Em editorial anterior mencionamos viagens dos editores
da Agulha Revista de Cultura à Venezuela, aproveitando para falar
sobre democratização da cultura no que diz respeito ao acesso a livros. Editores
da Agulha Revista de Cultura seguem viajando, participando de encontros
de escritores, no Brasil e no Exterior. Após a Venezuela, participaram, juntos ou
em separado, de eventos em Cuiabá e Recife, além de El Salvador e Ilhas Canárias.
O acento comum recai sobre a conexão estabelecida entre imprensa e organização dos
eventos, ou mais precisamente no entendimento equívoco de que cultura se limita
à pasta de variedades ou entretenimento da imprensa.
A rigor, eventos como esses estão demasiado restritos ao mundo acadêmico
ou atrelados à política e seus fins eleitorais e de manutenção. São duas instâncias
que em praticamente nada contribuem para formação, afirmação, produção, difusão,
ou qualquer outro aspecto que se possa agregar, em relação à criação artística e
sua reflexão, porém que se beneficiam dela sempre que lhes apetece, e de acordo
com o grau de miséria cultural em que se circunscreve cada sociedade. Acrescente-se
aí a utilização desses desvios, e sua decorrente e perversa ampliação, por parte
da imprensa, em geral desinformada a respeito da matéria com que lida apenas por
exigência de pauta.
Há nitidamente algo que incomoda, que salta longe do foco, nessas relações
que não são fortuitas, não podem ser assentadas pelo imprevisto ou improviso. Não
cabendo ingenuidade no tratamento de tais aspectos, é plenamente passível aventar
conivência entre as partes, ou seja, há uma no mínimo estranha relação de interesses
mútuos envolvendo classe artística e intelectual, política cultural e mídia. E tudo
converge para o palco, ou seja, todas as ações atuam sob a jurisdição de uma autopromoção.
Em circunstância alguma a cultura é percebida em seu sentido orgânico, não indo
além do escaninho do entretenimento e sua fugacidade.
Editores da Agulha Revista de Cultura defendem
que ondas de oportunismos são crescentes e que o tema da cultura, agora tratado
no Brasil como uma ausência de programa da parte dos dois partidos políticos que
marcaram o último ranking eleitoral, e seus efeitos no próximo mandado presidencial,
tudo isto é uma miragem plantada. A própria mídia ausentou-se de toda e qualquer
cobrança acerca da ausência de políticas culturais nas recentes gestões presidenciais
dos dois partidos – juntos somam nada menos do que 12 anos – e o retoma ocasionalmente,
quando o tema sugere uma pauta quente. Ausência ainda mais alarmante se verificou
na casta intelectual.
Pela força do próprio mecanismo de atuação e seu efeito imediato, se costuma
pensar que caberia à imprensa corrigir esses desvios. Há um ponto em que os personagens
de tal infortúnio começam a transferir responsabilidades uns para os outros. Nenhum
deles almeja a catarse e sim o deslocamento de suas faltas. Da maneira mais vulgar
a tragédia se converte em comédia. Não defendemos aqui a imprensa, cuja responsabilidade
é altíssima nesta imensa casa de espelhos em que convertemos o tema da cultura.
No Brasil, o exercício de cidadania equivale a um teatro de fantoches. Todos nós
sabemos a real condição cultural do eleitor brasileiro. Porém discutimos
o assunto como se fôssemos nós a definir uma eleição. E até onde temos algum poder
o utilizamos para maquiar esta fantasia.
Todos aqueles que conhecem os mecanismos de alheamento da realidade sabem
que não podemos nos considerar como vítimas pelo simples fato de que somos seus
mantenedores. E nos revezamos em postos de uma e outra categoria: artistas que são
políticos que são jornalistas que são acadêmicos que são um pouco de tudo e nada
de essencial no que deveriam ser. Diante de um quadro como este, de uma quadrilha
como esta, como esperar que se fundamente e prospere o tema da cultura? Quantos
de nós ainda recordaremos o significado do termo e o âmbito de sua aplicação?
A menção inicial às viagens dos editores de Agulha Revista de Cultura
se justifica pela percepção que vamos tecendo no que diz respeito ao affaire
agendado em cada uma das pautas desses eventos, nacionais e internacionais. São
evidentes no que diz respeito à revelação da província das letras, porém ampliam
o foco e permitem uma boa radiografia da negligência cultural que define cada ambiente,
em cada país. O que nos salta aos olhos é que, sob quaisquer condições, artistas
e intelectuais são – as exceções seguirão sempre confirmando a regra – astutos artesãos
de um efeito ótico cuja paleta de cores e efeitos será sempre determinada pela autopromoção.
Assim é o mundo. Diremos todos, sob qualquer acusação.
Mesmo diante do flagrante. Assim é o mundo. Sim, uma miragem plantada.
