Lançado pela gravadora Phonogram em maio de 1976, “Alucinação”,
segundo Long Playing de Belchior trazia na capa e contracapa a concepção gráfica
do cantor e compositor, fato que seguiria como uma terceira forma de expressão a
ser incorporada ao seu trabalho, uma terceira margem de sua aventura artística que
era finalmente encampada pelas regras da indústria cultural. Percurso que, a partir
daquele ano, ao longo do registro de 11 discos autorais ele iria compor e palmilhar,
até o ano de 2004, quando realizou seu último intento no âmbito da indústria fonográfica,
um projeto radical em parceria com a Editora Caras, a publicação audaciosa de um
objeto formado por dois CDs e um conjunto de desenhos envelopados em folha tripla. Com as dimensões do antigo LP, “As várias caras
de Drummond” trazia 31 retratos feitos por ele para o poeta Carlos Drummond de Andrade,
impressos em lâminas soltas em papel couchê para acompanhar os 31 poemas de Drummond
por ele musicados. A escolha do número 31 referia-se à data 31 de outubro de 1902,
nascimento daquele que talvez seja o maior poeta brasileiro e com certeza um dos
grandes de Língua Portuguesa. Trata-se de uma homenagem à altura do poeta mineiro,
emulado em talento e arrojo, pois tanto na forma das canções quanto no tratamento
musical a elas dado em tudo soava dissonante com a cartilha do sucesso musical,
inclusive aquele sucesso de certo tom corporativo do PMPB, o partido cujos grandes
nomes eram alvo de suas provocações lançadas com elegância e propósito. Não que
fosse malsoante, mas discorde, na medida em que ali se estabelecia a priori uma
diferença intrínseca: o fato de estar colocando melodias em textos escritos à distância
da linguagem das canções. Para quem teve seu primeiro reconhecimento em âmbito nacional
aos 27 anos, com a vitória da canção “Na hora do almoço” no IV Festival Universitário
de Música Brasileira, promovido pela TV Tupi no Teatro João Caetano, é intrigante
que seu desígnio final tenha retornado a Drummond, cuja poesia é integralmente identificada
como o pano de fundo literário para a letra daquela canção. Naquele momento da carreira,
tendo chegado àquela fronteira em que o cansaço com o “business” vai divisando do
outro lado um “basta”, soa como um aconchegante reencontro. E soa também insólito
o fato de que, se contarmos 1974 como o início de sua carreira com o disco “Belchior”,
e, 2004, como o ano do último trabalho, voltando a Drummond, temos exatas três décadas
de produção autoral. Deve-se destacar o autor dos arranjos feitos para aquele disco,
Marcos Vinícius de Andrade, premiado regente e compositor de trilhas sonoras para
o cinema, pernambucano de formação paraibana e radicado em São Paulo.
Na
contracapa de “Alucinação”, chama atenção uma foto de perfil do artista. Alterada
em alto contraste, a silhueta está deformada por buracos, como se víssemos o interior
da cabeça tomada por rabiscos, grafismos em pastel e canetas hidrocor que simulam
circuitos neurais, conexões cerebrais que passam a ideia da atividade ou da desordem
mental que acomete as pessoas que passam por essa experiência. A arte evoca com
clareza a figura de Jackson Pollock (1912-1956), expoente maior do Expressionismo
Abstrato norte-americano, personagem cuja aura cresce com o tempo, acompanhada por
um misto de heroísmo e drama.
MOTE E GLOSA | Tomando como mote esta arte da capa podemos
descobrir pequenas trilhas, índices que podem nos levar a uma apreciação no campo
da Semiótica. Várias são as acepções pelas quais podemos glosar esse fato. Primeiro,
direcionaria o foco para a necessidade do autor das canções ser também o autor da
capa. Não se trata apenas de uma veleidade artística. Não à toa, para assunção completa
do trabalho ele estampa em cima do título e do seu nome o desenho de um escorpião,
seu signo, figura marcada pelo ato extremo de matar a si mesmo se submetido à circunstância
final. Em outras palavras, todo aquele ideário contido nas canções com textos discursivos,
de uma crítica amarga com base nos elementos da realidade (“Minha alucinação é suportar
o dia a dia / E o meu delírio é a experiência com coisas reais”) significava uma
aposta sua de que “O novo sempre vem”, verso em que ele claramente punha em perspectiva
os movimentos passados que haviam oxigenado a MPB – a Bossa Nova e o Tropicalismo
–, este, àquela altura da Ditadura e estagnação cultural do país, para muitos convertido
a uma diluição e alienação política, a um comportamento oba-oba. Além de pôr em
perspectiva tratava-se também de uma provocação, como dito acima, pois àquela época
havia toda uma nova geração de músicos e “cantautores” procurando espaço dentro
das gravadoras. Não somente na música popular o país vivia um período muito fértil
na produção cultural, mesmo que contra isso pesassem a Ditadura e a censura. O grafismo
agressivo do escorpião dizia que sua aposta ia às últimas consequências, o fracasso
do projeto de vida. Trata-se de um trabalho dotado também de visão ulterior, uma
vez que em seu texto podia-se deduzir a intenção de forçar uma alteração no cenário
subsequente à sua inserção. Tratando as letras como “Líricas”, costume adotado nas
artes dos folhetos dos discos americanos, que remete de imediato a Bob Dylan, ele
estampou os textos numa nota de 100 dólares e assinou seu petardo com a subversão
da frase “In God We Trust”, usada na cédula americana, para “In Gold We Trust”.
