A amizade, esta relação sem dependência,
sem episódio e onde, no entanto, entra toda a simplicidade da vida, passa pelo
reconhecimento da estrangeiridade comum que não nos permite falar de nossos
amigos, mas apenas lhes falar; não nos permite fazer deles um tema de conversas
(ou de artigos), mas trata-se do movimento do acordo em que, ao nos falar,
mesmo na maior das familiaridades, eles guardam a distância infinita; esta
separação fundamental a partir da qual aquilo que separa torna-se relação.
Maurice
Blanchot
O último livro escrito por Eliane Robert Moraes, Perversos, amantes e outros trágicos,
traz textos publicados em diversos meios entre os anos de 1989 e 2008, transitando
entre a teoria literária, filosofia, história e etnologia. Esta transição
também acompanha o próprio itinerário de Moraes, que foi professora da
Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP, atuou como professora visitante
na UCLA (Califórnia), Université de Perpignan, na Universidade Nova de Lisboa,
e hoje é professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas na FFLCH da USP. Certamente a transdisciplinaridade é um
dos elementos fortes do livro, que engloba um leque de referências autorais
mais amplo que a literatura libertina do século XVIII ou as vanguardas
européias dos séculos XIX e XX, os quais marcam a produção anterior de Moraes,
em que se destacam Sade: a felicidade
libertina, O corpo impossível, e Lições de Sade.
É
preciso ressaltar, contudo, que a amplitude de autores abordados, de Heinrich
von Kleist a Georges Bataille, passando por Juana Inés de la Cruz, Henry James
e, como não poderia deixar de ser, também o divino Marquês, não pode ser
considerada sinal de dispersão textual. Neste livro, Georges Bataille ou é a
figura central ou divide espaço com mais um autor em cinco ensaios, enquanto
Maurice Blanchot, Michel Foucault e André Breton constam em dois ensaios cada;
considerando-se as vanguardas literárias européias do século XX, temos ainda
quatro ensaios, dois dedicados a Breton, um a Guillaume Apollinaire e um a
Louis Aragon. Talvez estas sejam as principais fontes de que Moraes se apropria
para desenvolver os ensaios que constam neste livro, permitindo que noções como
as de perda, erro (com toda ambigüidade do termo, referindo-se tanto ao sentido
do não-correto quanto ao da errância, dos passeios ao léu) e acaso possam ser conectadas através do
princípio do desvio, considerado pela
autora como o eixo que permitiu a reunião dos textos.
De
certo modo, e seguindo as pistas fornecidas pelas idéias principais de Moraes,
podemos dizer que todos os autores mencionados neste livro fazem parte das
margens do ocidente. Não nos referimos tanto ao limite que define sua
identidade, mas àquele em que o próprio ocidente deixa de ser o que é,
tornando-se mais distante de seu centro que de seu fora. A referência ao limite
faz com que não encontremos nenhum grande deslocamento no livro quando nos
deparamos com um texto dedicado não a um autor específico, mas a um tipo de
pensamento em que a própria idéia de autor, tão criticada por Foucault, é
inexistente: referimo-nos, por exemplo, aos mitos indígenas reunidos pela
antropóloga Betty Mindlin em Moqueca de
maridos, abordados no ensaio “Eros canibal”. Seguindo essa mesma ideia a
respeito dos limites, talvez pudéssemos dizer que em Sobre o teatro das marionetes Heinrich von Kleist estaria mais
próximo do pensamento ameríndio do que de Descartes.
Certamente,
não se trata de dizer que Kleist pensa como um Macurap, um Tupari ou um Jaguti,
e nem que ele discorre sobre o pensamento indígena em seus escritos.
Entretanto, a análise de Moraes a respeito do diálogo entre o narrador e um
bailarino, tema central da obra de Kleist, conduz a uma interrogação acerca da
origem do homem que traz conseqüências heterodoxas. Ao observar a perfeição dos
movimentos das marionetes, o bailarino a atribui ao fato destas serem
controladas por um único fio ligado a seu centro de gravidade. No entanto, a
perfeição dos movimentos dos bonecos não se dá pelo fato do marioneteiro saber
controlar com maestria seu objeto: “para alcançar tal perfeição rítmica, era
necessário que o operador se transferisse para o interior da marionete”. Ou
seja, não se trata do assujeitamento do objeto marionete pela consciência do
marioneteiro que a controla, mas da entrega da marionete ao reino das forças,
através da sintonia entre ela e seu suposto mestre. A graça destes movimentos é
inalcançável aos humanos, uma vez que “a alma dos bailarinos se deslocava com
freqüência do centro de gravidade de seus movimentos, o que resultava na
'afetação dos gestos'“. Esta relação de comunicação com o boneco traz o
problema que o narrador chama de “mistério original”, o que, segundo Moraes,
coloca em questão o racionalismo moderno. Vejamos.
