Robert Fry
As opiniões mais diversas e contraditórias têm sido formuladas sobre a
obra deste artista, contemporâneo de Leonardo da Vinci, que a historiografia
tradicional considera como o último dos góticos.
A cada época corresponde uma determinada escala de valores, dentro da
qual são cuidadosamente ordenados os pintores de várias nacionalidades,
escala condicionada por maneiras de pensar e sentir. No que toca a Hieronymus
Bosch, pode dizer-se que a existência deste pintor era praticamente
desconhecida ainda nas primeiras décadas do século Vinte. Só recentemente os
historiadores e críticos de arte contemporâneos começaram a debruçar-se mais
sistematicamente sobre a sua Obra, passando das simples designações de “pintor
que se dedicou à pintura de assuntos estranhos” sobretudo
“diabruras” e “infernos”, a análises do significado profundo daquilo que
pintou.
Como consequência desta nova atitude, estudos biográficos como os de
Charles de Tolnay, Ludwig von Baldass, Friedlander, G.Gluck ou Justi foram
decisivos na apreciação das realizações de Bosch, demonstrando que muitas das
características formais apresentadas nos seus quadros obedeciam a uma certa
finalidade apologética de franca expressão interior.
Do seu muito aturado e proficiente trabalho resultou então uma
profunda reviravolta nos conceitos estabelecidos acerca do valor do mestre
flamengo e do significado da obra que nos deixou.
Hieronymus Bosch (145?-1516) cultivou a sua arte em Bois-le-Duc,
pequena região isolada da Holanda. Bois-le-Duc era a quarta cidade do ducado
de Brabante e havia enriquecido através do comércio. O clima que ali se
vivia, se era provincial não era no entanto desprovido de vida artística,
apesar da distância que a separava de Harlém, que era na altura o mais
concorrido centro artístico holandês.
Pouco se sabe sobre a sua vida. As fontes, demasiado lacónicas, não
fornecem muitos elementos. Ao que parece nunca terá deixado Bois-le-Duc.
Desposou Aleid Van de Mervene, uma rica proprietária, vivendo
confortavelmente e decerto saboreando a independência artística.
No que diz respeito à obra, também não é possível estebelecer de
maneira positiva uma evolução técnica do pintor. Toda a afirmação toca o
campo da hipótese. Os seus quadros não são nunca datados e apenas cinco
possuem assinatura, que foram muitas vezes plagiadas na sua grafia gótica e
latina. Só nos são facultadas cerca de quarenta obras autênticas. Para dar um
exemplo, o “Transporte da Cruz”, dos Museus Reais de Belas-Artes de Bruxelas,
é uma obra situada por Van Puyvelde na juventude do artista, por Baldass cerca
de 1480, por Tolnay no período médio e por Friedlander na maturidade.
Actualmente, tende-se a procurar as fontes de inspiração nas iluminuras, nos
incunábulos, nos paleotipos e nas xilogravuras.
Proveio de uma família de pintores e artesãos e, ao que se pensa, o
denominado Jean van Aken, várias vezes citado nos arquivos da Catedral de
Bois-le-Duc como o realizador dos frescos (1423-1424) existentes nessa
igreja, talvez tenha sido seu tio.
Muitos historiadores de arte insistem hoje em dia no papel que o mundo
provincial onde viveu, ainda preso às fórmulas do gótico internacional, terá
tido na formação de Hieronymus Bosch. Neste mundo provincial há um elemento
que não podemos desprezar na análise da obra do pintor: a importância da
corrente mística na Flandres (obsessão pelo Inferno, processos de bruxaria,
etc.) e em que muitos autores insistem, sobretudo depois dos estudos de
Huizinga (“O declínio da Idade Média”). E aqui surge-nos uma questão sempre
posta, a da ortodoxia de Bosch: ou o artista foi cristão, ou viveu à margem
da Igreja estabelecida. Ou a sua imaginação se inscreve na linha da Idade
Média fantástica mas cristã, ou os seus quadros escondem aos olhos do não
iniciado afirmações doutrinais de seitas esotéricas.
Vários são os estudiosos que se debruçaram sobre este problema sem
dúvida importante para a compreensão da vida de Bosch e da sua obra, pois
possivelmente poderá ajudar-nos a responder ao mistério que se nos apresenta,
relacionado com os fantasmas da criação.