Neste
glosar, explorando aquelas significações e voltando às artes plásticas, seu trabalho
na capa tinha ainda a função de inserir o autor numa categoria de artista popular
pouco cultivada no Brasil, qual seja a de situá-lo numa tradição de artistas e intelectuais
– na maior parte europeus – que têm inserção na cultura ilustrada, que cultivam
estreita relação com as questões sociais e as outras artes, pintura, literatura,
cinema. Em nossas conversas, era comum ouvi-lo falar da sua admiração pelos grandes
escritores, pelos compositores franceses que marcaram o mundo com sua arte, especialmente
na segunda metade do século XX, como Charles Trenet (1913-2001), autor da fantástica
canção “La Mer”, poeta e escritor, além de excelente pintor; Serge Gainsbourg (1928-1991),
ator, compositor, escritor e pintor; Georges Brassens (1921-1981), cancionista,
também um grande cantor e figuraça simpatizante do Anarquismo, além de adepto do
cachimbo e charuto; Léo Ferré (1916-1993), poeta e anarquista; Jacques Prévert (1900-1977),
poeta e roteirista de cinema; Anthony Quinn (1915-2001), grande ator e pintor; Henri
Michaux (1889-1984), poeta, escritor e pintor belga. Entrando no mundo do Rock,
destacamos, entre os americanos, Bob Dylan (1941) e Joni Mitchell (1943), pintores
desde sempre. Dylan dispensa comentários, é o gigante da cultura de massas que ganhou
o Nobel de Literatura! Bardo americano, poeta que deu às composições populares um
alto grau de realização, estrela de primeira grandeza. Joni Mitchell é poeta, compositora,
cantora e pintora. A canadense tem suas pegadas no mundo da música pop marcando
o folk com belas melodias e letras introspectivas, canções escritas com um vezo
social e político. Seu primeiro disco é de 1968 e o Festival de Woodstock aconteceu
em 1969. Era de ouro da música pop. Ela sempre se dedicou à pintura e a colocou
em primeiro plano. Entre os ingleses, uau! Surge o arquiídolo de nosso autor, John
Lennon (1940-1980). Lennon teve formação em artes ainda muito jovem e chegou a editar
livros com seus desenhos. Belchior fez retrato para Dylan e Lennon. E tem ainda
outro inglês, o barra pesada Ron Wood (1947), nada menos que o guitarrista dos Rolling
Stones cuja primeira experiência nas artes foi com desenhos e pinturas. Wood chegou
a ganhar uma competição de desenhos num programa da BBC ainda muito jovem, antes
da música. Frequentou o Ealing Art College, onde seus dois irmãos haviam se formado.
Wood pinta figuras emblemáticas do mundo pop em grandes dimensões. Vamos acompanhando
esses fatos e entendendo que seu investimento nas artes plásticas é um gesto de
filiação, de marcar uma referência. No Brasil,
admirava também todos os músicos e artistas que tinham na pintura uma atividade
relevante. Gostava de Dorival Caymmi (1914-2008) e do genial Chico Anysio (1931-2012),
mesmo que eles estivessem situados num contexto de pintura figurativa ou com tendências
ao naïf, gênero em que apreciava as pinturas
do francês Henri Rousseau, figura única na pintura. Mas não podemos deixar de dar
destaque a Caetano Veloso (1942) e Raul Seixas (1945-1989), que tiveram também a
prática do desenho como segunda arte. Aliás, eu seu artigo para o Estado de São
Paulo sobre o Belchior, por ocasião de sua morte, Caetano conta que em seu último
encontro com Belchior este lhe dera um quadro de presente.
Descendo
a um terreno mais prosaico, lembro quando certa vez manifestou o desejo de reunir
amigos músicos e pintores numa exposição que idealizava, em Fortaleza. Vê-se que
suas pretensões como homem das artes não eram modestas. Dessa forma, a chance que
tinha de ilustrar seu próprio disco não passaria em branco.
Há
muitos desenhistas e pintores que praticam essas artes com facilidade, diria que
até com virtuosismo. Fazem retratos com talento, fiéis ao modelo, mas destituídos
da tensão típica do criador, sem expressão. Entre acadêmicos e modernos, criadores
de instalações e eventos fugazes os encontramos em bienais e salões de exposições.
Porém, trabalham mais com a mão do que com o espírito. (Diga-se que isto não é pouco,
pois Picasso, certa vez, falando de sua pintura disse que “A mão tem memória”, metáfora
significativa.) Mas se o espírito é débil, tal aprendizado lega pouco mais que uma
maneira de fazer. Diria que esses maneiristas atuam numa linha um pouco abaixo da
ousadia, da originalidade. Protegidos das linhas traçadas segundo a emoção, das
pinceladas aos gestos nervosos de quem topa correr o risco, como as de um Flávio
de Carvalho ou um Iberê Camargo, eles não timbram pela expressão, que é aquela força
quase indizível de uma arte realizada emitida em sua própria linguagem. Mesmo sendo
um iniciante, como era Belchior à época do “Alucinação”, pode-se sentir naquela
foto alterada pelo grafismo o timbre de uma arte dotada de valor, de algo atiçador,
algo anímico a expandir o raio de atuação do disco.
