Em 1783 um jornal de
Berlim perguntou a cada um dos pensadores: “O que é esse movimento ao qual
pertencem? O jornal referia-se ao movimento Iluminista. Antes de mais nada, há
que ressaltar que naquela época os jornais perguntavam o que queriam saber. Não
era como hoje, que já têm as respostas que querem escrever.
Was ist Aufklärung? O
que é Esclarecimento? Aufklärung costuma ser traduzido por Esclarecimento,
Iluminismo, Século das Luzes ou Ilustração, termos estes ligados ao espírito do
século XVIII, que se alvoroçava com a crença e a confiança na razão. A Europa
deste século achava que bastava fazer o uso correto da razão para ser feliz,
pois esta poderia resolver todos os problemas.
Immanuel Kant, ao
responder a pergunta, começa definindo o que é Esclarecimento:
Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua
menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de
fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o
próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a
direção de outrem. Sapere
aude! [1] Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça
e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois
que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter
maiorennes), continue, no entanto, de bom
grado menor durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é
tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor.
Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual
que por mim tem consciência, um médico que por mim decide etc., então não
preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso
simplesmente pagar…
Ora, não estaria o
próprio Kant também tutoreando? Afinal, os três exemplos que ele deu coincidem
com três livros que escreveu: o livro que faz as vezes do entendimento
refere-se à “Crítica da Razão Pura”; o diretor espiritual à “Crítica da Razão
Prática” e o médico à “Crítica do Juízo”. Mas o problema não está em escrever e
ler livros, mas em aceitar passivamente o que vem de fora sem ruminar durante
um tempo o que fazer com aquelas informações. Porque tudo o que vem de fora,
sejam livros, pregações ou recomendações médicas, são apenas informações. O que
vale é a vivência e experiência de cada um. É só a vivência e experiência que
nos diz se algo nos serve. O que é bom para uma pessoa, pode não ser para
outra. Há que respeitar a individualidade de cada um. Kant dá uma enorme
importância à liberdade de pensar.
Mais de duzentos anos se
passaram. Alguém conhece alguém que saiu da menoridade? Que não recorre a um
livro que lhe diga o que pensar? Que não recorre a um médico que lhe diga como
cuidar de sua saúde? Talvez alguns hoje tenham substituído o padre por um
psicólogo para amenizar seus problemas de consciência. Mas algum tutor deixou
de fazer propaganda do perigo que as pessoas correm caso queiram seguir seus
próprios princípios? A meu ver, as coisas pioraram. A medicina vigente dos
últimos séculos, a alopatia, propaga um verdadeiro terror de ameaças caso o
paciente não queira submeter-se a seu tratamento. Tutores religiosos ainda
ameaçam aqueles que não os seguem chamando-os de pecadores. Em suma, a
domesticação continua a todo vapor.
Em seu texto à resposta
“O que é Esclarecimento?”, após definir o termo, Kant irá dizer:
Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico
e preservado cuidadosamente estas tranquilas criaturas a fim de não ousarem dar
um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram,
mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. (…)
É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade
que para ele se tornou quase uma natureza. (…) Por isso são muito poucos
aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da
menoridade.” O homem não está habituado a ser livre, é “incapaz de utilizar seu
próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim
proceder.
Extremamente
interessante o que o filósofo dirá em seguida para o jornal:
Que porém um público se esclareça a si mesmo é perfeitamente
possível. Pois encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento
próprio, até entre os tutores estabelecidos, que, depois de terem sacudido de
si mesmos o jugo da menoridade, espalharão o espírito de uma avaliação racional
do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O
interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles
a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se
rebelar por alguns de seus tutores (…) Vê-se assim como é prejudicial plantar
preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores.
Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento
(Aufklärung). Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo
pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a
verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos servirão como
cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.
Ao afirmar que as
mudanças nas instituições devem ser lentas, Kant estava constituindo isso. Hoje
o neoliberalismo usa Kant, e toda a linguagem jurídica é kantiana. Aliás,
segundo o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), todas as linhas da
filosofia atual derivam de Kant.
Na continuação do
referido artigo dirá Kant que a condição para o esclarecimento é a liberdade,
mas não qualquer liberdade. Ele diferencia o uso público e o privado da razão.
Kant leu Rousseau – o problema da liberdade geral e privada. Toda a reflexão
moral em Kant tem uma relação com Rousseau. Para ele, no uso público pode haver
liberdade, o raciocinar deve ser em proveito da humanidade para que se consiga
o esclarecimento. Mas há que destacar que Kant entende por uso público da
própria razão o que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela perante o público
do mundo letrado. E o uso privado da razão deve ser limitado, ou seja, pode
raciocinar, mas ao mesmo tempo tem que obedecer, sendo que isso não impede o
progresso do esclarecimento. Esta é a liberdade civil. É o uso que o sábio pode
fazer de sua razão dentro de um cargo público, por exemplo, quando trabalha em
uma instituição. Nas suas palavras:
Para muitas profissões que se exercem no interesse da
comunidade, é necessário certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da
comunidade devem comporta-se de modo exclusivamente passivo para serem
conduzidos pelo governo (…) em casos tais não é permitido raciocinar, mas
deve-se obedecer. (…) Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu
superior deu uma ordem, quisesse se por a raciocinar em voz alta a respeito da
conveniência ou da utilidade dessa ordem. Mas, não se lhe pode impedir, enquanto
homem versado no assunto, de fazer observações sobre os erros no serviço
militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. (…) O
cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos (…) apesar
disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído,
expõe publicamente suas ideias contra a inconveniência ou a injustiça dessas
imposições.
