A hipótese desse teatro
provisório é uma linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Hipótese
aqui no sentido alexandrino, como utilizado por Foucault em sua aula inaugural
no Collège de France, a saber, o tema da peça de teatro que será encenada a
seguir. [1] Os recursos de execução
utilizados são, além dos recursos filosóficos tradicionais: leitura rigorosa do
livro em questão, assim como dos demais textos de Nietzsche, e o estudo de
trabalhos editados por especialistas, também faço um percurso pela leitura
simbólica, com o suporte dos estudos acadêmicos que foram feitos a respeito do
simbolismo até então. A complexidade desse intento se dá pelo fato de o rigor
acadêmico não ser suficiente para tal investigação. Faz-se necessário também
uma sensibilidade para a dimensão simbólica, a fim de não se cair num falso
literalismo. Isso porque o rigor acadêmico trabalha com o predomínio da razão,
enquanto que o universo simbólico alcança outros níveis de compreensão além
dela. Dessa forma, a presença de uma linguagem simbólica no Zaratustra
está diretamente relacionada à crítica nietzscheana à exclusividade da razão
socrática.
O primeiro problema que
enfrentei ao relacionar simbologia e filosofia é o fato de a filosofia
habitualmente trabalhar com o pensamento consciente, que pensa não por
símbolos, mas por conceitos. Entretanto, o que me autorizou a fazer esta
relação é justamente a abordagem diferenciada que Nietzsche oferece no que diz
respeito ao consciente. Para ele, a maior parte do pensamento consciente é
guiada pelo instinto, sendo que consciente e instintivo estão ligados. Se Zaratustra resistir a uma
interpretação simbólica, esse livro não só será passível de múltiplas
interpretações, como também será necessário trabalhar com o universo simbólico
para melhor compreendê-lo.
A partir das
considerações de Nietzsche com relação à significação da linguagem para o
desenvolvimento da civilização, na qual o homem se vê senhor do mundo por
nomeá-lo, identifiquei a presença de uma linguagem não nomeante de verdades nos
textos de Nietzsche. Tendo em vista que ele denomina Cristo de “grande
simbolista”, passei a investigar a presença de uma linguagem simbólica em seus
escritos, em especial no livro Assim Falou Zaratustra. A linguagem
simbólica, além de ser uma linguagem não nomeante de verdades, tem uma
orientação historicamente oposta à tendência alegórica do cristianismo, assim
como também do racionalismo socrático.
Determinados aforismos de Zaratustra
podem ser avaliados como sendo mais ricos em símbolos que outros, mas estes
estão presentes em toda a obra. Encontramos, por exemplo, a águia, a serpente,
o leão, o camelo, a criança, a árvore, a montanha, a caverna, o sol, o
meio-dia, o eremita, a ponte, o barco, a ilha, o lago, o mar.
Parto do pressuposto de que a simbologia é uma
linguagem do inconsciente. Tal pressuposto é oriundo da habitualmente
denominada “psicologia”, tendo como pano de fundo Freud e a investigação da
linguagem onírica em seus pacientes, e, principalmente, a continuidade e
aprofundamento desse estudo, conduzidos por Carl Gustav Jung. Na introdução do
livro organizado por Jung, O Homem e seus Símbolos, John Freeman,
colaborador da confecção do livro, escreveu: “O pensamento de Jung coloriu o
mundo da psicologia moderna muito mais intensamente do que percebem aqueles que
possuem apenas conhecimentos superficiais da matéria. (…) Mas a sua mais
notável contribuição ao conhecimento psicológico é o conceito de inconsciente –
não (à maneira de Freud) como uma espécie de ‘quarto de despejos’ dos desejos
reprimidos, mas como um mundo que é parte tão vital e real da vida de um
indivíduo quanto o é o mundo consciente e ‘meditador’ do ego. E infinitamente
mais amplo e mais rico. A linguagem e as ‘pessoas’ do inconsciente são os
símbolos, e os meios de comunicação com este mundo são os sonhos.”
