quinta-feira, 29 de outubro de 2015

JOÃO GARÇÃO | Hieronymus Bosch: relance sobre um precursor medieval do surrealismo


Devo confessar que a maioria dessas obras deixa uma impressão dolorosa em minha mente.
Robert Fry

As opiniões mais diversas e contraditórias têm sido formuladas sobre a obra deste artista, contemporâneo de Leonardo da Vinci, que a historiografia tradicional considera como o último dos góticos.
A cada época corresponde uma determinada escala de valores, dentro da qual são cuidadosamente ordenados os pintores de várias nacionalidades, escala condicionada por maneiras de pensar e sentir. No que toca a Hieronymus Bosch, pode dizer-se que a existência deste pintor era praticamente desconhecida ainda nas primeiras décadas do século Vinte. Só recentemente os historiadores e críticos de arte contemporâneos começaram a debruçar-se mais sistematicamente sobre a sua Obra, passando das simples designações de “pintor que se dedicou à pintura de assuntos estranhos” sobretudo “diabruras” e “infernos”, a análises do significado profundo daquilo que pintou.
Como consequência desta nova atitude, estudos biográficos como os de Charles de Tolnay, Ludwig von Baldass, Friedlander, G.Gluck ou Justi foram decisivos na apreciação das realizações de Bosch, demonstrando que muitas das características formais apresentadas nos seus quadros obedeciam a uma certa finalidade apologética de franca expressão interior.
Do seu muito aturado e proficiente trabalho resultou então uma profunda reviravolta nos conceitos estabelecidos acerca do valor do mestre flamengo e do significado da obra que nos deixou.
Hieronymus Bosch (145?-1516) cultivou a sua arte em Bois-le-Duc, pequena região isolada da Holanda. Bois-le-Duc era a quarta cidade do ducado de Brabante e havia enriquecido através do comércio. O clima que ali se vivia, se era provincial não era no entanto desprovido de vida artística, apesar da distância que a separava de Harlém, que era na altura o mais concorrido centro artístico holandês.
Pouco se sabe sobre a sua vida. As fontes, demasiado lacónicas, não fornecem muitos elementos. Ao que parece nunca terá deixado Bois-le-Duc. Desposou Aleid Van de Mervene, uma rica proprietária, vivendo confortavelmente e decerto saboreando a independência artística.
No que diz respeito à obra, também não é possível estebelecer de maneira positiva uma evolução técnica do pintor. Toda a afirmação toca o campo da hipótese. Os seus quadros não são nunca datados e apenas cinco possuem assinatura, que foram muitas vezes plagiadas na sua grafia gótica e latina. Só nos são facultadas cerca de quarenta obras autênticas. Para dar um exemplo, o “Transporte da Cruz”, dos Museus Reais de Belas-Artes de Bruxelas, é uma obra situada por Van Puyvelde na juventude do artista, por Baldass cerca de 1480, por Tolnay no período médio e por Friedlander na maturidade. Actualmente, tende-se a procurar as fontes de inspiração nas iluminuras, nos incunábulos, nos paleotipos e nas xilogravuras.
Proveio de uma família de pintores e artesãos e, ao que se pensa, o denominado Jean van Aken, várias vezes citado nos arquivos da Catedral de Bois-le-Duc como o realizador dos frescos (1423-1424) existentes nessa igreja, talvez tenha sido seu tio.
Muitos historiadores de arte insistem hoje em dia no papel que o mundo provincial onde viveu, ainda preso às fórmulas do gótico internacional, terá tido na formação de Hieronymus Bosch. Neste mundo provincial há um elemento que não podemos desprezar na análise da obra do pintor: a importância da corrente mística na Flandres (obsessão pelo Inferno, processos de bruxaria, etc.) e em que muitos autores insistem, sobretudo depois dos estudos de Huizinga (“O declínio da Idade Média”). E aqui surge-nos uma questão sempre posta, a da ortodoxia de Bosch: ou o artista foi cristão, ou viveu à margem da Igreja estabelecida. Ou a sua imaginação se inscreve na linha da Idade Média fantástica mas cristã, ou os seus quadros escondem aos olhos do não iniciado afirmações doutrinais de seitas esotéricas.