Segundo
a teoria cartesiana dos animais-máquinas, qualquer réplica pode reproduzir
mecanicamente seu original, mas é incapaz de falar ou expressar sentimentos,
características irredutíveis ao espírito humano. Porém, no caso de Kleist
encontramos um pensamento dissonante, pois o boneco é capaz de se expressar
independentemente da consciência do sujeito e, com isso, questiona-se aquilo
que seria propriamente humano:
Ora,
os personagens de Kleist caminham exatamente na contramão do fundador do
racionalismo moderno: em vez de assegurarem a primazia do sujeito pensante
sobre qualquer objeto, eles transformam a marionete no objeto a partir do qual
o próprio pensamento humano é colocado à prova.
Ou
seja, a autonomia da marionete coloca em jogo os limites da humanidade, o que
de forma alguma conduz a uma apologia da máquina e do controle técnico. Kleist
faria parte de uma vertente menor da literatura, às margens das principais
idéias modernas, talvez operando mesmo uma perversão das mesmas. Se traçarmos
um rápido paralelo entre o corpo da marionete e o corpo humano dócil e
disciplinado, analisado por Foucault em Vigiar
e Punir, teremos de reconhecer uma diferença crucial: enquanto os corpos
disciplinados tornam-se dóceis através de um controle exercido continuamente
sobre eles a partir de instâncias que lhes são exteriores, mas que os
atravessam, o movimento perfeito da marionete se dá através de um fio que abole
a fronteira entre a interioridade do controlador e a exterioridade do boneco.
Deste modo, assim como em Kleist não se trata do controle do boneco pelo
artista, tampouco se trataria do assujeitamento de seu corpo por um feixe
disciplinar que visaria controlá-lo, como poderia dar a entender o fio de controle.
Ao invés do assujeitamento disciplinar, trata-se, antes de tudo, da própria
dessubjetivação do homem através do fio que coloca em relação marioneteiro e
marionete. Pois enquanto as disciplinas analisadas por Foucault são condições
histórico-políticas de possibilidade dos saberes que tomaram o homem como
objeto de conhecimento, em Kleist, o fio que liga marioneteiro e marionete
coloca em jogo os limites da própria humanidade.
O
“mistério original” mencionado por Kleist faz parte desta perversão do pensamento
racionalista, assim como da perversão do mito cristão da criação do homem, o
qual é reconstruído a contrapelo: o homem foi criado num estado de “inocência
originária” caracterizado pela não-consciência, tendo decaído após comer o
fruto da árvore do conhecimento, o que também originou suas falhas. Ou seja,
foi a própria capacidade humana de pensar que tornou possível suas falhas e, de
acordo com Moraes, “precisamente por isso, os gestos automáticos e irrefletidos
das marionetes dariam uma imagem daquilo que seria a graça natural dos nossos
movimentos, não tivessem eles um dia se tornado conscientes”. Moraes não deixa
de sublinhar as ressonâncias da sensibilidade romântica que se fazem presentes
no texto de Kleist, ecoando Rousseau ou Schiller. No entanto, tais referências
não bastam para caracterizar o desafio aberto por seu pensamento. Afinal,
enquanto a figura da redenção cristã ainda remete à separação da alma com
relação à matéria, Kleist coloca a condição humana numa espécie de oscilação “entre a mecânica do corpo e a
espiritualidade da alma”.
Em Kleist, é impossível qualquer retorno
ao estado de inocência original do humano, restando-nos apenas buscar caminhos
outros para completar o círculo da viajem. Neste percurso certa nostalgia da
inocência ainda perdura, mas, adverte Moraes, “só restando ao sujeito
reencontrá-la como alteridade - isto é, quando ele se transfere para um objeto
fora de si, quando realiza um ato de criação”. Ou seja, a alteridade está no
próprio ato de criação, que neste caso se dá precisamente quando o artista se
transfere para a marionete, comunicando-se com o objeto de modo a se
dessubjetivar, ao mesmo tempo em que o boneco ganha a autonomia que confere
graça aos movimentos observados pelo bailarino e que o faz também deixar de ser
mero objeto.