Assim, Charles de Tolnay definiu Bosch como heterodoxo. Adepto
da devotio moderna dos “Irmãos da Vida Comum”, Bosch teria
estigmatizado desvios com respeito à Igreja oficial. Devemos também, e em
paralelo a esta teoria, observar o facto de ter vivido sempre na mais
estreita ortodoxia sempre respeitosa em relação à autoridade eclesiástica.
Wilhelm Franger dispensou numerosa erudição para associar o pintor de
Bois-le-Duc a correntes anti-cristãs. Segundo Franger, Bosch teria sido
membro de uma seita adamita, a dos “Irmãos do Livre Espírito”
Por fim, de acordo com C.A.Wertheim, Bosch era um Rosa-Cruz, bem como
Filipe-o-Belo, e Filipe II teria tido também bastante estima pelas ideias
deste ramo da franco-maçonaria. Contudo, não são apresentadas provas ou
referências.
O afastamento de Bosch em relação aos centros artísticos mais activos
e o seu isolamento em Bois-le-Duc pode ser por si sintomático em relação à
sua atitude face aos valores inerentes à formação do Gótico na Idade Média,
afastando-se da tradição local do século XV. Pode também explicar o seu
espírito anti-clássico e o seu sentimento refractário em relação ao
Renascimento, podendo também, por este lado, explicar a sua pouca valorização
por parte dos renascentistas, que nada mais viam nele, como Vasari, do que “o
autor de verdadeiros pesadelos”.
O desenvolvimento da economia de troca, a circulação monetária, a
emergência de grupos sociais com dinamismo próprio, o renascimento urbano e a
concentração nas cidades, com o convívio quotidiano entre pessoas de tipos
diferentes, vêm alterar profundamente todos os valores artísticos e culturais
até então predominantes. Os quadros da civilização são destruídos para
prepararem a sua renovação
Estamos perante um novo discurso, uma nova moral, perante valores que
à medida que o tempo passa se vão recheando de contradições e sínteses
evolutivas. Um sistema instala-se, perfeitamente inovador, e ao cristalizar
cria dentro de si, no seu próprio discurso, o seu contrapoder, as
mentalidades de contestação e antecipação ao próprio sistema. As estruturas
colectivas caem e retiram o apoio às consciências individuais: entregues a si
próprias e às suas forças de organização, estas voltam-se então, como que
numa espécie de pânico, para as profundezas que lhes subjazem, assim como um
animal assustado procura refúgio na sua casca, no seu fojo longe da luz do
dia. Foi o que aconteceu no fim da Idade Média.
Ante as novas forças que ascendiam ao assalto da medievalidade, Bosch
tomou consciência dos novos valores que o rodeavam, apelando para outros
continentes da imaginação. A sua alma inquieta e inquietante, aproveitando as
férias da legalidade racional provocadas pelo cansaço da civilização dessa
época, encontrava tanto no consciente colectivo da Flandres, sempre atenta ao
diabólico, como no seu inconsciente individual e pessoal,
atormentado por agitações suspeitas, uma injunção para libertar a avidez das
tentações. As suas imagens reflectem preocupações tipicamente medievais:
pecados, tentações, histórias de santos, tudo transmitido com cores
delicadas, justapostas com equilíbrio e refinada sabedoria pictórica.
Hieronymus Bosch inspirou-se sempre, mesmo nas suas obras mais percorridas
pelo fantástico, em aspectos do quotidiano. No entanto, é evidente a grande
transformação que o artista faz dele. É o caso da chamada “Nave dos Loucos”,
por exemplo, obra situada por volta de 1500. O tema do quadro é o mesmo do
poema de Sebastian Brandt, “Das Narrenshiff”, publicado em Basileia, no ano
de 1494, em dialecto estrasburguês. Esta obra literária depressa foi objecto
de grande difusão, adquirindo notoriedade por tal forma que foi inclusive
publicada em latim pouco tempo depois. Por isso não causam estranheza as
coincidências temáticas entre o poema de Brandt e a pintura de Bosch.
