domingo, 25 de outubro de 2015

TIAGO FERRO | Zuca Sardan fala sobre ética, arte, consumo e humor


TF | No começo deste ano ocorreu o massacre da redação do Charlie Hebdo. Humoristas mortos pelo fanatismo. Gostaria de começar sabendo do senhor como esse episódio o afetou e se o humor deve ter algum tipo de limite.

ZS | O massacre perpetrado pelos islamistas é uma porcaria inominável. A ignorância assassina açulada por uma visão abestada de sua própria religião, é de um ridículo do humor às avessas. A bestialização global nos promete um século mais sangrento do que o anterior.

TF | O filósofo Gilles Lipovetsky afirmou em seu livro A era do vazio que vivemos numa sociedade humorística: tudo é feito para se divertir. Com isso o humor perderia sua veia crítica. O Millôr, nessa mesma linha, escreveu que o humorista deve ser contra a “sórdida campanha do sorria sempre”, pois seria o oposto do verdadeiro humorismo. Nesta nossa sociedade do espetáculo e da curtição, ainda resta lugar para uma forma de humor mais crítica e elaborada?

ZS | Na sociedade do comércio global, bem se percebe a eficácia do cômico barato pra agradar a sociedade de consumo. Quanto mais primária a comicidade, maior o entusiasmo do público, sucesso garantido, atropelos e porradas no guichê. Maurício Santana Dias fala de Pasolini e Pavese. Por que não ler Submissão, de Michel Houellebecq?

TF | O que falta para o cânone ocidental equiparar grandes autores cômicos aos sérios? Ou o cômico, por conta de sua própria natureza desordenadora, sempre será uma crítica aos padrões estabelecidos e portanto à própria ideia de cânone, que não deixa de aspirar a organização da cultura?

ZS | O cânone é em si duma sóbria seriedade que só leva a sério o que for dignamente correto. Mas seria exigir muito, do Canonista, que ele tivesse a confiança íntima de um Diógenes pra expor seus elevados princípios num picadeiro de circo.

TF | Não sem alguma melancolia, percebemos que as pessoas interessadas em formas artísticas mais elaboradas não são exatamente a maioria da sociedade. O senhor vem produzindo desde a década de 1950. Como o senhor avalia o campo cultural neste início de século XXI?

ZS | Quando Duchamp pintou um bigode na Gioconda, queria mostrar que a ideia – o conceito – e não a forma, guarda a essência da Arte. Bom prum golpe de misericórdia no academicismo burguês que ainda vinha se arrastando desde o fim do século 19. Mas daí passou-se ao facilitário de que poderia haver essência sem forma, uma roda de bicicleta sem a bicicleta, um guarda-panelas de cabeça pra baixo, o edifício do Parlamento alemão embrulhado num pacote, qualquer bobaginha virava uma obra premiada na Bienal de Veneza. Na teatro, na ópera, nas letras, houve a mesma invasão do facilitário, aprovado pelos simplórios que se tornaram os verdadeiros conhecedores da arte contemporânea. Aliás, no fundo, eles têm mesmo razão. (Espero que o público aqui se levante e me aplauda.)

TF | O mundo está convulsionado por guerras, refugiados, crise econômica, escândalos políticos. De certa forma a ideia iluminista de que a razão nos levaria a um ideal de sociedade mais justa e equilibrada falhou. Caberia a arte de vanguarda, com sua lógica própria e diferente daquela que organiza a sociedade presente, projetar futuros possíveis? A arte (ainda) pode nos salvar?

ZS | Se não der mais pra salvar a galera, o artista deve sempre tentar... ao menos se divertir. A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo. A ideia iluminista foi aprovada e eficazmente aproveitada pela Sociedade de Consumo Global, pra melhor pasteurizar a população, de modo a transformar cada cidadão num consumidor ético convicto. 

TF | Em 1926 o jovem Sérgio Buarque de Holanda rompeu com o movimento modernista por não concordar com o desejo do grupo de organizar a cultura. Ele disse que a nossa cultura surgiria não graças aos nossos esforços, mas sim à nossa indiferença. E de fato surgiu. Hoje o panorama é da indústria cultural homogeneizando tudo por todo o mundo. Como resistir a esse processo?

ZS | Justamente, achando graça da pasteurização, mostrar os fundilhos da homogeneização global que tenta transformar todos os cidadãos em bons consumidores de produtos ideológicos e comerciais na aprovação dos Líderes Produtores de nossa Liberdade, Bem Estar, e Princípios Éticos Elevados, na defesa da Paz e do Meio Ambiente. Essa é a missão (difícil, convém nos apertos bancar o sério...) do Humor.

[Entrevista dada a Tiago Ferro, outubro de 2015.]






Nenhum comentário:

Postar um comentário