Esta
observação é capital para entrarmos em sintonia com o que talvez esteja guiando
a escrita de Moraes: afinal, esta criação não está muito distante da
fabricação, que designa um dos sentidos da palavra “poética”. Deste modo, cabe
dizer que aquilo que permite a comunicação singular à qual nos referimos é o
fio que simultaneamente separa e liga marioneteiro e marionete. Não
casualmente, Moraes termina seu artigo com a seguinte observação acerca dos
personagens: “Na ousada tentativa de desvendar os mistérios da criação, eles
vislumbram o caminho que une a alma do bailarino ao corpo do boneco; e, com
isso, lembram ao homem o único meio que lhe faz escapar de sua condição - por
um fio”. Penso que este fio é o mesmo que permitiria unificar todos os ensaios
do livro, constituindo, talvez, o lugar próprio do pensamento de Moraes, que
invoca o desvio já em sua introdução.
A possibilidade de desviar-se da condição humana, de fazer o humano
comunicar-se com o inumano, enunciada pela figura do fio no texto de Kleist, é
justamente aquilo que permitiria dizermos que o pensamento kleistiano mantém-se
à distância do pensamento de Descartes, aproximando-se mais do pensamento
ameríndio, no qual a divisão entre humano e inumano é muito mais transitável. [1]
A
noção de comunicação que se encontra nas entrelinhas de vários dos ensaios que
compõem o livro possui claros contornos bataillianos, não sendo casual o
constante recurso de Moraes ao filósofo francês. Bataille esforça-se tanto para
solapar a divisão sujeito-objeto do racionalismo quanto sua fusão unitária
mística, [2] de modo que, para ele, “a
comunicação solapa as bases tanto do objeto quanto do sujeito (…). [3] No ensaio “Um olho sem rosto”,
Moraes ainda nos apresenta as gravuras criadas por Hans Bellmer para a edição
de 1940 de A história do olho, obra
ficcional de Georges Bataille traduzida para o português por ela própria. São
desenhos de traços finos e delicados para tratar de uma violência erótica sem
limites, traços que combinam com a própria forma narrativa do romance, que
apresenta um linguagem extremamente realista, ascética e econômica com relação
a adjetivos, contrastando assim com o fundo narrativo que se passa num mundo
completamente à parte, como num conto de fadas noir. Trata-se de um mundo imaginário onde os adultos não são
capazes entrar, um lugar em que reina o desejo e, desta maneira, só pode ser
apresentado por uma linguagem que “recusa a lógica da contradição para dar
lugar às formulações ambivalentes que são próprias das fantasias eróticas”.
Cabe
ainda ressaltar o cuidado de Moraes ao lidar com fatos biográficos de Bataille,
de modo a evitar duas saídas fáceis: fazer com que a obra seja expressão da
vida vivida, ou fazer com que ela seja um mero conjunto lingüístico com
autonomia total e desconectada da biografia. De certo modo, a citação inicial
do ensaio já indica o caminho batailliano para lidar com este problema: “Escrevo
para apagar meu nome”. Também poderíamos mencionar a esse respeito que Bataille
vincula a própria escrita ao abatimento (mise
à mort) do autor por sua obra. A escrita aqui, não é expressão de um
vivido, mas exercício reflexivo de apagamento e transformação de si mesmo.
A
primeira ficção publicada por Bataille é resultado de um trabalho psicanalítico
pouco ortodoxo, conduzido sob a supervisão de Adrien Borel, ao qual ele se
submeteu por apenas um ano. No entanto, se a narrativa tratasse de um caso
pessoal, ela não teria valor literário, de modo que sua grandeza reside, para
além do trabalho lingüístico, no esforço de apagamento do próprio autor. A
palavra ficcional permite que aquele que escreve passe do plano pessoal para o
impessoal, ou seja, trata-se da dessubjetivação do autor, de sua metamorfose em
algo totalmente outro. Este seria o motivo principal do uso de pseudônimos;
neste caso, Lord Auch, que significa Deus se aliviando. Ou seja, não se trata
apenas de uma proteção contra prováveis processos por ultraje à moral, os quais
eram corriqueiros no período dado o profundo caráter conservador de parte da
sociedade francesa. Embora tal processo pudesse abalar o cargo de Bataille na Bibliothèque Nationale de France, Moraes
mostra como o pseudônimo permitiu que o nome do pai doente, imobilizado e com
periódicos acessos de fúria, que marcou a infância de Bataille, fosse apagado.
