segunda-feira, 14 de agosto de 2017

JACOB KLINTOWITZ | Ivald Granato & A Ordem Secreta


O GESTO E A ARTE | Muitas vezes, quando olhamos as pinturas de Ivald Granato temos a impressão de que elas foram feitas rapidamente. Algumas não podem ter demorado mais do que um dia para serem realizadas. E isto é a mais pura verdade. Elas foram feitas em exatamente 40 anos e um dia.
Nos últimos 40 anos a presença de Ivald Granato é uma constante poderosa na arte brasileira. Neste período ele fez praticamente tudo o que um artista pode fazer nos séculos XX e  XXI: pintura, desenho, escultura, objeto, cerâmica, instalação, performance, arte postal, obra em progresso, muralismo, livro de artista, intervenção urbana, jornalismo alternativo. É uma atividade incessante e de tal maneira participativa que se pode entender a história da nossa arte simplesmente observando o percurso do trabalho de Granato. Ou é difícil entender a história da arte brasileira sem levar em conta a presença de Ivald Granato.
Como artista, Ivald Granato é dotado de uma rara peculiaridade, ele organiza o movimento, o gesto e a energia, e o seu processo de criação é similar ao resultado da pintura, é um método particular feito de impulso enérgico e mergulho visceral na construção da figura. Observem como nas suas figuras – o cerne de sua obra – há um movimento incessante, como se o pincel tivesse frenética vida própria. E como a figura é construída sem a necessidade de um traço de desenho, sem o contorno, pois ela é determinada pelas relações dos volumes pictóricos internos.
Ivald Granato é um artista gestual. Ivald Granato é um artista que se joga inteiro no ato da criação. O gesto criador para Ivald Granato é também um movimento corporal, uma dança particular e única. E, paradoxalmente, Ivald Granato, um expoente da nossa vanguarda, ícone dos movimentos de contestação e renovação de linguagem, é um clássico, já que essa maneira de construir a figura, através das relações dos volumes internos, tem o seu exemplo máximo na obra emblemática de Paul Cézanne.

SÉRIES E SIMULTANEIDADE | As inúmeras exposições que Ivald Granato realiza anualmente, em vários países e, no Brasil, em galerias de arte, espaços institucionais e pequenos locais agregados a bares e lojas, são compostas de séries diferentes de pinturas, esculturas, objetos, cerâmicas e desenhos, realizados em esforços concentrados, num espaço-tempo único, universos independentes entre si.
Estas séries, amostragens de seu percurso, se relacionam diretamente com a maneira do artista trabalhar, com o seu envolvimento obsessivo com um determinado tema ou com uma determinada técnica, o que podemos chamar de "método Granato". O processo de criação de Ivald Granato é feito de movimentos expansivos nos quais o artista debruça-se sobre um tema e trabalha sobre ele exaustivamente. Este esforço concentrado, aparentemente inumano, sobre um único tema, é estimulado por uma só percepção visual que o artista persegue e termina por concretizar em séries temáticas. Muitas vezes estas séries são simultâneas, tão próximas estão no tempo. É como se o artista se deslocasse num eixo vertical e, a cada vez, constituísse um novo continuum espaço-temporal.
Desta maneira, num mesmo período, Ivald Granato produz várias séries de pinturas, desenhos e objetos que não se relacionam entre si, mas que mantém a unidade devido à escrita peculiar do artista, a sua indagação sobre o seu humano, e a uma abordagem direta, decidida e incisiva.
Estas exposições são uma maneira de conviver mais verdadeiramente com o processo do artista. Aqui a unidade é fornecida pelo estilo, pela abordagem reveladora das imagens do cotidiano e pela permanente indagação sobre a realidade que se oculta na aparência das coisas.
Ivald Granato é um artista com 40 anos de trabalho e pesquisa permanente e contínua. Neste período, Ivald Granato desenvolveu uma extensa obra de alta criatividade na qual incursionou nas mais variadas técnicas e procedimentos e que resultam em desenho, pintura, gravura, objeto, sistemas de multimídia, performances, cerâmica, escultura. Em todos estes campos, o artista foi capaz de marcar a sua produção através da originalidade das suas concepções, da rara percepção da essência de cada técnica e, como dado acessório, mas indispensável, por grande disciplina pessoal e uma vitalidade a toda prova.
