segunda-feira, 9 de maio de 2022

LUIZ NAZARIO | Em defesa de Germaine Dulac

 


Herdeira de uma família de ricos industriais do Creusot, os Saisset-Schneider, filha do capitão de cavalaria Maurice Saisset-Schneider, Germaine Dulac (1882-1942) nasceu em Amiens, na região da Picardia, na França, em 1882. Sua mãe, Madelein Waymel, vinha da alta burguesia de Lille. Como o pai militar era transferido com frequência para cidades com guarnições do Exército, pequenas e mal equipadas, Germaine foi enviada a Paris para ser criada por uma avó.

A jovem Dulac estudou várias formas de arte, especialmente a música e a ópera. Com a morte dos pais, ela se estabeleceu definitivamente na capital francesa. Em 1905, com 23 anos, Germaine casou-se com Louis Albert-Dulac, engenheiro agrônomo e romancista, de família também abastada.

Com o apoio do marido, Germaine Dulac encaminhou-se para o jornalismo, colaborando na revista do movimento sufragista La Française, editada por Jane Misme, entrevistando mulheres famosas para fazer seus “retratos”. No começo era tímida e, ao receber a missão de entrevistar Anna de Noailles, entrou em pânico e acabou entrevistado apenas seu mordomo, que lhe forneceu, contudo, ótimo material para o seu “retrato” da condessa (FORD, 1968).

Logo Germaine abandonou os “retratos de mulheres famosas” para assumir uma vaga aberta na seção de crítica de teatro e cinema. Interessada no movimento feminista e no socialismo, também trabalhou no periódico radical de mulheres La Fronde, de Marguerite Durand.

O interesse de Germaine Dulac pela realização cinematográfica começou em 1914, através de uma amiga, a atriz Stacia Napierkowska. As duas viajaram juntas pela Itália pouco antes da eclosão da Primeira Guerra. Segundo Charles Ford, Stacia teria atuado “em Caligula, um filme da Film d'Art” (FORD, 1968), onde Germaine, como assistente de direção, aprendeu o básico sobre a produção de um filme. Aqui o crítico se enganou: não encontramos este Caligula em nenhuma filmografia, mas, na mesma data, Stacia atuou em A estrela do gênio – Cena da vida cruel (L’étoile du génie – Scène de la vie cruelle, 1914), de René Leprince e Ferdinand Zecca, produzido pela Pathé, interpretando uma dançarina que obtém sucesso na ópera Caius Caligula… Ao que tudo indica, foi neste filme que Dulac se iniciou na práxis do cinema.

Em 1915, Germaine formou com a escritora Irène Hillel-Erlanger a D.H. Films, com o apoio de seu marido, que assumiu a função de administrador da empresa. A D.H. Films produziu vários filmes experimentais de baixo orçamento entre 1915 e 1920, todos escritos por Hillel-Erlanger e dirigidos por Germaine Dulac, que se tornou a segunda mulher diretora de filmes na França, depois de Alice Guy-Blaché (1873-1968), contemporânea de Georges Méliès.

Dulac foi, assim, uma das poucas diretoras pioneiras do cinema mundial, ao lado das americanas Lois Weber (1879-1939), June Mathis (1887-1927), Dorothy Arzner (1897-1979), Ruth Ann Baldwin (1886-?), Grace Cunard (1893-1967) e Dorothy Davenport Reid (1895-1977); das russas Olga Preobrajenskaia (1881-1971) e Aleksandra Khokhlova (1897-1985); da polonesa Nina Niovilla (1874-1966), que só recentemente começaram a ser estudadas.

O primeiro filme de Germaine Dulac foi As irmãs inimigas (Les Sœurs ennemies, 1915-1916), seguido por Géo, o misterioso (Géo, le mystérieux, 1916); Vênus vencedora / No furacão da vida (Vénus victrix / Dans l'ouragan de la vie, 1917) e no melodrama Almas de artistas (Âmes de fous, 1918), o maior sucesso da companhia, filme de estreia da atriz Ève Francis, que fora apresentada a Germaine pelo cineasta Louis Delluc (1890-1924).

Ainda durante a guerra, Germaine dirigiu o filme feminista educativo A jovem mais meritória da França (La jeune fille la plus méritante de France, 1918), no qual a diva Musidora interpretava uma vendedora ambulante. De maneira atraente, o filme mostrava os diversos empregos que uma jovem reduzida aos seus próprios meios poderia abraçar para sobreviver em tempos de guerra.

Enveredando pelo cinema popular, Dulac realizou a comédia dramática O cigarro (La cigarette, 1919), onde um curador do Museu Egípcio que há dois anos se casou, aos 48 anos, com uma bela jovem, começa a suspeitar que ela o esteja traindo com um campeão de golfe, presente à palestra que ele fez ali sobre a múmia de uma Princesa egípcia.

Obcecado com a história da Princesa, mulher fútil que se casou com um Príncipe mais velho que ela, e que, arrasado com a traição da leviana, mas incapaz de se matar, envenenou a massa de um dos doces de mel e gergelim que seus escravos preparavam para ele, o curador tem a ideia de envenenar um de seus cigarros, e misturá-lo aos outros dentro da caixa de cigarros do escritório.

O filme torna-se, então, uma trama de suspense: a esposa resolve fumar um cigarro – morrerá ela por acidente? O mordomo rouba um cigarro da caixa de cigarros – será esse abusado a vítima do cigarro envenenado? Cada cigarro que o curador ciumento fuma pode ser o último… No final, o suspense é dissolvido pela inteligência da mulher, que havia descoberto o plano tolo do marido e trocado os cigarros da caixa. Ela revela ao ciumento que o atleta era apenas um amigo com quem se divertia, mas que nunca teve um affair com ele: amava apenas o marido por sua inteligência e bom coração…

Dulac e Delluc trabalharam juntos em A festa espanhola (La fête espagnole, 1920), uma das realizações mais importantes do cinema impressionista francês. A história gira em torno de Soledad (Ève Francis), uma dançarina que dois ricaços, Réal e Miguelin (Gaston Modot e Jean Toulout), decidem disputar num duelo. Mas a luta de faca é tão selvagem que os dois acabam mortos, enquanto Soledad é conquistada pelo jovem Juanito.

Em 1922, Germaine divorciou-se de Louis e juntou-se à sua assistente de direção, Marie-Anne Colson-Malleville, num relacionamento amoroso e profissional que durou toda sua vida. Os contemporâneos falam do “perfil masculino” de Dulac. Em suas fotos ela posa com tailleur em forma de terno e gravata borboleta, ousando ao projetar de si um visual queer. Dulac assimilou do pai militar, que chegou a general, o sentido da disciplina, e Colson-Malleville queixou-se do lado “horrivelmente autoritário” da companheira – necessário, contudo, para triunfar no mundo machista do cinema.

Nos filmes de Dulac, o papel da mulher é destacado, e as jovens são os pivôs das tramas, que geralmente denunciam a violência dos relacionamentos entre homens e mulheres, como em A bela dama sem piedade (La belle dame sans merci, 1920), onde uma atriz (Tanya Daleyme) seduzida e abandonada por um homem do mundo vinga-se de todos os homens tornando-se uma mulher fatal.

Na Alemanha derrotada na Primeira Guerra, a vanguarda tingiu-se com os tons sombrios do expressionismo, que despontou de forma integral no cinema com O gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Dr. Caligari, 1920), de Robert Wiene, contrastando com o otimismo mecânico do futurismo e a ironia sarcástica do dadaísmo que impregnaram a Primeira Vanguarda francesa. O conto sombrio do louco que transfere sua loucura para o psiquiatra que o trata, imaginando que Caligari manipula um sonâmbulo para matar seus desafetos, parece ter influenciado Dulac desde A morte do sol (La mort du soleil, 1921).

Neste filme, a Dra. Marthe Voisin trabalha longas horas ajudando o Dr. Lucien Faivre (André Nox) em sua busca pela cura da tuberculose. Com ciúmes da devoção da esposa ao trabalho e ao colega, o marido de Marthe a abandona levando o filho do casal. Anos mais tarde, quando o filho adoece, a doutora decide voltar à família. A cena culminante do drama, quando o cientista emerge de um derrame, trabalhada por Dulac à maneira expressionista, com jogos de luzes e sombras, foi cortada nos cinemas que o exibiram para poupar os espectadores de seu impacto psicológico (FORD, 1968).

Em 1921, Germaine Dulac foi à América visitar Hollywood, onde se encontrou com o pioneiro diretor David Wark Griffith. Ela ficou encantada com a organização do trabalho nos grandes estúdios, passando a valorizar a produção industrial do cinema, que abrigava os melhores artistas, ainda que seus filmes não fossem exatamente obras de arte como ela os concebia.

Sob a dupla influência do impressionismo francês e do expressionismo alemão, Dulac realizou A sorridente Madame Beudet (La souriante Madame Beudet, 1922, 38’), a partir da peça vanguardista do “teatro do silêncio” La souriante Madame Beudet (1921), de Denys Amiel e André Obey. Evocando Madame Bovary de Flaubert, o filme mostra a vida tediosa da senhora Beudet (Germaine Dermoz), uma mulher do lar, casada com um empresário do ramo de tecidos (Alexandre Arquillière), numa pequena cidade da França.

Madame Beudet não suporta o marido, que brinca de roleta russa para chantageá-la emocionalmente e assim impressionar os amigos. Mas todos sabem que ele não coloca balas dentro do revolver. Tudo no senhor Beudet causa horror e nojo à esposa: a maneira animalesca como ele come à mesa, seus modos grosseiros, suas risadas obscenas, seu espírito de porco.

Enquanto Madame Beudet lê sua Vogue, o marido reclama socando a escrivaninha. Afundada na revista, ela se excita com a estampa de um belo e musculoso tenista, imaginando como seria bom se ele carregasse o marido para longe: “Representando a força física que falta à senhora Beudet, o jogador de tênis pega Beudet pelo colarinho e o carrega para fora da sala como um simples pacote.” (HOUBRE, 2014). O tenista – geralmente esguio – é aqui provocadoramente interpretado por Raoul Paoli, campeão francês de arremesso de pesos, luta greco-romana e boxe peso-pesado…

Mais tarde, conversando com seu empregado na loja de tecidos (um submisso fracassado, mantido com rédeas curtas pela esposa gorda e dominadora), o senhor Beudet demonstra que não suporta mais a esposa, sempre amuada e infeliz. Ele diz que as mulheres precisam de uma boa surra, e demonstra isso com uma boneca, cuja cabeça ele arranca. O empregado diz que as mulheres são frágeis como bonecas, e o senhor Beudet se arrepende de sua violência e não sabendo o que fazer com a boneca quebrada, guarda a cabeça dela em seu bolso.

A diferença total entre os dois cônjuges é marcada ainda pelo vaso de flores na mesa de centro do cômodo, misto de escritório e sala de estar, onde os dois convivem a maior parte do tempo: o marido quer que o vaso fique no centro da mesa, a esposa quer que ele fique na beirada. Os dois vivem mudando o vaso de lugar, irritados com o modo como o outro o posiciona.

O fato de a senhora Beudet preferir o vaso na beirada da mesa denota algo de desajustado em sua mente: um desvio do centro, da norma. De fato, não se sabe por que ela se casou com um homem que a repugna tanto. A “sorridente” Madame Beudet nunca sorri para ninguém, passa a vida tristonha e infeliz; só manifesta alegria quando os Correios lhe trazem sua Vogue: ela então vibra excitada e sem pudor, como se recebesse um bilhete premiado.

Já a música exerce sobre ela um efeito calmante: vive tocando Jardins sob a chuva, de Debussy, ao piano: imagina então paisagens bonitas, e seus nervos estraçalhados, sempre à flor da pele, lhe dão alguma trégua. Mas não é tampouco uma apaixonada pela música. Quando o senhor Beudet ganha bilhetes gratuitos para assistir à ópera Fausto no teatro da cidade, ela recusa ir, enfastiada, prefere ficar em casa, tocando seu Debussy. Vingativo, o marido vai ao teatro com seu empregado e a gorda esposa deste, e tranca o piano a chave.

Sem dispor agora desse calmante, a mente de Madame Beudet começa a martelar e martelar, assombrando-se com o horror de conviver todos os dias com um homem que lhe causa asco. Ela o vê saltando da janela para dentro da sala como um demônio, a persegui-la onde quer que vá. Tem então a ideia de carregar o cartucho do revólver com que o marido brinca de suicidar-se para garantir a morte dele na próxima chantagem.

