I – A LÍNGUA E SUAS RAÍZES | Das altas planícies
da Hungria e do gênio de dois romancistas da Europa Central – parentes de Musil,
Mann e Broch – chegam ao Brasil Divórcio em Buda, de Sándor Márai, e Kadish
por uma criança não nascida, de Imre Kertész.
Mas, ao falar
de planícies e planaltos, dos aspectos pluriformes da cultura húngara, em momento
algum hei de tecer considerações de certo (e ultrapassado) determinismo geográfico,
ou (pior) linguístico e histórico para reduzir os matizes sutis que compõem a literatura
do século XX na Hungria. E, no entanto, eu gostaria de desenhar uma breve arqueologia
da relação que guardo com alguns nomes e ideias, daquele mundo. Começando pela língua.
Suas belezas e dificuldades.
Para muitos,
a opacidade da língua húngara impede o conhecimento mais amplo de sua literatura.
Há quem pense que o magiar seja das mais difíceis da Europa, como Paulo Rónai –
erudito, professor de latim em Budapeste, e que se tornou, por assim dizer, brasileiro,
tradutor da Comédia humana para o português, e de antologias de contos e novelas
da Hungria – chegou a dizer, em Como aprendi português e outras aventuras, que a
gramática húngara guardava “um emaranhado de opacos labirintos”. O fato de não pertencer
à família indo-europeia – sendo mais próxima do finlandês, turco e mongol –, causa
alguma estranheza, de início, como quem sente estar perdido, em terra de ninguém,
sem referências prévias, em meio a palavras definitivamente longas, irredutíveis
(ou quase) ao Dicionário do Ocidente, com vasta mobilidade frasal e delicada relação
entre substantivos e adjetivos, além dos complementos (inessivo, ilativo, elativo,
sublativo, superesivo, delativo, alativo, terminativo, adesivo, ablativo, e quantos
outros!). Comecei a estudar melhor a língua há aproximadamente um ano e meio, e
com pequenas interrupções. Ora otimista. Ora desesperado. Dediquei-me à gramática
de Sauvageot, Premier livre de hongrois e a mais uma série de ensaios lexicais e
etimológicos. Não fui além da (douta, talvez?) ignorância, de certa prática instrumental,
conseguindo, todavia, relacionar planos e contextos, a partir de pequeno vocabulário
e modos gramaticais.
Trata-se de uma
língua de força e beleza, equilíbrio e razão. E se um idioma fosse capaz de impedir
o conhecimento de sua literatura, seria lícito imaginar Shakespeare desconhecido
em Sumatra, Beijing, ou Helsinki, pois que o inglês se mostraria incompatível com
aquelas línguas e culturas para as quais seria traduzido? O argumento da impenetrabilidade
do húngaro, parece-me insuficiente, bom para encobrir – por inércia ideológica –
outras e mais complexas motivações de ordem política e cultural, que se modificam
a olhos vistos desde a queda do Muro de Berlim.
No Brasil, a
difusão da literatura húngara é a resultante do esforço de um punhado de tradutores
(Paulo Rónai, Paulo Schiller, Ildikó SUtö, Ladislao Szabo), que não conhecem apenas
o original, mas o ofício da tradução, dominando com mestria a língua de chegada,
bem como a literatura brasileira e portuguesa. Mas há todo um mundo a se fazer,
desde uma boa antologia da poesia húngara a outros esforços e mais freqUentes, como
a criação de um curso de língua e literatura húngara em nossas Universidades federais.
O primeiro (e
talvez último) grande sucesso de público foi Os meninos da Rua Paulo, (A Pál utcai
fiuk), de Ferenc Molnár, traduzido por Rónai. Esse livro causou impacto na minha
geração e na imediatamente anterior. Lembro de tantas páginas, e do terreno baldio,
o Grund, e do Clube, em que sonhavam os meninos, bem como de episódios árduos, como
as horas que precedem a morte de Nemecsek:
Abriu-lhes a porta. Todos entraram embaraçados, tímidos,
como quem entra na igreja, tirando os bonés antes de transporem a soleira da cozinha.
Quando a porta se fechou atrás do último, os demais já estavam à porta do quarto,
mudos, respeitosos, de olhos arregalados, olhando para o alfaiate e para a cama.