Esse apagamento abriria, assim, a passagem do plano pessoal ao impessoal. Muito
embora Moraes talvez exagere ao caracterizar este plano como “algo que excede o
particular para abarcar uma circunstância comum à espécie humana”, o pseudônimo
funcionou enquanto uma máscara.
Cabe
lembrar ainda que a figura da máscara apresenta um sentido muito particular e
bem explorado por Moraes no próprio pensamento batailliano. Enquanto objetos
que apagam o rosto, as máscaras também criam algo novo, carregando consigo uma
potência de caos: “Na qualidade de artifícios que se sobrepõem à face humana,
com o objetivo de torná-la inumana, essas representações 'fazem de cada forma
noturna um espelho ameaçador do enigma insolúvel que o ser vislumbra diante de
si mesmo'“. De acordo com as palavras de Bataille, “quando aquilo que é humano
é mascarado, resta presente nada mais que a animalidade e a morte”.
As
cenas de imersão cósmica em História do
olho caminham no mesmo sentido da desindividuação trazido pela máscara. São
algumas das cenas mais interessantes e experimentais, geralmente em momentos em
que a narrativa flerta com o sem-sentido. No entanto, não deveríamos trata-las como
abstrações puras de uma bela alma, uma vez que se tratam de experiências
intensivamente corporais onde o erotismo, levado às últimas conseqüências,
carrega consigo a desintegração dos objetos e dos próprios sujeitos. Várias das
gravuras de Bellmer são excelentes acompanhamentos do texto para enriquecer
estes momentos, pois nelas o rosto dos personagens ou está em segundo plano, ou
está completamente ausente, sendo que os traços dos corpos chegam a flertar com
formas abstratas. De acordo com Moraes, nestes momentos-limite,
os
indivíduos são despojados de qualquer identidade, seja social ou psicológica,
em função de uma experiência puramente orgânica, animal, que supõe uma relação
íntima e imediata com o mundo. Tal é a 'ausência de limites' a que se entrega o
narrador da novela, evocando um estado de imanência no cosmos que, partilhado
por todos os seres vivos, só pode se revelar ao homem quando ele esconde seu
rosto.
Assim
como os personagens, o próprio olho passa por esse processo, iniciando o livro
como parte de brincadeiras eróticas - quando ainda assume a função da visão - e
terminando enquanto puro “resto material (…) ostentando sua condição finita”.
De modo que, segundo a autora, o livro não narra “a autobiografia de Bataille,
e nem mesmo do narrador - é uma autobiografia do olho”. Novamente nos deparamos
com limites que colocam em questão a relação entre humano e inumano, aquela
fronteira que é mais distante do centro que do fora. Muito embora esteja
tratando de uma obra formulada num contexto muito distinto daquele no qual
escreveu Heinrich von Kleist, a escrita de Moraes parece nos convidar, ou nos
desafiar, para uma experiência de nossos próprios limites.
Em
“Varas, virgens e vanguarda”, dedicado a Guillaume Apollinaire, encontramos
também uma ótima reconstrução do contexto artístico da França do início do XX.
Moraes consegue recriar a tensão estabelecida pelo enfrentamento vanguardista
às formas estabelecidas da arte acadêmica pautada pela representação do real.
Cabe ressaltar que não se trata apenas de uma discussão estritamente estética,
visto que o ataque à estética oficial por parte de artistas como Apollinaire,
Picasso, Braque, dentre outros, era respondida até mesmo com a xenofobia. Deste
modo, Moraes nos introduz a certas articulações entre estética e política. Ao
ser acusado de roubar a Monalisa do Louvre, sendo posteriormente solto após provada
sua inocência, Apollinaire, “filho ilegítimo de uma polonesa, a quem os padrões
da época atribuíam reputação duvidosa, e de um italiano de origem desconhecida”,
continuou alvo de críticas. De acordo com a autora, mesmo após a resolução do
roubo
Apollinaire
foi atacado pela intelectualidade da época, que se aproveitou da ocasião para
denunciar os atos de 'barbarismo' dos métèques - 'malditos estrangeiros' -
contra a cultura nacional (…) os árbitros do bom gosto francês o acusavam de
atentar contra os valores da 'civilização', estendendo tal recriminação a
outros estrangeiros radicados em Paris, tais como Picasso, Stravinsky e
Gertrude Stein.