Essa não demora a ocorrer, quando o marido vai examinar as contas da família e começa a reclamar dos gastos da esposa. A senhora Beudet passou a noite arrependida por ter enchido de balas a arma do marido, e enquanto este faz contas e mais contas, ela penteia nervosamente os cabelos ao espelho, pensando em como retirar as balas do revólver antes que o pior aconteça.

Quando o marido berra, chamando a esposa, ela já teme pela vida do marido. Seus nervos estraçalhados produzem mais ódio no senhor Beudet, que joga novamente a cartada do suicídio. Madame Beudet fica histérica, o que leva o marido a pensar: Porque eu? Porque não você? E aponta o revolver para ela, que grita e foge, enquanto ele dispara e descobre que a arma estava carregada.

Ele corre para abraçar a esposa, reprovando-a por ter tentado o suicídio: ele a ama, não vivia sem ela! Madame Beudet permanece muda, mas seu olhar é de um ódio renovado e mortal: seu estulto e ególatra marido sequer entendeu que ela não queria morrer e sim que ele morresse! Recebendo agora juras de amor e carinhos indesejados, a “sorridente” Madame Beudet se mostra mais desgraçada que nunca, num “final feliz” repleto de amargura e rancor.

Dulac traduziu em imagens, de modo puramente visual (com sobreimpressões de imagens, uso do ralenti e da câmera acelerada) os sentimentos secretos dos personagens: “Monsieur Beudet parece um homem plácido, mas quando visto pelos olhos de Madame Beudet, ele se torna um monstro careteiro, como um tigre pronto para atacá-la e devorá-la. Cada detalhe da mise-en-scène ajuda a compreender a psicologia dos personagens.” (FORD, 1968).

Além da originalidade da técnica e da forma narrativa de A sorridente Madame Beudet, considerado a obra-prima de Germaine Dulac, o filme surpreendeu a sociedade da época pela visão contundente dos horrores de um casamento infeliz para a mulher que não trabalha, sendo sustentada por um homem odioso: como um animal preso na jaula, ela não vê saída, sonhando com uma libertação sangrenta. Numa revisão das vanguardas, A sorridente Madame Beudet é visto hoje como um dos primeiros filmes feministas.

Germaine declarou a André Bencey: “O cinema me agrada infinitamente. Eu seguia com interesse apaixonado sua evolução. Parecia-me que se eu pudesse estudar e aplicar os meios dessa arte tão nova eu conseguiria exteriorizar meu ideal artístico […] De todas as artes nenhuma pode resumir minhas sensações como o cinema. Somente pela imagem pude exprimir todo o meu pensamento.” (DULAC. Cinémagazine, 24 fev. 1922, apud FORD, 1968).

Com a mente aberta e inquieta, Germaine desejou experimentar, depois de sua visita a Hollywood, o trabalho num grande estúdio. Solicitou a um amigo que intercedesse junto ao diretor artístico da Société des Ciné-Romans, Louis Nalpas, para que a aceitasse como diretora. A companhia de filmes-folhetins fora fundada em 1919 pelo escritor Gaston Leroux, em associação com o jornalista Jean Sapène, para produzir filmes em episódios a partir de seus folhetins, publicados simultaneamente, com o apoio financeiro de Serge Sandberg. O romancista Arthur Bernède, autor do folhetim Judex, levado ao cinema por Louis Feuillade, também se associou à empresa. Um contrato foi assinado e Germaine se pôs a dirigir Gossette (1923), seriado em seis episódios.

Charles Ford forneceu a trama do filme: Uma noite, após o jantar, no terraço de seu castelo, o rico industrial Dornay é assassinado. As suspeitas recaem sobre Philippe de Savières, que amava a bela Madame Dornay. O primo Robert de Taynac alerta os pais de Philippe, que não duvidam da culpa do filho, pois estranhamente ele não passou a noite em casa.

Quando Philippe retorna, ao saber das acusações monstruosas, protesta veementemente. Ele jura ter passado a noite num bar e acordado na floresta de Saint Germain, onde salvou a pobre Gossette de um assédio brutal de sua trupe de saltimbancos. Ele apresenta Gossette aos pais, que permitem então sua fuga, uma vez que a polícia já estava cercando a casa.

Perseguido, acuado, Philippe se joga nas águas do Sena. Os Savières morrem num acidente de carro. Taynac, que cobiçava a fortuna de Dornay, fica noivo da rica viúva. Com a morte de seus benfeitores, Gossette decide retornar à trupe de saltimbancos, até que encontra um vagabundo na estrada: é Philippe! Os dois buscam a verdade e desmascaram Taynac, o assassino de Dornay. Os bens de Philippe são restituídos e ele se casa com Gossette. (FORD, 1968).

Com o sucesso comercial, Germaine Dulac pensava poder equilibrar-se entre o cinema de prosa e o cinema de poesia, entre os cineromances para o grande público e o cinema puro para a elite vanguardista. Mas a fraca bilheteria de Gossette frustrou suas expectativas. Generoso, Louis Nalpas fez-lhe então uma nova oferta: a direção de Le diable dans la ville (O diabo na cidade, 1924).

O roteiro de Jean-Louis Bouquet animou Germaine. A ação situava-se no século XV. Os moradores de Pimprelune acreditavam que a estátua de São Gabriel trazida da Palestina possuísse poderes extraordinários que proviam sua cidade de uma vida pacífica e burguesa, após a qual todos iriam para o Paraíso.

Depois de uma má colheita, a velha torre onde morava um iluminado que representava para os pimprelunenses o Mal encarnado, foi posta à venda, mas ninguém ousou comprá-la. Até que o filósofo e mago Marc Herser (Léon Mathot) veio do estrangeiro interessado na torre.


Assim que o estrangeiro entra na cidade, a estátua de São Gabriel se quebra em mil pedaços. Para o povo infelicitado, esse filósofo é o Satã encarnado. Porém, a golpes de inteligência, ele consegue conjurar o ódio dos pimprelunenses e se casar com a bela Blanche, que nunca o havia discriminado. (FORD, 1968).

A comédia de época foi toda realizada em estúdio, incluindo as “cenas exteriores”. Mas também essa tentativa de Dulac de fazer um filme popular fracassou nas bilheterias. Aborrecida com suas experiências malsucedidas no cinema industrial, ela rompeu o contrato com a Société des Ciné-Romans e juntou-se aos artistas russos de Montreuil para realizar, com a colaboração de Alexandre Volkoff, que comemorava o sucesso de Kean (Kean, 1924), Alma de artista (Âme d'artiste, 1924), adaptado da peça de Christian Molbeck.

Depois de uma panorâmica noturna sobre Londres, terminando com letreiros luminosos de um teatro, vemos o interior de uma casa modesta: no jantar, o marido alcóolatra espanca a mulher na frente dos dois filhos pequenos; ele arrasta a esposa pelos cabelos, mas ela consegue pegar uma faca da mesa e enfiar no seu peito. Essa violência habilmente filmada, com closes nos rostos dos personagens, assustava os espectadores, que só depois do esfaqueamento, quando a câmera se afastava, percebiam tratar-se de uma peça de teatro.

Educada na arte dramática pelo bom Morris (Nicolas Koline), o souffleur (ponto) do teatro, a jovem órfã Helen Tayir (Mabel Poulton) é a atriz-revelação da temporada e, esbanjando dramaticidade na cena do jantar sangrento, conquista o público londrino, que a aplaude sem parar. Ela aceita tanto as homenagens do jovem poeta Herbert Campbell (Charles Vanel) quanto os suntuosos presentes de Lord Stanford (Henry Houry), o todo-poderoso proprietário dos principais teatros de Londres.

Furioso com a rejeição da jovem atriz, e enciumado com os avanços do poeta, o Lord empresário sabota a carreira de Helen, impedindo que ela ganhe os principais papéis nas peças que estreiam em seus teatros. Ao mesmo tempo, Helen recebe a visita de Edith, que revela ser a esposa do poeta, chocando a atriz. Mas a sublime Edith consente em renunciar aos seus direitos de esposa se Helen puder assegurar o sucesso de Herbert. Emocionada pela abnegação da rival, Helen jura reparar o mal que lhe fez e, com a cumplicidade de Morris, encena a peça que o poeta escreveu para ela.

O sucesso da montagem é retumbante e Helen se torna uma estrela. Todos são abençoados com essa glória: Herbert é agora um poeta celebrado, Edith recupera sua felicidade e o Lord, reconhecendo o talento de Helen, contenta-se em ser apenas seu amigo leal e desinteressado.

Germaine contou aqui com uma boa produção: um elenco internacional de atores franceses, russos e sérvios da cosmopolita produtora Ciné-France Films; os notáveis coadjuvantes Charles Vanel e Gina Manès; um teatro cenográfico construído pelo designer russo Alexandre Lochakoff, que será o cenógrafo do Napoleão (Napoléon, 1927), de Abel Gance; além de figurinos suntuosos. Diversas cenas foram consideradas sensacionais.

Entre 1914 e 1918, durante a guerra, Delluc, Abel Gance, Marcel L’Herbier, Jaque Catelain, Jean Epstein e Dulac integraram a Primeira Vanguarda Francesa, com seu “impressionismo cinematográfico”, inspirado na luminosidade das obras dos pintores impressionistas franceses, em contraste com o “expressionismo cinematográfico” que floresceu na Alemanha do pós-guerra bebendo nas fontes sombrias da pintura expressionista alemã.

Em 1920, Louis Delluc e Charles de Vesme, formados pelo simbolismo, pelos balés russos e pelo teatro de Paul Claudel, lançaram Le journal du ciné-club e criaram, na sala Pépinière-Cinéma, o Ciné-club de France, organizando encontros da elite intelectual interessada na nova arte. Na sessão inaugural, Émile Cohl falou sobre desenhos animados e André Antoine debateu o “cinema de ontem, de hoje e do amanhã”. (MANNONI, 1994)

Defendendo “um cinema de qualidade não enfeudado nos poderes do dinheiro e em favor de uma autêntica atividade de crítico”, Delluc lançou em 1921 a revista Cinéa e organizou a primeira sessão do Ciné-club, presidido por René Blum, apresentando O gabinete do Dr. Caligari no Colisée. (HOARE, s/d). Em 1922, Germaine Dulac assumiu o cargo de secretária-geral do Ciné-club, começando seu trabalho com os cineclubes (FORD, 1968).

Na mesma linha, o futurista italiano Ricciotto Canudo (1877-1923) fundou em Paris o Club des Amis du Septième Art (C.A.S.A.) para “afirmar por todos os meios o caráter artístico do cinema, o cinema sendo irrefutavelmente uma arte, a sétima”. Organizou com sucesso conferências e jantares elegantes reunindo cineastas comerciais (Henri Fescourt, René Le Somptier, Henri Pouctal, Léone Perret) e vanguardistas (Marcel L’Herbier, Alberto Cavalcanti, Jean Epstein, Abel Gance, Germaine Dulac, Fernand Léger, Leon Moussinac, Blaise Cendrars, Jean Cocteau, Jacque Catelain).

Em 1922, o C.A.S.A. abriu em Montmartre uma sala de projeção com salão de chá e sala de leitura; no Colisée, Delluc ministrou uma conferência sobre o cinema como arte popular e L’Herbier apresentou seu filme experimental Prométhée… banquier. Rapidamente surgiram novos cineclubes: Les Amis du Cinéma (1921); Club de Faubourg (1922), de Léo Poldès; Club Français du Cinéma (1922). (MANNONI, 1994).

Em 1924, Breton lançou o Manifesto do surrealismo. Agregando os elementos do novo estilo nasceu a Segunda Vanguarda Francesa. Do pequeno círculo dos surrealistas de Paris, o movimento espalhou-se velozmente e contagiou artistas e intelectuais na Europa, nas Américas e até na África e na Ásia.

Os cineclubes participaram da expansão das vanguardas ao sediar uma explosão de debates estéticos em torno do cinema. O crescente interesse dos intelectuais pela nova arte levou à criação, em 1925, do primeiro “verdadeiro cineclube”, tal como o definiu Jean Mitry: “Um filme por semana apresentado por um crítico com discussão aberta e entrada mediante carteira de adesão”: o Tribune Libre du Cinéma, de Charles Léger, do qual Mitry foi secretário geral, frequentado por jovens apaixonados pelo cinema mudo, como Marcel Carné, Edmond Gréville, Jean Auriol e a escritora Colette. (MANNONI, 1994).