O que resultou, finalmente, num conjunto estético, cultural e histórico, impressionante pela qualidade, oportunidade histórica e quantidade. É possível entender a história psíquica e a cultura brasileira através da ação de Ivald Granato nessas  décadas, tão importante é este trabalho e de tal  maneira ele foi capaz de expressar as inquietudes, a criatividade e os desejos do país. É esta realidade concreta, a monumental obra criada, que tornou o seu trabalho uma polaridade visual. O caminho brasileiro em direção a uma cultura de massa tem na sua obra uma linha de tempo que pode servir de paradigma.

IVALD GRANATO, GÊNIO, INVENTOR DO GRANATÊS | Existe uma coisa que o performático Ivald Granato faz excepcionalmente bem: ele cria situações, fatos e acontecimentos que se desmancham no ar. Neste momento, está aqui – podem apalpar, sentir com as mãos e com a boca – vejam todos, podem tocar, é um evento e um impacto imenso. E, logo, não será nada, salvo uma sombra, memória acinzentada do que terá existido neste sítio e que as novas gerações duvidarão, com justificado ceticismo, que alguma vez tenha acontecido.
Existe uma segunda coisa que o pintor Ivald Granato faz muito bem e é exatamente o antípoda da primeira: é a sua habilidade de tornar permanente, extenso, pesado, sólido, o que não existia antes; Ivald torna o inexistente concreto e sensorial. É um demiurgo ao tirar do nada uma cadeia de existências. Séries de pinturas e desenhos temáticos, objetos, esculturas, espaços expositivos em galerias, museus, restaurantes, lojas. Poderia ser um herói norte-americano, um bebê cuja nave pousasse entre nós, e que logo apresentasse os seus poderes, a velocidade, a invulnerabilidade, os sentidos aguçadíssimos. Um bebê que poderia pressionar o carvão tão completamente que ele se tornasse diamante. E assim é o artista Granato.
A terceira mágica do inventor Ivald Granato é a mais inacreditável, mesmo para os crédulos, como eu. Quem imaginaria que este artista, nascido em Campos, Estado do Rio, filho de um conhecido dentista local, com forte dose indígena na composição corporal, atleta de várias modalidades, multimídia, fosse capaz de realizar uma das mais raras façanhas da história: criar sozinho um idioma. É exatamente isto: Mr. Granato é autor de um novo idioma, complexo, expressivo, extenso, vivo. O granatês é uma invenção de Ivald Granato.
Estes três complexos sistemas linguísticos e cognitivos  desenvolvidos e mantidos por Ivald Granato,  seguramente devem lhe garantir um lugar na posteridade e uma página especial no álbum dos Heróis da Pátria. Quem dos nossos artistas pode se vangloriar de organizar e inventar três estruturas de comunicação e incomunicação, superpostas e simultâneas?
O primeiro encontro com Granato é sempre impactante: ele  tem o tronco desenvolvido como se praticasse luta-livre, o cabelo é curtíssimo, cortado rente, pousado na cabeça como um casquete. Os braços vigorosos movimentam-se o tempo todo, livres e felizes. É de estatura baixa. Brasileiríssimo no olhar brejeiro, na convicção de que tudo pode ser resolvido e na alegre desenvoltura com que trata os humildes e os poderosos. Fala com todos numa perfeita mistura de granatês e português, com a naturalidade dos poliglotas habituados aos cenários internacionais. Nas grandes ocasiões, quando veste terno, a roupa ajusta-se à perfeição ao corpo musculoso. Na sua incessante movimentação corporal, o terno como uma pele adicional, ele provoca certa inquietude: como um tipo tão familiar e nacional pode transmitir a repentina impressão de que dará alguns elegantes passos de tango?
Há alguns anos organizei uma extraordinária mostra de “Arte e Reciclagem”, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro.  A importância do tamanho do evento é registrada porque nos fornece dezenas de testemunhas para o que então se passou. Estávamos numa roda de conversa vaga e aleatória, Roberto Magalhães, Tunga, Lygia Pape, Claudio Tozzi, Rubens Gerchman e eu, quando chegou, cada um de um ponto cardeal, norte e sul, Artur Alípio Barrio e Ivald Granato, dois históricos vanguardistas da nossa arte. Uma alegria só, muitos abraços e beijos. Que momento, crítico e artistas, boa parte da vanguarda brasileira, no Jardim Botânico, à luz do céu azul carioca.