Tratava-se
de um momento de profundo abalo dos valores tradicionais da civilização e do
humanismo europeus, os quais eram defendidos violentamente pela
intelectualidade conservadora contra as críticas promovidas pela arte
experimental de vanguarda. A título de exemplo, quando Picasso mostrou o quadro
Les demoiselles d'Avignon a
Apollinaire, este teria demonstrado grande entusiasmo com o novo campo de
possibilidades aberto pelo mesmo. No entanto, o mesmo trabalho sofreu severas
críticas dos defensores da representação realista e antropomórfica, os mesmos
que atacariam Apollinaire logo em seguida.
Neste
contexto, o trabalho do poeta francês era marcado não tanto pela pura rejeição
do passado, mas pelo interesse por aqueles elementos que foram propositalmente
deixados de lado pelas regras do bom gosto do presente. Seu envolvimento na
publicação de parte das obras do Marquês de Sade serve como exemplo. Ainda que
sem preocupar-se em diferenciar Sade de um Restif de la Bretonne, Apollinaire
encontrava neste tipo de literatura uma possibilidade de revigoramento do
espírito moderno. A arte deveria ser um lugar não apenas de reflexão e
experimentação estética, mas um meio de completa transformação nos modos de
vida:
Para
o poeta, a experiência cosmopolita deveria engendrar um modo de vida amorosa
radicalmente diferente daquele que os padrões morais da sua época ainda acalentavam.
Diferença que ele enfatizava ao contrastar as duas grandes personagens de Sade:
Justine oferecia um retrato da 'mulher antiga, subjugada, miserável e menos que
humana', enquanto Juliette representava a nova mulher, 'um ser do qual ainda
não temos a menor idéia, que se liberta da humanidade, que terá asas e renovará
o universo'.
No
entanto, mesmo tendo escrito poesias e novelas como As onze mil varas, as quais escandalizaram sua época e tiveram que
ser publicadas anonimamente, hoje os textos de Apollinaire constam na Bibliothèque de la Pléiade. Quanto a
isso Moraes não se deixa iludir, de modo que a apologia fácil passa longe de
qualquer um dos ensaios deste livro. A autora está certa de que o escândalo
causado por estas obras no final do século retrasado, assim como no início do
século passado, não apresenta hoje a mesma intensidade que outrora. “Passado
quase um século, a Mona Lisa convive
tranquilamente com as Demoiselles
d'Avignon nas paredes dos museus e a obra bem comportada de Anatole France
repousa nas mesmas prateleiras que os livros obscenos do autor de As onze mil varas”. Como não lembrar de
um apontamento análogo feito por Michel Foucault no início de 1970? Se a
literatura moderna se apresentava, entre o final do XIX e o início do XX, como
um lugar de questionamento dos limites de uma cultura, talvez hoje ela não
carregue a mesma possibilidade: “(…) hoje a literatura, como cena da
transgressão sexual, enfraqueceu o próprio ato transgressivo. E desde que ele
se desenrola sob a cena da literatura, no espaço literário, ele tornou-se de
longe mais suportável”. No entanto, mesmo que os nossos limites tenham se
deslocado para outro lugar, artistas como Apollinaire nos convidam a interrogar
por esse novo lugar, de modo a lançar um novo desafio ao pensamento.
Numa
geração brevemente posterior a Apollinaire encontramos André Breton, um dos
nomes mais importantes do surrealismo. Novamente, muito embora o ensaio trate
mais especificamente de Nadja, Moraes
nos introduz no contexto mais amplo dessa publicação. Assim como na novela de
Breton, o tema da caminhada pela metrópole, considerada um lugar de
interrogações filosóficas, é uma constante em outros nomes da geração anterior,
como Victor Hugo, Lautréamont, Nerval ou Baudelaire, com a famosa figura do flâneur. Sendo assim, a cidade é
considerada uma fonte emissora de signos:
Ao
divisar um elo secreto entre lugares e palavras, Breton vai revelando não só a
natureza do passeio surreal, mas também o intento de um livro que pretende
explorar os pontos de contato entre a vida e o sonho. Para tanto, ele captura a
paisagem citadina com o mesmo olhar oblíquo de seus inspiradores, no empenho de
decifrar os signos urbanos como mensagens secretas que lhe dizem respeito.