Também em 1925 surgiu o Ciné-club de France, fusão do Ciné-club de Delluc com o C.A.S.A. de Canudo, dirigido por Léon Poirier, René Blum, Jacques Feyder, Henri Clouzot, Léon Moussinac e Germaine Dulac, que se empenhava em divulgar as maravilhas do cinema sueco e do cinema soviético.

Em 12 de novembro de 1926, no Artistic-Cinéma, o Ciné-club de France, projetou, em sessão privada, O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925), de Sergei Eisenstein, que fora proibido, como todos os filmes soviéticos provenientes da URSS, pelo prefeito de polícia Jean Chiappe (MANNONI, 1994, pp. 170-175).

Para lutar contra essa censura, Léon Moussinac criou, em 1927, com Jean Lods, Francis Jourdain, Paul Vaillant-Coturier e George Marrane e o apoio da associação comunista Bellevilloise, Les Amis de Spartacus, que compraram e abriram, em 1928, o cinema do Casino de Grenelle, ali apresentando A mãe (Mat, 1926) e O fim de São Petersburgo (Konets Sankt-Peterburga, 1927), de Vsevolod Pudovkin, que influenciaram fortemente a vanguarda francesa tanto do ponto de vista artístico quanto político. (MANNONI, 1994)

O sucesso foi imenso: numa das sessões, 4000 espectadores disputaram as 2500 poltronas do Casino de Grenelle. Em cinco meses de atividade, Les Amis de Spartacus ganharam 80.000 associados, inquietando os exibidores com a queda da frequência das salas comerciais e irritando a Censura, com o prefeito da polícia Jean Chiappe convidando os organizadores a encerrar suas atividades para “evitar perturbações e salvaguardar a ordem pública” (HOARE, s/d).

Mas novos cineclubes abriram as portas: Le Club de l’Écran (1928), de Pierre Ramelot; L’Éffort, e muitos outros (DULLAC, “Le cinéma d’avant-garde”, 2021). Foram criadas também pequenas salas de cinema especializadas em “filmes de arte e de ensaio”: o Vieux Colombier (1924), de Jean Tedesco; o Studio des Ursulines (1926), de Armand Tallier e Laurence Myrga; o Studio 28 (1928), de Jean Moclair; L’Oeil de Paris (1929), de Jean Vallée.

Essas salas abertas ao cinema de vanguarda recrutavam seu público na elite dos artistas e intelectuais do Quartier Latin [DULAC, “L’évolution nécessaire” (1931), 2021] e quem leu as Memórias de Simone de Beauvoir sabe que ela e Jean-Paul Sartre eram assíduos frequentadores dessas salas.

Os cineclubes espalharam-se pelo mundo: os Film Clubs na Bélgica, a Film Liga na Holanda, os Film-freunde na Alemanha, a Film Society na Inglaterra, a Film Art Guild nos EUA e, no Brasil, o Chaplin Club, fundado em 1928 no Rio de Janeiro. Através dos cineclubes, as vanguardas modernas (cubismo, futurismo, dadaísmo, abstracionismo, expressionismo, surrealismo) ganharam o mundo, embora limitando seu público às elites intelectuais, à diferença do construtivismo soviético, que partiu de posições estéticas análogas, mas cuja ambição, desde o início, foi a de atingir a grande massa dos espectadores. (SADOUL, 1949).

Mergulhando na alma russa, Dulac adaptou Makar Tchoudra e O canto do falcão, duas narrativas de Maximo Gorki, em A loucura dos valentes (La folie des vaillants, 1926), “um hino à liberdade que evoca a grandeza e a beleza da natureza”. Loïko (Raphaël Lievin), um cigano violinista que leva uma vida errante encontra a jovem boêmia Radda (Lia Loo), pela qual se apaixona. Como Radda despreza o vagabundo, ele retorna à estrada, sem conseguir esquecer a garota. Quando Loïko novamente encontra Radda, ela diz que será dele se ele sacrificar seu violino e sua liberdade… Desesperado, o cigano esfaqueia a maldita boêmia, finca o cabo da faca no chão e se deita cravando a lâmina em seu coração, agonizando enquanto beija a amada morta.

Ao adaptar a novela de Gorki, Dulac testa sua ideia de cinema integral, puro ou visual: “Simplificação do tema, predominância do encadeamento das imagens sobre a afabulação, reduzindo ao mínimo os eventos combinados e os cenários: eis todo meu esforço nesse filme – um passo em direção à sinfonia visual, onde a ação teatral será nada e a sensibilidade tudo.” Para obter esse cinema visual adaptando um original literário,

 

Dulac reduziu os eventos da intriga, o número dos personagens e simplificou os cenários ao mínimo para se concentrar nos processos puramente visuais: ela multiplica os efeitos de montagem, os movimentos virtuosos da câmera, as deformações da imagem (flous ou sobreimpressões) e acentua, sobretudo, o que diz respeito à cinética (gestos, formas, movimentos, ritmos). A montagem paralela, à qual a cineasta frequentemente recorre, produz sentido sem cessar pela metaforização e poetização do material fílmico. (GÉRY, 2022).

 


Mesclando assim a narrativa tradicional de uma história forte aos experimentos formais da vanguarda, o filme foi aclamado em sua estreia no Colisée assim como na gala organizada por Jean Pascal (FORD, 1968, pp. 28-29). Animada com este sucesso, Germaine retornou à Société des Ciné-Romans para realizar Antoinette Sabrier (Antoinette Sabrier, 1927), a partir da peça de Romain Coolus, um grande sucesso do teatro parisiense da época.

Na adaptação da peça por Dulac, um industrial absorvido pelo trabalho se debate num conflito sentimental entre a esposa legítima, que ele ama, mas negligencia, e uma mulher mais jovem e brilhante, que encarna a seus olhos o amor ideal. Como A loucura dos valentes, seu Antoinette Sabrier foi aplaudido tanto pelos cinéfilos quanto pelo público em geral (FORD, 1968). Mas aqui Germaine não se satisfez com o resultado e rompeu, mais uma vez, o contrato com Nalpas, decidida a retomar seu cinema puro, que era a sua paixão.

Dulac rodou então o belo e sofisticado média-metragem O convite à viagem (L’invitation au voyage, 1927), um poema visual todo feito de gestos, símbolos e atmosferas, onde os personagens “falam” apenas com os olhos. O filme transpõe em imagens o simbolismo decadente do poema em prosa O convite à viagem, do livro Le Spleen de Paris, de Charles Baudelaire.

Na trama objetiva que mergulha o tempo todo em outra trama subjetiva, uma estranha mulher (Emma Gynt) entra pela porta giratória do cabaré L’invitation au voyage não se sabe atrás de quem ou de quê. A decoração do cabaré é toda marítima: a fachada é formada por dois faróis; o bar em forma de proa evoca o bateau ivre de Rimbaud; o palco é uma barcaça; as paredes trazem gaivotas, sereias, ilhas, velas e âncoras pintadas e as janelinhas do local são escotilhas. No palco apresentam-se cantores mudos e uma banda exótica formada por duas mulheres e um homem: uma violinista, uma tocadora de banjo e um baterista.

Dominada pelo spleen, a dama misteriosa recusa os avanços masculinos e assusta-se quando um galanteador lhe oferece flores: põe-se de pé ofendida, deixando o galanteador estarrecido. Após o pasmo, ele se vinga dividindo o buquê entre três garotas fáceis. A música não para de tocar.

A mulher de grandes olhos tristes recusa-se, porém, a tirar o casaco e o garçom se esforça para comunicar-se com ela. Diante do cardápio, ela fica mais perdida que nunca. O garçom traduz o conteúdo para diversas línguas até que ela entenda alguma coisa. Mas diante de outro homem que se veste como um comandante de navio, aproximando-se sem alarde, ela estabelece uma conexão.

Com o estranho sedutor que recorda Rudolph Valentino ela troca carícias, dança e sonha com viagens exóticas ao Oriente. Uma vendedora de souvenirs interrompe seus devaneios e ela retira bruscamente sua mão da mão do sedutor. Este já havia percebido o relevo de uma aliança (a mulher era casada) e, agora, quando ela se eriça, sua pulseira rebenta, deixando-o a segurar uma medalha.

Enquanto a mulher se distrai com o souvenir comprado – um barquinho chamado L’invitation au voyage – o sedutor abre a medalha e vê a foto de uma menina: além de casada, a senhora tem uma filha! Imediatamente, ele se retrai e vai dançar com outra, que se mostra alegre e fácil. Ao mesmo tempo, sentindo algum remorso, envia um buquê de flores à dama abandonada. Retorna à mesa trazendo a tiracolo a sirigaita. Sem nada entender do jogo do sedutor, a mulher casada perde todo o interesse nele e se retira imediatamente do cabaré.

Retornando ao lar, a dama visita rapidamente o berço da filha e ouve o marido chegar de uma noitada. Percebemos que seu casamento é infeliz e que ela não sabe escapar de seu destino: sua fuga foi decepcionante e não levou a nada, seu sonho de viagem a um lugar de “luxo, calma e voluptuosidade” terminou num beco sujo e sem saída, que ela vislumbrou ao abrir a escotilha do cabaré…

Décadas antes das teorias do “cinéma stylo” (“cinema-caneta”, 1948), de Alexandre Astruc; e do “cinéma d’auteur” (“cinema de autor”, 1950-1960), dos críticos dos Cahiers du Cinéma, Germaine Dulac assinou seu nome, com bastante firmeza, na última cartela, abaixo da palavra Fin, afirmando que seu filme era uma obra autoral, cinematograficamente “escrita” pela diretora, segundo sua própria teoria da “cinégraphie” (“cinegrafia”).

Em 1928, Dulac participou da Segunda Vanguarda com o média-metragem A concha e o clérigo (La coquille et le clergyman, 1928), realizado a partir de um scenario de Antonin Artaud, que tinha a consciência de que realizaria com Dulac o primeiro filme do movimento surrealista que integrava. O scenario foi entregue à Associação de Autores de Filmes em 16 de abril de 1927.

Pouco depois de seu registro, o scenario de Artaud foi levado por Yvonne Allendy (1890-1935) à apreciação de Dulac para ser eventualmente filmado. Casada com o médico René Allendy (que desposará a irmã dela, Colette, após sua morte), Yvonne fundara em 1926, com o marido e com René Laforgue e Marie Bonaparte, a Sociedade Psicanalítica de Paris, especializando-se nas relações entre arte e psicanálise. Tornou-se então tesoureira do teatro Alfred Jarry, fundado em 1926 por Artaud (com Robert Aron e Roger Vitrac), tornando-se uma espécie de agente literária do genial e psicótico autor.

Assim que Dulac aceitou fazer o filme, Allendy passou a divulgar notas à imprensa sobre o planejamento da produção, sem o conhecimento e o mandato de Dulac, lançando informações sabidamente incorretas aos jornalistas para pressionar a diretora a confiar o papel do clérigo a Artaud:

 

Antonin Artaud acaba de terminar um scenario de grande interesse feito de um único sonho que encerra o mais angustiante e o mais misterioso dos dramas. Mme. Dulac será a diretora. O autor interpretará o papel principal. (ALLENDY apud “Notes”, in ARTAUD, 1970).

 

Programando-se para interpretar o clérigo e codirigir o filme de Dulac no set, Artaud pediu duas semanas de folga a Carl Dreyer, que filmava O martírio de Jeanne d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), onde ele interpretava o bondoso monge Jean Massieu. A partir das notas de Allendy, a revista Cinémagazine anunciou que Dulac trabalhava na decupagem do scenario de Artaud, que seria o ator principal do filme:

 

Cinémagazine, 6 de maio de 1927:

Filme de Sonho

Em colaboração, Germaine Dulac e o poeta “surrealista” Antonin Artaud, que foi Marat em Napoléon, vão rodar um filme original cujo scenario foi inspirado num sonho. Ele só terá um intérprete: Antonin Artaud. (“Notes”, in ARTAUD, 1970).

 

Artaud escreveu seis cartas a Dulac escondendo cuidadosamente seu desejo de interpretar o clérigo e participar das filmagens, induzindo a cineasta a chegar “por si mesma” à conclusão de que sua presença seria indispensável no set:

 

11 de maio de 1927

Junto com a primeira carta, Artaud enviou a Dulac uma decupagem de seu scenario retirando “tudo o que é descritivo”, conservando apenas “a enumeração dos detalhes e dos planos […] o que explica sua secura”. Em seguida, ele acrescentou de modo ameaçadoramente contraditório: “Mas penso que o scenario primitivo restitui a atmosfera que quis dar a este filme”.