Ludwig von Baldass, considerado o maior conhecedor da obra boschiana,
afirma: “Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o
grande solitário da História da Arte. É o pintor que, através da sua arte -
que está historicamente à altura da sua época - quer mais do que os outros.
Não aspira a divertir, a instruir ou a educar, mas a criticar e a profetizar.
Apresenta à Humanidade um espelho de duas faces. Nele, a Humanidade vê
reflectida, por um lado a sua necessidade e a sua perversidade; por outro, as
consequências terríveis, no Além, resultantes dos seus pecados mortais. Nesse
sentido, Bosch continua a ser um filho da Idade Média; mas, pela maneira
totalmente independente nos exemplos que emprega para representar as suas
concepções dentro das manifestações artísticas, ele pertence aos tempos modernos.
Dessa forma, encontra-se no limite entre duas épocas”.
Aqui tocamos um ponto importante em relação ao problema que nos
propusemos tratar. É que nunca o clima espiritual onde o mestre
quatrocentista realizou as suas profundas sondagens se aproximou tanto,
conforme parece, do similar hoje existente no mundo. Nunca a efémera passagem
do homem pela Terra e as preocupações a ela ligadas, tratadas pelo artista
flamengo ousadamente em relação à época, foram novamente tão longe como no
nosso tempo.
No fundo, o homem actual como o do tempo de Hieronymus Bosch - como
afinal o de todas as épocas - não serão dominado por preocupações idênticas?
O fenómeno da equivalência, caso exista na realidade, só é devido ao facto
dessas preocupações, latentes noutras épocas, terem agora adquirido uma
acuidade que já deve ter ultrapassado em muito as dos homens que viveram no
decurso do dramático período de transição do século XV para o século XVI.
O homem contemporâneo, obrigado mais uma vez a enfrentar um desconhecido
saturado de terríveis ameaças, parece ajustar com facilidade as visões de
pesadelo daquele Mestre de antanho às que lhe são oferecidas a cada passo no
seu contacto diário com a realidade brutal dos acontecimentos mundiais. À sua
volta tudo se desagrega. O mundo aparece-lhe como caótico, desordenado,
monstruoso, precisamente como Bosch o entrevira nas suas proféticas pinturas.
Não apenas o mundo exterior, representado pelo drama da humanidade, mas
também o interior de cada ser humano agitado por múltiplas e poderosas forças
de acção contraditória: o cinismo dos argentários, a frieza sinistra dos
fanáticos políticos ou religiosos, a corrupção ética da magistratura, o
desleixo e o desinteresse dos governantes, o oportunismo e a mesquinhez de
sectores dirigentes embrutecidos pelos interesses espúrios e grosseiramente
manipuladores.
Decerto as imagens do Inferno e dos Demónios, tais como Bosch os
pintou, já pouco devem aterrorizar os homens do século em que vivemos, se
estes olharem para eles distraidamente, deixando-se aliciar apenas por
encenações fantásticas e a configuração grotesca dos seus habitantes. Mas se
esse olhar for mais atento e perscrutador, se ele for analisando com cuidado
cada pormenor isoladamente, ou apreciando cada um dos conjuntos concebidos de
maneira a apreender-lhes o sentido (os seus quadros assemelham-se a
miniaturas ampliadas) já as impressões recebidas serão bem diferentes.
Este homem contemporâneo sentirá, então, quanto elas se ajustam às
suas próprias visões do mundo em que vive. A tão grande distância no tempo e
no espaço, dir-se-ia que Bosch assistiu, dominado por grande angústia, às
destruições indescritíveis de cidades inteiras submetidas aos bombardeamentos
aéreos, aos combates, aos impulsos instintivos que transformam os homens em
seres cruéis, impiedosos, sedentos de sangue, verdadeiros demónios de
configuração monstruosa sob a capa de perfis habituais.
Formalmente, devemos entender a aversão de Bosch à perspectiva e à
regra pictórica como a identificação do pintor com a realidade obscura e a
busca da identidade através da arte que deixa de ser um mero exercício
estético para abarcar a totalidade dos temas.
O espírito entra então num mundo fantasmagórico, onde seres e coisas
tomam um aspecto imprevisto, possuídos e revelados por cores muitas vezes
irreais.
