Tenho diante de meus olhos
a primeira estrofe de um poema de Mihai Eminescu sobre os autores inspirados de
sua língua, que a escreveram como um favo de mel, ca un fagure de miere. Abelhas-operárias que enriqueceram a herança
latina oriental. E, no entanto, minha pré-história de amizade com o romeno parecia
desmentir os versos de Eminescu. Tudo começou à minha revelia, com o primeiro álbum
de selos, na infância. Alguns formavam um sobrenome comum, “posta romana”, sem acento
ou cedilha, e o menino dava como certo que fossem italianos, da capital. Não suspeitava
ainda que nessa errônea classificação havia um acerto: os laços de uma sentida latinidade
na língua da qual me aproximava. Chegaram depois dois grossos volumes, socialistas,
da Academia Romena, que me clarearam uma ou duas coisas, como a precisa origem dos
selos. Tratava-se, porém, de uma paisagem sem música nem partitura, só com a lei
pétrea, surda, mosaica da sintaxe. Eu me sentia no vácuo, ou melhor, na iminência
de afogar-me diante da torrente de diacríticos, com que me defendia aos treze anos.
Decidi esquecê-la, preferindo as línguas que captava em ondas curtas. Meu belo aparelho
RCA não ouvia, entre tempestades e raios da estática, o menor sinal dos países romenos.
Eis que os ventos se abrandaram com o impacto do primeiro poema que li de Eminescu,
“La Steaua”, em edição bilíngue muito embora, que não me abandonou desde então,
no azul celeste da baía da Guanabara, ou no azul que desaba sobre a neve no mosteiro
de Orşova, com os Cárpatos ao fundo.
A travessia do século XX,
na acepção de Lucian Blaga e Guimarães Rosa, obriga a tornar-se romeno, a pertencer
a um ramo dessa variegada família. Teria sido possível habitar a fratura da cena
contemporânea sem as páginas desencantadas de Cioran? Como fechar um diagnóstico
da modernidade, líquida ou gasosa, se não se encontrasse o livro de Noica, As seis doenças do espírito contemporâneo?
Como traduzir a difusa visão do mito, se Eliade não houvesse vasculhado os pergaminhos
de Babel e visitado as regiões perdidas do mundo, para dar à luz uma nova formulação
do tremendum et fascinans? E se as vanguardas
romenas do século passado não tivessem florescido, havia de se perder uma das vertentes
de nossa visão de mundo, instrumentos de pensar e sentir a ausência que nos consome
e atravessa? Eu já fazia parte dessa família, embora a língua me escapasse, tão
próxima e distante, como o espaço que separa as constelações de Orion e Escorpião.
Na primeira viagem à Romênia,
mais precisamente a Craiova, nos idos de 2003, a língua romena operou um salto quântico
na minha noosfera. Nenhuma gramática seria capaz de agregar afetos, semblantes,
memórias cheias de frescor. A língua que antes parecia áspera como um deserto, com
sua vasta fileira de cactos e de espinhos diacríticos, aquela mesma língua cactácea
mostrou-se com toda a sua beleza. Favo de mel, estrelas de Alecsandi, harpas de
Eminescu: sereia que me enlaça no corpo da palavra. Se não me prendi ao mastro como
Ulisses, tampouco fechei os olhos. E aqui me encontro, senhores, sem defesa. Porque
o romeno é uma língua ardente, como os versos de Ovídio, meio-tom acima do latim:
na leveza das metafonias, cujos acentos cobrem, como gorros as vogais terminadas
em a para protegê-las do sereno da linguagem;
com as raízes de iotacismos e rotacismos que se espalham na terra latina em forma
de rizomas e tubérculos; na fértil quantidade de ditongos e tritongos, flores do
campo coloridas que dão ao romeno um brilho inconfundível.
Um
mar de palavras que se iluminam com a luz do sol. E apesar dos selos poşta română e da Arte de amar de Ovídio, aprendi nos livros de Coseriu que o romeno é
parte do tecido balcânico, antes de Roma, em continuidade com a Trácia, a Ilíria
e a Albânia, irmãs de meio-sangue, filhas de pais distintos, amamentadas por seios
iguais. Com a herança paleo-eslava aumentaram para mim as jazidas fonéticas da língua
futura, a que se soma o eslavônio, com seu conjunto de palavras, de impacto e beleza,
aureoladas de incenso, que embaça o vidro das vogais, como se ouvíssemos dentro
delas um baixo profundo que as pronuncia: palavras de fôlego breve, mas com grandes
surpresas, como um largo blagoslovenia,
recitado junto às portas da iconostase.
