TF | No começo deste ano ocorreu o massacre da redação do Charlie
Hebdo. Humoristas mortos pelo fanatismo. Gostaria de começar sabendo do senhor
como esse episódio o afetou e se o humor deve ter algum tipo de limite.
ZS | O massacre perpetrado pelos islamistas é uma porcaria
inominável. A ignorância assassina açulada por uma visão abestada de sua
própria religião, é de um ridículo do humor às avessas. A bestialização global
nos promete um século mais sangrento do que o anterior.
TF | O filósofo Gilles Lipovetsky afirmou em seu livro A era do
vazio que vivemos numa sociedade humorística: tudo é feito para se divertir.
Com isso o humor perderia sua veia crítica. O Millôr, nessa mesma linha,
escreveu que o humorista deve ser contra a “sórdida campanha do sorria sempre”,
pois seria o oposto do verdadeiro humorismo. Nesta nossa sociedade do
espetáculo e da curtição, ainda resta lugar para uma forma de humor mais
crítica e elaborada?
ZS | Na sociedade do comércio global, bem se percebe a eficácia
do cômico barato pra agradar a sociedade de consumo. Quanto mais primária a
comicidade, maior o entusiasmo do público, sucesso garantido, atropelos e
porradas no guichê. Maurício Santana Dias fala de Pasolini
e Pavese. Por que não ler Submissão, de
Michel Houellebecq?
TF | O que falta para o cânone ocidental equiparar grandes
autores cômicos aos sérios? Ou o cômico, por conta de sua própria natureza
desordenadora, sempre será uma crítica aos padrões estabelecidos e portanto à
própria ideia de cânone, que não deixa de aspirar a organização da cultura?
ZS | O cânone é em si duma sóbria seriedade que só leva a sério o
que for dignamente correto. Mas seria exigir muito, do Canonista, que ele
tivesse a confiança íntima de um Diógenes pra expor seus elevados princípios
num picadeiro de circo.
TF | Não sem alguma melancolia, percebemos que as pessoas
interessadas em formas artísticas mais elaboradas não são exatamente a maioria
da sociedade. O senhor vem produzindo desde a década de 1950. Como o senhor
avalia o campo cultural neste início de século XXI?
ZS | Quando Duchamp pintou um bigode na Gioconda, queria mostrar
que a ideia – o conceito – e não a forma, guarda a essência da Arte. Bom prum
golpe de misericórdia no academicismo burguês que ainda vinha se arrastando
desde o fim do século 19. Mas daí passou-se ao facilitário de que poderia haver
essência sem forma, uma roda de bicicleta sem a bicicleta, um guarda-panelas de
cabeça pra baixo, o edifício do Parlamento alemão embrulhado num pacote,
qualquer bobaginha virava uma obra premiada na Bienal de Veneza. Na teatro, na
ópera, nas letras, houve a mesma invasão do facilitário, aprovado pelos
simplórios que se tornaram os verdadeiros conhecedores da arte contemporânea.
Aliás, no fundo, eles têm mesmo razão. (Espero que o público aqui se levante e
me aplauda.)
TF | O mundo está convulsionado por guerras, refugiados, crise
econômica, escândalos políticos. De certa forma a ideia iluminista de que a
razão nos levaria a um ideal de sociedade mais justa e equilibrada falhou.
Caberia a arte de vanguarda, com sua lógica própria e diferente daquela que
organiza a sociedade presente, projetar futuros possíveis? A arte (ainda) pode
nos salvar?
ZS | Se não der mais pra salvar a galera, o artista deve sempre
tentar... ao menos se divertir. A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo.
A ideia iluminista foi aprovada e eficazmente aproveitada pela Sociedade de
Consumo Global, pra melhor pasteurizar a população, de modo a transformar cada
cidadão num consumidor ético convicto.
TF | Em 1926 o jovem Sérgio Buarque de Holanda rompeu com o
movimento modernista por não concordar com o desejo do grupo de organizar a
cultura. Ele disse que a nossa cultura surgiria não graças aos nossos esforços,
mas sim à nossa indiferença. E de fato surgiu. Hoje o panorama é da indústria
cultural homogeneizando tudo por todo o mundo. Como resistir a esse processo?
ZS | Justamente, achando graça da pasteurização, mostrar os
fundilhos da homogeneização global que tenta transformar todos os cidadãos
em bons consumidores de produtos ideológicos e comerciais na aprovação dos
Líderes Produtores de nossa Liberdade, Bem Estar, e Princípios Éticos Elevados,
na defesa da Paz e do Meio Ambiente. Essa é a missão (difícil, convém nos
apertos bancar o sério...) do Humor.
[Entrevista dada a Tiago
Ferro, outubro de 2015.]
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