Paralelamente, surge uma problemática que no âmbito deste trabalho nos
interessa à partida e para a qual, afirma-se desde já, é difícil encontrar
uma resposta segura: saber em que momento exacto a imaginação do pintor se
expandiu livremente, sem obedecer a qualquer condicionamento imposto por
objectivos bem definidos. Penetrar nesta problemática é para nós tanto mais
importante quanto André Breton, “pai” do movimento surrealista, referiu que o
surrealismo “repousa na crença na realidade superior de certas formas de
associação negligenciadas até aí, no forte poder do sonho, no jogo
desinteressado do pensamento”. Os surrealistas procuram uma ultrapassagem do
dito “mundo real” para penetrarem naquele das aparições, dos fantasmas, porque
- referem - é somente à aproximação do fantástico, nesse ponto onde a razão
humana perde o seu controle espartilhador, que se têm todas as hipóteses de
traduzir emoções das mais profundas do Ser. Como o autor de “A chave dos
campos” disse um dia: “O que há de extraordinário no fantástico é que, vai-se
a ver e já não há fantástico - só o real existe.”.
Já Leonardo da Vinci, expressamente, havia insistido na importância da
imaginação criadora para a qual a síntese das percepções mais não seria que
um trampolim para passar ao real. Bosch parece ter feito mais, anunciando uma
independência de espírito que só as futuras gerações de artistas
conquistariam plenamente. Sérias razões tinha Frei José de Siguenza ao
afirmar que o mestre flamengo não se havia limitado a pintar o Homem
entrevisto no seu aspecto puramente exterior mas ousara ir mais além,
pintando-o tal como era por dentro (Historia de la Orden de San Jerónimo,
1599).
Bosch foi um detonador da imaginação humana. De facto, foi ele o
primeiro artista a sondar, com obsessiva curiosidade, o mundo obscuro,
impreciso, sempre mergulhado em densas trevas, que é parte integrante de cada
ser humano e o define psicologicamente. Um mundo onde se debatem forças
contraditórias, que tão depressa o podem elevar acima da sua condição de
mortal dominado apenas por instintos primários, como torná-lo uma presa
inconsciente desses instintos e, então, o mais vil e cruel de todos os seres
da Criação. A pintura apresentar-se-á então como expressão da segunda vida do
Homem.
Os surrealistas, no entanto, alertam para a necessária recusa de
certos vícios mentais e conceptuais decorrentes desta atitude, excluindo o
maravilhoso elaborado sem necessidade interior. Somente os artistas que
tentaram dar ao sonho, ao desejo, à imaginação um papel fundamental - e por
isso libertador - nas suas composições, apresentam para eles qualquer
interesse. O surrealismo apresenta-se mais como evocação de um possível
completado pelo desejo e pelo sonho que a descrição do impossível. Assim, há
pintores de universos insólitos (basta consultar-se a Internet e ver-se-á
quantos “surrealistas” desse género lá pululam, visando vender alguns
quadros) que nada têm a ver com ele, como é o caso por exemplo de Odilon
Redon (aliás pintor de reconhecida qualidade estética) que nos seus trabalhos
multiplicou animalejos fantásticos e paisagens de pesadelo sem outra intenção
que não fosse a de colocar “a lógica do visível ao serviço do invisível”. O
grupo surrealista refuta energicamente o parentesco com este género de apologias,
porquanto o que lhe interessa e o fundamenta é a transfiguração e a
interpenetração dos dois planos. Ao defender convictamente que no espírito
humano há tesouros escondidos, a par é claro de sótãos inomináveis, proclama
a sua ligação a Bosch pois, segundo refere, a preocupação filosófica do
pintor de Bois-le-Duc, mais que ser moralizadora, faz com que a sua obra seja
“uma pintura que contém um segredo”assim sendo, por definição, “uma pintura
surrealista”.
Dizia Louis Aragon que “há outras ligações que o real e o espírito
podem estabelecer, sendo também, à sua vez, primeiras, como a sorte, a
ilusão, o fantástico e o sonho”.Para Bosch, o mundo - borbulhante de
metamorfoses - não conhece a razão: o espaço anuncia ameaças, mas não tem
dimensões. Neste aspecto formal, Hieronymus Bosch é a floresta que caminha
mais rapidamente que o viandante e que o próprio tempo.