AFINIDADES ESTÉTICAS, CONSTELAÇÃO
DE ESTRELAS | Não há como
escrever sobre esta terceira margem da obra de Belchior sem cotejar um pequeno leque
de pintores que foram fundamentais para sua volição como artista plástico. Conhecê-los
é conhecer também um tanto de seu caráter como cidadão e artista. Devo também dizer
que, por ter tido com ele um convívio, este texto está mais próximo de um depoimento
alimentado integralmente pela memória do que de um ensaio. De formação autodidata,
estudioso da História da Arte, sua família pictórica começa com os criadores que
nasceram entre fim do século XIX e a segunda metade do século XX. Podemos até marcar
como data aquele ano de 1874 na Cidade Luz, quando os pintores que depois formariam
o núcleo do movimento impressionista fizeram uma exposição improvisada no ateliê
emprestado de um amigo, já que eram todos recusados pelos críticos. Entre os expositores
estavam Auguste Renoir (1840-1919), Edgard Degas (1843-1917), Paul Cézanne (1839-1906),
Claude Monet (1841-1926) e vários outros. Marco este assunto porque aquele evento,
que não foi ignorado apenas por poucos amigos e um pequeno grupo de intelectuais
revelou-se na História da Arte uma grande revolução. Belchior era muito ligado às
transformações. Quando ele diz “Amar e mudar as coisas me interessa mais” (“Alucinação”),
esse “amar” refere-se à necessidade de se conhecer algo a fundo, primeiro, para
depois mudá-lo. Neste sentido podemos considerá-lo um iluminista, um cara sempre
ligado em cultivar o espírito. Abordar essas coisas é jogar luz sobre o que ele
produziu, conhecer melhor os artistas que lhe fustigaram a paixão, ter mais instrumentos
para interpretar as influências que tais artistas tiveram sobre ele e o mundo da
cultura. Como dito acima, aquela imagem do
disco, assim como muitos outros trabalhos que ele fez à época ( e que infelizmente
não dispomos para mostrar) está ligada a Pollock e à action painting, tipo de pintura surgido na primeira metade do século
XX em Nova York, abstracionismo que apareceu como fruto das incursões do Surrealismo,
que acolhia também as experiências da pintura automática. Pollock até hoje é o seu
exemplo de maior expressão. Segundo Giulio Carlo Argan (Arte Moderna, 1998) é o
traço livre, a esmo, o dripping (gotejamento)
como a negação da lógica, da representação, a busca por algo da essência. Além de
filiada a essa corrente, podemos também adjetivar a capa do “Alucinação” como um
objeto integralmente pop, em consonância como as músicas do disco, cujas canções
tinham harmonias simples, compostas a partir de uma levada de violão folk e arranjadas
com uma pegada de rock, mas que eram inteiramente circunscritas à modernidade, à
vida da metrópole, à contemporaneidade, talvez a mais importante filiação estética
de seu trabalho. Abraçar a modernidade foi ao longo de toda sua vida uma posição
a priori, filosófica. Belchior jamais fez ou permitiu que alguém fizesse de sua
origem nordestina algo fadado ao conservadorismo ou ao exótico. Desde seu primeiro
disco pode-se constatar a modernidade como uma posição de partida. Além de citar
os modernistas Bandeira e Drummond, tratou ali de registrar a canção feita aos moldes
do que ficou conhecido como Concretismo, uma aposta arriscada, mas que resultou
talvez na melhor experiência feita nessa área, com a música “Máquina I” e “Máquina
II”, sua versão instrumental, com arranjo de Marcos Vinícius. O disco tem a cidade
de São Paulo como cenário, homenageada com a canção “Passeio”, em que diz: “A eletricidade
desta cidade me dá vontade / De gritar que apaixonado eu sou / Neste cimento, o
meu pensamento e meu sentimento / Só tem o momento de fugir no disco voador”. Poderíamos
citar várias canções em que deixa explícita sua opção por morar numa metrópole,
por fazer parte da cultura de uma cidade que irradia a produção, seja industrial
ou cultural para o resto do país. Em “Tudo outra vez” (“Era uma vez o Homem e seu
tempo”, 1979) ele canta: “Sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro/
O fim do termo “saudade” como charme brasileiro/ De alguém sozinho a cismar”. Ele
se lembra de sua província, mas adverte para as coisas da modernidade. “Eu vou ficar
nessa cidade, não vou voltar pro sertão” (“Como nossos pais”). Jamais citou a cidade
de Sobral textualmente. Dele não se poderia nunca esperar qualquer manifestação
no âmbito do bairrismo. Tirava sarro: “Pô! Esse negócio de ficar chorando, que quer
voltar pro Nordeste, aahhh, eu vou pro meu lugar… É melhor comprar logo uma passagem!”
Ah ah ah. Fazer a crônica carinhosa da província é muito diferente de ser provinciano.