*****
Um dos editores
da Agulha Revista de Cultura, por força de natural indignação, enviou
à editoria do jornal La Nación, de Buenos Aires, a carta abaixo, que aqui
reproduzimos por consequência igualmente natural:
Sr. Director:
En La Nación del 16/10/06, leí una nota de
Susana Reinoso titulada Brasil vive en las letras, que informa de un “encuentro
con la literatura brasileña contemporánea”, en Buenos Aires, entre el 9 y el 16
de noviembre próximo. Es de lamentar que no incluya poetas brasileños. O sea, tenemos
sólo novelistas. Hacia el final, la periodista habla de grandes novelistas, y los
mezcla con celebridades de la canción brasileña: Chico Buarque, que como novelista
es un excelente letrista de canciones; y Caetano Veloso, cuyo nombre está manchado
de equívocos que merecen ser cuestionados con seriedad. Está bien, todo es cultura.
Según la misma nota, “Itamaratí tiene un programa de ayuda a editores argentinos
que traducen y publican autores brasileños”. El programa no es de Itamaratí, sino
de la Biblioteca Nacional. Y ocurre algo extraño: este año lo recomendé nada menos
que a cinco editoriales, en cuatro países. Todas se contactaron con la BN pero no
obtuvieron respuesta. A lo que parece, la dirección de este “apoyo” está pre-apuntada
a los mismos de siempre. Es una lástima que la prensa internacional esté tan mal
informada y se encargue de divulgar medias verdades.
Costuras, enlaces, intercâmbios culturais, em épocas
e ambientes geográficos distintos, sempre foram enormemente facilitados e em muitos
casos de maneira isolada pelas revistas literárias e revistas de cultura. São mecanismos
comprovadamente eficazes nas aproximações de ambientes que até então se desconheciam.
A seu lado, com menor frequência, porém com acentuada influência, encontram-se antologias
e compilações. Atuando nos dois casos e também ampliando este mapa de uma generosidade
(não é outra a matriz desta avizinhação, deste reconhecimento do outro em si mesmo)
apresentam-se os tradutores. Em último termo, é através da leitura e consequentemente
do livro, da publicação periódica, impressa ou virtual, que os povos se conhecem
e reconhecem entre si.
Essas ações, que em muitos casos são gestos solitários, além de solidários,
por vezes se chocam com interesses de classes dominantes, o que inclui tanto o autismo
de governos que supõem limitar-se ao plano econômico todos os matizes que caracterizam
a essência humana quanto os mecanismos até certa medida pérfidos (ou radicalmente
pérfidos) de uma ala da grande imprensa que ainda vê nos despojos ideológicos uma
maneira de afirmar sua incapacidade de aceitar o mundo a tentar refazer-se de um
amplo saldo de restrições onde ela também ocupa relativa parcela de responsabilidade.
A rigor, o mundo (até onde existe, apesar das distâncias encurtadas pela tecnologia)
carece de vida própria, aos olhos desta imprensa, que trata de camuflá-lo com variáveis
quase imperceptíveis, de viciá-lo em enfadonhos lugares-comuns, de induzir-lhe fórmulas
de apreensão da realidade, anulando assim a capacidade de percepção, o diferencial
entre indivíduos, povos e culturas.
Pode-se dizer que sejam antagônicos os desempenhos, em linhas gerais, de
revistas, compilações, tradutores, de um lado, e governos e grande imprensa de outro.
Como não estamos em um campo de batalha, não é nada agradável ou cômoda tal constatação.
Não nos interessa a ninguém, em circunstância alguma, manter a tônica do assunto
situada na afinação de instrumentos bélicos, na confirmação de um princípio conflituoso.
Deve ser outra a reação a ser esboçada em nosso tempo. Velhos maquinismos aplicados
à discórdia perene não devem mais ser aceitos entre nós. Há que entender que as
mudanças terão obrigatoriamente que implicar em um gesto crítico de observação atenta
à capacidade de cada parte envolvida reconhecer sua função valiosa dentro de uma
remoção de vícios.
Difícil panorama a ser revisto, sobretudo em um país como o Brasil, que sempre
foi um completo ausente no que se possa referir a um diálogo, de qualquer ordem,
com o que lhe é exterior e, pior, interior. A nossa vergonha de aceitar o que somos
nos levou sempre a inventar um mundo pleno de fantasias, idealizando um ambiente
internacional no qual éramos aceitos de forma mágica, código delirante acentuado
pelo futebol, o carnaval e o esplendor inexplicavelmente inatingível de uma cultura
que continua forjando magnitudes estéticas de assustadora grandeza. Claro que já
não percebemos, a olhos cegos pela grande imprensa, onde dormem essas pedras mágicas
contemporâneas, quase todas banidas de um cânone vorazmente mundano e exibicionista.