Para explicar os seus trabalhos, torna-se necessário recorrer ao
simbolismo dos sonhos, mas penetrar-se-iam muito melhor as suas intenções secretas
recorrendo ao domínio da psicanálise. Os historiadores de Bosch, como Tolnay
ou Combe, defendem-no e o primeiro conclui: “Bosch fez um quadro cativante
dos desejos reprimidos”.
Sobre este ponto não deixa de ser curioso e interessante verificar que
muitas das obras de André Breton, como refere Yves Duplessis, mostram que os
acontecimentos atribuídos à sorte ou ao azar mais não fazem que exprimir o
dinamismo de instintos inibidos pelas convenções sociais. O surrealismo teve
a originalidade de reabilitar o sonho e de lhe atribuir uma grande
importância, pois no sonho tudo parece simples e natural: a angustiante
questão da possibilidade não tem aqui lugar.
Para os surrealistas, a atitude mais natural seria a de ver, por todo
o quotidiano e o usual, o maravilhoso e de tratar o estranho, o sobrenatural,
como familiares, tendo-os sempre à mão. Por todo o lado onde a imaginação se
manifeste sem os travões do espírito “crítico” (ou seja, uma deformação
deste) aparece a surrealidade - ou dizendo de outro modo, a inteira
realidade.
No surpreendente ”Jardim das delícias” (220 x 389 cm), do Museu do
Prado, o universo boschiano apresenta-se-nos repleto de fantástico, onde os
acontecimentos mais inverosímeis parecem normais: ao centro da obra, uma
bacia circular recebe na sua água as figuras de mulheres nuas. Em toda a
volta, numa cavalgada obcecada e louca, os homens montam animais estranhos.
Segundo os mais recentes estudos psicanalíticos, os frutos enormes que
salpicam estes jardins enigmáticos corresponderão aos símbolos de cobiças
sensuais. A ânsia do desejo da mulher é proclamada pela acção colectiva que
faz com que os homens girem em torno das banhistas de pé, nesta água que é
também um símbolo, o símbolo imemorial do inconsciente pela sua fluidez
indecisa e pelas suas profundezas traiçoeiras.
Contudo, nesta composição de Bosch que respira toda a pureza do
fantástico notamos que, tal como o defendido pelos surrealistas, o fantástico
e o maravilhoso se encontram como possível. Se topamos, por exemplo, com uma cena
em que um homem contido num fruto observa um rato através dum tubo de vidro,
e tomamos como impossível um homem estar contido num fruto, já não nos parece
inverosímil que um homem e um rato se espreitem nas extremidades desse tubo:
isto é possível. O que acontece é que o insólito não se encontra facilmente
formulado, não existe a procura do efeito cómico. Freud referiu o facto de o
humor ser uma “máscara do desespero”, aparecendo claramente como uma
metamorfose do espírito de insubmissão, uma recusa dos preconceitos sociais.
Para os surrealistas, os absurdos do mundo devem ser observados como que de
um balcão, encontrando-se o Homem desligado dessa realidade exterior.
Utilizando a demolidora arma que é o riso, o Homem é por este introduzido no
universo da imaginação.
Em Bosch, acentue-se este detalhe, a incongruência nunca é cómica.
Longe de se refugiarem nas suas torres de marfim, os surrealistas mais
não visam que demoli-las pela transformação da existência humana, para que as
vítimas da realidade dela não se abstraiam fugindo, mas pelo contrário
entrando nela para a tornarem conforme às suas aspirações. Bosch havia já
sentido essa mesma necessidade. A esse propósito, atentemos no que refere
Marcel Brion: “O que faz de Bosch um dos percursores e mesmo um dos pais do
surrealismo contemporâneo é o facto de se encontrar nele uma ‘sistematização
da confusão’ e uma ‘irracionalidade concreta’ que serão preconizadas quasi
meio milénio depois por Dali. O Demoníaco aparece como contrapartida da
Criação, o Universo Infernal oposto ao Cosmos Divino”.