Vários são os estudiosos que se debruçaram sobre este problema sem dúvida importante para a compreensão da vida de Bosch e da sua obra, pois possivelmente poderá ajudar-nos a responder ao mistério que se nos apresenta, relacionado com os fantasmas da criação.
Assim, Charles de Tolnay definiu Bosch como heterodoxo. Adepto da devotio moderna dos “Irmãos da Vida Comum”, Bosch teria estigmatizado desvios com respeito à Igreja oficial. Devemos também, e em paralelo a esta teoria, observar o facto de ter vivido sempre na mais estreita ortodoxia sempre respeitosa em relação à autoridade eclesiástica.
Wilhelm Franger dispensou numerosa erudição para associar o pintor de Bois-le-Duc a correntes anti-cristãs. Segundo Franger, Bosch teria sido membro de uma seita adamita, a dos “Irmãos do Livre Espírito”
Por fim, de acordo com C.A.Wertheim, Bosch era um Rosa-Cruz, bem como Filipe-o-Belo, e Filipe II teria tido também bastante estima pelas ideias deste ramo da franco-maçonaria. Contudo, não são apresentadas provas ou referências.
O afastamento de Bosch em relação aos centros artísticos mais activos e o seu isolamento em Bois-le-Duc pode ser por si sintomático em relação à sua atitude face aos valores inerentes à formação do Gótico na Idade Média, afastando-se da tradição local do século XV. Pode também explicar o seu espírito anti-clássico e o seu sentimento refractário em relação ao Renascimento, podendo também, por este lado, explicar a sua pouca valorização por parte dos renascentistas, que nada mais viam nele, como Vasari, do que “o autor de verdadeiros pesadelos”.
O desenvolvimento da economia de troca, a circulação monetária, a emergência de grupos sociais com dinamismo próprio, o renascimento urbano e a concentração nas cidades, com o convívio quotidiano entre pessoas de tipos diferentes, vêm alterar profundamente todos os valores artísticos e culturais até então predominantes. Os quadros da civilização são destruídos para prepararem a sua renovação
Estamos perante um novo discurso, uma nova moral, perante valores que à medida que o tempo passa se vão recheando de contradições e sínteses evolutivas. Um sistema instala-se, perfeitamente inovador, e ao cristalizar cria dentro de si, no seu próprio discurso, o seu contrapoder, as mentalidades de contestação e antecipação ao próprio sistema. As estruturas colectivas caem e retiram o apoio às consciências individuais: entregues a si próprias e às suas forças de organização, estas voltam-se então, como que numa espécie de pânico, para as profundezas que lhes subjazem, assim como um animal assustado procura refúgio na sua casca, no seu fojo longe da luz do dia. Foi o que aconteceu no fim da Idade Média.
Ante as novas forças que ascendiam ao assalto da medievalidade, Bosch tomou consciência dos novos valores que o rodeavam, apelando para outros continentes da imaginação. A sua alma inquieta e inquietante, aproveitando as férias da legalidade racional provocadas pelo cansaço da civilização dessa época, encontrava tanto no consciente colectivo da Flandres, sempre atenta ao diabólico, como no seu inconsciente individual e pessoal, atormentado por agitações suspeitas, uma injunção para libertar a avidez das tentações. As suas imagens reflectem preocupações tipicamente medievais: pecados, tentações, histórias de santos, tudo transmitido com cores delicadas, justapostas com equilíbrio e refinada sabedoria pictórica. Hieronymus Bosch inspirou-se sempre, mesmo nas suas obras mais percorridas pelo fantástico, em aspectos do quotidiano. No entanto, é evidente a grande transformação que o artista faz dele. É o caso da chamada “Nave dos Loucos”, por exemplo, obra situada por volta de 1500. O tema do quadro é o mesmo do poema de Sebastian Brandt, “Das Narrenshiff”, publicado em Basileia, no ano de 1494, em dialecto estrasburguês. Esta obra literária depressa foi objecto de grande difusão, adquirindo notoriedade por tal forma que foi inclusive publicada em latim pouco tempo depois. Por isso não causam estranheza as coincidências temáticas entre o poema de Brandt e a pintura de Bosch.