A cena política, por exemplo, contamina toda e qualquer possibilidade de
diálogo com a cultura hispano-americana. Há uma presunção mirabolante da parte do
intelectual brasileiro de sentir-se superior ao ambiente cultural que lhe é vizinho.
A grande imprensa explora este nosso complexo e agita a tensão velhaca dessa polaridade.
Assim eliminamos, por exemplo, qualquer possibilidade de aceitar vida cultural substantiva,
historicamente consolidada, participante ativa de todos os processos artísticos,
em países como Cuba, Bolívia e Venezuela. Os hermanos – termo vulgar e desrespeitoso
com que até mesmo escritores brasileiros tratam seus pares vizinhos de língua espanhola
– são recebidos no Brasil por uma contingência do mercado editorial internacional
(sobremaneira pela entrada no país de grupos editoriais espanhóis). Não são seus
autores mais expressivos (e mesmo os que são ali não estão por esta razão) e sim
aqueles que seguem uma maquiavélica cartilha estética que restringe a códigos mínimos
de gênero e estilo o aceitável em termos literários.
Exemplos desta ausência de diálogo acobertada por um diálogo de mídia
é possível localizar nos espaços de média e grande imprensa dedicados à literatura
hispano-americana, e nas festas literárias, eventos que funcionam ecologicamente
como simbiontes, organismos que tomam parte em uma simbiose, que se apropriam dela,
uma forma de violação de um processo de mudança. Caso a imprensa (de qualquer porte)
se desse ao trabalho de indagar dos autores convidados para tais eventos como se
sentem participando de um processo declarado de aproximação cultural, seguramente
a resposta apontaria para um mal-estar muito grande, um desencanto, uma surpresa
angustiante, considerando a expectativa imensa, a felicidade intensa e indisfarçável,
da parte de todos eles de virem ao Brasil. No entanto, aqui são tratados com alheamento,
exceção dada às carrancas de proa do ambiente de livro-mercado internacional.
As distinções traçadas pela curadoria desses eventos ou pela cartilha de
imprensa dos periódicos são todas de ordem mercadológica (em alguns casos até bem
determinadas por uma limitação política), e não abrangem, em circunstância alguma,
como elemento decisivo, o ambiente estético, a valoração autoral, e menos ainda
se mostram interessadas em estabelecer a integração cinicamente evocada. Ao vivo,
também nossos escritores, prima-donas já aclamadas ou a caminho da glória, seguem
dando ao mundo um ar caipira de alheamento. É uma equação curiosa esta: não fazemos
parte do mundo, mas queremos que o mundo faça parte de nós. Muitos desses escritores
rezam pela cartilha da grande imprensa e se julgam no direito de referir-se a um
delicado ambiente político vizinho como de restrição das liberdades, orgulhosos
de seu gesto democrático de reconhecer o outro apenas de forma circunstancial.
Há culturas pobres e ricas, bem sedimentadas ou violadas por aspectos inúmeros,
porém o que se passa no Brasil é um caso estranho de vulgaridade, de indescritível
talento para o medíocre, o desprezível do ponto de vista humano, para a insociabilidade
perene se entendida como ânsia de enriquecimento existencial através do diálogo.
É vergonhosa a maneira como lidamos atualmente com este modismo mal dissimulado
do que chamamos de aproximação da cultura hispano-americana. Não compreendemos –
porém o pior é que não temos interesse algum em compreender – o que se passa nesta
relação acima referida entre duas partes: os que atuam na construção de uma identidade
cultural e os que se empenham no fortalecimento de barreiras que impedem a visibilidade
de novas conexões de enriquecimento humano.
Especificamente no que diz respeito aos escritores brasileiros, já é suficientemente
sem relevo nosso grau de comprometimento com a tradição lírica e suas relações ambientais
em planos políticos, estéticos etc., o que nos obriga moralmente a rever toda a
nossa história, com seus fascinantes heróis da modernidade, em muitos casos
uns facínoras… Agora temos diante de nós uma nova oportunidade: o desafio de transformar
este modismo em um momento muito especial de conhecimento e reconhecimento, não
somente da realidade cultural hispano-americana, como também de nosso papel em tal
ambiente, o que somos, o que realmente representamos. Isto inclusive nos ajudará
a entender melhor até mesmo aqueles autores que incorporamos ao nosso cotidiano
de mesmices ou simplesmente deixamos para trás.
Editores da Agulha Revista de Cultura têm participado
de eventos dentro e fora do Brasil onde comprovadamente se verifica este hiato persistente,
uma relutância incivil, estúpida e excessiva da parte de nossos escritores de manifestarem-se,
de deixarem de ser dissimulados, de apontar o que lhes dói, as suas razões de ser.
De outra maneira, ao menos que parem de dizer que são parceiros deste claro modismo:
o interesse da grande imprensa pela literatura hispano-americana.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto
de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu
ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio
Simões.
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