I – A COISA AMADA | O Comentário ao Banquete
de Platão é ainda capaz de despertar admiração e surpresa no leitor contemporâneo.
Isso porque a obra de Ficino é clara e apaixonada. E a poesia sobrepaira em todas
as suas páginas. Um rasgo de entusiasmo e um rasgo de melancolia constituem o seu
percurso dialético. Outras vezes, é o desespero que suprime a malha conceitual.
Uma filosofia da imortalidade estruturada em duas pontas: Deus e o Amor. É o que
vamos ler em seu Comentário.
Ficino partiu do Banquete e do Fedro, dois grandes diálogos
que ensinavam a relação entre o bem e a beleza, da Ética de Aristóteles e
do Lélio de Cícero. A todos estes, juntou São Paulo e Santo Agostinho, que
ensinavam a dimensão da caridade, bem como os poetas do dolce stil nuovo
como Guinizelli e Cavalcanti. A Comédia de Dante e o Cancioneiro de
Petrarca perfazem a síntese de sua filosofia do amor. Perfazem, mas não determinam.
Marsilio Ficino sabe destramar a tradição e a reorganizar dentro de um sistema novo
e de todo fascinante. Ultrapassa a condição de fragmentos para instaurar um discurso.
Para o filósofo, o amor humano é uma preparação para o amor divino. Tudo
parte da semelhança. E quando o amor é verdadeiro os amantes se identificam um com
o outro. Passamos do amor solitário ao amor recíproco. Semelhança e reciprocidade
fundamentam a sua estrutura:
A semelhança gera o amor. A semelhança é uma certa natureza igual em vários.
Pois se eu sou semelhante a ti, tu também és necessariamente semelhante a mim. Portanto,
a mesma semelhança, que impele que eu te ame assim como tu me amas, obriga-te também
a me amares.
Algo parecido com o poema de Camões: o amador se transforma na coisa amada
e em si mesmo possui a parte desejada. Lemos no Comentário que
na verdade cada um tem a si próprio e ao outro. Pois este existe naquele.
E aquele existe, mas neste. Com efeito, enquanto eu te amo, eu me encontro amante,
em ti, estando eu a pensar em mim, e recobro-me por mim mesmo, perdido na minha
negligência, conservando-me em ti. A mesma coisa fazes em mim.
E prossegue:
Pois eu, depois que perdi a mim mesmo, se por ti me recobro, por ti tenho
a mim; se por ti tenho a mim, eu te tenho antes e mais que a mim mesmo, e estou
mais próximo de ti que de mim, visto que me ligo a mim precisamente por ti.
Todavia, apesar dessa profunda união, os amantes não sabem exatamente o que
buscam um no outro. Querem sempre mais e já não sabem o que significa esse mais.
Sentem uma nostalgia arraigada, mas não sabem determinar a sua extensão. Sofrem
quando amam e desconhecem por que sofrem. Têm saudade do imponderável. A semelhança
e a reciprocidade não resolvem esse mistério divino. Primeiro, porque a sede de
quem ama não se aplaca ao ver ou ao tocar o corpo do amado. Não deseja este ou aquele
corpo, mas o resplendor divino infuso no outro. A presença de Deus é como um suave
perfume que faz pressentir o sabor de um fruto ignorado. Igualmente, o temor e a
reverência do amante ao ver o amado é um temor inconsciente em face de Deus.
Tais argumentos demonstram que o amor não se limita a duas pessoas, mas a
três: dois seres humanos e um Deus: o amante e o amado são como espelhos que guardam
a imagem imperfeita do Pai. É isso que os aproxima um do outro. Precisam compreender
a profundidade desse Bem. Pois amar é voltar à Origem. Vejamos.
II – MOTIVOS DE INQUIETAÇÃO | Num conhecido diálogo
de Platão, o desejo da filosofia é o desejo da morte. Inicialmente terríveis, as
palavras de Sócrates ganham maior clareza à medida que avançamos na leitura do Fédon.
Filosofar é libertar-se do corpo para se ocupar da alma, é ir deixando morrer as
solicitações do corpo na realidade do pensamento. Ao nosso redor, apenas miragens
e simulacros. Tudo mergulhado em sombras. E o corpo sendo uma extensão dessa realidade.