Ludwig von Baldass, considerado o maior conhecedor da obra boschiana, afirma: “Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o grande solitário da História da Arte. É o pintor que, através da sua arte - que está historicamente à altura da sua época - quer mais do que os outros. Não aspira a divertir, a instruir ou a educar, mas a criticar e a profetizar. Apresenta à Humanidade um espelho de duas faces. Nele, a Humanidade vê reflectida, por um lado a sua necessidade e a sua perversidade; por outro, as consequências terríveis, no Além, resultantes dos seus pecados mortais. Nesse sentido, Bosch continua a ser um filho da Idade Média; mas, pela maneira totalmente independente nos exemplos que emprega para representar as suas concepções dentro das manifestações artísticas, ele pertence aos tempos modernos. Dessa forma, encontra-se no limite entre duas épocas”.
Aqui tocamos um ponto importante em relação ao problema que nos propusemos tratar. É que nunca o clima espiritual onde o mestre quatrocentista realizou as suas profundas sondagens se aproximou tanto, conforme parece, do similar hoje existente no mundo. Nunca a efémera passagem do homem pela Terra e as preocupações a ela ligadas, tratadas pelo artista flamengo ousadamente em relação à época, foram novamente tão longe como no nosso tempo.
No fundo, o homem actual como o do tempo de Hieronymus Bosch - como afinal o de todas as épocas - não serão dominado por preocupações idênticas? O fenómeno da equivalência, caso exista na realidade, só é devido ao facto dessas preocupações, latentes noutras épocas, terem agora adquirido uma acuidade que já deve ter ultrapassado em muito as dos homens que viveram no decurso do dramático período de transição do século XV para o século XVI.
O homem contemporâneo, obrigado mais uma vez a enfrentar um desconhecido saturado de terríveis ameaças, parece ajustar com facilidade as visões de pesadelo daquele Mestre de antanho às que lhe são oferecidas a cada passo no seu contacto diário com a realidade brutal dos acontecimentos mundiais. À sua volta tudo se desagrega. O mundo aparece-lhe como caótico, desordenado, monstruoso, precisamente como Bosch o entrevira nas suas proféticas pinturas. Não apenas o mundo exterior, representado pelo drama da humanidade, mas também o interior de cada ser humano agitado por múltiplas e poderosas forças de acção contraditória: o cinismo dos argentários, a frieza sinistra dos fanáticos políticos ou religiosos, a corrupção ética da magistratura, o desleixo e o desinteresse dos governantes, o oportunismo e a mesquinhez de sectores dirigentes embrutecidos pelos interesses espúrios e grosseiramente manipuladores.
Decerto as imagens do Inferno e dos Demónios, tais como Bosch os pintou, já pouco devem aterrorizar os homens do século em que vivemos, se estes olharem para eles distraidamente, deixando-se aliciar apenas por encenações fantásticas e a configuração grotesca dos seus habitantes. Mas se esse olhar for mais atento e perscrutador, se ele for analisando com cuidado cada pormenor isoladamente, ou apreciando cada um dos conjuntos concebidos de maneira a apreender-lhes o sentido (os seus quadros assemelham-se a miniaturas ampliadas) já as impressões recebidas serão bem diferentes.
Este homem contemporâneo sentirá, então, quanto elas se ajustam às suas próprias visões do mundo em que vive. A tão grande distância no tempo e no espaço, dir-se-ia que Bosch assistiu, dominado por grande angústia, às destruições indescritíveis de cidades inteiras submetidas aos bombardeamentos aéreos, aos combates, aos impulsos instintivos que transformam os homens em seres cruéis, impiedosos, sedentos de sangue, verdadeiros demónios de configuração monstruosa sob a capa de perfis habituais.
Formalmente, devemos entender a aversão de Bosch à perspectiva e à regra pictórica como a identificação do pintor com a realidade obscura e a busca da identidade através da arte que deixa de ser um mero exercício estético para abarcar a totalidade dos temas.
