Não apenas as técnicas, porém também os temas,
são frutos da inquietude em Valdir Rocha. Por um lado a transfiguração de técnicas,
graças à incorporação do lápis dermatográfico, do giz de cera ou da pintura com
ácidos de variadas tonalidades, em todos esses casos com posterior aplicação de
verniz. Por outro lado, a referência mitológica, nominada ou não – no mais das vezes
apenas sugerida –, expressa tanto na cabeça isolada quanto na mesma seguida de um
corpo oculto por um casulo, havendo casos de corpos mumificados, ou a sua íntegra
em uma nudez que apresenta ainda duas particularidades: a de ser sempre masculina
e de não envolver qualquer componente erótico.
A transfiguração temática se exemplifica tanto
em Jano quanto em Sísifo. Se este deixa de levar em suas costas
o mundo e passa a arcar com o peso excessivo de seu próprio eu, Jano, por sua vez, deixa de representar a
transição entre o primitivo e a civilização, a guerra e a paz, ou o campo e a cidade,
concentrando-se apenas na oposição confluente entre suas duas idades: o instante
e a eternidade. Essa evocação de uma ambiguidade temporal se enlaça com a singularidade
da nudez masculina – não há registro da presença feminina na escultura de Valdir
Rocha –, e de uma despreocupação inusitada com o erotismo, sem que isto implique
algum acidente ligado ao desejo ou à fertilidade.
O ambiente em que se reproduz a criação aos
olhos de Valdir Rocha remete a uma intensa sugestão filosófica, longe de eludir
uma perspectiva ácida, mesmo sarcástica, em relação ao homem e à condição ambivalente
de sua existência. Irmanam-se destreza técnica e astúcia poética. E o lance conclusivo
nós o encontramos no título, que não chega a desnortear no sentido de nos levar
para outro ambiente, mas sim, que nos deixa como que aterrados frente à sutileza
com que nos impõe imediata reflexão.
Começo a entender como essa orgânica vitalidade,
tão singular na obra de Valdir Rocha, deva ao fato dele ser autodidata. Graças a
esta condição, criou uma disciplina, tanto de aprendizado de múltiplas técnicas
quanto de deglutição de conhecimento ramificado em incontáveis áreas do saber. E
desvelou para si mesmo, assessorado por sua inquietude, um mundo que a linguagem
viciada acadêmica jamais descortinaria.
Nos dias de preparação fotográfica deste livro,
Valdir Rocha me mostrou, em seu atelier, umas valiosas prateleiras onde acumula
exemplares de poesia de várias partes do mundo, de épocas e tendências distintas.
Em nossa correspondência diária estamos sempre nos sugerindo livros e filmes. Acrescente-se
ainda a sua fascinação pela fotografia, em especial como recurso revelador de essências
que o olho por vezes nos deixa escapar em suas coordenadas repetidas. Em uma de
nossas conversas ele me disse: O cotidiano
interfere muitíssimo na minha criação. Tudo resulta do que vivo, ouço, vejo. Acho
que já disse a você que estou sempre a caçar imagens visuais nos chãos, nos horizontes
e nos tetos (nuvens incluídas). Muitas vezes uma mancha de umidade ou de bolor me
rende um desenho, uma pintura, uma escultura. Escolho a minha caça estática ou em
movimento, andando pelo mundo.
Este múltiplo processo de posse do inesperado
é o que define a magia da criação e o leva a dizer que ama as intromissões. Certa
vez, em nossas caminhadas, recordei uma frase de Sérgio Buarque de Holanda, em que
ele afirmava que dar nome ao mistério não
é exatamente o mesmo que resolvê-lo. Disse-me então o artista:
Dar nome ao mistério pode ser uma boa forma de aumentá-lo,
sem resolvê-lo. O nome ou título pode ser
disfarce ao que se apresenta, caminho inicial para apreensão e tantas outras coisas,
inclusive como problematizá-lo.
Muitos autores negam-se a dar título às suas obras –
eu sei. É a forma de deixar o espectador mais livre para interpretá-las. Em casos
como esses, se limitam a dar um número, dimensões ou apresentar a sua técnica para
individualizá-las. Pensando bem, para obras puramente formais, até que é bem adequado
não titular. Títulos como Composição são
tão sem nexo…, são tão tolos.
Em relação a obras figurativas, certos títulos genéricos
– a exemplo de paisagens – também não parecem fazer falta.
Agora, quando quero instigar o olhador, o título compõe
necessariamente o meu jogo.
Lembro que aconteceu comigo pelo menos um caso de pintura
de que afirmei que do trabalho abaixo nunca revelarei o nome que tem – isso está lá na pagina 26 do meu mistifório
Mentiras, Verdades-meias & Casos Veros, que saiu pela Editora Escrituras, em 1994. E não vou jamais dizê-lo. Se
o fizer – acredite – será um título mentiroso. Aliás, no mesmo livrinho, já dizia
que Antes do nome não se é.