Ivald Granato, calça jeans azul, apertada, camisa de gola olímpica, justa, de um verde desbotado. Tênis. Óculos escuros, armação de tartaruga branca. Sorriso aberto, espontâneo. Cerca de 45 anos.
Ivald Granato- Barrio, que schleper, turrugado. RRRRRRRRR. Turrugado. Ai, maniporlé. Uh, uh, uh! Uhrru. Hahá. HI.Hi.Hiiii!. Soltinho, soltinho. Molinho. Molinho. Nestes gestos, papum. Cigarras. Um grande papun. Mestre Jacob, papunzanzão. Eihn?
Artur Alípio Barrio, macacão de jeans, camiseta gola olímpica de mangas curtas, tons de azul. Sandálias trançadas, com dedos parcialmente descobertos. Cabelo encaracolado, rareando, castanho já manchado de branco. Bolsa grande, estilo feira livre, em vários tons, pendurada no ombro esquerdo. Cerca de 50 anos.
Artur Alípio Barrio – HIHIHIHIHIHI, Granato!!!! Rapaz, gugugugu. Ri. RRRR. Há,há. Zum, plus. Que barra. Tum. Tumtum!!! É meu caro, tumtum! Tam!! E papum, papum, papum!!!!! Umumumumumum!
Barrio já devia conhecer o granatês. Os dois se abraçaram, amigos e companheiros de trabalho.

Roberto Magalhães, magro, cerca de 1,78 m, um pouco curvado, calças jeans azul escura, camisa lisa de mangas curtas, cinto marrom com cerca de 20 cms sobrando na cintura, sapatos marrons desbotados.

Roberto Magalhães – Rapaz, eu não entendi nada, uma só palavra. Não sei nada do que vocês falaram.
Ele e eu acabáramos de conhecer o granatês, este novo idioma gerado em São Paulo. E, desde então, em muitos anos de convívio, Granato demonstrou-me facetas de seu idioma. Muitas vezes, são palavras absolutamente idênticas às da língua portuguesa, mas o seu significado é inteiramente diferente. É uma espécie de idioma de um só indivíduo, pois não consegui descobrir mais ninguém capaz de dialogar em granatês. É raro um artista capaz destes feitos. Mas Ivald pautou a sua vida pelo engajamento no contraditório e no excêntrico.
Coisas que desmancham no ar e não deixam vestígios? Vou contar uma história e me basearei no meu arquivo de época e no meu testemunho ocular, pois eu estava lá. Trata-se do evento chamado de “Mitos vadios”.
O longo alcance dos meios de comunicação é capaz de criar notícias onde os fatos são mínimos. Vivemos a possibilidade da voz das minorias e dos fatos que não aconteceram. Uma bem orientada campanha jornalística pode criar crises políticas, movimentos culturais e lideranças. É possível, certamente, que estas criações tenham uma vida limitada. Mas isto se deve, principalmente, ao choque de interesses entre facções adversárias. Salvo evidentemente, quando a realidade é tão notável que a tarefa mistificadora é quase impossível. Como, por exemplo, nas derrotas militares ou no custo de vida.
Num domingo, finalmente, aconteceu o muito anunciado “Mitos Vadios” (criação, controle de qualidade e coordenação de Ivald Granato, estacionamento da Unipark, rua Augusta, 2918, na cidade de São Paulo), 5 de novembro de 1978. Tratava-se de um grande happening que pretendia contestar a 1a Bienal Latino-Americana e o seu tema, “Mitos e Magia”. Em que se constituiu o episódio?
O episódio se compôs da presença de alguns artistas que se “manifestaram”, alguns espectadores, na sua maioria absoluta, jornalistas, marchands e figurantes habituais das inaugurações. Os artistas principais foram Ivald Granato, Hélio Oiticica, Claudio Tozzi, Ana Maria Maiolino, José Roberto Aguilar, Antonio Manuel, Júlio Plaza, Olney Kruse (mandou só a obra), Regina Vater, Portilhos e Ubirajara Ribeiro. Os dois últimos, surrealistícamente, também participaram da 1º Bienal Latino-Americana de São Paulo. E o que disseram e propuseram estes artistas?