O espírito entra então num mundo fantasmagórico, onde seres e coisas tomam um aspecto imprevisto, possuídos e revelados por cores muitas vezes irreais.
Paralelamente, surge uma problemática que no âmbito deste trabalho nos interessa à partida e para a qual, afirma-se desde já, é difícil encontrar uma resposta segura: saber em que momento exacto a imaginação do pintor se expandiu livremente, sem obedecer a qualquer condicionamento imposto por objectivos bem definidos. Penetrar nesta problemática é para nós tanto mais importante quanto André Breton, “pai” do movimento surrealista, referiu que o surrealismo “repousa na crença na realidade superior de certas formas de associação negligenciadas até aí, no forte poder do sonho, no jogo desinteressado do pensamento”. Os surrealistas procuram uma ultrapassagem do dito “mundo real” para penetrarem naquele das aparições, dos fantasmas, porque - referem - é somente à aproximação do fantástico, nesse ponto onde a razão humana perde o seu controle espartilhador, que se têm todas as hipóteses de traduzir emoções das mais profundas do Ser. Como o autor de “A chave dos campos” disse um dia: “O que há de extraordinário no fantástico é que, vai-se a ver e já não há fantástico - só o real existe.”.
Já Leonardo da Vinci, expressamente, havia insistido na importância da imaginação criadora para a qual a síntese das percepções mais não seria que um trampolim para passar ao real. Bosch parece ter feito mais, anunciando uma independência de espírito que só as futuras gerações de artistas conquistariam plenamente. Sérias razões tinha Frei José de Siguenza ao afirmar que o mestre flamengo não se havia limitado a pintar o Homem entrevisto no seu aspecto puramente exterior mas ousara ir mais além, pintando-o tal como era por dentro (Historia de la Orden de San Jerónimo, 1599).
Bosch foi um detonador da imaginação humana. De facto, foi ele o primeiro artista a sondar, com obsessiva curiosidade, o mundo obscuro, impreciso, sempre mergulhado em densas trevas, que é parte integrante de cada ser humano e o define psicologicamente. Um mundo onde se debatem forças contraditórias, que tão depressa o podem elevar acima da sua condição de mortal dominado apenas por instintos primários, como torná-lo uma presa inconsciente desses instintos e, então, o mais vil e cruel de todos os seres da Criação. A pintura apresentar-se-á então como expressão da segunda vida do Homem.
Os surrealistas, no entanto, alertam para a necessária recusa de certos vícios mentais e conceptuais decorrentes desta atitude, excluindo o maravilhoso elaborado sem necessidade interior. Somente os artistas que tentaram dar ao sonho, ao desejo, à imaginação um papel fundamental - e por isso libertador - nas suas composições, apresentam para eles qualquer interesse. O surrealismo apresenta-se mais como evocação de um possível completado pelo desejo e pelo sonho que a descrição do impossível. Assim, há pintores de universos insólitos (basta consultar-se a Internet e ver-se-á quantos “surrealistas” desse género lá pululam, visando vender alguns quadros) que nada têm a ver com ele, como é o caso por exemplo de Odilon Redon (aliás pintor de reconhecida qualidade estética) que nos seus trabalhos multiplicou animalejos fantásticos e paisagens de pesadelo sem outra intenção que não fosse a de colocar “a lógica do visível ao serviço do invisível”. O grupo surrealista refuta energicamente o parentesco com este género de apologias, porquanto o que lhe interessa e o fundamenta é a transfiguração e a interpenetração dos dois planos. Ao defender convictamente que no espírito humano há tesouros escondidos, a par é claro de sótãos inomináveis, proclama a sua ligação a Bosch pois, segundo refere, a preocupação filosófica do pintor de Bois-le-Duc, mais que ser moralizadora, faz com que a sua obra seja “uma pintura que contém um segredo”assim sendo, por definição, “uma pintura surrealista”.