Em certos meios fideístas chegaram a considerá-lo um ateu, um herético
perigoso, cujas obras, pela imoralidade dos temas nelas representados, eram
impróprios para serem apreciados por verdadeiros católicos praticantes. Por
tais motivos, algumas foram retiradas dos locais onde estavam expostas e
arrecadadas em lugares onde não perturbassem a moral pública, enquanto outros
quadros chegaram mesmo a ser queimados.
-Se fizermos uma estatística dos seus temas, por definição reveladores
das suas ansiedades, vemos continuamente o tema da tentação. Bosch encontra
este tema na iconografia cristã tradicional, que corresponde à obsessão pelo
pecado, quer dizer, à obsessão de apetites inconscientes que vêm atacar as
obrigações da moral. Se Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, como
parece insinuar, Satanás não perde a mínima oportunidade de destruir o que o
próprio Homem, com orgulho desmedido, afirma ser a obra-prima da Criação.
Esse orgulho desmedido abate-o Bosch mostrando-lhe até que ponto os mortais
são capazes de descer quando os seus instintos bestiais, destruindo as
frágeis carapaças a que estavam confinados a custo, irrompem impetuosos como
uma torrente caudalosa, tudo destruindo na sua passagem.
O já referido “Jardim das delícias”, uma das suas obras mais famosas,
é um repositório minucioso dos desmandos eróticos dos mortais, dominados pelo
pecado da luxúria. Dividido em três partes, apresenta um prólogo, o próprio
quadro e um epílogo. Quando fechados os dois painéis laterais sobre o
central, outra pintura nos é mostrada: “A criação do mundo”. O prólogo é a
representação do Paraíso Terrestre. Num jardim maravilhoso, embora
extravagante em alguns aspectos, Deus e os Homens vivem harmoniosamente. Aqui
é interessante e significativo verificar que Bosch, ao contrário de outros
pintores que representaram o Éden, insere mesmo antes da expulsão germes
diabólicos, como se Deus tivesse a responsabilidade inicial destes desmandos
dementes, irracionais, expostos no painel central. Aqui encontramos um
carnaval insensato de prazeres. O absurdo reina e governa os movimentos desta
multidão. No painel da direita, chamado do “Inferno musical”, torturas
demoníacas são aplicadas pelos próprios objectos que foram instrumentos de
delícias, o sexo para os sensuais, o instrumento de música para os musicais,
etc. Temos assim que a harmoniosa vivência do Homem foi transformada,
terrenalmente, num asilo de loucos plenos de ilusões e de gozos e,
post-mortem, num inferno onde tudo o que servia ao prazer se torna num
objecto de instrumental mortificação.
Por ser um trabalho muito rico em símbolos, “O jardim das delícias” já
recebeu inúmeras interpretações. Uma das mais curiosas é assinada por Charles
de Tolnay, autor do livro “Hieronymus Bosch”, 1937. Baseado na psicanálise,
Tolnay afirma: “ A intenção fundamental do pintor é tornar manifestas as
consequências que derivam do prazer carnal e o caracter efémero deste: os
aloés, suculentas plantas, ferem os corpos nus; o coral e as conchas dos
moluscos aprisionam-nos. No pequeno castelo das mulheres adúlteras, cujas
paredes de cor alaranjada são atenuadas por uma cristalina transparência,
dormem rodeados de cornos os esposos ofendidos. A esfera de cristal, onde um
casal se acaricia, e o sino do mesmo material que cobre pela metade um trio
pecaminoso, vêm constituir uma espécie de ilustração do ditado que refere que
o prazer é frágil como o vidro”.