É
durante uma perambulação por Paris que se passa o encontro de Breton com Nadja,
acontecido em um bairro famoso pelas atividades femininas, desde a prostituição
até a cartomancia. O autor opera alguns deslocamentos em relação à Paris real,
por exemplo, grafando a rua La Fayette como Lafayette, pistas que apontam para
o contato do real com o imaginário. É Nadja, por sua vez, que orienta as
caminhadas de Breton, todas motivadas pela pergunta inicial do texto: “quem sou
eu?”.
Vários
elementos da novela permitem a associação entre Nadja e a figura da Esfinge. No
entanto, vale lembrar que não se trata exatamente da mesma Esfinge do modelo
grego, e muito menos daquela tal como interpretada por Hegel na modernidade -
enquanto figura a ser enfrentada para que o homem alcance uma legítima
consciência de si. Em linhas gerais, trata-se de uma verdadeira reinvenção das
figuras da tradição, tal como também reivindicaram autores como Max Ernst e
Paul Éluard: “Livre das referências tradicionais, a nova esfinge será
encontrada nos locais mais prosaicos da cidade, sempre em sintonia com a
dinâmica transitória da vida cosmopolita”.
A
associação entre Nadja e a Esfinge contribui para que a primeira deixe de ser
considerada um personagem romanesco como qualquer outro, pois ela se
caracteriza principalmente por ser portadora de uma interrogação, e não de uma
identidade. Desta maneira, de acordo com Moraes, “(…) Nadja não pode se
confinar aos contornos de um rosto”. Pesamos que isso é parte do próprio
movimento de deslocamento da subjetividade que ela traz, pois ao encontrar-se
com Nadja, a pergunta mestra inicial não é respondida, mas têm seus termos
mudados. Novamente, de acordo com Moraes,
(…) a
aparição da personagem na vida do escritor, de certa forma motivada pela
interrogação sobre si mesmo, acaba por lançá-lo na incógnita da alteridade. É
ele mesmo a admiti-lo, no exato momento em que depara com a esfinge da rua
Lafayette, ao substituir sua questão inicial por 'uma pergunta que resume todas
as demais': 'uma pergunta' diz o autor, 'que só eu faria, sem dúvida, mas que, pelo
menos uma vez, encontrou resposta à altura: quem é você?'.
A
reposta de Nadja desencaminha toda promessa de unidade subjetiva: “eu sou a
alma errante”. É neste sentido que o contato com Nadja propicia esta completa
transformação da pergunta-guia, assim como promove um esforço de transformação
da própria subjetividade do narrador: “Daí que, logo após o encontro capital, o
próprio autor vá recolocar sua dúvida em outros termos, olhando para si mesmo
como um estrangeiro”. Encarar a si mesmo como um outro opera toda uma
reconfiguração das sensibilidades e dos saberes, de modo que podemos entender
como apenas um passeio errante é capaz de propiciar tal experiência-limite.
Desta maneira, o esforço de descentramento do autor nos mostra que esta flânerie, esta errância, não é definida
apenas negativamente enquanto desvio do caminho correto, pois apresenta um
estatuto positivo definido como movimento em direção à alteridade. Segundo
Moraes,
indiferente
aos problemas da identidade, a resposta da jovem esfinge lhe aponta um caminho
oposto ao de Édipo, uma vez que o herói fundante de nossa cultura representa a
metáfora do homem que toma consciência de si, realizando os desígnios da
célebre inscrição grega 'conhece-te a ti mesmo'. Ao contrário, a irrestrita
adesão de Nadja à errância supõe uma personalidade à mercê do transitório, e
capaz de desdobrar-se em diversos 'outros'.
Semelhante
rechaço ao princípio da identidade não se restringe ao surrealismo,
apresentando-se também nos autores do XIX considerados pelo movimento enquanto
seus precursores. Moraes cita Nerval, Lautréamont e Rimbaud, deste último, em
particular sua célebre carta a Georges Izambard: “EU é um outro. Azar da
madeira que se descobre violino, e danam-se os inconscientes que discutem sobre
o que ignoram completamente!”. Nesta célebre frase, a discordância entre
sujeito e verbo abre uma fissura de alteridade no próprio sujeito,
acontecimento que, no caso de Breton, passa pela experiência do encontro
fortuito com Nadja na metrópole. Novamente, segundo Moraes,
importa
sublinhar que, ao deslocamento físico dos personagens, marcado pela
desorientação e pela disponibilidade para a surpresa, corresponde um
deslocamento mental de semelhante porte e intensidade. Ao trajeto errante, uma
alma igualmente errante.