Dá-se e, concretamente
se deu, também, mais de uma vez, de o título ser sugerido por outra pessoa. Marco
Pedrassa, meu fundidor de esculturas em bronze, já deu nomes a algumas; peguei para
mim e agora são meus.
Esta conversa me levou também a indagar sobre
a ausência de erotismo em sua obra, e até brinquei recordando uma frase de Picasso:
A arte jamais é casta. Porém a minha curiosidade
repousava em um aspecto mais delicado, tanto que lhe indaguei em que sentido seus
corpos se movimentam.
Acho uma delicadeza prestável não ser de todo explícito.
Gosto disso. No entanto, já tive ocasião de ouvir de circunstantes que muitas de
minhas figuras são fálicas. Prestei atenção na observação e tive que concordar.
Muitas de minhas esculturas atêm-se apenas a certa parte
do corpo – a cabeça. A cabeça, em si, não é necessariamente erótica, mas a sua forma
pode ser. Apontaram-me isso, igualmente. Algumas vezes: a) concordo; b) em outras
não; e c) por vezes, duvido, sinceramente ou para provocar o apontador. No fundo,
não gosto de discutir isso, ainda que pudesse, porque assim não cerceio interpretações.
Depois de pronta a coisa, a interpretação é de quem quiser praticá-la.
Mais recentemente, tenho trabalhado com esculturas de
corpo inteiro. Nestas, aparecem eventualmente uma bunda assim ou assada, um pênis
ou seio(s). Quem procura acha: pode ser conveniente eliminar um pau quando, na percepção
da generalidade das pessoas, ele deveria estar lá; pode ser conveniente igualmente
botar um cacete que a outros seria um excesso. Esses elementos eróticos mais visíveis
têm sempre um propósito; na minha escultura entram ou saem conforme a sua/minha
necessidade.
De verdade, concordo, o erótico raramente está presente
em minha escultura (igualmente nos desenhos, fotografias, gravuras e pinturas).
Retomando ainda o aspecto da transfiguração
de técnicas, vale ressaltar a aspereza com que o bronze se apresenta, ao contrário
do tradicional alisamento do metal. Um metal mestiço, que inclui em sua formação
o cobre e o estanho, e por vezes o zinco. Essa impureza se soma à aspereza, em um
sentido alquímico, a partir do qual o escultor revela um mundo repleto de ambivalências
e mutações, diverso também na fisionomia e no destino.
E a composição de seu dualismo, que encontramos
tanto no título quanto em certa recorrência à apresentação de cabeças com dupla
face, estabelece uma zona de tensão absolutamente fecunda – eis onde radica seu
erotismo – como uma forma de desafio que nos leva a decifrar o que temos em nosso
íntimo que não se exterioriza a ponto de nos revelar outro ser, mais rico, mais
completo, em uma palavra, mais verdadeiro. O artista também joga – verbo que nos
cabe tão bem porque em essência toda a criação artística é conformação de um mundo
lúdico – com a posição em que se apresentam certas esculturas. Um acróbata, longe
de sua barra de exercício, pode ser apenas um ente solitário em seu banho de sol.
Tanto quanto um homo erectus posto na
horizontal sobre a relva pode ser visto como um contador de estrelas. E há ainda
um desdobramento visceral desse ludismo, que encontramos em esculturas onde os personagens,
antagônicos ou não, se mostram organicamente dependentes, untados, como duplos,
no caso de uma série de siameses, ou edificados com uma estrutura alucinatória e
terrificante como no caso da já aqui referida Torre de Babel.
Este caminho ascendente, em busca de uma tridimensionalidade
total, já se encontra anunciado em obras como Quintetinho e Siameses. Porém
atingem uma magnitude hipnotizante em peças como Velhices e Rodamoinho. De
algum modo, o prenúncio dessa ousadia escultórica foi esboçado em uma água-tinta
intitulada Depósito de pensamentos. No
prédio em que reside Valdir Rocha, há um porão que ele utiliza como armazém de suas
munições estéticas. Ao chegar ali, foi esta a ideia que me passou: a de um depósito de pensamentos, espaço em que as
diversas esculturas estocadas, em suas contadas seriações, algo tramavam, a ponto
de oficiarem, naquele altar isolado de tudo, uma nova tática de religação do mundo.
Não é outro senão este o imperativo da criação
em Valdir Rocha, o de que o mundo pode ser constantemente refeito, reatado por múltiplas
dimensões de ser e estar. Seus rostos como que cobram isto de todos nós. Mesmo uma
escultura em que o corpo humano se encontra ausente, como é o raro caso da Maquete para Escada Monumental em Memória dos
Desesperados, ali nos deparamos com uma denunciadora ausência, os desesperados
são os fantasmas de um mundo que todos nós perdemos: um mundo que não soubemos reconstruir.
