A música popular brasileira perdeu, dias atrás, seu compositor
mais explicitamente comprometido com a poesia: o cearense Belchior. Não me refiro
aqui apenas à alta qualidade dos textos criados por ele para suas canções, mas também
à poesia que está nos livros e ele, como nenhum outro, trouxe para suas letras.
Sob o impacto da notícia de que o coração de Belchior havia parado de bater,
corri, assim como legiões de brasileiros, para reapreciar as canções do velho e
bom rapaz latino-americano. Isso me levou a perceber que Antonio Carlos Belchior
é o compositor brasileiro mais próximo dos poetas, com suas letras encharcadas de
poesia.
É óbvio — e dispensa comentários — que Chico Buarque, Caetano Veloso e numerosos
outros letristas da MPB citaram em suas letras ou converteram em música páginas
de grandes poetas brasileiros ou estrangeiros. Chico Buarque, por exemplo, musicou
João Cabral, baseou-se em Carlos Drummond de Andrade para compor Quadrilha e, em parceria com Edu Lobo, fez a trilha sonora
de O Grande Circo Místico, espetáculo baseado no poema homônimo
do alagoano Jorge de Lima. Caetano compôs Os Argonautas, que é
uma canção quase psicografada de Fernando Pessoa. Além disso, musicou Maiakóvski
e Augusto de Campos. Antonio Carlos Jobim, Gilberto Gil e outros musicaram poemas
de Bandeira.
Mas com Belchior a história é diferente. Além de tornar cantáveis poemas
inteiros, o autor de Como Nossos Pais estava sempre citando
em suas letras as palavras de grandes poetas. Reuni aqui alguns exemplos, que não
pretendem ser exaustivos, inclusive porque não reouvi toda a discografia do compositor.
E, claro, ainda que tivesse escutado tudo, certamente alguma citação sempre me escaparia.
A verdade é que Belchior, em meio a citações de filmes e artistas pop como
Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Luiz Gonzaga, incluiu em
suas letras poetas que vão de Dante Alighieri a Carlos Drummond de Andrade, de Maiakóvski
a Edgar Allan Poe, de Fernando Pessoa a João Cabral.
Comecemos pelas canções mais conhecidas. Em Como Nossos Pais, sucesso
na voz de Elis Regina, o trecho “Na parede da memória / Essa lembrança é o quadro
/ Que dói mais” remete tranquilamente ao poema “Confidência do Itabirano”, de Carlos
Drummond de Andrade, que termina assim: “Itabira é apenas uma fotografia na parede./
Mas como dói!”.
A belíssima Paralelas reverbera o poema “Coração
Numeroso”, publicado pelo poeta mineiro em seu livro Alguma Poesia
(1930). Drummond diz:
O mar
batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua
acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade
sou eu
sou eu
a cidade
meu amor.
Belchior, nessa canção dolorida, cutuca a mesma mágoa:
No Corcovado,
quem abre os braços sou eu
Copacabana,
esta semana o mar sou eu
O clima, insisto, é todo drummondiano. Do rico buquê de canções belchiorianas,
creio (é difícil decidir) que Paralelas é a minha preferida.
É também nela que o artista escancara a terrível contradição entre as coisas do
espírito e a acumulação capitalista: “E no escritório em que eu trabalho e fico
rico / Quanto mais eu multiplico / Diminui o meu amor”.
Na canção A Palo Seco, o título faz referência
ao canto andaluz sem acompanhamento — no puro gogó, como se diria no Nordeste. É
também uma referência ao poeta João Cabral de Melo Neto, que morou em Sevilha, Espanha,
apaixonou-se pela cultura andaluz, e escreveu um poema chamado “A Palo Seco”: “Se
diz a palo seco / o cante sem guitarra; /
o cante sem; o cante; / o cante sem mais nada”.
Na letra de Divina Comédia Humana, tudo é poesia,
a começar pelo título, que faz referência à Divina Comédia do poeta
florentino Dante Alighieri (1265-1321). No final surgem dois versos inteiros de
nosso parnasiano Olavo Bilac: “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / Perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto”. E o letrista segue, para concluir: “Enquanto houver
espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não eu canto”.
Na toada Voz da América, o poeta citado é Camões:
“Eu quero que a minha voz / Saia no rádio, pelo alto-falante / Que Inês possa me
ouvir, posta em sossego a sós”. Essa personagem, naturalmente, é um eco de “Estavas,
linda Inês, posta em sossego”, a Inês de Castro do quinhentista português Luís de
Camões, um dos poetas maiores de nossa língua.
Belchior gostava da intimidade com os grandes. Além de Drummond e Camões,
ele também dialogava com Fernando Pessoa. Em Fotografia 3×4, ele canta:
“De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa / E ver o verde da cana”. Na canção Conheço o meu lugar, o citado é o espanhol Federico García
Lorca. Em Tudo Outra Vez, aparece o romântico maranhense Gonçalves
Dias, quando Belchior fala em “a cismar”, lembrança de “Em cismar sozinho à noite”,
da célebre “Canção do Exílio”.
Em Coração Selvagem, além da referência a Clarice Lispector
no título, surgem o som e a fúria de Shakespeare: “O meu som e a minha fúria e essa
pressa de viver”. Há também casos em que Belchior põe melodia em poemas inteiros
lidos nos livros. Isso ocorre com Até Mais Ver, tradução
de um texto do poeta russo Serguei Iessiênin, contemporâneo de Maiakóvski. Trata-se
do poema de despedida de Iessiênin (o poeta suicidou-se em 1925, assim como seu
colega Maiakóvski, cinco anos depois).
Mas o verdadeiro tour de force do compositor
em seu contato com os poetas apareceu em 2004, quando Belchior publicou um CD duplo
com 31 poemas de Carlos Drummond de Andrade, aos quais ele adicionou melodias. Os
dois discos vinham acompanhados de 31 retratos de Drummond (um para cada poema-canção)
pintados por Belchior, que também era artista plástico. O nome desse projeto precioso
é As Várias Caras de Drummond.
Com formação em filosofia e religião (adolescente, recolheu-se durante três
anos num mosteiro de capuchinhos no Ceará) e vasta leitura de poetas, Belchior semeou
poesia por meio de suas canções. Aliás, em entrevistas ele deixava claro que sua
primeira preocupação estava mais com a poesia do que com a música. Quanto a isso,
não há dúvida. Quem escreve versos como estes, da canção Mucuripe (música de Fagner), só pode estar imbuído do mais
alto desígnio poético:
Aquela
estrela é dela
Vida,
vento, vela, leva-me daqui.
MPB Especial | 1974 www.youtube.com/watch?v=94-rOEVnyDg
TV Cultura | 1990 www.youtube.com/watch?v=co9DW1Jh94k
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Carlos Machado é jornalista, poeta e editor do Alguma Poesia
Artista convidado
| Belchior (Brasil, 1946-2017)
Foto © João Santos
Caricatura ©
Erik Fontes
Imagens © Acervo
Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos
especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge Mello e Josy Teixeira
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO
SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO
SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 ACAMPAMENTO
MUSICAL
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica,
sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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