Hélio Oiticica, por seus títulos, a principal presença midiática,  fantasiou-se de sunga, sapatos prateados estilo Boris Karlof nos seus filmes de terror mais explícito, jaqueta cor-de-rosa, rosto maquiadíssimo e peruca feminina. Depois, desfilou entre o pequeno público, fez trejeitos com a língua (imagino que fosse uma paródia erótica) e, com a ajuda das mãos, sacudiu os órgãos genitais para o público. Após esta contundente crítica social subiu num pequeno muro, montou a cavaleiro e ficou à disposição para novas opiniões sobre a arte e o seu circuito, enquanto continuava, em ritmo mais acelerado, a fazer movimentos com a língua.
José Roberto Aguilar, com uma espada japonesa reproduziu ou inventou a feroz “Luta do samurai”, quando investiu contra bonecos apelidados de Omissão Cultural, Bom Gosto, Pacote Cultural e Crítica Colonizada. Curiosamente, Aguilar é o artista que fazia vídeo-cassete com equipamento importado e que raramente os apresentava ao público, uma vez que não existiam locais apropriados para a exibição, já que o Brasil não produzia estes equipamentos.
Júlio Plaza distribuiu pequenos papéis com slogans contra a arte, o circuito de arte e a crítica de arte. A marchande Mônica Filgueiras vibrou com os slogans, especialmente o sobre a crítica de arte e me perguntou: e este – “a crítica de arte é o preservativo da arte” – o que você acha?  Não gostei de “arte e “arte”, tão próximas entre si. Quase me propus a refazer o texto e torná-lo mais literário. O que respondi, seu curioso? Que eu prefiro julgar pelo conjunto da obra.
 Ana Maria Maiolino colocou numa pequena mesa um saco de feijão e outro de arroz, amarrou-os com uma fita preta e chamou-os de “Monumento à Fome”. E, como extravasa criatividade, aproveitou um pedaço de parede para pendurar rolos de papel higiênico de cores diferentes, jornais e uma grossa folha de papel. Provavelmente um ácido comentário alusivo aos hábitos de higiene da humanidade.
Ubirajara Ribeiro escolheu cinco famosas obras de arte, imprimiu-as e fez com elas tiro ao alvo. Desta maneira, o público poderia destruir as imagens. Desmistificando a arte (é claro que a Mona Lisa estava entre as cinco escolhidas) num gesto que se repete ad nausea, há várias décadas, desde que Marcel Duchamp pintou bigodes numa reprodução impressa da Mona Lisa. Ubirajara acrescentou a este gesto, os conhecidos “alvos” do artista americano Jaspers Johns.
Ivald Granato, fiel à sua liderança, fez uma performance estelar para afirmar  que o seu nome não era Ciccilo Matarazzo, fundador da Bienal de São Paulo, do Museu de Arte Moderna e do Museu de Arte Contemporânea. O que nos espantou e chocou gravemente, pois tínhamos a esperança de que ele fosse o próprio Ciccilo Matarazzo.
Antonio Manuel, também, presente, felizmente não ficou nu, não botou ovos, nem se sentou num ninho, performances anteriores no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o belo prédio concebido pelo arquiteto Redy, que o tornaram justamente famoso, entre nós. Isto foi o principal. Outros artistas, enfim, com menor talento dramático, tiveram atuação menos destacada.
Quanto à questão do mito... Parece que não foi desta vez que Jung, Cassirer, Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, Mircea Eliade, receberão uma contribuição mais eficaz. Quanto a critica à Bienal de São Paulo, pareceu-me interessante: como poderia a Bienal de São Paulo concorrer com a expressividade ideológica de Hélio Oiticica? E, quanto ao próprio mérito intrínseco do acontecimento, caberá ao tempo estabelecer a justa valoração.
De todos os presentes, o mais radiante, alegre, descontraído, feliz, era justamente o Ivald Granato, que teve a idéia e foi a presença mais emblemática. Talvez o Ivald Granato fosse o próprio Mito Vadio. Dez anos depois, num de seus gestos habituais de alegria e generosidade, o Granato resgatou e me presenteou uma foto de época, em que eu caminhava entre os mitos vadios, levando pela mão a minha filha Danielle, de quatro anos de idade.
Este texto procura resgatar do limbo esta história que se desmanchou no ar.