A princípio me inquietava o fato de que algumas
dessas esculturas, que eu considero fatia essencial de sua obra maior, apareceram
em pequenas dimensões, algumas delas inferiores a 20 cm de altura. Com o tempo,
compreendi que sua verdadeira dimensão radica na sugestão do mundo que evocam. Um
mundo no qual Valdir Rocha não dispensa a nossa percepção, e que por meio unicamente
dela exige nossa cumplicidade mais efetiva. Sua escultura nasce não apenas do vasto
e invulgar repertório de seus esboços sutis – na forma de desenhos, gravuras, fotografias
aforismos etc. –, como também da alquimia dos mais variados tipos de percepção que
colhe em nosso olhar.
Conhecimento, saber, representação, signo,
símbolo. A imagem é uma ideia configurada graças à sua conexão com o mundo. Não
importa que esse mundo seja o habitual ou que esteja oculto por algum fenômeno de
degradação humana. Confirmá-lo ou decifrá-lo é parte de nossa tarefa existencial.
Até onde a criação artística puder nos ajudar, será sempre bem vinda. A cada esfinge
deve corresponder um decifrador. A arte não busca propriamente a linguagem do incompreensível,
porém deve garantir a amplitude do mistério. O homem é em essência a ordenação de
sua voracidade anímica. Não há como esquadrinhar novas formas de equilíbrio sem
desassossegar as existentes. A arte é uma inesgotável sucessão de metamorfoses.
A expressão vertiginosa da criação em Valdir
Rocha naturalmente remete a um lugar perdido, a uma fração não desvendada de nossa
existência, aos porões doloridos da solidão e outras aparências escarpadas da aventura
humana. No entanto, a aparição dessa primeira camada de uma deficiência social traduz
apenas um truque de envoltório de um dilema maior. Como refletir sobre a ausência
de referências? Como ultrapassar a linha demarcatória do mecânico em nossa vida?
Como extrair a alma da própria alma desfeita em si mesma?
Não há dúvida de que a arte é insuficiente
em sua configuração estética, seja um poema impresso em uma página, uma canção tocando
na sala, uma tela destacando uma parede etc. Tão insuficiente quanto indispensável.
O estímulo à resistência se amplia com base no comportamento do criador. É fundamental
que ele não se ausente de sua obra e que a situe como uma força primitiva que lhe
indica a diretriz simbólica daquilo que o torna presente e sugere novo significado
à nossa vida.
São inesgotáveis
as modalidades básicas dessa dinâmica de atuação do criador no mundo. O primeiro
pecado a ser vencido é a soma de todos eles. Somente a alteridade pode fundar um
novo homem. Valdir Rocha acreditou que seu contributo em tal sentido poderia ser
a criação de um espaço de cultura que permitisse a circulação não apenas da obra
como também de suas vidências e evidências criativas. Ao dar a tal espaço o sugestivo
nome de Lugar Pantemporâneo, configurou um equilíbrio magistral entre vida e obra,
e ali deu vazão, por três anos, a uma série de atividades que em momento algum deixavam
de firmar: o mundo é a relação bem sucedida de seus contrastes, de suas diferenças.
Penso agora que
Valdir Rocha se inscreve em um espectro muito raro, não importa o quanto lastimemos
sua pouca extensão, da cultura no Brasil. E observo sua configuração pela soma das
vertentes referidas: o plano estético, constituído por uma voracidade de procuras
que se encaminham, já embrionariamente, para o ambiente da tridimensionalidade;
e o plano de uma ética personalíssima que dá voz ao outro naquilo que se poderia
chamar de uma equivalência tridimensional. O artista sabe que não existe fora de
si tanto quanto fora do outro, fora dessa síntese pulsante que lhe define a humanidade.
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor
e tradutor. Página ilustrada com obras de Valdir Rocha, que integram o livro Valdir Rocha e a persistência do mistério
(MARTINS, Floriano. ARC Edições: Fortaleza, 2017).
***
● ÍNDICE # 99
EDITORIAL | A pronúncia esquecida da realidade
ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?
FLORIANO MARTINS | Valdir Rocha e o mito transfigurado
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Leonora Carrington y surrealismo novelado, por Elena Poniatowska
JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia
MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita
PEGGY VON MAYER | Volver la mirada a Ninfa Santos
RIMA DE VALLBONA | Indicios matriarcales en las comunidades chorotegas
SOFÍA RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ | Homenaje a Max Rojas
VIVIANE DE SANTANA PAULO | Tita do Rêgo Silva e o mundo fantástico, faceiro e colorido da xilogravura
***
Agulha Revista de Cultura
Número 99 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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