Nem isso fez o alfaiate levantar a cabeça; descansava-a no braço, calado. Não chorava;
apenas estava muito cansado. Na cama jazia o capitão [o menino Nemecsek], de olhos
abertos, respirando com dificuldade, do fundo do peito, com a boca aberta. Não os
reconheceu; talvez já olhasse para coisas que olhos terrestres não podem ver.
Tudo isso emocionou
minha primeira adolescência. Decidi escrever para Paulo Rónai, porque havia ressonâncias
entre aqueles meninos e o que eu vivera, em Niterói, dos oito aos dez anos de idade.
O terreno baldio. A fundação do Clube. E a guerra (de alecrim e manjerona) entre
facções rivais. O mesmo lirismo que aproximava os jovens do Brasil aos da Hungria.
Molnár não realizou
uma obra forte (como a entende Bloom), sendo preciso acolher uma série de escritores
húngaros, que segue desconhecida (por mim alcançada indiretamente), como os Petöfi,
os Török, os Szerb, os Ady e os Radnóti. Há muitas gemas preciosas, que parecem
dormir em profundezas abissais. Mas o problema – insisto novamente, e quantas vezes
mais seria necessário insistir? – não é de ordem lingUística, mas cultural.
II – O MAGISTRADO E AS RUÍNAS | O caso de Sándor
Márai explica bem o que vamos dizendo. Nascido em 1900 em Kassa, no domínio do antigo
império Austro-Húngaro, seus romances eram muito lidos nos anos trinta. Durante
o regime fascista de Horthy, Márai viveu períodos de exílio na Alemanha e na França,
até deixar o país em definitivo, após a chegada do regime comunista, em 1948. Seguiu
para o Canadá e fixou-se pouco depois nos Estados Unidos. Sua obra foi caindo em
forçado e absurdo esquecimento na Hungria. Perdido numa grave solidão, Márai decide
pôr fim à vida em 1989, na cidade de San Diego. Foi a editora Adelphi na Itália,
que começou a traduzir-lhe a obra, hoje inserida no catálogo das maiores editoras
da Europa e dos Estados Unidos. Como bem podemos ver, no caso de Márai, as razões
políticas foram largamente superiores às de ordem linguística.
O romance Divórcio
em Buda (Válás Budán) é uma pequena obra-prima. Livro de corte clássico, Mitteleuropeu,
cheio de passagens, mundos internos, grandes monólogos, geometricamente perfeitos,
grande agilidade narrativa, além de uma estranha e bela consistência. Num dos retratos
do protagonista, Márai funde a paisagem de Buda com os valores morais do Magistrado,
deslocados ou superados em tempos outros e graves:
Sentia a mesma intimidade genuína e a alegria que se
experimentam em família, na propriedade, quando observava, amparados por andaimes,
os nobres escombros da Igreja de São Mateus, aquela da coroação, quando contemplava
os edifícios públicos que se agarravam do alto das colinas como os antigos castelos
dos cavaleiros medievais, expressão em pedra e armadura do pensamento histórico,
e, atrás, os velhos bairros quietos e encolhidos, cujos nomes das ruas anunciavam
os antigos ofícios de seus moradores. Ele tinha algo em comum com tudo aquilo, sentia-se
estreitamente ligado àquele mundo. Não podia acreditar que aquele pensamento histórico,
expresso atemporalmente na fachada um pouco altissonante do castelo, tivesse entrado
em declínio. Se nesses tempos cada um resguardasse seu posto, se ele, o juiz, também
o resguardasse, se todos cumprissem seu dever, talvez se pudesse salvar à família
à qual pertencia, à qual jurara fidelidade, essa grande, imensa família!
Todas as suas
demandas e interpretações, tentativas de domar o real e superar os instintos, têm
muito do que se costumou chamar de Alta Modernidade – o de uma vasta tradição do
romance do século XIX, em que se retomam aquelas figuras e enredos, que agora, em
Márai, se dissolvem por completo. Mas tudo sem espalhafato, sem lançar mão de uma
teatralidade vazia e agressiva. Diz – pouco depois – o juiz Kömives:
Sim, segundo todos os indícios – e que indícios terríveis!
