Não saberia de que lado começar
a reunião dos pedaços capazes de comporem uma pequena parte da antologia que me
constitui. Confesso de imediato que me dissipo nas coisas que congrego. Sou mais
pródigo que avaro, ou seja, menos inclinado à estrela que às fauces do caos. Se
conseguisse inverter a frase (eu me congrego nas coisas que dissipo), poderia elaborar
sem hesitação um resumo do que sou, para me defender um dia no tribunal de Osíris.
Seja como for: tenho um metro
e setenta e cinco e não alcanço de todo o abismo do presente. Pouco menos de oitenta
quilos – sem o peso dos sonhos –, uso óculos de grau e me pareço com minha mãe.
Não sou guarda de museu e nem tampouco adicto do futuro: eu me reinvento, a dialogar
com o ontem e o amanhã, preso no intangível agora, a cuja fonte acorrem sedentos
meus lábios. Sou filho do ainda não, amo a soledade e seus primeiros raios: o silêncio
e a distância. Procurei desertos de pedra e areia, de onde saí com alguns poemas
e uma forte pneumonia.
Amo as formas breves, mas
não desprezo a lógica do excesso. Guardo o rebanho dos livros, que alcanço nos idiomas
dos quatro continentes. Hoje são mais de vinte. Mas, se não falo a língua dos lobos,
aprendo alguma coisa nos latidos de minha idosa pastora, Carina. Já a linguagem
dos pássaros, percebem-na apenas Attar e Francisco de Assis. Sonho com a Torre de
Babel e suas escadas intermináveis.
Subo e desço aqueles degraus com assombro e destemor. Até meus vinte anos, eu era imbatível nos cem metros rasos. Hoje detesto correr e sofro o assédio de vinte mil volumes da biblioteca. Caminho e pratico exercícios físicos, raramente sintáticos, sobretudo semânticos. Comecei a estudar o devanagari e o tupi antigo, porque amo o estado transitivo, a ponte “que vai de mim para o Outro”.
Subo e desço aqueles degraus com assombro e destemor. Até meus vinte anos, eu era imbatível nos cem metros rasos. Hoje detesto correr e sofro o assédio de vinte mil volumes da biblioteca. Caminho e pratico exercícios físicos, raramente sintáticos, sobretudo semânticos. Comecei a estudar o devanagari e o tupi antigo, porque amo o estado transitivo, a ponte “que vai de mim para o Outro”.
Fui aos campos de Sabra e
Shatila, de olhos marejados pela dor, tal como nas prisões visitadas do Rio de Janeiro.
Temos um pacto: não pergunto aos detentos o que fizeram, nem eles procuram saber
o que fiz. Subi a Juazeiro do Norte com os romeiros do padre Cícero e desci a Canudos
de Antônio Conselheiro, submersa nas águas do remorso.
Moro em Niterói. Ou talvez
não: Niterói mora em mim, cidade que conjugo na primeira pessoa, espinha dorsal
de uma infância permanente. Seu nome pode significar água escondida – em cujo líquido
seio proponho uma pequena distância diante do mundo (não de meus conflitos). Moro
entre Icaraí e Itacoatiara. Habito nomes indígenas e as obras bárbaras de Dante,
Nietzsche e João da Cruz.
Nasci bilíngue e traduzo
poesia desde a adolescência. Amo a fé religiosa do povo e ando inquieto com o desaparecimento
de Paolo dall’Oglio, ao tentar, ardido e solitário, a paz na Síria. Nutri a esperança
de que voltaria: penso nas crianças de Damasco e na mesquita de al-Ualid.
Viajo pelo mundo. O meu erário
é farto de nomes e rostos. Não gosto de atrasos e aparo as arestas de meu furor
com as árias de Bellini e as sonatas de Scarlatti. Meu oxigênio é a música – estudei
piano e canto e mais que nulla dies sine linea
estou para nulla dies sine musica.
Estudei Mozart e Debussy, assim como os olhos de minha mãe, que me levaram ao piano,
olhos castanho-claros, quando eu ainda não duvidava da língua dos homens e do silêncio
de Deus. Sei de cor algumas linhas de Machado e os olhos de ressaca de Capitu. Nasci
em Copacabana, ao passo que Escobar desnasceu em Botafogo.