A língua que me pareceu vaidosa,
com trânsito genuíno entre o sagrado e o profano, a trocar de roupa com frequência:
ei-la com o hábito severo dos caracteres latinos, o desenho elegante do alfabeto
grego, o ouro portentoso e os ícones com que se revestem as letras cirílicas. Eis
uma língua que possui vasto guarda-roupa invisível. Seu corpo, sempre jovem, deixa-se
adivinhar pelo frescor da pele veludosa, olhos sensíveis, aprumo e elegância que
encantaram alfaiates-mestres de renome, dentre os quais Philippide, Puşcariu, Rosetti.
Quanto mais estudava a língua,
minha convicção era a de que se tratava de um sistema jazzístico, na tensão do sax
tenor com o contrabaixo, o piano e o clarinete, no improviso de um acorde previamente
acertado, que se reconfigura ao longo de compassos invisíveis. Um jazz entre sinônimos,
latinos e eslavos. Assim, o trompete quer frontiera
e as cordas, graniţa; os metais dizem
ora e a bateria, ceas; uns preferem rob, outros,
sclav; a guitarra diz vers, e o baixo responde stih. Poucas línguas conhecem tantas vogais
de timbre e coloração rimbaldianos. Poucas línguas abrigam tamanha diversidade,
a ponto de assinar um contrato ecumênico de base: palavras de origem turca, escuras,
livres, zombeteiras, descalças, que dialogam com as de origem latina ou eslava,
em concerto a três vozes que reúne os sinos do Ocidente, o abatetoaca do Leste e o muezim no minarete levantino: língua cuja trama
responde com delicadeza ao tear urgente e necessário da paz. Um fluxo de palavras,
como o delta do Danúbio, no fim do qual todas as palavras desaguam irmanadas.
Victor Eftimiu louva esse ecumênico ragtime em “Odă Limbii
Române”, os trajes coloridos, o que restou dos dácios, o encanto eslavônio, as torres
de Paris e de Istambul.
Essa ideia me convence até
hoje acerca do fascinante hibridismo romeno, entre o mosteiro de Sinaia e a igreja
de Stavropoleos, os inúmeros galicismos e um conjunto reduzido de palavras turcas.
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Imagino um poema entre Gherasim Luca e Tristan Tzara, que lance mão de palavras de origem turca, osmanlis e cumanas, para fazer uma espécie de magia, abracadabra de oito sílabas, aventura puramente fonética. E invento como se fossem grafites numa viela esquecida de Timişoara, um solo de jazz:
Babalâc balama baltag:
Bumbac bursuc butuc.
Papara pastrama pastuc
chibrit chiabur chilipir!
Taraba taron şi taraf:
Huzur lighean musafir.
Oh! Pilaf sandrama sidef:
trufanda, zambila, zuluf.
Com esse estranho sopro, talvez possa dizer como Leporello
madamina il catalogo è questo, eis o catálogo, senhorita, de meus amores
parciais, na coleção de selos poşta română. Eis o meu frágil repertório,
o favo de mel eminesciano, a partitura incerta de meu bebop. Catálogo que pressupõe não apenas ampla
oferta lexical, mas sobretudo um pacto contínuo de liberdade para unir, combinar
elementos dispersos, heterogêneos. Liberdade para criar encontros inesperados.
E, no entanto, devo dizer
que meu encontro mais surpreendente com a língua romena ocorreu em 2014, no Rio
de Janeiro, numa prisão de Bangu. Vou aos presídios para aumentar as bibliotecas
e abordar a leitura como fonte de liberdade e promoção da cidadania. Quando é difícil
romper a barreira do primeiro encontro, convido a todos para formarem um coro e,
feitas algumas tentativas, cantamos juntos, onde importa menos o resultado e mais
o processo. Depois vamos ao texto e ao debate. Um estrangeiro cuja origem desconheço
faz uma observação oportuna. Pergunto de onde vem e ele me responde como se chegasse
da Lua ou de um país inabordável. Insisto “sim, mas de onde? ” E ele responde, com
um gesto inútil: “de Braşov, da Romênia”. Digo em sua língua, sem esconder a surpresa:
“mas claro trata-se de uma cidade muito bonita!” Volto ao português, enquanto ele
se levanta, com um brilho nos olhos, caminha na minha direção, me abraça e beija
meu rosto. Talvez porque se reconciliou nos ecos de sua língua-mãe, nesse deserto
do cárcere, onde somos todos órfãos da língua materna, escondida, guardada, como
um segredo, ouro alquímico, língua muda e sagrada, capaz de salvar, inclusive no
cárcere. Digamos que se chamasse Ion e me disse um verso de Vasile Voiculescu que
fala de mel e de espinhos. A liberdade na língua e na prisão. Essa mesma liberdade
que a Romênia conquistou nas ruas de Timoşara.
Organização a cargo de Floriano Martins ©
2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor
da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela
(Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em
sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer,
tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu
seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob
a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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