Dizia Louis Aragon que “há outras ligações que o real e o espírito podem estabelecer, sendo também, à sua vez, primeiras, como a sorte, a ilusão, o fantástico e o sonho”.Para Bosch, o mundo - borbulhante de metamorfoses - não conhece a razão: o espaço anuncia ameaças, mas não tem dimensões. Neste aspecto formal, Hieronymus Bosch é a floresta que caminha mais rapidamente que o viandante e que o próprio tempo.
Para explicar os seus trabalhos, torna-se necessário recorrer ao simbolismo dos sonhos, mas penetrar-se-iam muito melhor as suas intenções secretas recorrendo ao domínio da psicanálise. Os historiadores de Bosch, como Tolnay ou Combe, defendem-no e o primeiro conclui: “Bosch fez um quadro cativante dos desejos reprimidos”.
Sobre este ponto não deixa de ser curioso e interessante verificar que muitas das obras de André Breton, como refere Yves Duplessis, mostram que os acontecimentos atribuídos à sorte ou ao azar mais não fazem que exprimir o dinamismo de instintos inibidos pelas convenções sociais. O surrealismo teve a originalidade de reabilitar o sonho e de lhe atribuir uma grande importância, pois no sonho tudo parece simples e natural: a angustiante questão da possibilidade não tem aqui lugar.
Para os surrealistas, a atitude mais natural seria a de ver, por todo o quotidiano e o usual, o maravilhoso e de tratar o estranho, o sobrenatural, como familiares, tendo-os sempre à mão. Por todo o lado onde a imaginação se manifeste sem os travões do espírito “crítico” (ou seja, uma deformação deste) aparece a surrealidade - ou dizendo de outro modo, a inteira realidade.
No surpreendente ”Jardim das delícias” (220 x 389 cm), do Museu do Prado, o universo boschiano apresenta-se-nos repleto de fantástico, onde os acontecimentos mais inverosímeis parecem normais: ao centro da obra, uma bacia circular recebe na sua água as figuras de mulheres nuas. Em toda a volta, numa cavalgada obcecada e louca, os homens montam animais estranhos. Segundo os mais recentes estudos psicanalíticos, os frutos enormes que salpicam estes jardins enigmáticos corresponderão aos símbolos de cobiças sensuais. A ânsia do desejo da mulher é proclamada pela acção colectiva que faz com que os homens girem em torno das banhistas de pé, nesta água que é também um símbolo, o símbolo imemorial do inconsciente pela sua fluidez indecisa e pelas suas profundezas traiçoeiras.
Contudo, nesta composição de Bosch que respira toda a pureza do fantástico notamos que, tal como o defendido pelos surrealistas, o fantástico e o maravilhoso se encontram como possível. Se topamos, por exemplo, com uma cena em que um homem contido num fruto observa um rato através dum tubo de vidro, e tomamos como impossível um homem estar contido num fruto, já não nos parece inverosímil que um homem e um rato se espreitem nas extremidades desse tubo: isto é possível. O que acontece é que o insólito não se encontra facilmente formulado, não existe a procura do efeito cómico. Freud referiu o facto de o humor ser uma “máscara do desespero”, aparecendo claramente como uma metamorfose do espírito de insubmissão, uma recusa dos preconceitos sociais. Para os surrealistas, os absurdos do mundo devem ser observados como que de um balcão, encontrando-se o Homem desligado dessa realidade exterior. Utilizando a demolidora arma que é o riso, o Homem é por este introduzido no universo da imaginação.
Em Bosch, acentue-se este detalhe, a incongruência nunca é cómica.
Longe de se refugiarem nas suas torres de marfim, os surrealistas mais não visam que demoli-las pela transformação da existência humana, para que as vítimas da realidade dela não se abstraiam fugindo, mas pelo contrário entrando nela para a tornarem conforme às suas aspirações. Bosch havia já sentido essa mesma necessidade. A esse propósito, atentemos no que refere Marcel Brion: “O que faz de Bosch um dos percursores e mesmo um dos pais do surrealismo contemporâneo é o facto de se encontrar nele uma ‘sistematização da confusão’ e uma ‘irracionalidade concreta’ que serão preconizadas quasi meio milénio depois por Dali. O Demoníaco aparece como contrapartida da Criação, o Universo Infernal oposto ao Cosmos Divino”.