Segundo Kant, se os
homens instruídos esclarecem a população, isso faz com que a próxima geração
não cometa os mesmos erros. Ele diz: “Uma época não pode se aliar e conjurar
para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta
ampliar seus conhecimentos, purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do
esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação
original consiste precisamente neste avanço. (…) Ao mesmo tempo, se franquearia
a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade de
sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas,
seus reparos a possíveis defeitos das instituições vigentes. (…) é
absolutamente proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que
ninguém tenha publicamente o direito de duvidar (…) um homem pode adiar o
esclarecimento, mas renunciar a ele significa ferir e calcar aos pés os
sagrados direitos da humanidade.” Note-se que isso é exatamente o oposto do que
pregava Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.).
Kant escreve para o
jornal que se for feita hoje a pergunta: Vivemos agora em uma época
esclarecida?, a resposta será: Não, está a caminho, mas ainda não é, vivemos em
uma época de esclarecimento ou o século de Frederico. E ele explica: “Um
príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não prescrever
nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena
liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é
realmente esclarecido e merece ser louvado pelo mundo e pela posteridade como
aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos
por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria
razão em todas as questões da consciência moral. (…) Os homens se desprendem
por si mesmos, progressivamente, do estado de selvageria, quando
intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.” Dito isto,
quase no final de seu texto escreve:
Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio
esclarecido, não tem medo de sombras, e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e
bem disciplinado exército para garantir a tranquilidade pública, pode dizer
aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinai tanto quanto
quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui
uma estranha e não esperada marcha das coisas humanas; (…) quase tudo nela é um
paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de
espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela limites intransponíveis; um
grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa.
Vemos assim que Kant era
a favor do livre pensar e era a favor de mudanças, mas não acreditava em
mudanças súbitas através de uma revolução, e sim em mudanças lentas através do
livre pensar. Para ele, a liberdade de pensar acaba levando à liberdade civil,
e obedecer não impede que se saia da menoridade. Podemos obedecer às
instituições, mas ter a liberdade de pensar. Ele acreditava que um dia toda a
humanidade saberá pensar por si mesma, mas que isso está longe de acontecer, e
o que pode facilitar esse acontecimento é a divulgação do pensamento da minoria
esclarecida. E quando todos forem ilustrados, não será mais necessário
instituições. Mas estas nunca mudariam, e menos ainda poderiam deixar de
existir, sem mudar primeiro o pensamento. Por isso, para ele, as revoluções não
resolvem os problemas. No princípio aparentam ter feito mudanças, mas a médio
prazo mostram que continua tudo igual. No entanto, ele dá o exemplo da
Revolução francesa para mostrar o poder do entusiasmo. Mas Kant não foi nenhum
ingênuo ao pedir apenas a liberdade de pensar. Objetos de conhecimento que ele
deixou de lado em sua “Crítica da Razão Pura” são aceitos como postulados que
guiam nossa ação em sua “Crítica da Razão Prática”.
Bem, segundo Kant, o monarca
é esclarecido e ninguém tem o que temer. Mas ainda há um problema: como
garantir segurança no plano efetivo das relações entre os povos. Há sempre a
vontade de subjugar o outro. Kant foi o primeiro a pensar, por analogia ao
direito civil, um direito internacional submetido a leis que todos serão
obrigados a obedecer. Para ele, na medida em que postulamos, isso pode
acontecer efetivamente, podemos postular até a paz perpétua. A liberdade de
pensar põe as metas da instituição. Kant não é um pensador individual, é um
pensador universal, e chama de teoria mesmo quando fala da prática, sempre em
termos universais. Em Kant, desejar é o mesmo que produzir. Enquanto no século
XVIII os realistas diziam que os homens são como são, Kant dizia que os homens
são o que nós temos feito deles. Trata-se de um filósofo que acredita no
progresso e na transformação. Ele não parte de como os homens são, mas como
devem ser. Ele tenta reconciliar Rousseau e Hobbes sem dar razão a nenhum
deles, mantendo as antinomias e contradições. Nota-se um pensamento estoico em
Kant – o mal tem a capacidade de se auto destruir, e o bem, uma vez implantado,
se mantém por si mesmo.
Podemos ainda perguntar:
mas e se ninguém quiser o esclarecimento? Afinal, quase ninguém quer sair da
caverna de Platão. Para Kant, isso não tem importância, pois a natureza sozinha
tem um germe que nos levará ao progresso. A humanidade será obrigada a ser
livre!
NOTA
01. “Sapere aude” é uma frase em latim
que significa “Atreva-se a saber, a conhecer”.
ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora,
pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de
Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e
a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com
obras de Tita do Rêgo Silva (Brasil), artista convidada desta edição.
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● ÍNDICE # 99
EDITORIAL | A pronúncia esquecida da realidade
ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?
FLORIANO MARTINS | Valdir Rocha e o mito transfigurado
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Leonora Carrington y surrealismo novelado, por Elena Poniatowska
JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia
MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita
PEGGY VON MAYER | Volver la mirada a Ninfa Santos
RIMA DE VALLBONA | Indicios matriarcales en las comunidades chorotegas
SOFÍA RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ | Homenaje a Max Rojas
VIVIANE DE SANTANA PAULO | Tita do Rêgo Silva e o mundo fantástico, faceiro e colorido da xilogravura
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Agulha Revista de
Cultura
Número 99 | Junho de
2017
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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Belo e profundo TEXTO, Kant mostra ao HOMEM sua visão de LIBERDADE e conhecimento PRÓPRIO, mas não sobre uma LIBERDADE qualquer........
ResponderExcluirMuito obrigada, Toninho!Fico muito feliz com a sua leitura e comentário.
ExcluirConcordo com tudo. Peter Pan.
ResponderExcluirMuito obrigada pela leitura.
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