A carta, tão seca como a “decupagem”, deve ter intrigado Dulac: com que intenção Artaud enviava um resumo de seu scenario se este seria mais fiel à sua ideia do filme? Mais que facilitar a decupagem do scenario pela diretora, a intenção de Artaud seria abalar a segurança de Dulac, uma vez que o chamado Scenario II traz cenas diferentes do Scenario I enviado à cineasta.

Na carta datilografada, Artaud escreveu ainda à mão, antes de envelopá-la, uma nota reiterando o enigma: “A decupagem parece mais curta que o scenario porque retirei dela tudo o que tem um caráter poético ou de certa forma literário. Só conservei a ossatura, os cenários, as paisagens, e os objetos. Penso que isso poderá funcionar.” (ARTAUD, 1970).

 

Desde essa primeira carta fica evidente que a intenção de Artaud é ser chamado para participar das filmagens: ao enviar uma decupagem diferente do scenario, com cenas descarnadas e tomadas não previstas, dizendo ao mesmo tempo preferir a atmosfera do scenario, ele esperava ser convocado para explicar como queria que cada cena fosse efetivamente filmada.

Logo saiu outra nota, desta vez na revista Comèdia, adiantando alguns créditos do filme de Dulac, com base, em parte, nas informações passadas pela “assessora” Allendy, mas trazendo uma informação nova até para Artaud:

 

Comèdia, 19 de maio de 1927:

Cinéma

A concha e o clérigo, sonho de Antonin Artaud, será realizado por Germaine Dulac ao longo do próximo mês de junho. Intérpretes: Antonin Artaud e Génica Athanasiou. Assistente: Louis Ronjat. (“Notes”, in ARTAUD, 1970).

 

Assim que soube por Allendy que o Scenario II e essa nota da Comèdia haviam perturbado Dulac, Artaud escreveu-lhe uma segunda carta, talvez no mesmo dia em que saiu o artigo da Comèdia, eximindo-se da culpa afirmando não ter escrito aquelas notas nem pedido que elas fossem publicadas. Ele desaprovava totalmente a redação das mesmas e confessava ter ficado chocado. Não diz o que exatamente o chocou, mas Virmaux imagina que Artaud só tenha sabido pela Comèdia que Louis Ronjat seria o assistente de direção do filme, função que ele almejava juntamente com o papel do clérigo. Artaud tenta afastar da mente de Dulac a suspeita de que ele desejaria controlar o filme:

 

Não tenho absolutamente a pretensão de colaborar com a senhora. Seria uma pretensão estúpida. Eu disse apenas à senhora Allendy que a senhorita Genica Athanasiou encarnaria perfeitamente o personagem da mulher, mas isso, claro, sob o crivo da vossa aceitação. (ARTAUD, 1970).

 

Artaud confirma o papel da amiga Allendy na divulgação dessas notas à imprensa, mas abstém-se de negar seu desejo devorador de interpretar o clérigo. Não protesta por ter a revista apresentado A concha e o clérigo como um “sonho de Antonin Artaud”. Disse apenas que a imprensa de cinema acolhia os boatos mais loucos, dando o exemplo da notícia publicada de que ele interpretaria o papel do Grande Inquisidor no filme de Dreyer. Apesar do protesto veemente de Artaud, a tática de lançar os boatos mais loucos à imprensa através de Yvonne Allendy funcionou, pois Genica Athanasiou foi efetivamente escolhida por Dulac para encarnar a mulher no filme.

 

17 de junho 1927

Terceira carta de assédio de Artaud: antes que Dulac começasse a dirigir o filme, ele queria conversar “longamente” com ela, pois lhe viera à mente “um grande número de ideias sobre a realização do filme”, e seria melhor que essa conversa se desse pessoalmente. Não se tratava de modificar o scenario:

 

Há uma série de nuances, de detalhes, de sutilezas, de truques de magia que vejo mui exatamente como se poderia fazê-los, mas que só poderiam ser indicados na filmagem. Também tenho uma concepção bastante precisa da maneira como os atores devem interpretar as cenas, e do ritmo certo a ser-lhes pedido, a ser-lhes comunicado. Tudo isso é uma questão de concepção e absolutamente não de realização, não interferindo em nada na mise-en-scène propriamente dita, que não me diz respeito, e na qual não tenho a intenção de interferir. (ARTAUD, 1970).

 

Depois de descrever com riqueza de detalhes como ele filmaria algumas cenas segundo as novas concepções que lhe ocorreram com tanta intensidade em noites mal dormidas relembrando de seu scenario às vésperas da filmagem, Artaud indicou a Dulac um novo ator para o papel do oficial:

 

A senhora já tem alguém para o papel do oficial? Envio-lhe aqui a foto de um ator que possui quase absolutamente a cabeça que eu tinha em mente. Eu quis uma grande oposição de expressão entre a cabeça do oficial e a do clérigo e me parece que essa cabeça realiza essa oposição. (ARTAUD, 1970).

 

Além de mudar os atores, de anular as escolhas de Dulac, de pressionar a diretora para modificar os cenários, de querer dirigir os atores à sua maneira e de imprimir o ritmo “certo” das cenas no set, Artaud queria também, às vésperas da filmagem, criar novas cenas não previstas no scenario:

 

Eu também tenho outra ideia que eu queria comunicar à senhora. É a de uma nova cabeça de mulher eternamente dolorosa, lamentável, da qual não se verá quase nunca os olhos: um olhar pungente, e que constituiria uma espécie de contra-imagem destinada a contrabalançar a cabeça da mulher loira. Como uma obsessão, uma espécie de remorso antigo, continuamente devorada por essa cabeça de mulher loira que terá sempre um aspecto vitorioso. Ela apareceria como um vapor, um sinal logo extinto. Ainda não vejo muito bem o momento onde eu poderia colocá-la. Mas se a senhora estiver de acordo comigo sobre o princípio dessa cabeça também tenho uma mulher que ficaria muito bem no papel. (ARTAUD, 1970).

 

27 de junho de 1927

Algumas notas supostamente escritas por Artaud sobre como as cenas de seu scenario deveriam ser filmadas chegaram às mãos de Dulac, provavelmente através de Allendy. Artaud voltou então à carga numa quarta carta a Dulac, negando veementemente que aquelas notas tivessem sido escritas, ditadas ou inspiradas por ele. Nunca lhe passara pela cabeça sabotar a direção de Dulac! Artaud se diz perseguido: “Há pessoas que procuram me prejudicar, que me detestam pessoalmente, e que não podem suportar ver-me trabalhando, fazendo alguma coisa.” (ARTAUD, 1970).

 

13 de julho de 1927

Depois de encontrar-se com Dulac, que lhe explicou como filmará algumas cenas, Artaud comunicou-lhe numa quinta carta que desejava absolutamente concretizar uma “infinidade de coisas” que ele deixou vagas no scenario. Ele aprovava o ritmo que ela queria imprimir às cenas e sua escolha de cenários simplificados ao máximo. Mas após a boa conversa, ele pensou que talvez esses cenários devessem ser diferentes, ainda mais estilizados…

Artaud tinha premência de encontrar-se novamente com Dulac porque havia obtido de Dreyer duas semanas de folga, de 8 a 20 de julho de 1927, tempo que ele havia imaginado ocupar filmando A concha e o clérigo com Dulac. Só lhe restava agora uma semana e Dulac não se convencera de que sua presença no estúdio era imprescindível.

Na verdade, Dulac nunca teve a intenção de incluir Artaud no elenco de seu filme nem queria sua presença no Studio Gaumont onde logo começaria a filmar. Depois de assinar o contrato, Dulac adiou as filmagens para agosto, impedindo assim que Artaud fosse ali se intrometer para dar mais palpites sobre como ela deveria dirigir seu filme. Artaud acreditava que o filme fosse “seu” por ter escrito o scenario, mas ao confiar o mesmo a Dulac esqueceu que ela havia teorizado que a cinegrafia era obra do todo-poderoso metteur-en-scène.

Artaud não escreveu a Dulac nenhuma carta durante as filmagens de A concha e o clérigo, realizada, segundo alguns documentos, entre 15 de julho e 29 de agosto de 1927. Mas ele e Allendy mantiveram-se bastante ocupados nesse período, tramando estratégias de apropriação do filme às costas de Dulac.

Allendy projetou alugar a Salle Adyar com seu próprio dinheiro para projetar A concha e o clérigo em agosto de 1927, contratando homens-sanduíches para divulgar o evento. Para essa ocasião, Artaud escreveu o texto “Feitiçaria e cinema” onde explicou sua ideia de cinema e especialmente do seu filme. Uma tira de papel junto ao manuscrito desse texto traz as seguintes linhas escritas por Allendy ou ditadas a ela por Artaud:

 


A Sra. Germaine Dulac dirige atualmente, no Estúdio Gaumont, A concha e o clérigo, filme bastante curioso, feito de um único sonho que encerra o mistério de um drama, e cujo roteiro é a obra do poeta Antonin Artaud. (ALLENDY/ARTAUD, “Notes”, in ARTAUD, 1970).

 

Allendy/Artaud definiam A concha e o clérigo como um sonho, “um único sonho”. No texto “Feitiçaria e cinema” Artaud afirma:Se o cinema não for feito para traduzir os sonhos ou tudo o que, na vida desperta, assemelha-se ao domínio dos sonhos, o cinema não existe.” (ARTAUD, 1995, pp. 172-173).

Nos papéis de Allendy foi encontrado um artigo intitulado “Um escândalo”, de Allendy/Artaud, denunciando as “salas de arte e ensaio” de medo e cupidez por não exibirem um filme que “há seis meses a imprensa discute com paixão, um filme verdadeiramente de vanguarda que traz ao cinema uma concepção verdadeiramente nova: A concha e o clérigo”:

 

Essas pequenas salas medrosas e cúpidas […] continuam “não ousando” dar o primeiro filme-sonho: A concha e o clérigo de Antonin Artaud, realização de Germaine Dulac. Este filme “inquietante” será apresentado em seis noites a partir de amanhã na sala Adyar […]. (ALLENDY/ARTAUD, “Notes”, in ARTAUD, 1970).

 

Mais uma vez Allendy/Artaud definem A concha e o clérigo como um filme-sonho, como “o primeiro filme-sonho”. Mas o texto não foi publicado nem o filme lançado na Salle Adyar. As filmagens de A concha e o clérico terminaram, sem a presença de Artaud, também excluído da edição. Dulac não queria tampouco mostrar o filme a Artaud antes da estreia, que se daria durante uma conferência sua no Salão de Outono. Furioso, Artaud começou a planejar uma sabotagem do filme.

 

29 de agosto de 1927

Artaud escreveu uma carta ao seu editor Jean Paulhan, da Nouvelle Revue Française (N.R.F.), manifestando inquietação sobre a realização de A concha e o clérigo, cujo scenario ele enviara para publicação na revista. Tomando conhecimento pela imprensa de que o filme estrearia no Salão de Outono, Artaud pediu a Paulhan que ele publicasse no número de outubro da N.R.F. um artigo curto sobre cinema, onde ele citaria acessoriamente A concha e o clérigo:

 

Seria de muito grande interesse para mim que um artigo assim pudesse sair, sobretudo nessa data. Por que depois seria tarde demais, mesmo em novembro. Tenho algo a defender, e um artigo pode me ajudar a defender meu filme sem atacar ninguém, mas para bem determinar minha posição em relação a esse filme. Pois tenho a respeito alguns aborrecimentos. E um artigo meu esclareceria a situação. Posso escrevê-lo e o senhor consentiria em acolhê-lo para publicá-lo na data que peço ao senhor?

Disseram-me que o scenario de A concha sairá em novembro. E é sobre isso que gostaria de dar algumas explicações!!! (ARTAUD, 1970).

 

25 de setembro de 1927

Num tom mais sério, revelando sutilmente um aumento de tensão, Artaud voltou a assediar Dulac com uma sexta carta, onde tentou obter a confirmação da estreia do filme, marcada a princípio para 25 de outubro de 1927, no Salão de Outono, para que a publicação de seu artigo na NRF coincidisse com o evento:

 

Cara senhora:

Eu gostaria muito de ter algumas notícias da Concha. O filme deve ter agora absolutamente terminado e eu esperava que a senhora me fizesse um aceno para me permitir vê-lo. Poderia me dizer em que ponto está e se a apresentação ainda está programada para o dia 25 de outubro?