Em certos meios fideístas chegaram a considerá-lo um ateu, um herético perigoso, cujas obras, pela imoralidade dos temas nelas representados, eram impróprios para serem apreciados por verdadeiros católicos praticantes. Por tais motivos, algumas foram retiradas dos locais onde estavam expostas e arrecadadas em lugares onde não perturbassem a moral pública, enquanto outros quadros chegaram mesmo a ser queimados.
-Se fizermos uma estatística dos seus temas, por definição reveladores das suas ansiedades, vemos continuamente o tema da tentação. Bosch encontra este tema na iconografia cristã tradicional, que corresponde à obsessão pelo pecado, quer dizer, à obsessão de apetites inconscientes que vêm atacar as obrigações da moral. Se Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, como parece insinuar, Satanás não perde a mínima oportunidade de destruir o que o próprio Homem, com orgulho desmedido, afirma ser a obra-prima da Criação. Esse orgulho desmedido abate-o Bosch mostrando-lhe até que ponto os mortais são capazes de descer quando os seus instintos bestiais, destruindo as frágeis carapaças a que estavam confinados a custo, irrompem impetuosos como uma torrente caudalosa, tudo destruindo na sua passagem.
O já referido “Jardim das delícias”, uma das suas obras mais famosas, é um repositório minucioso dos desmandos eróticos dos mortais, dominados pelo pecado da luxúria. Dividido em três partes, apresenta um prólogo, o próprio quadro e um epílogo. Quando fechados os dois painéis laterais sobre o central, outra pintura nos é mostrada: “A criação do mundo”. O prólogo é a representação do Paraíso Terrestre. Num jardim maravilhoso, embora extravagante em alguns aspectos, Deus e os Homens vivem harmoniosamente. Aqui é interessante e significativo verificar que Bosch, ao contrário de outros pintores que representaram o Éden, insere mesmo antes da expulsão germes diabólicos, como se Deus tivesse a responsabilidade inicial destes desmandos dementes, irracionais, expostos no painel central. Aqui encontramos um carnaval insensato de prazeres. O absurdo reina e governa os movimentos desta multidão. No painel da direita, chamado do “Inferno musical”, torturas demoníacas são aplicadas pelos próprios objectos que foram instrumentos de delícias, o sexo para os sensuais, o instrumento de música para os musicais, etc. Temos assim que a harmoniosa vivência do Homem foi transformada, terrenalmente, num asilo de loucos plenos de ilusões e de gozos e, post-mortem, num inferno onde tudo o que servia ao prazer se torna num objecto de instrumental mortificação.
Por ser um trabalho muito rico em símbolos, “O jardim das delícias” já recebeu inúmeras interpretações. Uma das mais curiosas é assinada por Charles de Tolnay, autor do livro “Hieronymus Bosch”, 1937. Baseado na psicanálise, Tolnay afirma: “ A intenção fundamental do pintor é tornar manifestas as consequências que derivam do prazer carnal e o caracter efémero deste: os aloés, suculentas plantas, ferem os corpos nus; o coral e as conchas dos moluscos aprisionam-nos. No pequeno castelo das mulheres adúlteras, cujas paredes de cor alaranjada são atenuadas por uma cristalina transparência, dormem rodeados de cornos os esposos ofendidos. A esfera de cristal, onde um casal se acaricia, e o sino do mesmo material que cobre pela metade um trio pecaminoso, vêm constituir uma espécie de ilustração do ditado que refere que o prazer é frágil como o vidro”.