– o edifício da família estava desabando, as pessoas fugiam do lar decrépito e gelado,
de todoso os cantos surgiam falsos xamãs, profetas de modas detestáveis, que pregavam
uma “união camarada”, um “casamento experimental” e discursavam sobre a “falência
do matrimônio”. E Kömives odiava esses falsos profetas e seus seguidores, os cônjuges
em nervos em pandarecos, ou apenas acovardados, irresponsáveis, libertinos, que
um dia paravam diante dele com os olhos voltados para o chão porque não “aguentavam”
as obrigações e o peso do casamento.
Quase como a
igreja de São Mateus, em Buda, e seus castelos e palácios em ruínas. Temos como
que uma odisseia mental, espécie de reeducação burguesa dos sentidos, mas de uma
burguesia liberal, marcada por gestos de humanismo e desespero. Tudo o que se pode
perceber do juiz Kristóf Kömives, tentando a mediania clássica, a distância quase
olímpica e objetiva que se requeria de um alto magistrado. As sutilezas são importantes
aqui, alusões, remissões, que atingem o ápice na misteriosa visita do Dr. Greimer,
terrível e maravilhoso acontecimento, de uma narrativa noturna, eminentemente noturna,
feita de sombra e silêncio – inesquecível para o leitor mais exigente. Sándor Márai
representa hoje para mim não exatamente o drama da língua, da história ou do autor.
Mas o drama de uma literatura injustamente exilada, e dos grandes valores de uma
certa e perdida Modernidade.
Esses mesmos
valores reaparecem num romance que me é caro: Veredicto em Canudos (Ítélet Canubosban),
onde Márai se inspira na obra-prima de Euclides da Cunha, Os sertões (como já o
fizera Mario Vargas Llosa, em La guerra en el fin del mundo, 1981). Márai segue
a tradução inglesa, de Samuel Putnam, e se impressiona com a obra de Euclides (“o
livro é como a mata do sertão: a um tempo abundância e aridez”) e o genocídio que
a República recente perpetrou aos seguidores do Conselheiro, em 1896, nos sertões
da Bahia. Não será possível tratar desse livro, mas gostaria de acolher a parte
da nota final de Márai:
A lembrança da leitura [de Os sertões] era inquietadora.
Como se eu tivesse estado no Brasil (Sinto nunca ter andado por lá). Como se, com
a história de Canudos, Euclides da Cunha (morto há apenas sessenta anos) intentasse
mais do que narrar os acontecimentos da explosão anárquica que se deu na orla da
Região Nordeste no final do século passado. Porque a aventura selvagem de Canudos
se repetiu meio século depois em outras paragens.
Márai referia-se
a temas com os quais – do ponto de vista da história e da ideologia – não me vejo
de acordo, da leitura de uma anarquia ou de uma história que se repete. Mas ao tratar
de um genocídio feroz – dos canhões contra uma população indefesa, que se defendeu
com imensa coragem, infligindo grandes derrotas ao exército – não há como não abordar
a Trilogia de outro grande escritor.
III – TEMPOS OBSCUROS | Quando penso
em Márai concentro-me na reeducação dos sentidos e de modo imediato – neste cenário
difuso, impreciso e capilar da literatura húngara no Brasil – volto-me de pronto
ao belíssimo livro de Imre Kertész, Sem destino (1975), na versão de Paulo
Schiller, a partir do qual retomamos, em outra chave o que em Molnár era um excursus
lírico.
Seguimos para
uma adolescência áspera, de Kertész, que nasce numa família judaica de Budapeste,
em 1929. Deportado para Auschwitz, Buchenwald e Zeitz, com apenas quinze anos, em
1944. Passados pouco mais de doze meses, Kertész volta a Budapeste e vive como tradutor
(de Hofmannsthal, Nietzsche, Canetti, Schnitzler), libretista e escritor, refletindo
sua dramática experiência dos campos de concetração, a partir da qual elaborou três
belos romances: Sem destino (Sorstalanság, 1975), O Fiasco
(A kudarc, 1988) e Kadish para uma criança que não nasceu (Kaddis
a meg nem szUltet gyermekért, 1990). Por muitos anos, Kertész passou despercebido
até lançar o primeiro livro, ou melhor, até que este livro encontrasse formidável
acolhida na Alemanha.
Sem entrar em
questões, de ordem publicitária, cultural ou ideológica, eu gostaria de lembrar
como Kertész ampliou e consolidou aquela reeducação dos sentidos que se poderia
encontrar esboçada em Márai.