Assim
como não se encontra nenhum verso ou palavra colocados de forma gratuita em suas
músicas, percebe-se que o uso do espaço gráfico, para ele, é igualmente precioso.
O vermelho sangrado “acidentalmente” nas letras da capa do disco tem sua gênese
no mundo da propaganda, das artes gráficas. Em seu trajeto criativo a capa e o encarte
pertencem também aos quadrinhos, à Pop Art das estampas de Roy Lichtenstein (1923-1997),
pintor americano que trabalhou a imagem das HQs, isolando um desenho para então
lhe dar um tratamento artesanal, de uma “outra” pintura. Recorro a Giulio Carlo
Argan, historiador da arte, crítico, ensaísta e político italiano (Arte Moderna,
1998) para resumir, com base em seu texto, que Lichtenstein marcou o mundo da pintura
ao traduzir a imagem da HQ em outra linguagem, ao tratar uma arte industrial de
baixo repertório e inseri-la em outro código, provocando uma reflexão sobre a cultura
de massa. Ele acolhe o “american way of life” sem críticas, trabalhando os itens do cotidiano em contraposição à arte moderna,
que valorizava a visão abstrata do artista. Belchior tinha interesse por essas questões
relacionadas com a cultura de massa, com as artes e os ídolos do rock inglês e americano
que tomaram de assalto o mundo ocidental e criou sua linguagem, cinema e literatura.
Tinha muitos livros sobre a Pop Art, sabia fazer a crítica de sua estética originada
e absorvida pelo universo da propaganda, de onde vieram vários artistas. Acrescento
que Lichtenstein também fez esculturas soberbas. Diria que são totens com formação
na linguagem gráfica, criados para a escala da metrópole.
Para
compor também o quadro de suas afinidades, devemos chamar para a roda Andrew Warhola
(1928-1987), ícone máximo da modernidade americana dos anos 1960, 1970, também publicitário,
ilustrador, pintor, cineasta, com incursões até na literatura. Conhecido como Andy
Warhol, é o polêmico e ousado criador da Mona Lisa do século XX – as serigrafias
coloridas do rosto de Marilyn Monroe, assim como as serigrafias de vários outros
ícones da cultura de massa: Liz Taylor, Che Guevara, Elvis Presley… Americano, filho
de operários emigrados do nordeste da Eslováquia para os EUA, Andy Warhol alterou
definitivamente a forma de reconhecer o belo. Recorro novamente à leitura de Argan
(Arte Moderna, 1998) para obter o sumo que nos interessa. Segundo o teórico, como
Lichtenstein, Warhol trabalhou como um técnico da informação, porém de forma um
pouco mais crítica ao “american way”. Seu foco também está na cultura de massa,
em seus ícones, com atenção na obsolescência, na repetição cansativa da notícia
até seu esvaziamento, no seu impacto e dissolução na sociedade capitalista, que
vive absorvida numa grande manchete de jornal, em um escândalo por dia, seja ele
a pena de morte ou a queda de um ditador. Cito-o como um cronista da sociedade mercantil,
ao contrário de Lichtenstein. Pois bem. Warhol abandonou as artes plásticas para
se dedicar ao cinema; foi também o manager
da banda Velvet Underground, que tinha como autor principal o cantor e poeta
Lou Reed, figuraça do underground novaiorquino. Em boa parte era esse universo pop
que compunha a fruição artística de nosso autor. Seus símbolos, objetos de desejo
formavam a matéria prima de muitos textos. Vê-se como é difícil separar o compositor
de canções do artista plástico. De uma forma ou de outra estão sempre imbricados.
Para ilustrar sua paixão pelos signos da cultura americana cito versos de “Ondas
Tropicais”, do CD “Baihuno”, música sua em pareceria com o talentoso compositor
Caio Silvio Braz, em que recorda sua infância: “Na província… Hollywood / Eu era
um Brando farsante / Na luz azul do cinema… / Descia sobre mim aquele feixe de luz
/ Outra Via-Láctea, escada de prata/ Subia à Capital: Mondrians, jazz, boogie-woogie,
blues…”. Trata-se de um roteiro sentimental pela provinciana Sobral de sua infância,
mas incluindo nele o cinema e citando Marlon Brando, além do quadro Broadway Boogie-Woogie,
do neoplasticismo de Piet Mondrian, inspirado em suas primeiras noites de jazz clubs
em Nova York.
ARS LONGA, VITA LONGA | Haveria ainda outros a glosar, entre os quais
os pintores russos Wassily Kandinsky (1866-1944), cujas composições pictóricas ele
gostava de decupar; Marc Chagall (1887-1985) e sua pintura onírica, e o pintor espanhol
Joan Miró (1893-1983), que conseguiu voltar a ser criança. Tinha adoração por todos
eles. Observe que foram todos longevos, fato que para ele representava uma curtição
particular, lembrando sempre da frase dita por Miró: “Pintura é coisa para velhos!”,
uma alusão à necessidade da prática, do domínio das técnicas que só vêm com o tempo.