Jung foi não apenas
leitor de Nietzsche, como também estudioso de seus escritos. Além das inúmeras
citações do filósofo em sua obra, proferiu seminários, de 1934 a 1939, sobre o Zaratustra
de Nietzsche, que, posteriormente foi editado por James L. Jarrett, professor
de filosofia da Universidade de Berkeley, Califórnia, sob o título de Nietzsche’s
Zarathustra: Notes of the Seminar Given in 1934-1939 by C. G. Jung.
A linguagem dos sonhos
não é a mesma linguagem que temos no estado de vigília. Partindo deste ponto de
vista, a psicologia trabalha com a hipótese de que a linguagem onírica seja uma
linguagem do inconsciente. Este parece lidar mais com símbolos do que com
conceitos, e depois das investigações de Freud e Jung, muitos psicólogos
passaram a dar atenção aos símbolos contidos nos sonhos de seus pacientes. Os
símbolos remeteriam à totalidade do homem, o self, para usar o termo junguiano,
enquanto que a linguagem conceitual remeteria apenas à parte racional do homem,
à pequena razão, para usar o termo nietzscheano. Não tenho aqui a preocupação
em explicitar as diferenças entre psicanálise freudiana e psicologia analítica
junguiana. É evidente que essas diferenças são de extrema importância no campo
da psicologia. No entanto, no que se refere ao presente escrito, nos interessa
a analogia que se pode fazer entre linguagem onírica e linguagem simbólica, sem
tomar partido de determinadas interpretações em detrimento de outras.
Primeiramente é preciso
definir o termo símbolo na forma aqui empregado, uma vez que, não raro, esse
termo é utilizado em diferentes circunstâncias e, muitas vezes, com diferentes
significados. Para tanto, é mister conhecer um pouco de sua história. Talvez um
dos motivos da falta de consenso com respeito ao significado seja o fato de
tratar-se de um termo cuja concepção passou por uma mudança radical no final do
século XVIII. As teorias do símbolo anteriores a esse período são, portanto,
diferentes das teorias que se estabeleceram no século XIX. Tzvetan Todorov, em
seu livro Teorias do Símbolo, diz:
Até 1790, a palavra símbolo não possui absolutamente o
sentido que adquirirá na época romântica: ou é um simples sinônimo de uma série
de outros termos mais usados (como alegoria, hieróglifo, cifra, emblema etc),
ou designa, sobretudo, o signo puramente arbitrário e abstrato (os símbolos
matemáticos). Esse segundo sentido é particularmente comum nos leibnizianos,
como, por exemplo, Wolff. É Kant quem, na Crítica da
faculdade do juízo, inverte esse uso e
traz a palavra “símbolo” para bem perto do seu sentido moderno. Ao contrário de
caracterizar a razão abstrata, o símbolo é próprio da maneira intuitiva e
sensível de apreender as coisas. [2]
Em seu livro Ensaios de
Filosofia Ilustrada, Rubens Rodrigues Torres Filho diz o seguinte sobre a
concepção kantiana de símbolo:
Tanto o simbolismo quanto o esquematismo são operações da faculdade
de julgar que expõem o conceito
na intuição; ambos, intuitivos,
subordinam-se ao conceito genérico de hipotipose.
E Kant explica a palavra “hipotipose” (em grego: esboço, subfiguração) como
sinônima de Darstellung
(exposição, encenação), de exhibitio
– e, mais explicitamente, como subjectio
sub adspectum, isto é, sujeição à figura, à forma ou, em suma, ao olhar.
Trata-se, sempre, da Versinnlichung
(sensibilização) de um conteúdo conceitual.
A verdadeira diferença entre essas duas formas de Darstellung só se revela, então,
quando se observa que, para os conceitos do entendimento, a imaginação oferece esquemas que lhe são adequados e nos
quais eles podem mostrar-se (Demonstratio) diretamente (assim, a permanência do
real no tempo é o “monograma” da imaginação que exprime a categoria da
substância, assegurando-lhe “referência a objetos e, portanto, significação”), enquanto os conceitos
da razão (as Ideias) não podem ter na intuição nenhum correspondente adequado.