-Em a “Tentação de Santo António”, do Museu Nacional de Arte Antiga de
Lisboa, o pintor vazou na forma de um tema ilícito tudo aquilo que o
atormentava e que ele não teria ousado exprimir livremente. O cenário
combina, uma vez mais, a água e os destroços causados pelo incêndio que
consome raivosamente as construções dos homens para as transformar em ruínas
calcinadas. Neste mundo nocturno, longe dos vermelhos terríveis das
fornalhas, prefigurando o Inferno, Santo António sofre as investidas do
Demónio que lhe oferece, capciosamente, ilimitadas possibilidades de domínio
e poderio no caso de estar disposto a recorrer às práticas da “alquimia”-e da
Magia Negra que lhe permitiriam conhecer o segredo da “pedra filosofal” -
transmutação de todos os metais em ouro e prata - e o da origem da vida. O
velho anacoreta encolhe-se e sozinho mantém, como uma lamparina frágil, a luzinha
ameaçada do espírito por todos os lados atacada. Bosch fica encantado quando
as suas alegorias coincidem com os provérbios inocentes que abundam no
espírito popular. Assim acontece em “O carro de feno”, obra que faz parte de
um conjunto em forma de tríptico conhecido como “O tríptico do feno”. O
provérbio diz: “O mundo é um monte de feno, cada qual tira o que pode”. No
centro da obra, uma enorme massa compacta de feno empilhado exprime o objecto
das cobiças mais variadas. Armado com gadanhas, berrando e saltando, o povo
quer apanhar um pouco de palha. Pouco importa que alguns, na sua rivalidade,
rolem no chão estrangulados, que outros sejam esmagados pelas rodas do enorme
carro. Toda a Humanidade é arrastada na cobiça universal, todos os grandes
estão representados: reconhece-se o rei, os senhores e até mesmo o papa. Onde
se encontra, afinal, Deus? No “Jardim das delícias” encontra-se, quase
invisível, a um canto. Em “O carro de feno”, aparece apenas como uma
testemunha desesperada. As explosões de concupiscência e de pecado acompanham
a profanação de Cristo. A obra de Hieronymus Bosch não dissimula a derrota
que impõe a Deus, expressa até ao paroxismo em “O transporte da Cruz””, onde
a figura ultrajada é esmagada no meio de uma massa compacta de faces ignóbeis,
fazendo caretas, em que todas as taras morais estão marcadas de forma bem
perceptível. Não podemos dissociar a iconografia boschiana da atmosfera da
Pré-Reforma e de uma mística exacerbada. A derrota de Deus é, afinal, a
derrota do Homem.
Nas pinturas do grande flamengo, a visão do mundo alarga-se
imensamente. Como já foi referido, Bosch era um pintor medieval mas, ao
contrário da maioria dos pintores medievais holandeses, já não se inspirava
exclusivamente nos temas religiosos. Na sua obra sente-se passar já as
primeiras inquietações que prenunciavam as grandes e profundas transformações
que começavam a realizar-se na Europa. As visões de Bosch são, por assim
dizer, uma síntese de todas as visões do mundo medieval. A sua concepção de
vida é já universal. Na sua crítica ao Homem, é já a própria Humanidade que o
artista critica.
Características evidenciadas pela obra de Bosch, tais como a
desarticulação do mundo da realidade imediata ou a condensação, em formas
plásticas bem definidas, de forças instintivas mas recalcadas nos mais
íntimos meandros do subconsciente, pareciam encontrar uma notada equivalência
nas condições impostas pelas leis do “automatismo psíquico”, fundamentais no
processo de criação dos comparticipantes do movimento surrealista.
No Primeiro Manifesto lançado pelos seus iniciadores, André Breton
definia surrealismo nos seguintes termos: “Automatismo psíquico puro, pelo
qual nos propomos exprimir, seja verbalmente seja por escrito, seja por
qualquer outra forma, o funcionamento real do pensamento. Ditado do
pensamento na ausência de todo o controle da razão e de toda a preocupação
moral ou estética”.
Devido à enorme influência exercida pelo movimento surrealista na arte
do século XX e à sua voz nos meios cultos, Bosch e a sua obra passam a ser
admirados sem reservas e glorificados, facto a que também não será estranha a
difusão, até ao grande público, dos princípios da psicanálise estabelecidos
por Sigmund Freud e seus discípulos e continuadores.
No entanto, vários investigadores começaram a levantar a questão da
falta de identidade entre os dois processos, o de Bosch e o dos surrealistas.