Falaram-me de um texto explicativo projetado na abertura do filme. Mas no que me concerne não sou muito partidário de um preâmbulo escrito. Penso que o filme se basta e que não há erro possível. Eu jamais considerei este filme como a demonstração de uma teoria qualquer que ela seja. É um filme de imagens puras. E o sentido deve se desprender da radiação dessas imagens. Não há subentendido nem psicanalítico, nem metafísico, nem mesmo humano. Esse filme descreve estados verdadeiros do espírito sem nenhuma tentativa de elucidar ou de demonstrar o que quer que seja. Perguntam-me de todos os lados o que é esse filme e só posso manifestar minha ignorância. Entretanto eu creio que é tempo agora de lançá-lo. Todas as pesquisas que ele contém estão no ar e não teremos mais o benefício da novidade.

[…] creio que alguns artigos seriam necessários para que a senhora demonstrasse o que quis fazer. Que pensa? (ARTAUD, 1970).

 

Artaud referia-se ao filme de Dulac como um filme seu supostamente usurpado. Seu plano de controlar as filmagens e obter a autoria do filme tornando a diretora sua assistente de direção, falhara miseravelmente. Não tendo conseguido domar Dulac no set, Artaud preparava-se, agora, para enfrentá-la no campo teórico, contrapondo sua ideia do filme ao filme realizado. Por isso quis certificar-se da data do lançamento e provocar a diretora para que escrevesse alguns artigos para explicar o que ela pretendeu com o filme.

Como vimos nas seis cartas de Artaud a Dulac, ele negou a pretensão de colaborar com ela na direção do filme e afirmou só querer detalhar as tomadas, indicar os atores “perfeitos” para encarnar os personagens, modificar os cenários, criar novas cenas, imprimir o ritmo “correto” ao filme, ou seja: ele queria dirigir a diretora sem que ela se apercebesse disso.

Mas curiosamente para Virmaux, que descobriu as cartas em suas pesquisas sobre o cinema surrealista, elas não revelariam nenhum desacordo entre Artaud e Dulac, que a seu ver não o teria afastado das filmagens. Ele não apresentou outras provas desse bom relacionamento além das cartas, que não demonstram absolutamente que Artaud estivesse conformado a ser apenas o scenarista do filme, e sim o contrário.

É fato que, nas seis cartas, Artaud trata Dulac com respeito: (1) “votre tout dévoué” (“vosso todo devotado”); (2) “fidèlement vôtre” (“fielmente vosso”); (3) “votre très dévoué” (“vosso mui devotado”); (4) “votre très fidèlement dévoué” (“vosso mui fielmente devotado”); (5) “amicalement vôtre” (“amigavelmente vosso”); (6) “recevez l’expression de mes sentiments très profondément dévoués” (“recebei a expressão de meus sentimentos mui profundamente devotados”) (ARTAUD, 1970).

Mas esse tratamento de respeito formal é uma dissimulação calculada: todas as variações do salamaleque ocultam o desejo profundamente desrespeitoso de Artaud de tirar de Dulac o controle da mise-en-scène do filme. Ele estava convencido de que ela, uma mulher, a despeito de sua experiência profissional na direção de outros scenarios, não poderia dirigir sozinha o seu.

Sem poder esconder A concha e o clérigo de Artaud por tempo, Dulac teve que atender à solicitação dele e marcou uma sessão particular em outubro. Ainda sem ver o filme, Artaud escreveu então dois artigos estratégicos que incluíam um elogio a Dulac:

 

A concha e o clérigo

Cahiers de Belgique, n˚ 8 de outubro de 1928

A concha e o clérigo, antes de ser um filme, é um esforço ou uma ideia. […] Chegou o momento de dizer até que ponto esse scenario pode assemelhar-se e aparentar-se à mecânica do sonho sem ser, realmente, um sonho, por exemplo. […] É este, pelo menos, o pensamento ambicioso que inspirou esse scenario, que, de qualquer maneira, supera os limites de uma simples narração ou das questões, habituais no cinema, de música, ritmo ou estética, para colocar a questão da expressão em todos os seus domínios e toda sua extensão (ARTAUD, 1995).

 

O cinema e a abstração

Le Monde Illustré, n˚3.645, 29 de outubro de 1927:

Apresentação (supostamente escrita por Yvonne Allendy)

Alguns pensam que o cinema vai encontrar seu verdadeiro caminho na expressão das imagens subjetivas. Esta é a ousada proposta do poeta Antonin Artaud, com um scenario feito de um único sonho, A concha e o clérigo, que será brevemente apresentado ao público. A Sra. Germaine Dulac teve o mérito de aceitar dirigi-lo e era preciso todo seu talento para tentar restituir a tais imagens a luz, o movimento e a atmosfera que lhe são próprios. O autor do scenario expõe aqui sua concepção de semelhante busca.

O cinema e a abstração

A concha e o clérigo não conta uma história, mas desenvolve uma sequência de estados de espírito que derivam uns dos outros […]. A senhorita Athanasiou soube confundir-se muito bem com um papel todo instinto e onde uma sexualidade muito curiosa adquire um aspecto de fatalidade que ultrapassa a personagem enquanto ser humano e sintetiza o universal. Eu também só tenho elogios para os senhores Alex Allin e Bataille. E, para terminar, quero agradecer muito especialmente à Sra. Germaine Dulac, que soube reconhecer o interesse de um scenario que busca introduzir-se na própria essência do cinema e não se ocupa em fazer alusões, nem à arte, nem à vida. […]

Contudo, ao ver o filme, Artaud detestou o que viu, e escreveu uma sétima carta a Dulac, na qual, segundo Virmaux, exprimia sua opinião sobre o filme terminado (“Notes”, in ARTAUD, 1970). Permanece a dúvida sobre o teor dessa carta decisiva: como Virmaux soube de seu conteúdo se ela não foi conservada? Por que somente as outras seis, em que o autor do scenario listava sugestões que a diretora deveria seguir para não realizar um filme de Dulac e sim um filme de Artaud, foram conservadas, se supostamente as sete foram guardadas juntas? Quem destruiu ou escondeu a sétima carta?

Considerando que seu scenario havia sido “traído” por Dulac, Artaud decidiu sabotar a estreia de A concha e o clérigo organizando com seus amigos surrealistas uma “expedição punitiva” contra a diretora, supostamente no Salão de Outono, quando Germaine Dulac apresentaria O convite à viagem e A concha e o clérigo, conforme os anúncios impressos da divulgação do evento:

A concha e o clérigo

Sonho de Antonin Artaud

Realizado cinegraficamente por Germaine Dulac

[…]

Mas no dia da conferência, um anúncio publicado em Comèdia indicou ter Dulac, à última hora, desistido de apresentar A concha e o clérigo:

Conferência de Germaine Dulac

Hoje, quarta-feira, 23 de novembro, às 15 horas, Robert de Farville apresenta no teatro do Salão de Outono, no Grand Palais, um espetáculo de vanguarda cinematográfica, durante o qual Germaine Dulac falará de dois filmes, com exibição de O convite à viagem, sua última produção, e de Dura Lex, produzido pela Goskino na Rússia soviética.

O convite à viagem não era a última produção de Dulac, e sim A concha e o clérigo. Mas assim que soube desse filme, Armand Tallier pediu a Dulac que ele fosse exibido com exclusividade no Studio des Ursulines. Sendo essa proposta mais interessante que o evento no Salão de Outono, Dulac reservou a estreia de A concha e o clérigo para o Studio des Ursulines, a princípio em janeiro de 1928.

No dia 1° de novembro de 1927, saiu a Nouvelle Revue Française n˚ 170, com o scenario de A concha e o clérigo, precedido da nota Cinema e realidade, em que, desde o título genérico, Artaud contestava a ideia de que o filme realizado de seu scenario era um “Sonho de Antonin Artaud”, como Dulac o havia apresentado poeticamente nos créditos iniciais ao invés do burocrático: “Scenario: Antonin Artaud”.

Depois de definir seu filme como “um sonho”, “inspirado num sonho”, “um único sonho”, “o primeiro filme-sonho”, e de assim divulgá-lo à imprensa através da amiga Allendy, Artaud agora desabonava, pouco antes da estreia de A concha e o clérigo, a ideia de que seu filme fosse um sonho. Agora, para Artaud, ele era “uma realidade”, “uma verdade sombria”, “mundos criados pela imagem”, “uma realidade que parece destruir a si mesma”, exemplar de um cinema que trabalha “com a derme da realidade”:

 

No scenario que vem a seguir procurei concretizar essa ideia de cinema visual, onde até a psicologia é devorada pelos atos. Este scenario não reproduz um sonho e não deve ser considerado como tal. Não procurarei desculpar sua aparente incoerência pela escapatória fácil dos sonhos. Os sonhos têm mais que sua lógica. Têm sua vida, onde só aparece uma verdade inteligente sombria. Este scenario busca a verdade sombria do espírito, em imagens saídas unicamente delas mesmas e que não tiram seu sentido da situação onde elas se desenvolvem, mas de uma espécie de necessidade interior e potente que as projeta à luz de uma evidência sem apelação.


A pele humana das coisas, a derme da realidade, é, sobretudo, com isso que o cinema trabalha. Ele exalta a matéria e a revela para nós em sua espiritualidade profunda, em suas relações com o espírito de onde ela se originou. As imagens nascem, derivam umas das outras, enquanto imagens impõem uma síntese objetiva mais penetrante que qualquer abstração e criam mundos que não pedem nada a ninguém nem a nada. […] Certa agitação de objetos, formas, expressões, só se traduz bem nas convulsões e sobressaltos de uma realidade que parece se destruir a si mesma com uma ironia na qual ressoa o grito dos confins do espírito. (ARTAUD, 1970).

 

A concha e o clérigo não era um filme-sonho, como fora por ele e Allendy definido e divulgado fartamente em notas e artigos publicados pela imprensa especializada até então, numa definição assimilada por Dulac ao imprimir nos créditos do filme “Sonho de Antonin Artaud”. Mas ao prestar essa homenagem a Artaud, Dulac ficou presa na armadilha teórica que ele armou para destrui-la: a cineasta podia agora ser ridicularizada pelos surrealistas como incapaz de assimilar o scenario do poeta, que não era um sonho, como ela imaginou, mas a “verdade sombria do espírito” – de um espírito de porco, claro.

O sonho era essencial para o surrealismo, informado pela psicanálise freudiana. Um filme surrealista não poderia deixar de explorar os mecanismos do sonho em sua linguagem e exaltar a dimensão onírica intimamente ligada ao sexo. Germaine, que leu cedo Freud, cuja Introdução à psicanálise, traduzida em francês em 1921, estava em sua biblioteca, de acordo com seu secretário L. B. Danou (DANOU, 2005), foi provavelmente escolhida pela própria cofundadora da Sociedade Psicanalítica de Paris para dirigir o scenario de seu protegido Artaud por ser sabidamente capaz de entender sua linguagem onírica.

Artaud havia sonhado abertamente que o filme fosse seu. Não conseguindo domar Dulac no estúdio de filmagem nem na mesa de edição, agarrou-se àquela liberdade poética de Dulac ao definir seu filme como “um sonho de Antonin Artaud” e bradou que isso violava o contrato e destruía sua ideia do filme. Seu scenario, seu filme, não era um sonho seu, mas uma forma da realidade.

Dulac também não se deixou domar teoricamente, e mesmo sendo obrigada, sob a ameaça de um processo, a substituir seus créditos poéticos por créditos burocráticos, continuou a chamar seu filme de sonho. Entrevistada por Lydie Lacaze na revista La Rumeur, publicada em 12 de janeiro de 1928, Dulac declarou: “Você poderá ver em janeiro, nas Ursulines, meu último filme de vanguarda: A concha e o clérigo. Não tem uma história, é apenas um sonho.” (“Notes”, in ARTAUD, 1970). Isso deve ter enfurecido Artaud, que planejou sabotar a estreia do filme.

Tallier, provavelmente com a grade do Studio des Ursulines já comprometida durante todo o mês de janeiro, programou A concha e o clérigo para fevereiro. Temos um relato bastante vivo do que ocorreu na estreia de A concha e o clérigo no dia 9 de fevereiro de 1928 no Studio des Ursulines, publicado poucos dias depois, em 18 de fevereiro, no jornal Le Charivari:

 

Na última quinta-feira, o Studio des Ursulines fazia a pré-estreia de seu novo programa. Exibiam o filme da Sra. Dulac, A concha e o clérigo, obra de alucinação, que é a narrativa de um pesadelo. O público acompanhava com interesse essa curiosa produção quando na sala ouviu-se uma voz fazer essa pergunta:

 

– Quem fez esse filme?

Ao que outra voz respondeu: – É a Sra. Germaine Dulac.

Primeira Voz: – O que é a Sra. Dulac?

