faz viajar do mundo visível para o invisível.
Abraçai-vos quer dizer deslocar o sentido da visão para mão, para o braço, para
corpo. A fotografia como abraço imobilizador é a experiência salinizante, congelante
que glasifica tudo com seu toque. Sou reconfortado, a cada dia, pela fotografia,
maas esse misterioso acolhimento entra pelos olhos ou pela boca? Pelo nariz ou pelas
orelhas? O olho vê mas não sente de verdade, falta-lhe lábios, tímpano. Posso fechar meus
olhos, minha boca, meus ouvido, jamais meu nariz. Essas fotos somente têm cheiros e sons para mim, só faz sentido para mim e para
alguns tarados. Para todo resto, são insípidas, apenas um tempo de ‘outro’. Veja
bem, querido Miller, a máquina fotográfica se parece mais como uma boca, um focinho
que um olho, até como uma teta mecânica. Quando a lente abre, aspira o mundo transformando
tudo em fantasmas e fantasias, devora tudo aquilo que o tamanho de sua boca pode
tragar de luz. O movimento da objetiva da câmara é o mesmo da boca, das mãos, dos
olhos, e principalmente da respiração (inspiração e expiração). Por isso o fole (folle) da câmera como pulmão da
imagem; é desse folle que faço minha folie. O fôlego.
A fotografia respira; muitas vezes igual a simples respiração do corpo. Nos primeiros
tempos, o retratado precisava de folego para prender a respiração, para não se mexer
ante a câmera; agora cada dia menos graças a química.
Como fazer uma fotografia tocar, o que faz com que ela toque os outros? Para
mim só importa o que eu fotografo, o ângulo e o que engulo como alimento, ela é o ar que respiro, o quinalo. Essa imagem respirante
sacia meu desejo e de outros tantos, despertando mais desejo, mais ego. A fotografia
na verdade toca sem tocar, toca alguns, outros nada; para alguns fotógrafos é pura
visibilidade, malabarismo da visão: visão de rã, vista de pássaro; só uma visão inusitada, um olho especulativo.
Tá cheio de fotografo que se ajoelha, se deita, sobe em cima de cadeira., em busca
de uma imagem inusitada. Me fazem rir. O respirar sem sentir os cheiros só pode
ser enfermidade, prenuncio da morte. Como pode o olho ver sem respirar, não se pode ver sem tocar, sem focar, sem andar. As vezes, penso que
tenho os olhos nos pés. Cinquenta metros adiante, dobrei à direita na Rue des
Marais, uma viela escura, mal tendo uma braça de largura. Estranhamente o aroma
não se tornou muito mais forte, apenas mais puro e, através da sua pureza crescente adquiriu
um poder de atração cada vez maior. Caminhava, já sem vontade própria, sem folego,
de pronto, o aroma puxou-me abruptamente para a direita e o muro de uma casa me
abraçou. Do muro saltava um pequeno telhado oblíquo, fui absorvido por suas lembranças,
meu corpo se deliciava com seu toque, logo me transportei.
A fotografia alterou o modo ver e tocar o mundo, desviou os sentidos, alterou
tudo, sobretudo a imaginação de todos os artistas; vejam o caso do Proust, é revelador na narratividade de seus romances.
Ele não procede de maneira cinematográfica, mas nos apresenta uma série de instantâneos.
Por exemplo, um personagem que sai de uma casa é descrito por toda uma série pequenas
fotos, não há um filme contínuo. Acho que é preciso parar de pensar fotográficamente
nesse sentido de pura visibilidade e de nova objetividade. Penso um dia escrever
algo sobre quando o olho dá lugar à orelha, e o olhar à escuta.
A fotografia é ‘chapa-contato’ que quer também tocar o intocável, morder o tempo. Quando os olhos riem, a boca se ‘desculpa’, sorry, gosto de ler as bobagens que escrevem sobre minhas fotografias, as alabanças, o que eles veem não é o que eu vejo. Se a pele da minha mão fosse tão sensível como são meus olhos veria através de minha mão. Quando te beijo com a língua vejo mais que os olhos, um sentido sem sentido. É preciso abraçar a cidade.
FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura. Realizou inúmeras capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas (ensaio, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Venezuela, 2021), e Un día fui Aurora Leonardos (poesia, Ecuador, 2022).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09
Número 208 | maio de 2022
Artista convidado: Floriano Martins (Brasil, 1957)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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