Talvez seja interessante também acrescentar sua admiração pelos artistas que conseguiam
ficar bem velhinhos, um claro sinal de vitória contra as intempéries da vida. Sua
paixão pela pintura o fazia encarar a coisa com pragmatismo. Lembro bem que certa
vez me disse: “Gracão, eu não teria muito como desenhar, mas se eu praticar todo
dia daqui a uns dez anos estarei arrasando!”. Com relação às artes plásticas, há
que se notar uma diferença em sua postura. Diria que nessa área ele “trabalhava”
com um sentimento inteiramente lúdico, voltado para o prazer. Não havia nada de
social. Não acontecia como na música, sua fonte de sobrevivência. Era uma prática
plenamente amadora. Bem humorado, sua predileção era desenhar rostos, figuras quaisquer,
tipos onde se poderia notar algo de engraçado. Gostava de dar nomes aos tipos, enquanto
podia lembrar velhos professores de seu tempo de criança no Liceu de Fortaleza,
contar um episódio engraçado, uma maldade, uma brincadeira. A criação dos nomes
para as figuras era outra curtição, geralmente uma zombaria pela originalidade dos
batizados ou um comentário qualquer sobre a grandeza e a miséria da existência,
sobre a “Divina Comédia Humana”. Ars gratia
artis.
Lichtenstein
e Warhol trabalhavam, a seu modo, parodiando ícones da cultura de massa. Cultivavam
em suas peças um diálogo com outras escolas da pintura por meio de citações a grandes
obras de outros pintores. Trata-se de um fenômeno usual nas artes, o referir-se
e dialogar com outros artistas por meio de citações, quando a arte comenta a si
mesma criando uma metalinguagem. O universo da pintura é pontilhado por muitos autores
que fazem uso dessa prática. Aqui não poderia deixar passar o paralelo com Belchior,
que também cultivava admiração pelos ícones do cinema, da música, da pintura. Fazia
em suas músicas uso recorrente da criação de outros autores citando sem pudor versos,
títulos de livros, de cinema, poesias, aforismos etc. Nas conversas, entre piadas
e tiradas espirituosas de outros autores citava sempre uma frase que atribuía ao
escritor, dramaturgo e jornalista irlandês George Bernard Shaw: “Não posso entrar
para um clube que me aceita como sócio!”. Gargalhadas. Coerente com o que dissemos
acima, geralmente seus preferidos eram os escritores e poetas europeus, mas em muitas
canções podemos encontrar também o uso de títulos de livros e versos de poetas brasileiros,
especialmente a dupla modernista Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, e
o grande João Cabral de Melo Neto, criador de uma linguagem própria devido ao rigor,
exatidão e distância com que usava as palavras. Observando o corpus de sua produção, esse fato se dava
de forma tão frequente que muitas vezes se assemelhava ao processo da collage nas artes plásticas. Pode soar redundante, mas isto só era possível
por ser ele possuidor de um vasto repertório intelectual, fato que é responsável
diretamente pela qualidade e alto calibre criativo de seus trabalhos, tanto na música
como na pintura. Aqui rapidamente abro parêntesis para rápida digressão. Defendo
a ideia de que Belchior, Caetano Veloso e Chico Buarque formam um relevante triunvirato
de autores cuja produção letrística e literária extravasou o âmbito da acepção puramente
cancionista, musical. Isso se deve ao fato de que os três são poetas de muitos recursos,
bem acima do universo que caracteriza a criação na canção popular no Brasil e no
mundo. Nos EUA, por exemplo, poderíamos traçar um paralelo com a presença da obra
de Bob Dylan. Diria ainda que, dos três, analisando as obras num voo panorâmico,
não acadêmico, Belchior com sua “word music” está situado no extremo mais pop, mais
roqueiro. Isto porque, quando se trata da crítica social e política, Belchior afia
suas palavras de forma mais direta e contundente, mais irônica e sarcástica. Por
exemplo, em “Dandy” (“Melodrama, 1987”): “Mamãe, quando eu crescer, eu quero ser
rebelde/ Se conseguir licença do meu broto e do patrão/ Um Ghandi dandy, um grande
milionário socialista:/ De carrão chego mais rápido à Revolução!”. Caetano parece
apresentar suas canções a partir de uma perspectiva de brasilidade que deseja construir
um país mais moderno, menos careta e mais altivo, e nisso mantém intacta sua postura
tropicalista, irreverente, sempre no front.
Chico, grande melodista, escritor e poeta, essencialmente um mestre, situa-se num
ambiente onde musicalmente há menos atrito devido sua formação e identificação com
o universo do samba. Cada um deles extremamente político, à sua maneira. Um luxo
para o país. Quando falo de múltiplos recursos me refiro à qualidade do repertório
e o talento para uso do mesmo. Cito o trio, ainda, do ponto de vista da quantidade
produzida e da manutenção da força criativa ao longo da obra, do trabalho que resiste
à análise do tempo. Ao ser dotado de uma formação de alto repertório, Belchior,
por sua forma peculiar de usar esses recursos e por suas preferências, acabou criando
uma obra de peso em forma e conteúdo. Trago mais uma vez, para reforço dessa tese,
a lembrança de poucas, porém boas provocações que ele fez aos grandes da MPB em
suas canções, incluindo entre eles também Gilberto Gil.
