Ao lado do igualmente álbum duplo Antologia Acústica (1997), de Zé Ramalho,
pode-se considerar Autorretrato (1999),
de Belchior, os dois maiores acontecimentos da canção popular no Brasil nesta sofrida
década. São discos que confirmam a atuação constante de dois importantes artistas,
cujo trabalho destaca-se em meio aos frangalhos em que tem vivido nossa música nos
últimos tempos. Ambos deveriam ser reconhecidos como nossos letristas mais renovadores,
não fosse a idolatria banal (mescla de subserviência e iludida cumplicidade) da
crítica em relação ao mestre Veloso e seu bando de diletantes farsantes, que fraudaram
o que eles próprios chamavam de “linha evolutiva” da canção popular.
Tal
linha não se restringe a uma trilha erma, mas antes a uma ramificação de caminhos
tão extensos e diversos, que jamais poderia ser limitada à ação de uns doces bárbaros
ou outros marcadores de gado. É fato que a canção popular, como já afirmou Caetano,
é uma coisa de família, de bandos. Nisto erraram os cearenses, que nunca souberam
o valor do bem comum, e se desagregaram no calor da aventura do já vai longe Pessoal
do Ceará.
Hoje
se sabe que uma velha máxima mantém sua linha: torne o medíocre aceitável, para
que o medíocre lhe torne gênio. Portanto, a elegância é uma droga e o artifício
uma pérola degustada entre porcos. Como não há artifício ou mediocridade na obra
de um Zé Ramalho ou de um Belchior, saltamos da Tropicália para os afilhados atuais,
imprensando uma geração que deu enorme contributo para a tal linha evolutiva de nossa canção, sem que
a crítica desse por conta.
O próprio Belchior sintetiza o que se passou
com sua geração: “ela nunca teve um reconhecimento crítico. Teve que atravessar
um campo de batalha, um espaço de guerra de comunicação, a guerra civil brasileira. A geração de Chico e Caetano tinha um inimigo
posto à vista. O embate se tornou artisticamente interessante a ponto de se considerar
que eles foram militantes. Nós vivemos a distensão, que foi mais pálida.” Acontece
que essa distensão, responsável pela despersonalização geral em que esbarramos hoje,
foi sempre enfocada por Belchior, seu principal crítico.
Em página inteira que lhe dedicou a Folha Ilustrada de 24 de setembro último,
o jornalista Pedro Alexandre Sanches situa Autorretrato
como “uma nova afronta às eternamente perpetuadas expectativas de centro”, destacando
o estranhamento com que revestiu Belchior seu cancioneiro, e chega a falar em “geração
imobilizada”, embora não explique a adjetivação.
O que orienta a sensação de estranhamento
detectada pelo jornalista paulista é que Belchior tenha ido na contramão do vício
pelo acústico, colocando a sanfona de lado de um sintetizador (“Balada de Madame
Frigidaire”), casando efeitos eletrônicos com naipe de cordas (“Apenas um rapaz
latino-americano”), dando uma roupagem jazzística a um baião (“Baihuno”) etc. Para
isto, recorreu sabiamente a uma nova geração de músicos que souberam arranjar as
canções matizando sua contemporaneidade.
Com um repertório que abarca toda a sua trajetória
musical, desde “Na hora do almoço” até “Quinhentos anos de quê?”, somando 25 canções,
Autorretrato posta-se como o manifesto
vibrante de uma poética, que contraria seu tempo justamente por afirmá-lo através
de uma crítica severa, dotada não do niilismo sugerido pelo jornalista da Folha, mas antes por um corrosivo cinismo,
a linguagem mais aguda nesses tempos de ready
made, comemorações de descobrimento, vitrines, pastelarias etc.
Aos fãs mais fiéis, surpreende um arranjo
jazzístico dado pelos músicos Caito Marcondes, Benjamin Taubkin e Sylvio Mazzucca
Jr. para “Ypê” (“contemplo o rio que corre parado, / e a dançarina de pedra que
evolui…”), canção de um dos melhores discos de Belchior (Era uma vez um homem e seu tempo, 1979). Edson J. Alves mesclou percussão
e sax em uma estranha marcação bolerística para “Beijo molhado” (“Marylin, Greta,
Marlene, / deusas que amei com as mãos / na fumaça azul do cinema”), que se soma
à citação incidental de “Al di lá”, tradicional cançoneta italiana.