Das muitas possibilidades
de abordar (mas não de esgotar) o tema, vemos em O fiasco um indício para
fixar precisa e detalhadamente um espaço breve, que se define por uma série bizarra
de coordenadas espaciais de longo alcance, marcadas, todavia, numa espécie de microespaço,
como que desenhasse uma escala fora de proporção, para fixar a conquista do espaço,
numa tensão de proximidade e distância, intimidade e estranhamento, dentro de uma
crise narrativa vivida pela personagem do Velho:
Depois da poltrona do lado norte, partindo da estufa
revestida de azulejos (calculando-se o devido espaço), vinha outro espaço (menor),
depois a porta de vitral, para ser mais preciso, um vão do tamanho de uma porta
que por causa da falta de circulação do hall de entrada permanecia sempre aberta;
atrás dela um espaço, depois do espaço – já no canto nordeste do quarto-sala estava
o lado mais curto de um dos sofás, depois o canto, em seguida, já ao longe da parede
setentrional, a extremidade mais longa do sofá, espaço, um gaveteiro baixo, espaço,
finalmente vinha um outro sofá, cujo lado mais longo, entretanto, já se encostava
na parede ocidental, em sentido norte-sul, estendendo-se até debaixo da janela,
onde, ainda mais para o sul, se abria outro espaço, e depois uma mesa (mais exatamente
a mesa, aliás a única mesa propriamente dita do quarto-sala) se estendia, cada vez
mais no sentido sul, quase até o canto sudoeste, de impossível acesso, pois estava
obstruída pelo móvel localizado nesse canto, certamente uma peça não totalmente
desconhecida ao leitor atento.
Os mapas do mundo
e do pequeníssimo apartamento surgem sobrepostos, demarcando igualmente, além das
razões aludidas acima, certa experiência de cativeiro, que o Velho experimentou,
em campos de concentração, no qual dimensões mais vastas parecem brotar de ínfimos
espaços (como, aliás, tivemos ocasião de observar em muitos campos de refugiados,
fixando tais observações n’Os olhos do deserto).
Vale observar
como e quanto a voz narradora parece trabalhar numa espécie de caixa ou forma chinesa,
que dobra e desdobra, a cada instante, o discurso – vário e pontual – em que cada
ideia geral é cortada ou delimitada por outra de ordem particular e restritiva,
partindo de uma série de parênteses, parênteses de parênteses, e outros mais, abertos
para uma soma de interpolações.
Era em um desses prédios que o velho morava. Ele ocupava
um apartamento do segundo andar, do tipo kitchenette (um Quarta-sala, uma ante-sala,
o hall, banheiro, uma mini cozinha, 28 metros quadrados no total, alugado pelo Conselho
Municipal, com um aluguel que começou com 120 forintes, constantemente em elevação
– no ritmo dos aumentos de aluguéis de moradia –, até chegar aos 300 forintes, que
ainda não era muito) registrado temporariamente há décadas, com base no direito
conjugal (uma vez que seu registro permanente, ou seja, sua residência oficial,
como um parente de primeiro grau, correspondia ao apartamento de sua mãe, embora
ele jamais tivesse residido lá, nem mesmo temporariamente, pois tinha esperança
de que a velha senhora viesse a alcançar o limite máximo de sua vida, ainda considerando
que um dia chegaria o derradeiro acontecimento inevitável…) (em uma palavra, quando
apartamento ficasse vago em consequência do derradeiro acontecimento inevitável
e ele passasse ao velho por meio dessa artimanha) (se essa artimanha, como era esperado
– com base no direito consuetudinário –, fosse também aprovada pelo órgão municipal
competente) ( se bem que lá também se tratava apenas de um quarto, embora um quarto
bastante grande, localizado em um bairro nobre, com muito verde com muito conforto;
portanto, considerando-se uma troca, aquela residência – onde o velho fora registrado
em caráter permanente, ainda que jamais tivesse residido lá, mesmo temporariamente
– seria sem dúvida mais adequada).
Temos assim uma
redefinição do espaço, da página e do pensamento. Uma reconquista dos sentidos que
parece deitar raízes em outra (mais dura e anterior) experiência do jovem personagem
do livro Sem destino.