Neste
ponto, devo acrescentar que estou apenas tangenciando um aspecto tão complexo quanto
determinante para a análise do discurso nas canções de Belchior, fenômeno que foi
estudado a fundo e com brilhantismo pela professora de Linguística, radialista e
pesquisadora Josely Teixeira Carlos em sua tese de doutorado na USP, trabalho desmedido,
que analisa o diálogo polêmico instaurado por Belchior com artistas da MPB do quilate
de Caetano, Chico, Roberto, Raul, dentre outros. Você pode chegar a ela por este
link: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-07102014-121114/pt-br.php A tese escrita por Josely Teixeira (que prossegue
o seu trabalho de mestrado no qual traça um largo painel dos investimentos interdiscursivos
e metadiscursivos nas canções de nosso autor, do diálogo que ele cria com as outras
artes e com sua própria: www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8767/1/2007_dis_jtcarlos.pdf)
traz contribuição decisiva à obra de Belchior, cuja presença em fortuna crítica
é ainda pouco estudada e difundida. Trata-se de um trabalho que visa à completude
da análise de sua obra, com o mérito de apresentar ao público o verdadeiro lugar
que Belchior ocupa na música e na moderna cultura brasileira. Isto não é pouco.
Aliás, trabalhando dentro de um “Universo da emoção barata”, como ele se referia
com frequência ao mercado musical e às canções sempre em voga nas rádios, Belchior
por mais de uma vez deixou claro para aqueles críticos desatentos, por ignorância
ou por implicância com seu “canto torto”, que sabia qual era o seu lugar. Deve-se
destacar que o território cultural onde vicejam os sucessos de artistas efêmeros,
hoje muito menor pelo expressivo encolhimento da indústria do disco, não é dado
a abrir espaço para criadores que pautam suas presenças numa clave acima da mesmice.
Nesse quadro causa surpresa o sucesso de Belchior nos anos 1970 e 1980, uma figura
sem a embalagem adequada à TV e ao “show
bizz”, que conseguiu por meio de sua poesia marcar a história de sua geração, talvez
até de gerações. Depois de sua morte, os shows, discos, bandas novas que se dedicam
ao seu repertório, toda movimentação cultural em sua homenagem feita em programas
de rádios universitárias, um deles na Rádio Universitária de Fortaleza, em que Josely
Teixeira também ocupa espaço com a divulgação de sua obra indicam que ele deixou
sulcos profundos. Cito também a aguardada biografia de Belchior, uma aventura tocada
com paixão e muito fôlego prestes a ser concluída, com a qual Jotabê Medeiros, escritor
e jornalista especializado na área musical traz para o centro das discussões a obra
e a vida do bardo cearense. Soa oportuna a vontade de transcrever o texto de uma
canção sua cujo título é exatamente “Conheço o meu lugar”, gravada no LP de 1979,
com o belo título de “Era uma vez o homem e o seu tempo”.
“O
que é que pode fazer um homem comum, neste presente instante / Senão sangrar, tentar
inaugurar a vida comovida / Inteiramente livre e triunfante? / O que é que eu posso
fazer com a minha juventude / Quando a máxima saúde hoje é pretender usar a voz?
/ O que é que eu posso fazer, um simples cantador das coisas do porão / Deus fez
os cães da rua pra morder vocês / Que sob a luz da Lua nos tratam como gente, é
claro: aos pontapés! / Era uma vez o homem e o seu tempo / Botas de sangue nas roupas
de Lorca! / Olho de frente a cara do presente / E sei que vou ouvir a mesma história
porca / Não há motivo para festa, ora esta, eu não sei rir à toa / Fique você com
a mente positiva / Eu quero é a voz ativa, ela é que é uma boa / Pois sou uma pessoa
/ Esta é minha canoa, é nela que eu embarco / Eu sou Pessoa-a palavra pessoa hoje
não soa bem, pouco me importa / Não, você não me impediu de ser feliz / Nunca jamais
bateu a porta em meu nariz / Ninguém é gente, Nordeste é uma ficção, Nordeste nunca
houve / Não, eu não sou do lugar dos esquecidos / Não sou da nação dos condenados
/ Não sou do sertão dos ofendidos / Você sabe bem, conheço o meu lugar”.
DE MÃOS E IDEIAS DADAS COM PICASSO,
DUCHAMP E MATISSE | Mas voltando
à terceira margem, ocorre que tal como nas canções, Belchior também usava essa prática
da paródia, da citação nos seus desenhos e pinturas. Como “Exercício espiritual”,
como ele costumava brincar, também fazia muitas releituras, referências aos trabalhos
dos mestres como forma de aprendizado. Para tanto, dispunha de muitos livros de
arte para escolher as pinturas que serviriam de modelo com os quais “rivalizar”.
Nesse caso, recordo a paixão que tinha por Pablo Ruiz Picasso (1881-1973), paixão
que transbordava a pintura e se estendia à sua personalidade, sua fama de conquistador,
sua postura que se impunha como homem de vanguarda. Para ele Picasso era o gigante
entre gigantes. Diria que este é o pintor que mais o influenciou e está presente
em seus quadros, seus desenhos. Se tivéssemos que escolher apenas um nome para falar
do Belchior artista plástico este seria o do pintor, escultor, gravador, desenhista,
ceramista, cenógrafo, poeta espanhol. Teóricos da pintura colocam Henri Matisse,
Marcel Duchamp e Picasso como o trio que mais revolucionou as artes plásticas do
século XX. Aliás, não podemos falar de Marcel Duchamp, ícone da vanguarda francesa
e europeia, sem dizer que suas obras também estão citadas nas canções de nosso autor.