Segunda voz: – É uma vaca.

 

Diante da grosseria do termo, Armand Tallier, o simpático diretor do Ursulines, correu para acender a luz e cercar os dois perturbadores… Era Antonin Artaud, um surrealista um pouco louco e um pouco maníaco, autor do scenario do filme que assim manifestava seu descontentamento contra a Sra. Dulac, a quem ele acusava de ter distorcido sua “ideia” (uma ideia um tanto louca). E com ele gritava outro surrealista bem conhecido que, parece, às vezes tem talento.

Intimados por Tallier a se desculparem, eles só encontraram para responder a palavra de Cambronne [“merda”] e outras imundícies, e foram logo ajudados nessa tarefa por alguns outros surrealistas, os mesmos que haviam feito baderna na véspera na Tribune Libre. Mas as personalidades do mundo do cinema presentes não se deixaram levar, e, com Tallier na liderança, expulsaram com socos e pontapés a banda Artaud & Cia., que, enfurecida, quebrou os espelhos do hall soltando gritinhos bizarros: “Goulou… Goulou…”. (“Notes”, in ARTAUD, 1970).

Alguns relatos mencionam que Artaud teria até cuspido em Dulac e que, enquanto os surrealistas abandonavam a sessão, o “chefe” deles, André Breton, gritava-lhe obscenidades e a excomungava do movimento. Esse horrível ataque incontrolável de machismo de Artaud e de seus amigos do grupo surrealista, insultando, desqualificando e cancelando publicamente a cineasta, pesou decisivamente na recepção negativa do filme pela crítica.

Georges Sadoul confirmou o concerto de gritos e de vociferações, as injúrias grosseiras lançadas contra Dulac, mas culpou a cineasta de “deformar e trair um scenario surrealista”, contestando que os manifestantes tivessem sido expulsos da sala, pois “Armand Tallier não era desses homens que chamam a polícia para estabelecer a ordem” (SADOUL. Souvenirs d’un témoin. Études cinématographiques, n˚ 38-39, 1965, apud ARTAUD, 1970). Mas ao contrário do que ele fez seus leitores acreditarem com essa suposição calculada, Charivari não reportou nenhuma intervenção policial e sim a reação irada dos que, desejando ver o filme, expulsaram os baderneiros com socos e pontapés.

Em Le surréalisme au cinéma, Ado Kyrou justificou o ataque covarde a Dulac por ter Artaud agido “em pleno acordo e com o apoio de todos os surrealistas” (KYROU, 1963). Como se Artaud tivesse razão por contar com um bando de machos a apoiá-lo em sua “expedição punitiva” contra uma única mulher que ousava se destacar dentro do círculo exclusivamente masculino dos surrealistas!

Essa noitada faz lembrar a cena de Carrie, a estranha (Carrie, 1976), de Brian de Palma, onde os colegas do colégio dão um banho de sangue de porco na jovem paranormal Carrie, a “esquisitona da escola”, durante o baile de formatura onde ela finalmente se consagra, sendo coroada a rainha…

Charles Ford tentou desculpar Artaud afirmando (sem citar a fonte) que não foi ele quem lançou o lendário insulto à diretora, mas “um amigo de Antonin Artaud” (FORD, 1968). Kyrou precisou que ela foi lançada por Robert Desnos (KYROU, 1963).

De fato, Desnos foi o único surrealista engajado na “expedição punitiva” citado nominalmente pelo Charivari. Mas o artigo não precisou a quem pertenciam a Primeira Voz e a Segunda Voz que chocaram os espectadores na sessão de estreia do filme. O lógico seria que Desnos fosse a Primeira, perguntando “de quem é o filme?” e depois “o que é (sic) Germaine Dulac?”, sendo a Segunda a de Artaud, respondendo “uma vaca”.

Seria mais lógico porque o artigo de Charivari deixou claro que essa injúria integrava uma peça curta do teatro da crueldade de Artaud, ensaiado com Desnos e os outros surrealistas. Ainda que fosse de Desnos ou de outro surrealista a Segunda Voz a lançar a injúria previamente combinada com a Primeira, ela apenas reverberaria as injúrias que Artaud já devia ter lançado contra Dulac em seu círculo íntimo, tendo convencido seus amigos surrealistas a participar da “expedição punitiva”.

O efeito do linchamento moral foi duradouro, pois os críticos, dando razão a Artaud contra Dulac, mantiveram A concha e o clérigo num limbo discreto, evitando uma reavaliação isenta de preconceitos. Tiveram que reconhecer que Dulac realizou um filme autenticamente surrealista e, historicamente, o primeiro deles. Mas atribuíram esse mérito a Artaud enquanto “autor do scenario”, mantendo Dulac em segundo plano.

Depois do escândalo, Yvonne Allendy rabiscou contra Germaine Dulac um artigo equivocado e venenoso, parodiando grotescamente o J’accuse de Zola, e que pode ou não ter sido publicado em algum jornal da época, mas cujo manuscrito foi encontrado em seus papéis pela irmã, Colette:

 

Acuso a Sra. G. Dulac de ter querido se apoderar de uma ideia original que pertencia ao scénariste e de ter tentado, por vários meios, relatados abaixo, afastá-lo e quase suprimi-lo de uma obra que, para ser bem realizada, exigia sua assídua colaboração.

Acuso por essa razão a Sra. G. Dulac de ter traído o espírito do scenario e, por sua obstinação, deformado imagens poéticas cujo sentido não compreendia e para a realização das quais recusava toda sugestão, de ter, ela mesma, causado uma reação violenta da parte dos poetas desejosos de eximir o Sr. Antonin Artaud dos erros do filme da Sra. Dulac.

Acuso a Sra. Dulac de ter mandado imprimir sobre o filme:

 

SONHO DE ANTONIN ARTAUD

COMPOSIÇÃO VISUAL DE GERMAINE DULAC

 

Como o autor respondeu através de notas na imprensa e da publicação de seu scenario na N.R.F., provando assim que a composição das imagens lhe pertencia, a Sra. Dulac cedeu, mandando imprimir a fórmula habitual:

 

SCENARIO DE ANTONIN ARTAUD

REALIZAÇÃO DE GERMAINE DULAC

Acuso Germaine Dulac de ter tentado desde o mês de novembro de 1927, data na qual a NRF publicava o scenario do Sr. Antonin Artaud e, sentindo-se comprometida por esse fato, de ter impedido a projeção deste filme em Paris. (“Notes”, in ARTAUD, 1970).

 

Allendy acusava Dulac de (1) ter impedido Artaud de colaborar na realização de seu scenario e arranjado para que ele não pudesse representar o clérigo, como se a diretora tivesse a obrigação de aceitá-lo como codiretor e ator de seu filme; (2) ter traído o espírito do “filme” e deformado suas imagens poéticas, fazendo o filme que Dulac quis fazer e não aquele que estava na cabeça de Artaud, sendo por isso culpada das agressões dos surrealistas e não sua vítima; (3) ter escrito um crédito poético chamando o filme de “sonho de Artaud” e assumindo a composição visual do mesmo para “roubar” a autoria de Artaud, como se a composição das imagens não fosse a concretização do imaginário do scenario através das escolhas da diretora (objetos, paisagens, cenários, atmosferas, ritmos, atores, planos, enquadramentos, etc.) que traduziriam a sua leitura do scenario; (4) “impedido” a estreia do filme, como se as interferências e pressões de Allendy e Artaud nada tivessem a ver com isso.

Após a balbúrdia, A concha e o clérigo, apresentado em programa duplo com A tragédia da rua (Dirnentragödie, 1927), de Bruno Rahn, foi retirado de cartaz e reagendado na mesma sala para 14 de maio de 1928, em programa duplo com Três horas de uma vida (Three Hours, 1927), de James Flood.

A narrativa de A concha e o clérigo, cuidadosamente descosturada, com sentidos eróticos subentendidos, segue uma lógica onírica, com influências tanto do surrealismo quanto do expressionismo, com justaposições nonsense de imagens e representações exageradas ao máximo dos atores.

Um padre enlouquecido tenta matar um militar para se apossar de sua esposa. Através de truques e efeitos fotográficos característicos do impressionismo cinematográfico, os pensamentos das personagens afloram na tela. O filme ousa ao mostrar um nu feminino, quando o padre, enlouquecido, arranca as roupas da mulher, deixando seus seios à mostra.

Desejando a morte do militar, o padre sonha em partir-lhe a cabeça: duas imagens justapostas do militar desabam, como se a cabeça dele se rachasse e abrisse ao meio. Mesmo a tentativa de assassinato é estilizada: o padre esgana o militar segurando não exatamente seu pescoço, mas seu colarinho, balançando o corpo dele como se o estivesse estrangulando.

Os truques óticos utilizados por Dulac em A concha e o clérigo foram obtidos com muito trabalho e paciência. Ela explicou os detalhes técnicos aos cinéfilos holandeses numa apresentação à Filmliga, sendo o mais elaborado o da cabeça rachada ao meio. A diretora construiu o filme como uma orquestração rítmica, onde cada imagem possui sua cadência, criando, no conjunto, a harmonia, pelo que ele foi exibido na estreia sem acompanhamento musical, a seu ver supérfluo. [DULAC, “Rythme et technique” (1928), 2021].

Na Inglaterra, a Censura baniu A concha e o clérigo com a seguinte justificativa, bastante estúpida, da British Board of Film Classification: “O filme é tão enigmático que quase não faz sentido. Se ele tem algum significado, é sem dúvida censurável.” (ROTHA, 1967).

Dulac não traiu o espírito da obra de Artaud. O conceito de “filme-sonho” não nasceu de uma “interpretação errada” das imagens poéticas do scenario: ele foi criado por Artaud/Allendy para divulgar A concha e o clérigo. Os ataques covardes a Dulac foram devidos à sua irrevogável decisão de realizar sua própria leitura do scenario, um filme de Dulac e não de Artaud, ferindo profundamente o machismo do poeta.


O machismo ferido de Artaud encontrou a rápida cumplicidade de Allendy, que o protegia do mundo como mãe possessiva; dos surrealistas, que não hesitaram em participar da curra moral de Dulac; e dos críticos que legitimaram o assassinato de reputação da cineasta sem considerar seus méritos.

Depois de justificar o enxovalhamento de Dulac, Kyrou admitiu ser A concha e o clérigo “o primeiro filme surrealista”. Mas ele reconheceu esse mérito em detrimento de Dulac: “um único dos scenarios de Artaud, o de A concha e o clérigo, foi rodado, e ainda por cima mal […]. Foi infelizmente Mme. Germaine Dulac quem dirigiu A concha e o clérigo; essa senhora não conseguia compreender o que pedia Artaud”. (KYROU, 1963).

Mas o que pedia Artaud? O poeta foi incapaz de definir o cinema que desejava, multiplicando as abstrações que, na prática, nada significavam. É uma leviandade de Kyrou tecer loas ao scenario de Artaud em detrimento do filme de Dulac: “Esse scenario é muito belo; carregado de erotismo e de furor; podia gerar um filme da classe de A idade de ouro, mas Germaine Dulac, traindo o espírito de Artaud, fez um filme feminino.” (KYROU, 1963).

Aqui se denota o machismo de Kyrou, cúmplice do machismo de Artaud e dos surrealistas que o apoiaram. Ao negar haver erotismo e furor no filme de Dulac, ele omite que a cena em que o clérigo arranca as roupas da mulher e desnuda seus seios, recobertos magicamente por um sutiã de conchas, antecipou a cena de O cão andaluz em que o herói arranca a roupa da mulher e acaricia seus seios nus. Quando Kyrou elogia o filme é para diminuir Dulac:

 

Apesar de tudo, o filme guarda por momentos a marca da personalidade de Artaud, mas isso faz ressaltar ainda mais claramente a fraqueza da mise-en-scène e a maciez das sequências que deveriam fazer os dentes morderem. Penso particularmente no que poderiam ser as sequências do baile e a da bola de vidro. Com justa razão Artaud renegou o filme, publicando na N.R.F. o scenario e respondendo a Germaine Dulac, que se defendeu dizendo que o scenario de Artaud era uma loucura. (KYROU, 1963).

 

Poesia não é realidade. Dulac batia-se tanto quanto Artaud pelo “cinema visual”, mas tinha os pés no chão e consumada experiência, tanto como diretora de filmes vanguardistas quanto de filmes comerciais. Ela sabia o que era e o que não era possível fazer com os recursos técnicos, humanos e financeiros disponíveis. Não existiam na época os recursos digitais que poderiam produzir na tela algumas das fantasias delirantes imaginadas por Artaud. Ao responder a Artaud que seu scenario era “uma loucura”, ela disse apenas a verdade.