Se buscamos o conhecimento puro, devemos examinar as coisas com a alma. Passar da
esfera do sensível para a esfera do inteligível. A nossa pátria é a altíssima região
da qual baixamos a este mundo terreno, lá onde mora o nosso Pai. Por isso é preciso
morrer. Porque habitamos a Distância. Porque vivemos no Exílio. Transcender: eis
a palavra-chave na concepção platônica. Morte e transcendência preparam o fim da
Distância e o regresso ao seio da Unidade. A nostalgia de Deus é a ante-câmara da
morte. Eis o que pensava justamente Marsilio Ficino. Filosofar é morrer.
Ficino é um ser enamorado e atormentado por Deus. E as suas páginas dão o
testemunho dessa procura incessante do Significado. Da imagem e do rosto de Deus.
A filosofia para Ficino não é senão amor a Deus e regresso a Deus. Voltar ao Princípio
dos princípios e contemplar a Causa das causas. Passar da superfície ao Profundo.
Pois o homem – sem Deus – é uma devastadora inquietação. O horizonte puramente físico
de Aristóteles e Lucrécio jamais serviu de consolo para Ficino. Só fez aumentar-lhe
a busca do Sentido. O maior desejo do homem – lembra o filósofo – consiste em tornar-se
onipotente. Ele mede o céu, a terra e os abismos. O céu não lhe parece tão alto.
O centro da Terra, tão profundo. E o abismo já não lhe causa mais terror. As distâncias
espaciais e temporais não o impedem de chegar aonde bem entende. Contudo, a inquietação
e a melancolia não se despegam de sua alma. Não lhe basta a conquista da Terra.
Sente-se acabrunhado pela vanidade das coisas. Precisa do Outro. Tem saudades do
Infinito. E não quer sucumbir nas ondas do tempo.
O endereço do homem é outro. Assim como o Sol atrai as flores, a Lua move
as águas, e Marte comanda os ventos, também sofremos o impacto da beleza, que é
o rosto de Deus, e que atrai a alma (a sé tira) por uma lei de intrínseca
semelhança. Estas páginas de alta poesia – que sabem unir metáforas e conceitos,
símbolos e alegorias – fazem da filosofia de Ficino um pensamento emocionado. Comprometido
com Deus e com a imortalidade da alma. Diz Lourenço, o Magnífico:
Della divina infinità l’abisso
quasi per una nebbia contempliamo,
benché l’alma vi tenga l’occhio fisso;
ma d’un perfetto e vero amor l’amiamo.
Quel che conosce Dio, Dio a sé tira;
amando alla sua altezza c’innalziamo.
Nos versos do Magnífico o conhecimento de Deus torna-se o desejo supremo
da alma e nele somente. Todas as demais formas da vida e do conhecimento devem ser
entendidos como preparação mais ou menos consciente para voltar ao Criador. Esse
é o destino irreversível da alma. Tu ergo Deus noster, tu solos sitim hanc extingues
ardentem. Aplacar-lhe a sede. Fonte das fontes.
Um encontro sublime entre o amador e a coisa amada. Um projeto de redenção
onde coincidem o Bem e o Uno, a Causa eficiente e a Causa final, o Demiurgo de Platão
e o Intelecto de Aristóteles. Tal a sobreposição de matizes da tradição platônica
que alimenta a filosofia do retorno em Marsilio Ficino.
III – PROJETOS DE UNIDADE | Para compreendermos aquela
teoria, é preciso recorrer às hipóstases de Plotino. Admirável desinterpretação
do Parmênides. Negativa Transcendência do Uno. Radical dimensão meta-ôntica.
O drama do retorno parte justamente destas questões.
Solidão do Primeiro Princípio. Eis o que constatamos – a respiração presa,
a mente extasiada, o coração palpitante – desde as primeiras páginas de Plotino:
o Uno real, o Uno total, aparece radicalmente separado do Universo, acima da essência
e da vida, da parte e do todo. Não é qualidade ou quantidade. Não se move, nem descansa.
Não possui forma ou figura. É absolutamente o Separado. Além do ser (epékeina
óntos). Transcendência dele em tudo. Imanência de tudo nele. A multiplicidade
do cosmos provém do não-múltiplo, e não pode existir a multiplicidade, sem a existência
daquele. Assim é a árvore da vida. Onipotência absolutamente dona de si mesma. Tudo
parte do Singular.