Por isso, para expor estes últimos, a faculdade de julgar tem de proceder de
maneira indireta, analogicamente (Analogie),
elegendo uma intuição que não tem com o conceito nenhuma semelhança de conteúdo
e valendo-se apenas do acordo entre as regras da reflexão sobre um e sobre o
outro. Nessa atividade, específica da reflexão, que “põe em cena” um conceito
“indemonstrável”, consiste o ato de simbolizar. [3]
Essa diferenciação entre
manifestações que são próprias da razão e outras que não o são, também se dá em
Goethe. Recorto a distinção que o poeta faz entre símbolo e alegoria em seu
artigo Sobre os objetos das artes figurativas, de 1797: “O alegórico se
distingue do simbólico pelo fato de que este designa indiretamente; aquele,
diretamente.” [4]
Todorov diz que “O
símbolo é produzido inconscientemente e provoca um esforço de interpretação
infinito.” Enquanto que “o sentido do alegórico é finito, o do simbólico,
inesgotável; ou melhor: na alegoria o sentido é acabado, terminado e, portanto,
de alguma forma, morto; é ativo e vivo no símbolo.” Ele observa ainda que “No
que diz respeito ao simbólico, reencontramos a panóplia das características
valorizadas pelos românticos: ele é produtor, intransitivo, motivado; realiza a
fusão dos contrários: é e significa ao mesmo tempo; seu conteúdo escapa à razão:
exprime o indizível.” [5] Enfim,
“qualquer poesia, é ou deve ser fundamentalmente simbólica.” [6]
Se o simbólico é capaz
de realizar a fusão dos contrários, como diz Todorov, é notável que Nietzsche
tenha escrito Zaratustra com uma linguagem simbólica, uma vez que toda a
obra se compõe a partir de elementos de aparente oposição, visando sempre a uma
totalidade.
De acordo com Goethe,
Há uma grande diferença segundo o poeta busque o particular
em vista do geral ou veja o geral no particular. Do primeiro caso nasce a
alegoria, na qual o particular vale unicamente como exemplo do geral; o segundo
é no entanto conforme à natureza da poesia: ela diz um particular sem que parta
do geral e o indique. Porém aquele que capta vivamente esse particular recebe
ao mesmo tempo o geral, sem disso se dar conta, ou apenas posteriormente. [7]
Schelling, de certa
forma, une essas duas concepções: a oposição entre simbólico e esquemático, de
Kant, e a oposição entre simbólico e alegórico, de Goethe, obtendo assim, três
formas: o simbolismo, o esquematismo e a alegoria, sendo que o primeiro contém
os demais:
Aquela Darstellung,
na qual o universal significa (bedeutet)
o particular, ou na qual o particular é intuído através do universal, é esquematismo.
Aquela Darstellung, porém, na qual o particular significa o
universal, ou na qual o universal é intuído através do particular, é alegórica.
A síntese destas duas, onde nem o universal significa o
particular, nem o particular o universal, mas onde ambos são um, é o simbólico. [8]
Rubens Rodrigues Torres
Filho diz que Schelling
vai buscar o sentido original da palavra símbolo na senha ou marca de
reconhecimento (a tessera dos
romanos), que foi primitivamente aquele objeto partido em dois cuja
apresentação e encaixe permite a dois amigos se reconhecerem, no reencontro
depois de longa ausência – e assim restitui ao símbolo seu sentido etimológico
de “convergência”, “encontro”. É nesse contexto que se afirma a orientação
visceralmente simbólica que tem
a filosofia da natureza, ao promover a identidade no todo e buscar o infinito
no finito: orientação historicamente oposta à tendência alegórica do cristianismo, pois para ela, justamente, o finito
não é “apenas um Gleichnis”.