Desta
forma, o encontro com Nadja abre a possibilidade do eu desdobrar-se em diversos
outros, e, assim, traz novamente a questão dos limites sobre os quais estamos
insistindo nesta resenha. Trata-se da possibilidade de lançar-se na vertical de
si mesmo, ou ainda, segundo as palavras de Michel Leiris, para quem Moraes
também dedica um ensaio, trata-se desses “lugares onde o homem tangencia o
mundo e a si mesmo” – basta lembrarmos que a tangente é o espaço onde o limite
é tocado.
Concluo
esta resenha mencionando outro ensaio dedicado não a um autor específico, mas a
um tema. Trata-se das várias reflexões sobre as noções de monstruosidade e prodígio,
encontradas em “Anatomia do monstro”. Neste ensaio, Moraes mobiliza desde
autores como Lucrécio, passando pelo renascentista Ambroise Paré, até chegar a
Hegel, Bataille e Max Ernst. A partir de Lucrécio, a autora trata do problema
freqüentemente reiterado, segundo o qual os monstros nascem devido a “uma
perturbação da geração do homem” ou um desvio na ordem da natureza. Segundo
Paré, os monstros são parte dos desígnios de uma ordem natural, normalmente
caracterizados pela falta manifesta por algum tipo de mutilação. No entanto,
como poderíamos esperar de um pensamento renascentista, estes desígnios
naturais não podem ser completamente compreendidos pela razão humana, de modo
que mesmo os monstros e prodígios estariam integrados à natureza: “Inacessíveis
à compreensão humana, esses mecanismos secretos da natureza visariam, em última
instância, à manutenção da harmonia universal”. A própria figura feminina é
vista por Paré como grau primeiro de imperfeição ou monstruosidade, de modo a
retomar as teses de Aristóteles, para quem a mulher seria um homem mutilado.
No
entanto, Moraes aproveita-se destas idéias para destacar a subversão das mesmas
através de sua recepção contemporânea em Bataille e Ernst. Uma das partes mais
interessantes do ensaio está na contraposição entre, de um lado, o pensamento
de Hegel (mais especificamente o da Estética)
e, de outro, o de Bataille e outros surrealistas. Esta contraposição diz
respeito à figura da Esfinge e da dupla animalidade que ela representa enquanto
monstro feminino. Segundo a leitura hegeliana, ao responder a interrogação da
Esfinge, Édipo constitui-se enquanto homem da consciência de si através do conhecimento
de si, [4] eliminando de si
mesmo toda a animalidade representada por este monstro:
a
consciência de si resulta de um processo de depuração das formas que parte da
negação da animalidade. Não se trata, pois, de um homem que alarga suas
fronteiras compartilhando a mesma natureza dos animais, mas o contrário: Édipo
funda um domínio próprio e exclusivo no qual 'o espírito recebe uma existência
sensível e natural que lhe é adequada'.
Pelo
lado dos surrealistas, Édipo é o precursor do despotismo racional masculino,
donde a reabilitação da Esfinge, considerada pelo movimento enquanto símbolo do
caos. Se em Hegel a vitória sobre a Esfinge marca a mudança do pensamento
simbólico para o conceitual, os surrealistas visam uma atualização do simbólico
para, ao invés de responderem ao enigma, relançarem o próprio estado de
interrogação.
Ao
final, Moraes menciona algo que jaz no subterrâneo de Édipo e que Hegel omite. O
próprio nome da humanidade depurada da animalidade já invoca a monstruosidade,
pois significa “pés inchados”. Neste sentido, a partir de Bataille, a
monstruosidade é tida não como alteridade absoluta da humanidade, mas enquanto
sua ameaça interna. Uma ameaça que não deve ser depurada de forma alguma, mas
que, na realidade, torna visível a impossibilidade de qualquer um de nós
pertencermos ao campo abstrato da humanidade. Pois o monstro invoca
precisamente toda singularidade que resiste à totalização, e mesmo Édipo é
singularizado por seus pés, assim como pelos olhos enucleados: “Em resumo: não
há homem concreto que responda de forma absoluta ao ideal abstrato e genérico
de 'homem'”.