A superclaridade do Primeiro Princípio expande-se como plenitude que se comunica,
autárquica e sem desejo, ao Filho. O pensamento – ato essencial do Intelecto – é
plural e o seu índice metafísico é infinitamente menor se comparado ao Uno, mergulhado
como se encontra na in-diferença. Eis a razão pela qual o Uno seria incapaz de pensar
a si mesmo, pois, se assim o fizesse, deixaria de ser unidade originária, tornando-se
sujeito e objeto. Conquanto deficiente e posterior, o Intelecto é o primeiro dos
seres e, por um movimento de regresso (epistrophé) ao Pai, contempla o Uno,
que não pode ser pensado senão como perene explicitação de si mesmo. A distância
que os separa corresponde ao abismo do Infinito. Mesmo assim, o Filho é o ser mais
próximo do Pai.
Ao deixar ser a diferença do Intelecto através da processão, o Uno nada perde
de sua autarquia. Permanecendo, gera o Intelecto de si mesmo, tal como o fulgor
dos raios solares. A inteligência primeira é um kósmos noetós que possui
um aspecto ativo e subjetivo, o ato de pensar, e um aspecto passivo e objetivo,
o conjunto das ideias. A vida do Intelecto é a luz primeira, que se acende e resplandece
sobre si, iluminante e iluminada, puramente inteligível, que se vê por si mesma
e não tem necessidade de outra iluminação. Para Plotino, as ideias não representam
o conteúdo do Intelecto, mas significam o próprio Intelecto. Cada ideia é ao mesmo
tempo intelecção e inteligência. Salvaguardar-se destarte a especial unidade-múltipla
do Filho.
Ao contemplar os inteligíveis, o Intelecto reverbera a imagem destes na Alma,
comunicando-lhe o próprio ser. Daí porque a Alma é o verbo do Intelecto. Uma parte
dela permanece no inteligível, fora do cosmos, contemplando o Intelecto. A outra
parte avança em direção dos seres sensíveis, aos quais dá vida. Se a primeira é
comparada ao agricultor, a segunda é comparada à árvore. Aquela é transcendente.
Esta, imanente. Sendo dupla a sua natureza, seria melhor para a Alma viver no inteligível.
Apesar disso, domina-a uma necessidade de participar do mundo sensível. Eis a característica
que lhe permite criar o mundo com a memória dos inteligíveis. A Alma – diria Ficino
num contexto maior – é o rosto da totalidade, o centro da natureza e a cópula do
mundo.
A Alma do Todo envolve harmonicamente o corpo do Universo. Este participa
tanto quanto possível da beleza das ideias, pois a Alma produz contemplando os inteligíveis:
as almas individuais,o Sol e as estrelas, os rios e os mares. E a beleza é o sinal
de algo ainda mais profundo, o índice de uma imponderável nostalgia, a marca do
regresso. A alma sonha com um plano de permanência e contemplação. O Belo é o prefácio
do Bem. Eis o nosso destino. Plotino compreende o retorno a Deus como fuga do solitário
ao Solitário (figué mónou prós mónon). Chega mesmo a lançar mão da metáfora
de Ulisses:
Fujamos pois à cara pátria. Mas como partir, como preparar esta fuga? Não
certamente com os nossos pés, porque eles sempre nos levam de um lugar para outro
da Terra. Nem é preciso aparelhar carruagens ou navios, mas abandonar todas estas
coisas, e não lhes dirigir os nossos olhares, fechar os olhos corporais e despertar
outros, que todos possuem, mas que poucos usam.
Um caminho interno e por mares metafísicos. Quando finalmente o solitário
chegar ao Solitário, haverá a imanência da alma no Uno, união por presença, êxtase
e abandono, esquecimento e arrebatamento. Com o retorno ao Uno fecha-se o círculo.
O fim da conversão coincide com o princípio da processão.
IV – PRINCÍPIO E FIM | No cristianismo as questões
da Trindade, da Criação e da Encarnação obrigam a repensar a identidade e a diferença.
Passamos da emanação à criação. Do deus impessoal ao deus pessoal. Do não-desejo
do Uno ao desejo do Pai. Da in-diferença do Princípio à diferença do Verbo. Do indivíduo
à pessoa.