Adotar o estilo simbólico, em filosofia, é situar-se a contracorrente desse
cristianismo, que define a modernidade (por oposição ao paganismo antigo) como
este mundo dos indivíduos dominados pelo
universal…
[9]
O sentido original da
palavra “símbolo” remonta ao grego symbolon, que denota um sinal de
reconhecimento (symbálein = reunir, juntar). Na Grécia antiga, quando
dois amigos se separavam, costumavam quebrar um anel, uma moeda ou um pequeno
objeto de argila, e cada um ficava com uma metade. Ao retornar, o amigo, ou
alguém de sua família, apresentava sua metade. Se ela se encaixasse na outra
metade, ele era recebido com hospitalidade, uma vez que havia revelado sua
identidade. [10]
É neste sentido
etimológico original da palavra símbolo que me aproprio no presente estudo: symbálein,
ou seja, reunir o que está, aparentemente, separado.
Assim, símbolo não é o
mesmo que signo. Este tem o sentido de palavra, tal como Nietzsche emprega no
livro V de A Gaia Ciência: signos de comunicação, ou seja, palavras.
Para ele, os signos de comunicação, ou palavras, acompanham o pensamento
consciente: “…o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não
sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele,
e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: - pois somente esse
pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação; com
o que se revela a origem da própria consciência.” [11]
De acordo com Jung, “Os
símbolos nunca foram inventados conscientemente; foram produzidos sempre
pelo inconsciente pela via da chamada revelação ou intuição.” [12] Segundo ele, o racionalismo da
consciência impede que a energia se transforme pacificamente e produza
símbolos, uma vez que a razão opera na base de opostos separados, e não
complementares. Já o símbolo não opera com oposição, mas união. Além disso, a
razão, ao escolher um valor, se fixa nele, enquanto que o simbólico não se fixa
em nada. Jung nos fala do extraordinário papel “que o Cristianismo desempenhou
na repressão da formação individual do símbolo…”. Acrescentaríamos ainda os
problemas que a igreja católica causou ao interpretar o antigo e o novo
testamento como se fossem relatos de fatos históricos. Uma coisa é
acontecimento histórico, outra coisa é realidade espiritual. A meu ver, é por
isso que Nietzsche chama Cristo de “grande simbolista”, e diz
Se entendo algo desse grande simbolista, é que ele tomou
apenas realidades internas como
realidades, como ‘verdades’ – que entendeu todo o resto, tudo natural,
temporal, espacial, histórico, apenas como signo, como ocasião para metáforas.
O conceito de ‘filho do homem’ não é de uma pessoa concreta que faz parte da
história, de algo individual, único, mas uma ‘eterna’ factualidade, um símbolo
psicológico redimido do conceito de tempo. [13]
De acordo com minha
leitura, é nesse sentido que Nietzsche afirma que a construção da Igreja foi
baseada no oposto do evangelho. [14]
E que “a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história
da má compreensão, gradativamente mais grosseira, de um simbolismo original.
[15] A linguagem da Bíblia, assim
como, a meu ver, a linguagem do Zaratustra, é simbólica, ou seja, põe em
cena imagens de uma realidade espiritual não demonstrável. Não ser demonstrável
não significa que não seja real. Assim, quando queremos que os relatos bíblicos
ou quaisquer relatos religiosos sejam interpretados como acontecimentos
históricos, eles deixam de ser reais. Para comunicar acontecimentos históricos
usamos a linguagem conceitual, enquanto que para comunicar acontecimentos
espirituais, podemos usar a linguagem simbólica.
Não poderia deixar de
trazer aqui a presença de Mircea Eliade, mitólogo, filósofo, cientista das
religiões e romancista, para quem o pensamento simbólico é inerente ao homem,
precedendo a linguagem e a razão discursiva. Para ele, as imagens, os símbolos
e os mitos revelam os aspectos mais profundos da realidade e as mais secretas
modalidades do ser. Ele nos diz que “a função de um símbolo é justamente
revelar uma realidade total, inacessível aos outros meios de conhecimento: a coincidência
dos opostos, por exemplo, tão abundantemente e simplesmente expressada
pelos símbolos, não é visível em nenhum lugar do Cosmos e não é
acessível à experiência imediata do homem, nem ao pensamento discursivo.” [16]
No quarto livro de A
Gaia Ciência, Nietzsche constata o seguinte: “Através dos mais longos tempos
considerou-se o pensar consciente como o pensar em geral: só agora desponta
para nós a verdade, de que a maior parte de nossa atuação espiritual nos
transcorre inconsciente…” [17]
Se, como diz Nietzsche,
“a maior parte de nossa atuação espiritual nos transcorre inconsciente”, e se a
linguagem do inconsciente for simbólica, então, conhecer o universo simbólico
poderia possibilitar uma aproximação maior ao pensamento do autor.