Para Kyrou, a avant-garde era um movimento retrógrado e de interesse apenas histórico, mas não de todo descartável: “Os Dulac (sic) etc. só tiveram de transformar o objeto para melhor fazer sentir estados de alma e atmosferas […] um cinema apesar dele [?] não sem interesse.” (KYROU, 1963). Apesar de Kyrou, o interesse pela avant-garde permanece. Causa espanto que um estudioso do surrealismo despreze a gênese do objeto de seu estudo…

No capítulo “Avant-garde et arrière-garde en France” de sua Histoire du cinéma muet, republicado com alguns acréscimos em Le cinéma experimental, Jean Mitry escreveu:

 

Não houve, entre 1925 e 1931, senão três filmes autenticamente surrealistas: A concha e o clérigo [(La Coquille et le Clergyman, 1928), de Germaine Dulac], Um cão andaluz [(Un Chien Andalou, 1929), de Luis Buñuel] e A idade de ouro [(L’Âge d’Or, 1930), também de Buñuel]. (MITRY, 1973; MITRY, 1976).

 

E citando Alain Virmaux:

 

[…] Historicamente A concha e o clérigo permanece o primeiro filme surrealista, nada devendo às pesquisas de cinema puro. (VIRMAUX apud MITRY, 1973, pp. 347; VIRMAUX apud MITRY, 1976).

 

Considerando, com Virmaux, A concha e o clérigo não apenas o primeiro filme surrealista, Mitry ainda o coloca entre os três únicos filmes autenticamente surrealistas. O grande historiador do cinema deveria celebrar Dulac por esse feito. Mas não, ele atribui o feito a Artaud, fazendo dele o autor do filme, além de autor do scenario. Ora, a autoria do filme pertence a Dulac: foi ela quem transpôs o scenario em imagens escolhendo o elenco, os cenários, os figurinos, os acessórios, os ângulos de câmera, produzindo os complicados efeitos óticos, dando ritmo às cenas na montagem, etc. Artaud não teve nenhuma participação na realização de A concha e o clérigo – e ainda o renegou.

Para não prolongar um debate espinhoso, cheio de armadilhas, Mitry preferiu conceder a coroa do cinema surrealista apenas ao segundo filme de Buñuel, por sua “surrealidade” fundada numa crítica radical à sociedade burguesa: “O único filme surrealista de valor incontestável, tanto pelo conteúdo quanto pela forma, é ainda A idade de ouro. (MITRY, 1973; MITRY, 1976).

Aqui abrimos um parêntesis para perguntar se outros filmes alucinantes, oníricos e inquietantes, como O braseiro ardente (Le brasier ardent, 1923), de Ivan Mozzhukhin; Balé mecânico (Ballet mécanique, 1924), de Fernand Léger; Paris adormecida (Paris qui dort, 1924), de René Clair; Entreato (Entr’acte (1924), de Clair e Francis Picabia; A viagem imaginária (Le voyage imaginaire, 1926), de Clair; O retorno à razão (Le retour à la raison, 1923), Emak-Bakia (Emak-Bakia, 1927) e A estrela do mar (L'étoile de mer, 1928), de Man Ray; ou En Rade (1927), de Alberto Cavalcanti, já não seriam surrealistas.

Como os filmes de Mozzhukhin, Clair, Picabia, Ray e Cavalcanti, o de Dulac erra pelas várias vanguardas que circulavam na época: futurismo, dadaísmo, abstracionismo, expressionismo, surrealismo. Se A concha e o clérigo é um filme surrealista para Sadoul, Kyrou, Virmaux, Mitry e outros especialistas, porque aqueles outros não o seriam? Aqui joga um papel fundamental o scenario assinado por Artaud, que funcionou como selo de garantia surrealista.

Tanto estilística quanto cronologicamente A concha e o clérigo é o primeiro filme surrealista diante do consenso preguiçoso dos que elegeram – para fixar na História apenas as obras de maior impacto de cada vanguarda – Um cão andaluz como o primeiro filme surrealista, descartando qualquer surrealismo nos filmes surrealistas de Mozzhukhin, Clair, Picabia, Ray, Cavalcanti e Dulac. Mas o ataque suicida de Artaud e do grupo surrealista contra A concha e o clérigo tornou a qualificação do filme de Dulac como “surrealista” quase um tabu, enquanto os ataques fascistas a Um cão andaluz coroaram o filme de Buñuel com os louros do “filme-manifesto do surrealismo”.

Ao contrário do que defendeu Kyrou sobre ser o cinema uma experiência fundamentalmente surrealista, um mergulho coletivo num mundo de sonho, Michael Richardson postulou em Surrealism and cinema que nenhum filme é surrealista, só existindo filmes realizados por surrealistas e filmes que têm ou não afinidades com o surrealismo (RICHARDSON, 2006). Nenhuma surpresa que ele dedique em seu livro uma única e solitária linha a Dulac: “A concha e o clérigo é um filme interessante, mas pertence inteiramente à avant-garde, não ao surrealismo” (RICHARDSON, 2006).

J.H. Mattheus, em Surrealism and Film, escreveu que “apresentando o material de Artaud como uma mera visão noturna, Germaine Dulac foi indesculpavelmente infiel às suas intenções, que seria a de apresentar e transmitir visualmente os motivos das nossas ações em sua barbaridade original e profunda” (MATTHEUS, 1971).

Podemos nos cansar de procurar essa barbaridade original e profunda no scenario de Artaud que teria sido excluída no filme de Dulac, que transpôs fielmente A concha e o clérigo em imagens. Essa barbaridade original e profunda traída por Dulac só existe como um postulado nos textos que Artaud escreveu para impedir os cinéfilos de apreciar o filme do qual ele foi excluído.

Mattheus acredita, porém, que, ao chamar o scenario de Artaud de “louco”, Dulac não teria percebido que essa loucura resultava do inovador conceito de cinema de Artaud, que implicava “uma total inversão de valores, uma completa agitação da ótica, da perspectiva e da lógica… mais excitante que o fósforo, mais cativante que o amor.” Assim, Dulac “traiu sua total incompreensão do ponto de vista surrealista do filme” e “esvaziou o conteúdo surrealista do scenario de Artaud”. (MATTHEUS, Surrealism and Film).

Cinema não é literatura. Dulac não esvaziou o conteúdo surrealista do scenario de Artaud, apenas deixou de lado em sua composição visual o que era não era possível transpor em imagens. Quando se lê o scenario, as imagens que nos veem à mente são aquelas que foram habilmente criadas por Dulac, provando a fidelidade que ela manteve ao espírito da obra. Não é de surpreender que A concha e o clérico tenha sido o único dos diversos scenarios que Artaud escreveu que foi efetivamente filmado até hoje.

Ao contrário do que se podia esperar da garantia surrealista do scenario de Artaud, foi ele próprio quem, frustrado por ter sido excluído da realização, insinuando-se como seu diretor, sabotou o filme desde a estreia, desacreditando-o como surrealista e viciando a visão da posteridade sobre ele.

Allendy recrimina Dulac por ter entendido mal algumas imagens poéticas de Artaud, como aquela do scenario de A concha e o clérigo publicado no tomo III das Oeuvres complètes de Artaud, onde consta à página 28 a frase: “ces basques s’allongent et forment un immense chemin de nuit”, grifada abaixo:

 

[…] Esta ação parece horrorizar o clérigo. Ele deixa cair a couraça que expele, ao se deparar com uma cama gigantesca. Depois, como se estivesse possuído por um sentimento de imprevisto pudor, faz menção de se cobrir com suas roupas. Mas, à medida que segura as barras do hábito para colocá-las sobre as coxas, parece que essas bordas alongam-se e formam um imenso caminho de noite. O clérigo e a mulher correm loucamente na noite. […]

 

Para Allendy, erros como esse poderiam ter sido evitados se Dulac tivesse permitido que Artaud colaborasse nas filmagens e na edição do filme:

 

A Sra. Dulac, por ter trabalhado sozinha no estúdio, sem nenhuma indicação do autor, recusou-se sistematicamente e por diversas vezes a deixá-lo assistir à montagem, trabalho de grande importância e que se tivesse sido feito diante do scenarista teria evitado erros graves como: as bordas do hábito que se transfonaram em camisola, a língua que se transformou em corda, a repetição da história da chave nos corredores etc., imagens cujo sentido está desfigurado e quem têm apenas um valor técnico, sem interesse.

 

A acusação de Allendy, ridicularizando Dulac por ter entendido que “um imenso caminho de noite” era “uma imensa camisola”, criando uma veste assim para o personagem numa das cenas mais famosas do filme, convenceu muitos críticos. Podemos ler no “Prefácio” de Linguagem e vida, escrito por J. Guinsburg e Sílvia Fernandes, a seguinte observação:

 

[…] A concha e o clérigo […] filmado por Germaine Dulac em 1927, recebeu severas críticas de Artaud, especialmente pela deturpação do sentido de certas imagens poéticas, cujo significado a diretora tentou esclarecer por meio de interpretações prosaicas que banalizaram seu caráter onírico, reduzindo o desejado parentesco com a mecânica do sonho. Testemunhas do trabalho dão razão a Artaud, afirmando que belíssimas passagens do roteiro foram desfiguradas pela leitura de Dulac, que trabalhou sozinha no estúdio, recusando-se sistematicamente a permitir a participação do roteirista. Um dos piores erros de interpretação diz respeito a uma passagem interessante do texto, onde Artaud transforma as bordas escuras do hábito do clérigo em caminho noturno. Germaine Dulac julgou que um imenso caminho de noite (un immense chemin de nuit) era um erro de impressão do roteiro e apressou-se em transformá-lo em camisola (une immense chemise de nuit). (GUINSBURG; FERNANDES, 1995).

 

Como se vê, o peso da influência de Artaud esmagou Dulac mesmo quando é evidente que há algo de errado na “imagem poética” do scenario que faz o hábito do clérigo, ao ter suas barras puxadas por ele, se transformar num imenso caminho de noite. Os críticos se perguntaram o que é um imenso caminho de noite? Uma rodovia escura? Uma senda infinita numa floresta sombria? Um negror imenso brotando das barras da batina do clérigo? É evidente que essa “imagem poética” não funciona, e o mais provável é que o erro de datilografia estivesse nesse “imenso caminho de noite” e não na “imensa camisola” da leitura de Dulac, que fez bem em transformar o que era uma expressão sem nexo do scenario numa cena surreal do filme.

Foi Alain Virmaux quem, embora tentando “fazer justiça a Artaud” (não a Dulac!) fez os primeiros reparos às visões esquemáticas de A concha e o clérigo. Ele atribui corretamente a má fortuna crítica do filme aos surrealistas que fizeram causa comum com Artaud. Essa solidariedade fez a crítica renunciar a considerar A concha e o clérigo como um filme surrealista. Ele se pergunta se, apesar do escândalo e dos descréditos, o filme não seria mais surrealista do que se acredita, conservando a marca de Artaud a despeito do que ele propagou:

O que se reprova ao filme terminado? De se ter apresentado ao espectador como um sonho? Ele obteve sobre este ponto modificação do crédito. De ter recorrido a diversos processos técnicos sem compreender sua dimensão? É a pecha que será sempre relançada contra essa obra. Acusam Dulac de ter feminizado o scenario de Artaud e “afogado numa orgia de truques técnicos de onde saíram boiando apenas algumas imagens esparsas admiráveis”.

Reprimenda decisiva, na medida em que se considera que a originalidade de um Buñuel reside precisamente no fato de que ele não se deixa mais, como a primeira vanguarda francesa, intoxicar nem invadir pela técnica e pelos exercícios de estilo.

Reprimenda questionável, no entanto. Na realidade, Germaine Dulac dificilmente pode ser acusada de ter traído a “letra” de um scenario que ela seguiu passo a passo. Para se convencer disso basta relê-lo após a exibição do filme. É, portanto, o “espírito” do texto que o filme teria distorcido? Parece excessivo, em qualquer caso, reprovar Germaine Dulac pelas trucagens e pelo uso constante de efeitos técnicos. Porque o texto de Artaud continuamente convidava a tais procedimentos. (VIRMAUX apud MITRY 1976).

Em 1929, Breton lançou o segundo Manifesto surrealista e, depois de excomungar Dulac, Um cão andaluz acabou se apropriando do cetro do primeiro filme surrealista do cinema. A frase de Lautréamont: “Belo como o encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura, sobre uma mesa de dissecação”, recorrente nas definições da estética surrealista, definia com perfeição o fascínio que o filme de Buñuel exerceu desde então.