-Em a “Tentação de Santo António”, do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, o pintor vazou na forma de um tema ilícito tudo aquilo que o atormentava e que ele não teria ousado exprimir livremente. O cenário combina, uma vez mais, a água e os destroços causados pelo incêndio que consome raivosamente as construções dos homens para as transformar em ruínas calcinadas. Neste mundo nocturno, longe dos vermelhos terríveis das fornalhas, prefigurando o Inferno, Santo António sofre as investidas do Demónio que lhe oferece, capciosamente, ilimitadas possibilidades de domínio e poderio no caso de estar disposto a recorrer às práticas da “alquimia”-e da Magia Negra que lhe permitiriam conhecer o segredo da “pedra filosofal” - transmutação de todos os metais em ouro e prata - e o da origem da vida. O velho anacoreta encolhe-se e sozinho mantém, como uma lamparina frágil, a luzinha ameaçada do espírito por todos os lados atacada. Bosch fica encantado quando as suas alegorias coincidem com os provérbios inocentes que abundam no espírito popular. Assim acontece em “O carro de feno”, obra que faz parte de um conjunto em forma de tríptico conhecido como “O tríptico do feno”. O provérbio diz: “O mundo é um monte de feno, cada qual tira o que pode”. No centro da obra, uma enorme massa compacta de feno empilhado exprime o objecto das cobiças mais variadas. Armado com gadanhas, berrando e saltando, o povo quer apanhar um pouco de palha. Pouco importa que alguns, na sua rivalidade, rolem no chão estrangulados, que outros sejam esmagados pelas rodas do enorme carro. Toda a Humanidade é arrastada na cobiça universal, todos os grandes estão representados: reconhece-se o rei, os senhores e até mesmo o papa. Onde se encontra, afinal, Deus? No “Jardim das delícias” encontra-se, quase invisível, a um canto. Em “O carro de feno”, aparece apenas como uma testemunha desesperada. As explosões de concupiscência e de pecado acompanham a profanação de Cristo. A obra de Hieronymus Bosch não dissimula a derrota que impõe a Deus, expressa até ao paroxismo em “O transporte da Cruz””, onde a figura ultrajada é esmagada no meio de uma massa compacta de faces ignóbeis, fazendo caretas, em que todas as taras morais estão marcadas de forma bem perceptível. Não podemos dissociar a iconografia boschiana da atmosfera da Pré-Reforma e de uma mística exacerbada. A derrota de Deus é, afinal, a derrota do Homem.
Nas pinturas do grande flamengo, a visão do mundo alarga-se imensamente. Como já foi referido, Bosch era um pintor medieval mas, ao contrário da maioria dos pintores medievais holandeses, já não se inspirava exclusivamente nos temas religiosos. Na sua obra sente-se passar já as primeiras inquietações que prenunciavam as grandes e profundas transformações que começavam a realizar-se na Europa. As visões de Bosch são, por assim dizer, uma síntese de todas as visões do mundo medieval. A sua concepção de vida é já universal. Na sua crítica ao Homem, é já a própria Humanidade que o artista critica.
Características evidenciadas pela obra de Bosch, tais como a desarticulação do mundo da realidade imediata ou a condensação, em formas plásticas bem definidas, de forças instintivas mas recalcadas nos mais íntimos meandros do subconsciente, pareciam encontrar uma notada equivalência nas condições impostas pelas leis do “automatismo psíquico”, fundamentais no processo de criação dos comparticipantes do movimento surrealista.
No Primeiro Manifesto lançado pelos seus iniciadores, André Breton definia surrealismo nos seguintes termos: “Automatismo psíquico puro, pelo qual nos propomos exprimir, seja verbalmente seja por escrito, seja por qualquer outra forma, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo o controle da razão e de toda a preocupação moral ou estética”.
Devido à enorme influência exercida pelo movimento surrealista na arte do século XX e à sua voz nos meios cultos, Bosch e a sua obra passam a ser admirados sem reservas e glorificados, facto a que também não será estranha a difusão, até ao grande público, dos princípios da psicanálise estabelecidos por Sigmund Freud e seus discípulos e continuadores.
No entanto, vários investigadores começaram a levantar a questão da falta de identidade entre os dois processos, o de Bosch e o dos surrealistas. Estudos mais ou menos recentes, sem dúvida de importante valor para a melhoria da compreensão de toda a obra do Mestre como os do crítico francês Jacques Combe, do historiador holandês Dr. J. Bax e do erudito alemão Wilhelm Franger, vêm redimensionar a problemática do seu processo criador, já anteriormente aqui aflorada, concluindo pela finalidade apologética da obra de Hieronymus Bosch. Referem que, enquanto nos surrealistas a finalidade máxima é escapar à acção dominadora da vontade consciente, o que fica comprovado pela definição de Breton acima transcrita, em Bosch, ao contrário, a finalidade máxima seria a de colocar a mesma vontade ao serviço do processo criador. Teríamos assim que, enquanto os primeiros tentam uma optimização de condições para a livre criação através da exteriorização dos impulsos provindos directamente do mais profundo do sub-consciente, o segundo submetê-las-ia quase sempre à rígida disciplina da vontade consciente.