No prólogo de Assim
Falou Zaratustra lemos:
É tempo de o homem fixar sua própria meta. É tempo de o
homem plantar a semente de sua mais alta esperança. Seu terreno ainda é
bastante fértil para isso. Mas um dia esse terreno será pobre e manso, e dele
não poderá mais brotar nenhuma árvore elevada. [18]
Se a passagem do Zaratustra
supracitada tem um tom de alerta, é porque não é a primeira vez que Nietzsche
fala sobre a tarefa do homem, da grande tarefa, de semear a árvore da
humanidade. Em O andarilho e sua sombra, de 1879, no aforismo intitulado
“A árvore da humanidade e a razão”, lemos o seguinte:
Aquilo que vocês, com decrépita miopia, temem como sendo a
superpopulação da Terra, é justamente o que proporciona ao mais esperançoso a
sua grande tarefa: um dia, a humanidade deve se tornar uma árvore que cubra a
Terra inteira, com muitos bilhões de brotos que devem conjuntamente se tornar
frutos, e a Terra deve ser preparada para nutrir essa árvore. (…) todos
queremos contribuir para que a árvore não apodreça antes do tempo! (…) Temos,
isto sim, que olhar de frente a
grande tarefa de preparar a
Terra para uma vegetação da máxima e mais jubilosa fecundidade – uma tarefa da
razão em prol da razão! [19]
De um modo geral, a
árvore simboliza a vida, seu crescimento e proliferação. Seu aspecto cíclico de
nascimento e morte evoca a ideia de vida eterna. De acordo com Mircea Eliade,
O mistério da inesgotável aparição da Vida corresponde à
renovação rítmica do Cosmos. É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a
forma de uma árvore gigante: o modo de ser do Cosmos, e sobretudo sua
capacidade infinita de se regenerar, é expresso simbolicamente pela vida da
árvore.
[20]
De acordo com minha leitura, Nietzsche, por
intermédio do símbolo da árvore, estaria acenando seu pensamento do eterno
retorno. Sendo assim, a árvore em Nietzsche teria mais relevância do que se
imagina, uma vez que o pensamento do eterno retorno é um pensamento chave de
Zaratustra. Acenar o eterno retorno pelo símbolo da árvore seria, a meu ver,
uma evocação ao deus Dionísio, que, na mitologia, é o deus da árvore.
Assim, o pensamento do
eterno retorno se apresentaria no cenário do teatro de Zaratustra por
intermédio de Dionísio. Por isso Nietzsche estaria evocando o deus da
vegetação, com seu aspecto de abundância, renovação, transformação, regeneração
e afirmação da vida. Nas palavras de Junito de Souza Brandão, “Assim, como toda
e qualquer divindade da vegetação, que passa, como a ‘semente’, uma parte do
ano sob a terra, o deus do êxtase e do entusiasmo é também uma divindade
ctônica, que morre, renasce, frutifica, torna a morrer e retorna ciclicamente.”
[21] Senhor da árvore, que distribui
a alegria, Dionísio é o deus da libertação, símbolo da vitalidade que quer
emergir de toda sujeição e de todo limite. Se, como diz Nietzsche, a
grande tarefa da humanidade é preparar a Terra para uma vegetação fecunda,
ninguém melhor que Dionísio para ajudar nessa tarefa.