Desta
maneira, com sua reflexão sobre os monstros, Moraes destaca a potência das
diferenças que tornam todos os seres únicos e singulares. Segundo ela, trata-se
de uma “possibilidade rara no mundo contemporâneo, onde se investe cada vez
mais nas 'particularidades coletivas' - como raça, etnia, gênero - e se reserva
pouca atenção ao que é efetivamente singular e irredutível ao todo”.
Uma
vez mais se coloca a questão do limite que comunica o humano e o inumano; neste
caso, o homem e a monstruosidade inerente ao próprio humano, a qual é
considerada positivamente enquanto potência de singularização e inoperância, de
modo que haveria, inclusive, todo um aspecto político deste pensamento ainda a
ser explorado. [5] Encerro esta
resenha com as palavras da própria autora, que retomam o mote do ‘desvio’:
Mulheres,
mutilados ou monstros, as figuras da incompletude que povoam nossos universos
concretos e imaginários vêm atestar que cada um de nós é, sem exceção, um
'desvio' em relação ao suposto homem genérico e universal - e que, nessa
qualidade, cabe a cada qual a aventura sensível de uma existência própria. Se
dermos ouvidos às interrogações colocadas pela esfinge num mundo ainda dominado
pelas respostas de Édipo, talvez seja possível redefinir a idéia de humano para
então nos reencontrarmos - sendo monstros.
NOTAS
1.
Sobre isto conferir o trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do
qual destaco, a título de exemplo, A
floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos.
2.
Sobre esta questão recomendo o capítulo “La
comunidad de la muerte” de Categorías
de lo impolítico e o livro de Franco Rella e Susanna Matti, Georges Bataille, filósofo.
3.
A tradução das citações de Bataille e de Foucault é de minha responsabilidade.
4.
Através desse ensaio, também poderíamos especular se a ênfase de Foucault no
tema do cuidado de si em detrimento do conhecimento de si, especialmente em A hermenêutica do sujeito e A coragem da verdade – neste último caso
recolocando a questão da animalidade na filosofia e no pensamento, o qual já
fora levantado em História da loucura
– também não seria fundamental para compreender seu olhar para antiguidade. Seu
destaque para figuras da antiguidade que foram deixadas de lado justamente por
toda forma de filosofia da consciência nada mais seria, talvez, que
desdobramentos tardios de um pensamento crítico não fundacional.
5.
Pensamos que a discussão entre Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot em torno ao
tema da comunidade, e mais recentemente os trabalhos de Roberto Esposito seriam
interlocutores profícuos deste eixo do livro de Moraes. Sobre
isso ver também o artigo Pensée de la
communauté et action politique: vers le concept de communautés plurielles
e, de Peter Pál Pelbart Qu’est-ce qui
parle à travers nous?
DANIEL VERGINELLI GALANTIN (Brasil, 1986). Graduado em História
pela UFPR. Mestre em Filosofia pela UFPR com dissertação intitulada “Verdade e
subjetividade no pensamento de Michel Foucault: da analítica do poder à
genealogia da ética”. Doutor em Filosofia na mesma instituição com projeto
intitulado “Experiência e política no pensamento de Michel Foucault”. Estágio
sanduíche realizado na Université de Paris Est-Créteil. Orientação do mestrado
e doutorado sob a responsabilidade do prof. Dr. André de Macedo Duarte.
Coorientação de estágio no exterior por Frédéric Gros. Página ilustrada com
obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada desta edição.
***
***
● ÍNDICE # 100
EDITORIAL | 100
números e a dinâmica imóvel do cotidiano
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/08/agulha-revista-de-cultura-100-julho-de.html
AGACÍ DIMITRUCA |
Tiempos griego-españoles
ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer
ANDREA
OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e
Gisèle Prassinos
ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y un libro a cuchilladas
DANIEL
VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros
trágicos
ELVA PENICHE MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna
ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias entre creación
pictórica y literaria
ESTER
FRIDMAN | A linguagem simbólica
no Zaratustra de Nietzsche
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3
HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en Colombia
ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio Sinán
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y el cine
LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de los cuerpos y los
engaños de la metamorfosis
MARIA LÚCIA
DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto
NICOLAU
SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny
RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México
SUSANA WALD | En el espejo retrovisor
ULISES VARSOVIA | Esencia y excedencia de la poesía contemporánea
ARTISTA
CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia Leirner, minha mãe
Agulha Revista de Cultura
Número 100 | Julho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
| MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o
pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução
de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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