Que personagens são estes, musculosos, o corpo estendido no limite da tensão, retesados no movimento e relacionados com imensos planos de massas? Seres humanos em transição. Na época, a gravadora e professora Anna Letycia apontava como uma novidade na nossa arte. Um claro enigma, pois eram guerreiros de uma batalha formal. As massas onde transitavam, ora planos geométricos, ora objetos cotidianos, como um simples banco de praça, nada mais eram do que situações do contingente. Homens no começo de um percurso. No início, na década de 60, há exatos 40 anos, surgem estes guerreiros desnudos, solitários e afirmativos, já em cena aberta, protagonistas.
O que os distinguem era a carga de dramaticidade, a postura de enfrentamento, a fisionomia, quando havia fisionomia, contraída e determinada. Esta dramaticidade o artista conservará para sempre, matizada pelo cromatismo, pelo humor e por uma ironia que se instala, paulatinamente, como uma espécie de verificação do mundo. Para sempre o drama, mas posteriormente, acompanhado pela aceitação do destino. Talvez o que mais expresse esta constatação do mundo seja uma série de intervenções gráficas, debochadas, com o título geral de “O artista sofre”. Mas o artista só admite este destino quando já aceito pelo circuito artístico e ele não tem a feição de lamento, mas de ironia.
Na década de 70, Ivald Granato já está consagrado como uma afirmação da arte jovem e um dos principais representantes de uma manifestação estética que faz do discurso verbal um de seus alicerces. Curiosamente é este artista que se recusa ao discurso verbal, que renuncia à lógica cartesiana e simboliza o seu pensamento com gestos teatrais e slogans retirados da fala expressiva popular.
Não se conhece de Ivald Granato a defesa teórica de suas posições estéticas. A sua confiança no público é um anticlímax do modernismo. Nele não há a hostilidade ao público, a certeza da rejeição, o desespero de não ser compreendido. Ao contrário, ele tem extremo prazer no contato e o multiplica ao infinito, numa série contínua de intervenções, performances, happenings, cartas, postais, cartazes, livros alternativos. Entre Ivald Granato e o público há uma evidente cumplicidade.
E não se trata apenas do público em geral, mas também o circuito fechado de arte, com os museus, críticos de arte, jornalistas, comunicadores, todos parecem aceitar este jovem rebelde que prefere a brincadeira, o jogo, a desmistificação das aparências, ao discurso de convencimento. Os recursos utilizados pelo artista sempre pautaram pelo uso estrito dos consagrados no contexto artístico.
Ao desgaste de algumas convenções que se restringem ao consumismo, e ao desgaste da arte conceitual causado pela indiscriminação do uso e pela superficialidade ideológica, Granato preferiu seguir a trilha objetiva da linguagem. A ação do artista tem o caráter afirmativo do respeito à tradição. Granato renova dentro da história da cultura.
Existe também na atitude de Granato a confiança e a euforia do artista em harmonia com o seu trabalho. Ele não se lamenta e não faz parte da imenso contingente que espera do estado a solução das questões objetivas de incentivo e manutenção da arte e dos artistas. As suas paródias têm como núcleo central a independência e a certeza de que a única solução para a arte é a própria arte: “Adote um artista. Não deixe virar professor.” Ou “O músico”, “Manifesto-casamento”, “Lisérgico men”, “Manifesto marginal”.
Ivald Granato está vinculado ao universo da linguagem. A sua ojeriza ao mundo rural, entendido como herança do Brasil colonial e de produção de produtos primários, não se situa na esfera econômica, mas da linguagem. Ele não pactua com as músicas melancólicas do passado, com a imagem convencional na pintura, com o uso de tecnologias arcaicas. Ao fim e ao cabo, ele identifica na cultura de massas e na produção de astros uma qualidade do contemporâneo. Na década de 80 são comuns as suas brincadeiras, sérias advertências, utilizando ícones da cultura de massa. Joseph Beuys é o ícone de uma série de performances onde afirma que não é Joseph Beuys. E, no plano nacional, ele utiliza a filha do político Leonel de Moura Brizola, Neusinha Brizola, controvertida personagem em revolta contra o status quo, para também afirmar, “My name is not Neusinha Brizola”.