Auschwitz, Buchenwald
e outros absurdos forjaram a têmpora de novos sentidos e percepções. Para um menino
de quinze anos, o campo de concentração – com suas franjas terríveis – levou à espantosa
redescoberta do corpo:
Nunca imaginaria que tão depressa viraria um velho murcho.
Em casa, era preciso tempo, pelo menos cinquenta ou sessenta anos: ali, três meses
foram suficientes para que meu organismo ficasse no osso. Digo que não há coisa
mais torturante, mais deprimente do que seguir dia a dia, contar dia a dia quantos
de nós morreram. Em casa, ainda que não me ocupasse muito disso, estava em harmonia
com o meu organismo, gostava – por assim dizer – da máquina. Lembro-me de uma tarde
de verão quando no quarto fresco lia um romance excitante, enquanto a palma da minha
mão, numa distração agradável, alisava a pele distendia pelos músculos, bronzeada
de sol, com pelos dourados nas coxas. Agora, essa mesma pele pendia enrugada, pálida
e ressecada, cheia de erupções, círculos marrons, fissuras, rachaduras, rugosidades
e escamas…
Uma dramática
percepção das transformações, e da linguagem praticada pelo corpo, submetido a um
sem-número de provações. O peso da História. Seus fantasmas. E absurdos. Como interpretá-los?
Como salvaguardar-se desses males? E todavia, longe de reduzir o fato a mera ideologia,
Kertész revela o vigor dessa experiência no centro do fenômeno literário, evitando
aporias outras, reduções e seqUestros condenáveis, em que a literatura desaparece,
deixando em seu lugar uma herança extraliterária de escombros, gestos, palavras.
Nessa cognição da dor, o que surpreende é a lógica da sobrevivência ou de sua prática,
ultrapassando heroicamente limites que antes pareciam intransponíveis:
O frio, a umidade, o vento ou a chuva já não me incomodavam:
não me atingiam, não os sentia. Até mesmo a fome passou; continuava a levar à boca
tudo o que encontrava, tudo o que era comestível, mas distraído, mecanicamente,
como por hábito, por assim dizer.
Ao deixar o campo,
regressando para casa (regresso?, casa?), assistimos a uma espécie de drama da incomunicação
entre quantos estiveram ou deixaram de estar no Hades. Como voltar incólume, depois
de tanta guerra? Kertész estabelece (como em A trégua, Primo Lévi) uma dialética
de valores, cuja responsabilidade recai sobre os que regressaram. Uma espécie de
transmutação. Como se houvesse uma tênue possibilidade – no meio de tantas ruínas
– de fundar um novo humanismo; como se houvesse uma delicada, mas firme possibilidade
– depois de tanta desesperança – de vislumbrar uma estrela engendrada pelo Caos.
Um projeto nada ingênuo, marcado por uma firme compaixão. Um modo novo de tocar
a estrela (de Nietzsche, ou de Celan), intensivo, não perdulário, voltado para o
futuro:
… não entendia bem como podiam pretender o impossível,
e assinalei que o que acontecera, acontecera, e afinal de contas, eu não seria capaz
de dar ordens à minha memória. Eu poderia começar uma vida nova somente se nascesse
de novo – ponderei –, ou se um mal, uma doença ou coisa parecida comprometesse a
razão, e isso eu esperava que não me desejassem.