Para escrever o roteiro de Um cão andaluz, Salvador Dalí e Luis Buñuel passavam suas tardes “trocando sonhos”, forçando explicações do mundo através das teorias de Freud e Marx e dos delírios de Lautréamont e do marquês de Sade. Buñuel teria desejado intitular o filme As águas geladas do cálculo egoísta, expressão tirada do Manifesto Comunista.

Dulac dissociou-se do surrealismo depois de ter sido linchada moralmente pelo grupo no lançamento do seu filme. Embora tenha realizado o primeiro filme surrealista do cinema, ela escreveu, em “Le cinéma d’avant-garde” (1931), que o Studio 28 projetou “os primeiros filmes surrealistas: O cão andaluz e A idade de ouro, de Luis Buñuel” (DULAC, 2021).

Dulac preferiu defender o cinema puro ou cinema integral, os filmes musicalmente construídos, as sinfonias visuais feitas de imagens ritmadas, de acordo com as regras da música visual, livres das influências da literatura, do teatro e da pintura (mas não da música): “Jogos de luzes, combinação de gestos, tempos, frases enlanguescidas, frases colididas, cada imagem se assemelhando a uma nota diferente, cadenciada e contribuindo para uma melodia, tal pode ser, em seu movimento, e em sua técnica, a arte do cinema.”

Como Presidente da Federação dos Cineclubes, Dulac apresentava relatórios dos cineclubes franceses nos congressos de Rouen, Bruxelas e Edimburgo. Percorria a França, a Bélgica, a Suíça, a Espanha e os Países Baixos dando conferências ilustradas com projeção de filmes. Defendia o cinema mudo no Vieux Colombier, no Colisée, no Musée Galliéra, no Club du Faubourg.

Para Dulac “o filme falado ideal será aquele onde só entrará uma palavra, um grito, algumas exclamações que reforçarão a imagem.”. Damos razão a ela quando pensamos em O homem de Aran (Man of Aran, 1934), de Robert Flaherty; A ilha nua (Hadaka no Shima, 1960), de Kaneto Shindô; ou Playtime – Tempo de diversão (Playtime, 1967), de Jacques Tati…

As melhores sequências do cinema são de cinema puro, feitas de imagens em movimento, música e ruídos, sem diálogo, como as sequências de suspense da obra de Alfred Hitchcock, bastando lembrar o quase assassinato do Ministro durante o concerto no Royal Albert Hall em O homem que sabia demais (The Man Who Knew Too Much, 1956) ou os ataques surreais orquestrados com ruídos eletrônicos das aves assassinas em Os pássaros (The Birds, 1963).

Prosseguindo as pesquisas das imagens ritmadas de Walter Ruttmann (1887-1941) e Hans Richter (1888-1976) na Alemanha e por Henri Chomette (1896-1941) e Eugène Deslaw (1898-1966) na França, Dulac realizou Danças espanholas (Danses espagnoles, 1928), onde uma dançarina apresenta dois números de flamenco; Temas e variações (Thèmes et variations, 1928), com imagens ritmadas ao som de Debussy; Disco 957 (Disque 957, 1928), onde Dulac põe no gramofone um disco com prelúdios 5 e 6 de Frédéric Chopin e, enquanto o disco gira, riscando a tela, folhas de outono misturam-se à chuva.

Dulac retornou uma última vez ao cinema comercial com La Princesse Mandane (1928), uma adaptação livre de L’oublié, de Pierre Benoît. Vítima do cinema, o jovem engenheiro Étienne Pindère (Ernst Van Duren), ingênuo e ambicioso, que despreza a datilógrafa que o adora, tenta escapar de sua vida tediosa na fábrica sonhando com aventuras grandiosas num mundo feérico e maravilhoso, que Charles Ford localizou na “Mingrélia, nos confins da Rússia e da Ásia Menor, com palácios suntuosos, uniformes cintilantes, heróis bárbaros e mulheres soberbas” (FORD, 1968).

Em seu sonho, Étienne imagina-se um herói destemido, que luta para resgatar a Princesa Mandane (Edmonde Guy), como num conto de fadas. Mas numa reviravolta do destino, assim que ele liberta a Princesa, ela foge com uma de suas empregadas, que usa um uniforme masculino. Decepcionado com o mundo etéreo de seus sonhos, Étienne decide encarar a realidade, esquecer o cinema e procurar a felicidade na vida simples que é a sua.

O fascínio de Germaine Dulac pela moda e pelo glamour transformou o filme insólito numa celebração do lesbianismo, do orientalismo e do próprio cinema. Produzido por Nalpas, A Princesa Mandane fez uma bela carreira, animando Dulac a prosseguir nessa trilha cintilante, abertamente queer. Ela conseguira expressar sua ousada visão artística num filme de formato comercial, algo que poucos artistas conseguiam, sendo Charles Chaplin o melhor exemplo de triunfo artístico-industrial graças à produção independente de seus filmes. Como bem formulou Dulac: “Entre o cinema-indústria e o cinema-avant-garde situa-se o cinema sem qualificativo. O único que vale, pois representa a plenitude.”

Mas o apogeu da arte do cinema mudo foi também o seu fim, e o advento do sonoro abateu Dulac – como abateria Chaplin e outros gênios da sétima arte. Recebendo a herança de seu rico tio solteiro Raymond Saisset-Schneider, que era um alto funcionário público, Dulac pode lançar a revista de estética do cinema Schémas (1927), que teve somente um número, e produzir o filme-poema Arabesques (1929), com variações sobre o arabesco (arcos de luz, bicas d’água, teias de aranha; árvores, flores e folhagens; um sorriso de mulher, braços esticados, uma cadeira de balanço) ao som de Debussy.

Dulac usava a imagem e o som de forma ritmada, evitando a prosa e o prosaico: “Apaixonada pela música e pelo cinema, emprego o filme sonoro para realizar minha concepção: fazer uma orquestração síncrona de ruídos e de imagens e não uma gravação bastarda e banal da música.” (DULAC, Cinéa-ciné pour tous, 15 ago. 1920, apud FORD, 1968).

Em 1929, Dulac foi agraciada com a medalha de “Cavalheiro” da Ordem Nacional da Legião de Honra por suas contribuições à indústria cinematográfica francesa. Ela se despediu do cinema mudo com a pequena obra-prima Celles qui s’en font (1930), contando em silêncio o drama de uma mulher que se entrega a um tipo vagabundo, que ela persegue em busca de amor. O tipo a rejeita, cansado dela, entra num bar, enquanto ela o vigia de fora e o vê saindo abraçado com outra mulher, que debocha da rejeitada, sem perceber que seu destino será o mesmo que o dela. A rejeitada desce então os degraus do Sena, e afoga-se.

Como a evolução do sonoro não favoreceu o cinema puro, visual e poético, que encantava Dulac, ela preferiu dedicar-se aos cinejornais das companhias Pathé e, depois, da Gaumont, da qual se tornou a diretora adjunta das Actualités.

Em 1931, as vanguardas terminaram oficialmente. Mas Dulac continuou incutindo seu amor ao cinema puro nos jovens, lecionando na École Technique de Photographie et de Cinématographie; presidindo a seção cinematográfica do Conselho Nacional e Internacional das Mulheres e a Federação dos Cineclubes (Fédération des Ciné-clubs), que reunia os 17 cineclubes que já existiam na França [DULAC, “L’évolution nécessaire” (1931), 2021], promovendo jovens diretores da vanguarda como Joris Ivens e Jean Vigo.

Durante o governo da Frente Popular (Front Populaire, 1936-1938), que reuniu os três principais partidos da esquerda (SFIO, Partido Radical e Partido Comunista), Dulac realizou um interessante documentário de propaganda que permanece atual: Retorno à vida (Retour à la vie, 1936), onde a filha jovem e idealista de um camponês deprimido com o preço de suas vacas, incita seu pai abatido e, por extensão, todos os franceses, do campo à indústria, a fazer circular o dinheiro para que o país saia da depressão econômica, onde a miséria grassa e o desemprego não para de crescer: com tudo sendo comprado e vendido, todos voltarão a viver, recuperando a confiança no progresso.

Em 1937, Dulac foi promovida a “Oficial” da Ordem Nacional da Legião de Honra, raramente concedida a uma mulher. A cineasta realizou diversas atualidades até 1940, quando a Ocupação nazista pôs definitivamente um fim às suas atividades. Já lutando contra uma doença há alguns anos, o horror do nazismo foi demais para Dulac, que morreu em 20 de julho de 1942, aos 59 anos de idade, sendo sepultada no Père-Lachaise.

De toda a imprensa pública da zona livre da França ocupada pelos nazistas, apenas La Revue de l’Écran, editada em Marselha, consagrou à cineasta um necrológio. Mas para que o artigo pudesse ser publicado, o editor precisava obter a autorização da Censura de Vichy. Os censores, chocados com as ideias subversivas de Dulac, horrorizados com seu lesbianismo assumido, perturbados por suas “origens impuras” (teriam encontrado uma ascendência judaica?), proibiram o artigo. O chefe da redação da revista protestou veementemente até obter, três semanas depois, a permissão de publicar a homenagem.

Em seu Dictionnaire des cinéastes, Georges Sadoul observou que Dulac, além de estar entre os primeiros a perceber no cinema uma grande arte, “publicou desde 1920 numerosos escritos históricos, injustamente esquecidos, apesar de suas visões novas e penetrantes” (SADOUL, 1965). Dulac ganhou uma nova edição de seus textos apenas em 1994, com a publicação de Écrits sur le cinéma (1919-1937) pela Editora Paris Expérimental, com 230 páginas.

Em 2020 a editora Light Cone publicou Qu’est-ce que le cinéma?, com 256 páginas. O livro foi anunciado equivocadamente como “a primeira edição dos escritos teóricos de Germaine Dulac, 75 anos depois da concepção do manuscrito” e obteve o Prêmio do Livro de Cinema 2020 do Centre National du Cinéma et de L’image Animée (CNC). Como resposta, em 2021 a Editora Paris Expérimental reeditou Écrits sur le cinéma (1919-1937), agora com 332 páginas.

Recentemente, a pesquisadora Catherine Géry quantificou a produção de Dulac: “uns 30 filmes de ficção e experimentais, um número equivalente de filmes de atualidades e vários documentários [além de] numerosos artigos e conferências”, revelando ainda que Dulac também escrevia ficção: “Dulac foi, com efeito, uma escritora prolixa, ainda que não publicada, autora de romances, novelas, poemas e peças de teatro” (GÉRY, 2016).

Sobre Dulac, o veterano cineasta Henri Fescourt escreveu: “O bem que essa mulher fez à sétima arte é uma coisa imensa, quase inacreditável.” (FESCOURT, 1959). Apenas recentemente Dulac foi recuperada pelas feministas, em estudos mais aprofundados como Beyond Impressions: The Life and Films of Germaine Dulac from Aesthetics to Politics (2007), de Tami Williams. Mas ainda não temos um inventário completo da multifacetada produção da artista, teórica e escritora, e as melhores estimativas permanecem imprecisas: “mais de” 60 filmes, “numerosos” ensaios, “diversos” livros.

Segunda mulher cineasta da França, pioneira da teoria do cinema, do cineclubismo, do cinema impressionista, do cinema surrealista e do cinema feminista, lésbica assumida, socialista e feminista numa época em que as mulheres sequer tinham direito ao voto, defensora da preservação dos filmes em cinematecas quando poucos cuidavam das películas após a exibição, Germaine Dulac foi esquecida por décadas. Vítima do machismo dos surrealistas e sem descendentes para defender seu legado, a cineasta visionária pagou o preço do esquecimento por manter-se livre e sempre e à frente de seu tempo.

 

Referências

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LUIZ NAZARIO | Professor Titular na área de Cinema e História na Escola de Belas Artes da UFMG. Doutor em História Social pela USP. Bolsista de Produtividade do CNPq entre 2003 e 2018, com pesquisas sobre Animação Expressionista e Cinema e Holocausto. Autor de diversos livros, dentre os quais: Autos-de-fé como espetáculos de massa (Humanitas, 2005); Todos os corpos de Pasolini (Perspectiva, 2007); e O cinema errante (Perspectiva, 2013).
  

 


FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura. Realizou inúmeras capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas (ensaio, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Venezuela, 2021), e Un día fui Aurora Leonardos (poesia, Ecuador, 2022).

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 09

Número 208 | maio de 2022

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