A Ruriá Duprat e André Abujamra couberam responsabilidade
extenuante: atualizar as canções tanto mais conhecidas quanto impactadas por seu
arranjo de origem. Certamente vem daí o estranhamento ao ouvir nova roupagem de
“Alucinação”, “Como nossos pais”, “Velha roupa colorida”. Não há purismo que não
se choque diante das mudanças rítmicas ali alcançadas. Mas recordemos o Belchior
que convidou as Frenéticas para cantar em latim em Todos os sentidos (1978). Esse deslocamento de expectativa lhe é natural.
A primeira luz se chama faísca.
Outros saborosos destaques nos arranjos vêm
assinados por Sérvulo Augusto – que abolera “Pequeno mapa do tempo”, temperando-a
com a sanfona de Oswaldinho –, o solene quarteto de cordas sob a direção de Rogério
Duprat (“Mucuripe”); a sóbria balada desenhada por Sizão Machado (“Brasileiramente
linda”); a suíte captada por Marcelo Dino, destacando com elegância os versos de
“Pequeno perfil de um cidadão comum”; a recriação fascinante de Sérgio Zurawski
para “Todo sujo de baton”.
A contemporaneidade não é somente o que vivemos,
mas o que despertamos, aquilo em que apostamos, por suspeita, intuição, ligação.
O sumo de nossas vidas é nossa aposta, risco, superação de obstáculos. Ser contemporâneo
nada tem a ver com a acomodação ao trono, carta de negociação, filiações articuladas,
festejo. O autorretrato de um artista é sua orelha decepada, sua fonte de risco
e insubordinação. Este é seu espólio queimante, o que de melhor tem para fustigar
seu tempo.
O que se realiza em Autorretrato é justamente o despertar de uma contemporaneidade. O disco
não se destacaria caso fosse apenas o repertório de um compositor com tantos anos
de estrada. O que nele avulta é que não se submete às receitas de mercado. Não há
comemoração (“não há motivo para festa”). Mesmo o contrato com uma grande gravadora,
deve ser entendido como o desdobramento de um trabalho sério. O comércio das almas
não é uma balada nova. As estradas vão e dão em lugar algum. A Tropicália terá dado
em Peninha ou em uma rala homenagem a Fellini?
As musas tanto caçam quanto cansam o espírito
das coisas. Creio que estamos todos cansados de um engano que soma toda a cultura
brasileira, nossa vida, sonhos, ilusões, lembranças. Os que sabem separar o joio
do trigo não se deixam cair em tanta ação. Os deserdados do parque serão sempre
os iludidos, a plateia do ventríloquo que nos faz crer o maior poeta. Não é fácil
para um artista em nosso tempo competir com a idolatria do marketing, o arrepio
da imagem. O que protagonizamos? Nossa derrota ou nossa afirmação ante o caos permanente
da existência?
Quem quiser – sentindo-se dono de si, adorável
ilusão – que ate (rodado sob a câmara
de um desatado cineasta espanhol) Gal Total
ao apadrinhamento de Zeca Baleiro, Transa
a Peninha, Chacrinha ao Concretismo, o elo freudiano de dois irmãos à linha evolutiva
da canção brasileira. Acabará chegando ao óbvio inaudito: “Nordeste é uma ficção”.
O que temos, com sua “pressa de viver”, esbarra na fragilidade de um entendimento
comum. Somos apenas o que somos. Errar é uma felicidade. Droga é afirmar apenas
o que se pode ser. O Autorretrato de um
artista é seu diálogo pleno com o abismo que seu tempo revela.
Meu nome é cem | 1981 www.youtube.com/watch?v=oakWcP5OxPA
Entrevista a Chico Pinheiro | 2005 www.youtube.com/watch?v=8tBSd9UYjcY
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta
e ensaísta, editor de Agulha Revista de Cultura
Este texto foi originalmente escrito em 1999
para o suplemento Vida & Arte, do jornal O Povo (Ceará) do mesmo ano
Artista convidado
| Belchior (Brasil, 1946-2017)
Caricatura ©
Claudio Teixeira
Imagens © Acervo
Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos
especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge Mello e Josy Teixeira
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO
SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO
SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 ACAMPAMENTO
MUSICAL
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica,
sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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