Nesse tom, nessa
forma complexa de compreender a História e o Sujeito, considero Kadish a obra-prima
de Kertész, um dos livros mais belos, de que tenho notícia, intenso e veloz, como
se fora escrito agora, a partir de sua música, de seus ostinatos, crescendos e diminuendos,
como um grito lancinante, transido por um forte desespero. Desprovido de efeitos
meramente retóricos e desproporcionados, Kadish é um templo grego consagrado para
um anjo duro e difuso, tremendo e lancinante, uma espécie de Ur-Schrei, de grito
primordial, lançado com exuberância e domínio pleno do discurso. Pensaria em modelos
diversos, como a Carta ao pai, de Kafka, ou quando Leopardi se dirige a Monaldo,
e no libreto Erwartung, musicado por Schönberg. E todavia a obra de Kertész é solitária,
e não guarda um endereço específico, remetente ou destinatário. Mais se parece com
um tratado sobre a Dignidade do Homem – como se fazia no Quattrocento –, mas numa
complexidade nova, feita de adesão e desencanto, elaborando uma hipermoral, que
parte de uma dada realidade, diante de cujos horrores será preciso formar outra
e mais complexa imagem dos homens. Toda e qualquer explicação, mais ou menos determinista,
mais ou menos classificável, não atendem a demanda moral de Kertész, como vemos
em Kadish:
…eu poderia ter dito, que não há explicação para Auschwitz,
que Auschwitz seria um produto das forças irracionais não apreensíveis pela razão,
pois para o mal há sempre uma explicação racional, pode ser que o próprio Satanás,
como Iago, seja irracional, mas suas criaturas certamente são seres racionais, todas
as suas ações deixam-se derivar como uma fórmula matemática; derivadas de algum
interesse, da ganância, da preguiça, da cobiça de prazer e de poder, da covardia,
da satisfação de um ou outro instinto e, se nada além disso, então de algum delírio
de paranoia, da doença maníaco-depressiva, da piromania, do sadismo, do assassinato
compulsivo, do masoquismo, da megalomania demiúrgica ou outras megalomanias, da
necrofilia, de alguma entre tantas perversidades que conheço, ou talvez de todas
ao mesmo tempo, porém eu poderia ter dito, tenham agora bastante atenção, pois o
realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, ao contrário é o
Bem.
E aqui não saberia
não recordar da teologia de uma larga tradição judaica, voltada para o bem e suas
forças tremendas, ou para o lugar da vontade eficaz e da vontade ineficaz de Deus,
para aplicar muitas e diversas conseqUências sobre a questão singular do bem, sua
difusividade e, em Kertész, dessa quase condição excepcional, nas páginas que dedica,
o narrador, à biografia dos santos ou dos trinta e seis justos. Toda mordaça, ou
conceito de segurança (como dizia Adorno), toda etiqueta, toda a farmacologia do
bem para explicar Auschwitz, como se fora um capítulo não pertencente à humanidade,
todas essas formas de superfície não encontram guarida nos livros desse autor.
Basta que acompanhemos
as quase últimas páginas do Kadish para surpreender como e quanto repercute em suas
veias e em suas vísceras uma condição, um nome e a marca de um grupo, e os benefícios
profundos que sabe retirar, não a priori, como condição irreversível, ou teologicamente
disposta, do fato de ser judeu, mas a capacidade de estar na cena de uma história
não necessariamente sagrada, mas em ruínas, escombros, de uma verdadeira devastação,
motivada por uma absurda condição de raça:
Nesse ponto de vista seria a mesma merda se eu fosse
judeu ou não judeu, embora, sem dúvida, ser judeu aqui seja uma grande vantagem,
será que ela entendia?!, gritei, única e exclusivamente só sob esse ponto de vista
eu estaria pronto para ser judeu, exclusivamente sob esse ponto de vista, considero
isso sorte, até mesmo uma sorte especial, até mesmo graça, não por ser judeu, não
dou a mínima para isso, gritei, o que eu sou, melhor que eu, como judeu demarcado,
tive a possibilidade de estar em Auschwitz, que assim, em razão de meu judaísmo,
vivenciei algo e vi a olho nu e sei algo, de uma vez por todas, e irrevogavelmente,
isso não abandono, jamais abandonarei…
Eis o ponto crucial,
quando as nuvens de ferro se abatem num campo de verde primavera, quando o triunfo
da barbárie parece o último de uma série, como e quando as figurações do Pentateuco
e de seu Tempo forte parecem clamar por uma distância tremenda e solitária, como
o brilho da estrela solitária da teologia judaica. A condição de Kertész, naquelas
páginas, conhece nas nuvens uma forma de espanto da forma compacta e universal,
marcada e pura, de aldeia e raiz, de uma mesma e muitas línguas, como nos versos
de Iessiênin, quando ele se reconhece, a meditar, solitário, na Bíblia dos ventos,
enquanto pasce o rebanho de inesgotável, secreta e puríssima demanda:
Foi quando li
e pensei
na Bíblia dos
ventos,
Com Isaías pascei
meus áureos armentos.
[I mislil i chitál
Iá
Po biblii vetrov
I pass so mnoi
Isaia
Moich slatih
korov.]
*****
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins
é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista
de Cultura
Artista convidado
desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do
Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO
SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO
SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 ACAMPAMENTO
MUSICAL
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica,
sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
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