Granato reconhece e sabe o valor de um artista como Beuys, em muitos aspectos, da sua família espiritual. E sabe muito bem da revolta sem bandeira da filha de um político determinante nas últimas décadas dos caminhos do país. Mas ele pontua que é brasileiro e não alemão, e que é cultor da comunicação em massa, mas não se identifica com a simples revolta. O que é Ivald Granato, já que ele não é Joseph Beuys e nem é Neusinha Brizola? Ele é o artista que avança pela construção de uma linguagem compatível com a era das comunicações e da tecnologia, que conhece o seu papel num país ainda em busca de identidade e que, neste universo em construção e com forte carga de atraso, é um homem sensível e absolutamente dedicado ao fazer artístico. Não é por acaso que uma de suas frases prediletas na década de 80 é “Preciso me manter acelerado”.
A partir da década de 90, mesmo que a vida artística de Ivald Granato não se defina por décadas, mas apenas para situar minimamente na cronologia, o artista está de pleno domínio das várias técnicas que o seu tipo particular de ofício exige e, principalmente, tem o domínio expressivo dos meios sociais para realizar a sua obra. Ele transita com naturalidade entre espaços consagrados, como museus e importantes galerias de arte, e espaços profanos, como pequenos restaurantes, lojas de decoração e locais institucionais de cidades interioranas.
Nada lhe parece inadequado. É a sua obra que confere especificidade ao local e não o local que consagra a sua obra. A sua proposta de atuação, jamais colocada teoricamente, é exatamente antípoda ao pensamento critico de Marcel Duchamp que denúncia a consagração e o estatuto de arte conferida pelo templo museológico. Duchamp trabalha com a denúncia do caráter consagrador do circuito da arte, independente do objeto a ser considerado. Ivald Granato trabalha com a certeza de que a obra de arte consagra o espaço.
É a partir deste período que fica evidente o importante papel de seu percurso. Ele atua em três vetores. O primeiro é o do gesto expressivo, não cartesiano, no qual posiciona teatralmente as suas idéias. O segundo é a criação de obras de arte com suportes convencionais, nas quais exerce a sua maestria. O terceiro vetor é transformar o espaço banal em espaço de vivência estética. Ivald Granato ocupa o mundo.
Ele está fora dos padrões habituais, não constrange à sua obra e a sua intervenção aos pequenos guetos endógenos, mas escolhe para o seu palco a totalidade do mundo social. E, na sua trilha pessoal, estabelece uma sólida relação com o público, uma vez que não aceita a hostilidade ao público da arte atual. É preciso ter em conta, igualmente, que Ivald Granato não quer convencer ninguém de nada. Ele não pretende alterar a consciência das pessoas, não quer intervir na sua percepção da realidade, não pretende levá-las para qualquer sitio ideológico. Ele não faz proselitismo.
A arte de Ivald Granato é, de modo geral, dominada pelo humor, expressividade, rapidez, alegria. Em alta rotação ele passa da pintura para a performance, desta para o desenho e assim, infinitamente, num moto perpétuo. Ele já nos acostumou a este delírio do movimento. Ivald Granato é dotado desta razão interna misteriosa capaz de transformar as suas ações em artísticas. Dominado pela intuição, escravo de um impulso que o leva sempre, em eterna caminhada, o artista deixa fluir a sua alegria. É bem verdade que esta alegria, ou o furor de fazer, não esconde a sua fonte de dor, o desejo de dominar o tempo que flui e se esgota, para ele que se imbui da tarefa de fazer a reflexão sobre a arte contemporânea. É esta tentativa de entendimento que inventa a sua obra.
Não há aqui uma reflexão teórica, descritiva e objetiva. Como um verdadeiro artista, Granato experimenta a reflexão em si mesmo. Ele pensa no ato da ação. A sua fidelidade situa-se justamente neste desejo de tudo ver, conhecer e ser. E o ser é a sua obra e o vestir papéis e funções. Granato desarticula as idéias convencionais, desde a arte nos moldes mais tradicionais até a vanguarda contestatória, marcada pelo cacoete verbal e vinculação com a mídia.
Nesta metodologia particular em que é importante estar em trânsito, Ivald Granato é extremamente coerente. É preciso acompanha-lo e penetrar na sistematização de seu delírio. A sua é a arte da sistematização do delírio. Há método nesta loucura, como queria Shakespeare. Granato nunca abandona Granato. Ele manifesta a aparente falta de regras e o caminho que se faz no descaminho.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor de Agulha Revista de Cultura
Página ilustrada com obras de Ivald Granato
Foto de JK © Pedro Sgarbi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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