Belchior conhecia tudo desse trio, mas era especialmente ligado a Picasso, sua fonte
de estímulo. Não por acaso, estampou na capa do disco “Coração Selvagem” um desenho
que alude ao touro de Picasso, que este teria feito com apenas quatro ou cinco anos
de idade. E também, não por coincidência, para a capa de sua antologia “Auto - Retrato”
(BMG, dois CDs, 1999) deixou-se fotografar com uma capa, alusão imediata ao famoso
quadro “Autorretrato com capa”, que Picasso fez com apenas 15 anos. Conhecer os
autorretratos que Picasso fez ao longo de sua vida, até o penúltimo ano (1972),
com 91 anos, é uma bela viagem pelos movimentos e estilos desse pintor que marcou
a história da pintura, que passou por todas as escolas, que acrescentou novas iconografias
às artes plásticas, especialmente com os seus períodos azul, rosa e africano, e
o cubismo, ao lado de Georges Braque (1882-1963). Não poderia deixar de apontar
também a semelhança com o disco Self Portrait,
lançado por Bob Dylan em 1970, disco duplo e também uma antologia dos sucessos reinterpretados.
Em “Auto-Retrato” Belchior tem os arranjos feitos por grandes músicos, entre eles,
por exemplo, Ruriá Duprat, o filho do maestro que concebeu os arranjos do Tropicalismo,
Rogério Duprat. Grandes nomes, porém em várias músicas não o suficiente para evitar
arranjos equivocados, desnecessariamente rebuscados e alheios em linguagem ao universo
das canções do autor. Alguns parecem mesmo perucas musicais adaptadas às harmonias
simples de suas composições.
Na
capa do “Auto-Retrato” poderíamos dizer que ele está vestido como um pintor francês,
com capa e chapéu. Pode parecer exótico para um cearense, mas o truque é perceber
a coerência com o que ele desejava para si. Existe maior afirmação de autonomia
e liberdade do que inventar a si mesmo? Ele está de perfil, fotografado contra uma
parede inteiramente tomada por autorretratos de sua autoria - desenhos caricaturais
e também pinturas. Comparando o número de pinturas presentes neste duplo CD, vemos
que a esta altura da vida ele está bastante empenhado em dar voz, dar espaço à sua
pintura. É um caso bem raro no cenário dos cantores e compositores do Brasil. Como
nas capas de discos de Jazz, onde é comum encontrarmos retratos a óleo dos músicos,
ele ilustra a capa do folheto com um autorretrato feito em acrílica, a Picasso,
talvez o mais belo entre aqueles que conheci. O resultado é um objeto de extrema
fineza. Os dois discos têm como títulos “Pequeno perfil de um cidadão comum” (Belchior/Toquinho),
e “Pequeno mapa do tempo” (Belchior). Anterior ao último trabalho, “As caras de
Drummond”, de 2004, em que as ilustrações de sua autoria estão na ideia central
do trabalho, diria que ocupando o mesmo lugar da música, esta antologia, de 1999,
mostra a evolução deste desejo de se apresentar como artista plástico. As pinturas
e desenhos também têm destaque no libreto, compondo o layout com as fotos e as letras
das músicas. No libreto vemos diversos autorretratos, inclusive uma foto com o close
dos pincéis, lápis, canetas, tubos de tintas, instrumentos de trabalho em cima da
mesa do seu ateliê / escritório. Durante o período de composições para o disco “Melodrama”,
entre 1986 e 1987, por muitas vezes nos encontramos ali para passar as tardes, tocando,
cantando, conversando e rindo com suas piadas, eu e meu querido amigo compositor
Jorge Mello. Revendo o libreto, não posso me proteger dos mecanismos psíquicos involuntários,
da lembrança instantânea que pinça uma sensação de perda, aquela sombria vertigem
diante da impermanência. A foto em que ele está de costas para as estantes lotadas
de livros, acendendo o cachimbo, me remete a um comentário que fez certa vez, quando
fui visitá-lo, depois de uma viagem a Paris. Folheando os novos livros de pintura
ele comenta: “Tá vendo, Gracão, foi com isso que eu gastei meu dinheiro”. A antologia
do “Auto-Retrato” me força comentar ainda os textos de algumas canções que não se
tornaram muito conhecidas, gravadas já naquele período de pouca recepção de seu
trabalho. Falo de “Quinhentos anos de quê?”, parceria com seu amigo e compositor
uruguaio Eduardo Larbanois, “Balada de Madame Frigidaire”, uma quase paródia sertaneja
escrita com fina invenção e sarcasmo, e “Baihuno”, parceria com o talentoso compositor
Francisco Casaverde, em que ele, como sempre fez em toda sua obra, trata o preconceito
contra o Nordeste com verve e elegância capazes de fazer corar o mais envernizado
portador da síndrome.