Se tirassem o mar de minha
vida, não saberia realizar a história a que pertenço. O sal começou a queimar os
meus lábios desde jovem. Tenho a pressão controlada. Amo Camões pelo vigor sensual
de suas oitavas, onde não faltam aromas e uma farta salinidade. Por isso, bebo com
cuidado o licor da Ilha dos Amores, com o iodo de sua alta poesia. Tudo que sei
veio dos livros e do mar: potências inacabadas, ondas e páginas. O mar e a biblioteca
constituem uma superfície viva, feroz e incerta, cobrindo furnas e abismos. Sofro
as ressacas e os tufões da história trágico-marítima, e combato o vulcão negro,
apontado por Duarte Pacheco no Esmeraldo. Cheguei a 80 mil volumes. Hoje:
um cardume disperso.
Eis a feroz desmedida dessas
águas.
Fui matriculado na escola
dos ventos, num pélago de tempestades, com ondas atrevidas, longe de um mar exangue,
varrido por uma exaustão milenar. Aos três anos de idade, quase me afogo na praia,
mas não largo um só instante meus brinquedos. Hoje cruzo a Baía de Guanabara e vejo
os fortes portugueses e as igrejas, que tanto me fascinam. Acendo o meu toscano,
quando sintonizo as rádios Jorge de Lima e Fernando Pessoa. Sou amigo do padre Vieira
e protejo, na medida de minhas forças, as armas de Portugal contra as de Holanda.
Fui hóspede no Palácio da Fronteira, bolsista do Instituto Camões, e com Fernando
Mascarenhas bebemos à saúde de nosso amigo Cesário Verde.
Chama-se Constança minha
mulher. E reconheço à perfeição o adágio segundo o qual os nomes provêm das coisas.
Minha mãe foi revestida com o delicado apelido de Elena, como as meninas de seu
tempo, ao passo que meu pai se chamou Egidio. No dia dos santos Cosme e Damião eu
me deliciava com os saquinhos de cocada, mariola e maria-mole.
E o branco dos lençóis quarando
no varal eram como navios que faziam aguada na terra de meus verdes anos. Birbante!, gritava minha avó, a bordo de um navio-lençol,
atrás do neto-corsário que puxava as roupas do varal. Birbante!, que eu entendia como sendo barbante, preso nos laços do amor, expondo
meu peito a sobressaltos, em guerras de alecrim e manjerona.
Mas houve outra guerra, a
Segunda, bem mais devastadora. A casa de meus avós hospedou o alto comando da FEB,
a força expedicionária brasileira. Foi quando libertaram a cidade de Massarosa do
exército alemão. Gostaria de escrever um dia essas histórias. Só então poderei dizer
que volto a um passado que corre nas minhas veias e distribui meu quinhão de esperança
e melancolia. Volto como quem sabe que a partida parece um apelo de fogo e carne
exposta, agulhas e mortes, que atravessam o fígado e a alma, havendo ambos em mim.
Volto, como quem volta de um infinito abandono, como quem espera uma acolhida de
braços abertos e os raios do perdão ao filho pródigo do futuro. Volto como quem
volta, em mil pedaços, devorado por feras, que me dissipam justo quando me congrego,
sob a luz do caos e da estrela.
Todos os meus vêm da toscana
e me tornei o primeiro brasileiro. Meus pais e minha avó materna, Quintilia, foram
acolhidos na Terra de Santa Cruz e hoje descansam poucos metros abaixo deste solo,
mátria amada, Brasil.
Dos onze aos dezessete anos
estudei no Salesianos de Santa Rosa. Lembro-me de padre Marcelo Martiniano, movendo
os onze mil tubos do órgão na fuga de Bach, como se a igreja fosse um imenso navio,
lutando para não ser devorado pelas sonoridades abissais. Sofri nas garras da matemática,
que então me parecia um tigre feroz. Vencido o medo, hoje dou aulas sobre poesia
e matemática. Uso um telescópio de 200 mm x 1000 mm para atingir a nebulosa da Lagoa,
a Trífida e a M 55. Comecei a escrever romances nos últimos três anos, desde que
deixei a Biblioteca Nacional, motivado pelos motores ficcionais da história. Sou
professor de literatura comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro e gostaria
de pedalar quilômetros a fio, num horizonte inacabado, como um Giorgio De Chirico,
embora eu não tenha bicicleta. Canso-me de dirigir no trânsito do Rio e meu time
de futebol é o Flamengo. Sem exageros. Não vou ao Maracanã desde os anos 1990.
Quando era menino via o futuro
pouco atrás de mim, com passos curtos e tímidos, como a tartaruga de Aquiles. Hoje
sou eu que já não posso alcançá-lo. A tartaruga me ultrapassou e continuo a resistir
contra o pensamento único, as guerras de religião e os males do Império. E se o
futuro não termina, minha autobiografia segue necessariamente incompleta.
O Isis und Osiris, piedade!
*****
Organização a cargo de Floriano Martins ©
2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor
da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela
(Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em
sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer,
tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu
seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob
a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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