Contudo, esta última hipótese não se apresenta como verdadeiramente definidora e limitativa dos dois processos de criação: como tudo parece indicar, em Hieronymus Bosch os impulsos originados no seu subconsciente deviam ser de tal modo irreprimíveis que eles romperiam com impetuosidade através das figurações plásticas voluntariamente preconcebidas. Não se discute se a imaginação criadora do artista foi condicionada por finalidades apologéticas preconcebidas, isso é um facto estabelecido. Mas as preocupações moralizadoras do pintor, evidenciadas através de símbolos mais ou menos pronunciados e recorrentes, se bem que constantemente presentes na sua obra não devem - por si só - ser suficientes e até esgotarem a questão da problemática da necessidade da criação artística. Nem, é claro, para se ver a obra de Bosch apenas como um enorme conjunto de formas plásticas imbuídas de forte cariz pedagógico. Por outro lado, é também certo: quanto mais não seja pela problemática decorrente desta questão e pela dificuldade em lhe dar resposta, constatamos que na essência os dois processos de criação artística podem coincidir em certos pontos, posto não se ajustem completamente. Apesar disso, há que atender igualmente, na obra de Bosch, aos ditames que vêm do mais profundo do ser, pois muitas vezes “A grande aventura é no interior que se desenrola” (sic Fernando Batalha in “Aforismos”).-
Temos igualmente que verificar o interesse de não nos cingirmos e ligarmos umbilicalmente às teorias explicativas e a trabalhos que demasiadas vezes cedem à tentação da história da arte imbuída de determinismo artístico, onde cada artista passa ao seguinte o melhor da sua produção, procurando uma sequência lógica mas também referenciando e catalogando os artistas de uma maneira rectilínea e simplesmente ortodoxa. Atitude perigosa, quer por esquecer as antecipações, “tão necessárias para o desenvolvimento global”, quer sobretudo por pôr de parte, muitas vezes, o direito e a liberdade de usufruir de maneira descomprometida valores plásticos de superior beleza formal e aliciante colorido mas tidos por “incomuns”.
Há que deixar também que a estética se ponha ao serviço do prazer sensorial, mesmo que para isso se corra o risco de confundir ou chocar os novos Wolfflins ou Robert Frys. A educação pela arte, se bem que necessária, diria mesmo urgente, não pode eliminar a liberdade interpretativa nem, muito menos, a liberdade criadora. Como dizia Leonardo da Vinci, a pintura, sendo também outras coisas, “é uma poesia visível”. Contemplando os trabalhos de Bosch, essa afirmação ganha um surpreendente realce e traz-nos à memória o ensinamento do Prof. Agostinho da Silva. Diz ele: “A nossa obrigação é ser poeta à solta, cada um com a sua poesia, porque tanto há poesia em fazer versos como em fazer matemática ou olhar aquela nuvem e dizer que se parece vagamente com um crocodilo ou com um anjo batendo as asas”.
É quando a pintura, ou qualquer tipo de Arte, afinal, contribui para o enriquecimento espiritual do Homem, para a realização do homem integral, através da fruição estética e dos aliciantes trabalhos de pesquisa e estudo - que a “psique fragmentada”, de que nos fala sir Herbert Read, está finalmente reconstituída. 



João Garção (Portugal, 1968). Poeta, pintor e ensaísta. Licenciado em História da Arte e mestre em História Contemporânea de Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Contato: jfvgarcao@sapo.pt. Página ilustrada com obras do artista Hieronymus Bosch (Holanda). Agulha Revista de Cultura # 55. Janeiro de 2007.





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