Estudos mais ou menos recentes, sem dúvida de importante valor para a
melhoria da compreensão de toda a obra do Mestre como os do crítico francês
Jacques Combe, do historiador holandês Dr. J. Bax e do erudito alemão Wilhelm
Franger, vêm redimensionar a problemática do seu processo criador, já
anteriormente aqui aflorada, concluindo pela finalidade apologética da obra
de Hieronymus Bosch. Referem que, enquanto nos surrealistas a finalidade
máxima é escapar à acção dominadora da vontade consciente, o que fica
comprovado pela definição de Breton acima transcrita, em Bosch, ao contrário,
a finalidade máxima seria a de colocar a mesma vontade ao serviço do processo
criador. Teríamos assim que, enquanto os primeiros tentam uma optimização de
condições para a livre criação através da exteriorização dos impulsos
provindos directamente do mais profundo do sub-consciente, o segundo
submetê-las-ia quase sempre à rígida disciplina da vontade consciente.
Contudo, esta última hipótese não se apresenta como verdadeiramente
definidora e limitativa dos dois processos de criação: como tudo parece
indicar, em Hieronymus Bosch os impulsos originados no seu subconsciente
deviam ser de tal modo irreprimíveis que eles romperiam com impetuosidade
através das figurações plásticas voluntariamente preconcebidas. Não se
discute se a imaginação criadora do artista foi condicionada por finalidades
apologéticas preconcebidas, isso é um facto estabelecido. Mas as preocupações
moralizadoras do pintor, evidenciadas através de símbolos mais ou menos
pronunciados e recorrentes, se bem que constantemente presentes na sua obra
não devem - por si só - ser suficientes e até esgotarem a questão da problemática
da necessidade da criação artística. Nem, é claro, para se ver a obra de
Bosch apenas como um enorme conjunto de formas plásticas imbuídas de forte
cariz pedagógico. Por outro lado, é também certo: quanto mais não seja pela
problemática decorrente desta questão e pela dificuldade em lhe dar resposta,
constatamos que na essência os dois processos de criação artística podem
coincidir em certos pontos, posto não se ajustem completamente. Apesar disso,
há que atender igualmente, na obra de Bosch, aos ditames que vêm do mais
profundo do ser, pois muitas vezes “A grande aventura é no interior que se
desenrola” (sic Fernando Batalha in “Aforismos”).-
Temos igualmente que verificar o interesse de não nos cingirmos e
ligarmos umbilicalmente às teorias explicativas e a trabalhos que demasiadas
vezes cedem à tentação da história da arte imbuída de determinismo artístico,
onde cada artista passa ao seguinte o melhor da sua produção, procurando uma
sequência lógica mas também referenciando e catalogando os artistas de uma
maneira rectilínea e simplesmente ortodoxa. Atitude perigosa, quer por
esquecer as antecipações, “tão necessárias para o desenvolvimento global”,
quer sobretudo por pôr de parte, muitas vezes, o direito e a liberdade de
usufruir de maneira descomprometida valores plásticos de superior beleza
formal e aliciante colorido mas tidos por “incomuns”.
Há que deixar também que a estética se ponha ao serviço do prazer
sensorial, mesmo que para isso se corra o risco de confundir ou chocar os
novos Wolfflins ou Robert Frys. A educação pela arte, se bem que necessária,
diria mesmo urgente, não pode eliminar a liberdade interpretativa nem, muito
menos, a liberdade criadora. Como dizia Leonardo da Vinci, a pintura, sendo
também outras coisas, “é uma poesia visível”. Contemplando os trabalhos de
Bosch, essa afirmação ganha um surpreendente realce e traz-nos à memória o
ensinamento do Prof. Agostinho da Silva. Diz ele: “A nossa obrigação é ser
poeta à solta, cada um com a sua poesia, porque tanto há poesia em fazer
versos como em fazer matemática ou olhar aquela nuvem e dizer que se parece
vagamente com um crocodilo ou com um anjo batendo as asas”.
É quando a pintura, ou qualquer tipo de Arte, afinal, contribui para o
enriquecimento espiritual do Homem, para a realização do homem integral,
através da fruição estética e dos aliciantes trabalhos de pesquisa e estudo -
que a “psique fragmentada”, de que nos fala sir Herbert Read, está finalmente
reconstituída.
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João Garção (Portugal, 1968). Poeta, pintor e ensaísta. Licenciado em História da Arte e mestre em História Contemporânea de Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Contato: jfvgarcao@sapo.pt. Página ilustrada com obras do artista Hieronymus Bosch (Holanda). Agulha Revista de Cultura # 55. Janeiro de 2007. |
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