Partindo de Agostinho e do Pseudo-Dionísio, podemos distinguir em Deus, em
sua transcendente unidade, o mesmo e o outro. A identidade consiste no Deus imutável,
sempre igual a si mesmo, infinito em sua perfeição, reunindo os atributos do Uno,
do Intelecto e da Alma. Temos aqui a plenitude do ser. A diferença consiste na criação,
transcendendo-se livremente a si mesmo, sem deixar de permanecer idêntico, uno e
trino, sendo a diferença um momento interno da unidade divina. Afinal, garantida
a transcendência de Deus, a pluralidade já não constitui uma diminuição a ser eliminada
do Uno e a ser explicitada necessariamente fora dele.
Ao aceitar semelhantes aspectos, Marsilio Ficino critica a teoria de uma
processão circular e infinita, como se houvesse um perene permanecer, um perene
proceder e um perene regressar. Parece-lhe absurdo um movimento sem fim: tudo seria
igual a tudo, sem que a causa final pudesse atuar de modo transcendente. O Uno seria
apenas o suporte do processo circular. Além disso, Ficino também empresta às hipóstases
um rosto e uma vontade. A solidão do Uno começa a sofrer uma grande mudança, pois
a força que atrai o conhecido ao desconhecido,o significante ao significado, não
pode repousar na clássica des-afeição do Uno. Se os homens amam o Primeiro Princípio,
que acendeu em suas almas essa nostalgia, essa inquietude e essa paixão, também
o Pai ama radicalmente e pessoalmente todos os homens. Ninguém mais se dissolve
no seio da matéria universal ou na unidade de uma inteligência que é a forma da
matéria humana. Trata-se de uma relação profunda e radicalmente pessoal. Deus agora
tem face. Una e plural. Conhece os homens na diferença. E já não pode prescindir
da face:
"Se amarmos os corpos, os espíritos, os anjos, na verdade não amaremos
estes, mas Deus nestes. Por certo nos corpos amaremos a sombra de Deus; nos espíritos,
a semelhança de Deus; nos anjos, a sua própria imagem. Assim, no presente, amaremos
Deus em todas as coisas, a fim de que em Deus, em suma, amemos todas as coisas.
Assim, pois, enquanto vivermos, a ele nos dirigiremos para ver não só Deus, mas
todas as coisas em Deus, e amaremos não só ele próprio, mas ainda todas as coisas
que estão nele mesmo. E quem quer que neste tempo com caridade se consagre a Deus,
enfim, se salvará. Isto é, voltará à sua ideia, pela qual foi criado. Aí de novo,
se algo lhe faltar será corrigido e se unirá perpetuamente à sua ideia. Então, o
verdadeiro homem e a ideia do homem são a mesma coisa. Por isso, nenhum de nós na
terra, separado de Deus, é um verdadeiro homem, visto que dele está separado pela
ideia e pela forma. A ela nos levarão o divino amor e a piedade. Em todo o caso,aqui
estamos repartidos e mutilados; então, amando, unidos à nossa ideia, nós nos tornaremos
homens íntegros, posto que pareceremos ter primeiramente amado Deus nas coisas,
para que depois amemos as coisas em Deus, e por isto pareceremos venerar as coisas
em Deus para nele estimarmos sobretudo a nós mesmos, e, amando Deus, amamos a nós
mesmos".
Como bem observou Kristeller, a vontade é o verdadeiro princípio que põe
a alma em movimento e a conduz até o seu fim. O intelecto, considerado superior
até quando a mente humana estava um pouco acima dos objetos, revela-se inferior
quando o objeto ultrapassa a capacidade do pensamento humano. Só o amor propicia
a união: Propius unimur Deo per amatorium gaudium. O intelecto permanece
fechado em si mesmo, enquanto que a vontade busca o objeto. O amor e a beleza coincidem
aqui. Fons totius pulchritudinis deus est. Fons totius amoris est deus. E
a ideia do homem e a sua plenitude também se identificam. O sujeito continua sendo
o rizoma dessa metafísica. Pois a diferença torna-se um espelho, onde o amador se
reflete na coisa amada e a coisa amada se reflete no amador. Que mais pode refletir
o espelho senão a própria face?
*****
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins
é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista
de Cultura
Artista convidado
desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do
Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO
SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO
SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 ACAMPAMENTO
MUSICAL
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica,
sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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