Assim, eu questiono,
junto com Nietzsche, a exclusividade da linguagem conceitual. A racionalidade
tem sido a nossa casa, onde não permitimos a entrada de estranhos. Por isso, a
abordagem simbólica não tem sido bem vinda, ela incomoda, ela é imoral. Não
esqueçamos que para Nietzsche a razão é uma questão moral, que veio como
remédio para frear os instintos em anarquia. Habituados que estamos ao
pensamento racional, não consideramos a imaginação, a fantasia, o sonho,
confiáveis. Confiável seria apenas o que pode ser deduzido, demonstrado e
comprovado. Já é tempo de acordarmos desse sonho (ou pesadelo?) chamado razão.
Obviamente não para descartá-la pois ela tem a sua função, que quando bem
executada e em harmonia com todas as demais partes que compõem a complexidade
humana, contribui para a saúde em seu mais amplo sentido.
NOTAS
1. M. FOUCAULT, A
ordem do Discurso, trad. de Laura F.de A. Sampaio, p. 8.
2. Tzvetan TODOROV, Teorias
do Símbolo, trad. de Enid Abreu Dobránszky, p. 252.
3. Rubens R. T. FILHO,
Ensaios de Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p.112.
4. Johann Wolfgang von
GOETHE, Jubiläumsausgabe, vol. 33, 1797, p. 94, apud Tzvetan TODOROV, Teorias
do Símbolo, p.252.
5. Tzvetan TODOROV, Teorias
do Símbolo, p. 260..
6. Ibid., p. 258..
7. J. W. GOETHE, Jubiläumsausgabe,
vol. 38, p. 261, 1822, apud Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p. 257.
8. Friedrich Wilhelm
Joseph SCHELLING, Filosofia da Arte, apud Rubens R. TORRES FILHO, Ensaios
de Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p. 114.
9. R. R. TORRES FILHO, Ensaios
de Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p. 113, 114. O termo
alemão “Gleichnis” foi usado aqui no sentido de alegoria.
10. Jean-François Mattéi
também fala sobre a origem da palavra símbolo com estes mesmos termos, em seu
livro Platon et le miroir du mythe (PUF, 1996, p. 287).
11. F. NIETZSCHE, A
Gaia Ciência, livro V, aforismo 354, trad. Rubens R. T. Filho, In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. 1, p. 173. (Col. Os pensadores).
12. C.G. JUNG, Obras
Completas, vol. VIII / 1 - A Energia Psíquica, parágrafo 92, p. 47.
13. F. NIETZSCHE, O
Anticristo, aforismo 34, trad. de Paulo C. de Souza, p. 41.
14. Ibid.,aforismo 36,
p. 43.
15. Ibid., aforismo 37,
p. 43.
16. MIRCEA ELIADE,
Imagens e Símbolos, p. 177.
17. F. NIETZSCHE, A
Gaia Ciência, Livro IV, aforismo 333, trad. Rubens R. T. Filho, In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. 1, p. 162. (Col. Os pensadores).
18. IDEM, Así habló
Zaratustra, prólogo, aforismo 5, trad. de Andrés S. Pascual, p. 40, 41.
19. IDEM, Humano,
demasiado humano, vol. II, segunda parte: “O andarilho e sua sombra”,
aforismo 189, trad. de Paulo C. de Souza, p. 249, 250.
20. Mircea ELIADE, O
Sagrado e o Profano, cap. III, p. 123, 124.
21. Junito de Souza
BRANDÃO, Mitologia Grega, vol. II, nota 44, p. 124.
ESTER
FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem
simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de
Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a
Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato:
ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com
obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada desta edição.
***
Agulha
Revista de Cultura
Número
100 | Julho de 2017
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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Parabéns ESTER FRIDMAN belo belo TEXTO que é muito bem elucidado sobre o grande e polêmico NIETZSCHE, vc estuda e conhece NIETZSCHE e sabe como falar e escrever sobre o MESTRE ALEMÃO...... ( Parabéns também a revista de CULTURA " AGULHA " pela riqueza de suas posturas e divulgação da ARTE em suas várias EXPRESSÕES ).bjo.....Lobo Bruxo
ResponderExcluirFiquei muitíssimo feliz com sua leitura e comentário, Toninho. Muito obrigada. Um abraço.
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