Por
último, neste disco, devo comentar ainda sua paixão pela arte da caligrafia, arte
que cultivou com um silêncio de monge por todos esses anos. Signo mais evidente
do seu amor ao desenho e às artes gráficas. A história da caligrafia remonta à história
das civilizações e constitui um conjunto de técnicas dedicadas à “bela escrita”,
o seu significado em grego (Mediavilla, 2005). Nesta acepção nosso compositor surge
como uma personagem do romance de Umberto Eco, O nome da rosa. Era um prazer ouvi-lo falar sobre o assunto, sua variada
gama de estilos, a romana, a gótica, passando por 26 alfabetos caligráficos. Trata-se
de um mundo riquíssimo com nomenclaturas, ferramentas e técnicas que ele provavelmente
conheceu por meio de livros antigos, especialmente os religiosos, desde sua época
de adolescente como seminarista da Ordem dos Capuchinhos, na Serra de Guaramiranga.
Existe a caligrafia islâmica, a persa, a nepalesa, indiana, tibetana… Seu nome grafado
na capa pertence ao estilo “Chancelaresca”, usado pelos italianos. Os primeiros
modelos impressos desta escrita foram feitos por volta do ano 1522 e têm sua origem
entre os apostólicos da chancelaria do Vaticano. Belchior não logrou nas artes plásticas
o mesmo sucesso como compositor e cantor. Sua relação era de fruição, não de profissão.
Não era um desenhista nato, mas fez de seu desenho uma arte com linguagem própria.
Com gestos rápidos, característica dos intuitivos, achou sua expressão pintando
e desenhando rostos. Sobre exposições, conheço as que ele fez em Fortaleza e São
Paulo. O fato de não querer se desfazer das pinturas ou desenhos corrobora o que
digo. Não vendia seus quadros. Presentear algum amigo com um quadro ou desenho era
coisa rara. Às vezes, ele fazia troca com outros pintores. Possuía uma vasta coleção
particular de grandes pintores brasileiros, de quadros comprados ou presenteados
a ele ao longo da vida. Tão numerosa que não havia espaço no sobrado ateliê para
tantos quadros, que se amontoavam ainda mais a cada chegada de suas viagens. Nelas,
sempre fazia contato com os pintores, aos quais “encomendava” um retrato dele mesmo,
uma forma de sedução que o cantor famoso praticava. Esse hábito gerou um acervo
incrível de retratos dele, muitos feitos por grandes figuras do meio como Siron
Franco – uma pintura estupenda que ele usou no encarte de um disco. Vários desses
retratos foram usados como capas de discos de coletâneas de seus sucessos. Arrisco-me
a dizer que se relacionava mais com os pintores do que com os músicos. Recordo com
prazer de sua cortesia, ao me levar numa visita à casa e ateliê de Aldemir Martins,
no Sumaré, uma tarde especial na companhia de um pintor e desenhista extraordinário.
Pintura era mesmo coisa para velhos…
Há
que se cuidar de todo esse acervo deixado, pois ele era muito organizado, não perdia
nada. Deve haver uma quantidade grande de trabalhos que precisam ser preservados
e exibidos. Pensando nisso, me veio a ideia de sugerir ao governo do Ceará a criação
do Instituto de Artes Belchior. Um local de exposição e produção de shows, de palestras,
de gravações etc., a ser mantido pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado.
Vamos nos apropriar de sua arte, pois ela nos representa. Precisamos nos apropriar
de nossa produção cultural, amar e mudar as coisas que desejamos mudar. Proprietários
de rádios e programadores sabem que é pouco termos somente o valioso trabalho da
Rádio Universitária, independentemente de qualquer argumentação viciada e conformista
de caráter comercial.
Josy
Teixeira tem um texto delicioso em que fala de sua amizade com Belchior por meio
de seu interesse em aprender o Latim (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1881552-arquivo-aberto-aulas-de-latim-com-o-professor-belchior.shtml),
que ele conheceu provavelmente com o canto gregoriano e cultivou desde o tempo em
que conviveu com os frades. Conta quando ele a presenteou com uma Gramática de Latim,
uma publicação pouco encontrada e tida como a melhor do gênero. Pensando em terminar
com o latim, encontrei uma frase que ele aprovaria com toda certeza. Usada em ocasiões
e até em textos de canções ela é atribuída a Hipócrates, o conhecido arquiteto e
médico grego: “Vita brevis, ars longa, occasio
praeceps, experimentum periculosum, iudicium difficile”. Lá vai: “A vida é breve,
a arte é longa, a oportunidade é passageira, a experiência é perigosa e o julgamento,
difícil”.
Zé Ramalho e Belchior | 2000 www.youtube.com/watch?v=byry3g9xxsM
TVE Rio | 2003 www.youtube.com/watch?v=sEVDTv6osCU
Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Graco
Braz Peixoto (1955) é compositor, parceiro de Belchior em 14 músicas.
Artista convidado | Belchior (Brasil, 1946-2017)
Foto © Maria Luiz Thompson
Caricatura © Bel Mattias
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular
Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge
Mello e Josy Teixeira
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira
fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada
no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo
de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob
a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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