ML | Não tenho dúvida.
E sobretudo aquela mais sinfônica, ou seja, a que demanda muitas partes e instrumentos,
tonalidades e camadas de harmonia. Como a tradução de Pasternak do Fausto de Goethe. Ou de Nerval, debruçada
sobre o mesmo Fausto.
ZP | Você valoriza mais a tradução
direta do original ?
Por quê ?
ML | Sim, desde que não
se perca a centelha misteriosa do texto de origem, mesmo que seja um breve fio de
luz. Conhecer o original é condição necessária, não suficiente. O tradutor precisa
conhecer bem a língua de chegada e a variedade de sua tradição literária. Assim,
existem traduções feitas do original por estrangeiros – exceção do saudoso Paulo
Rónai e de poucos – que tornam ilegível a leitura em português.
ZP | Você acha que toda tradução indireta é ruim ?
Por quê ?
ML | Depende de quem,
das condições, das circunstâncias. Deve-se evitar, a princípio. Mas não é um aval
absoluto. Bilac traduziu maravilhosamente um poema de Puchkin, do francês.
ZP | Existem obras “intraduzíveis ”?
O que seria para
você uma obra
impossível de traduzir ?
ML | Toda a obra é sempre
– do ponto de vista kantiano – intraduzível. Há quem abrace velhas e impossíveis
noções da equivalência entre as palavras. E aqui saímos de Kant para o Gênesis. Certas obras apresentam maiores
dificuldades. Mas, apesar de saber que o ponto de partida aponta sempre ao impossível,
apesar ou por causa disso, é preciso estabelecer uma poética da tradução, que permita
uma clareira de possibilidades. Assumir atitude semelhante é preparar um terreno
de beleza e precisão.
ZP | Quais são as características
mais importantes
de um bom
tradutor?
ML | A paixão visceral
da língua e a condição absoluta de leitor. Absoluta. Arrogante e apaixonada. O conhecimento
linguístico não se esgota, antes se desdobra em estratégias discursivas, deslocamentos
semânticos e decisões de léxico e morfologia. Mas, se o tradutor não se emociona
com o último poema de Iessiênin, ou com a harmonia precária de um Rashkolnikov,
como poderá operar apenas com categorias linguísticas?
ZP | Para um tradutor basta
conhecer somente um outro idioma ou deve ter outras qualidades ?
ML | Todas as qualidades
possíveis. Insisto na palavra leitor-tradutor. Quase algo assim como leitradutor. Escrito assim, tem-se a impressão
que o tradutor legisla – embora também o faça, em sua precária república de nomes.
O tradutor deve assumir com variados horizontes culturais. A condição de leitor
impõe-lhe essa tarefa. Como se conhecer duas línguas fosse bastante... Mas não é!
Lembro de Lucien Febvre, dizendo aos historiadores: não sejam historiadores, mas
antes, arqueólogos, estudiosos de direito, amantes da arte, leitores de economia
e sociologia, atentos aos estudos teológicos, científicos e literários, só depois
a história virá com mais vigor. O mesmo para os tradutores: sejam tudo menos tradutores.
Façam esse percurso, e só depois voltem ao estado inicial. Se não conhecemos a literatura
brasileira e portuguesa a fundo, não inventamos a terceira margem necessária.
ZP | Uma tradução exige melhor
conhecimento da língua
de partida ou
da língua de chegada ?
O que é mais
importante ?
ML | As duas claramente.
Mas se tivesse de escolher, diante de um pelotão de fuzilamento – como aquele contra
Dostoievski – eu penderia para a língua de chegada. É como se traduzissem Machado
em russo, com a língua de Os irmãos Karamazov
ou com a de Pais e filhos de Turgueniev.
A coisa muda totalmente. Ficaríamos, talvez, mais felizes com a segunda opção. Mas
o exemplo se deu diante das armas em riste de sua pergunta. Prefiro as duas opções.
ZP | Quais os problemas mais graves numa tradução ?
ML | A má-leitura. A
tradução que não busca a sintonia entre duas tradições culturais, que não traça
a delicadeza de uma ponte-pênsil e opera com formas surdas. Porque não se deve jamais
perder a poesia, mesmo na prosa. A poesia é um perfume que se insinua em todos os
quadrantes da palavra.
ZP | Existem alguns indícios
de uma tradução ruim ?
Quais são
os mais fáceis de identificar ?
ML | Insisto com a leitura
equivocada. Acréscimos, paráfrases inseridas no texto de chegada e ausentes no original.
O aplainamento como resultado contra o que é áspero no original. Escolhas redutoras,
de ordem paternalista na hora de traduzir. Mas é preciso saber que o não-erro absoluto
não existe. Erramos sempre, apesar dos cuidados e exorcismos.
ZP | Como podemos identificar uma tradução
ruim quando
não conhecemos a língua
original da obra ?
ML | Chamo de verossimilhança
da tradução quando se harmonizam (se for este o caso, ou quando se desarmonizam,
propositadamente) os elementos da língua dois. Assim, o cenário, o tratamento, as
mudanças morfossintáticas, tudo pode ser checado na língua de chegada. Isto é: ver
se as coisas funcionam bem na língua do leitor para a qual se destina aquela tradução.
Através de verossimilhança, um parâmetro se insinua. Não funcionar, de acordo com
o contexto, pode ser um gesto de saúde da tradução.
ZP | Como você analisa a atividade
de tradutor? Descreva um pouco como você trabalha numa tradução .
ML | Traduzi algumas
coisas. Trabalho de insônia. Dicionários a não mais poder. E sempre se pode mais.
Uma relação de conflito. Orações a São Jerônimo. E um sentimento de imperfeição.
De coisa inacabada. Idas e vindas. Satisfação razoável. A tradução é como o velho
Portugal que espera inutilmente a volta de dom Sebastião. Como a Rússia de Khliebnikov
e o ciclo do Gul Mullá.
ZP | Vigotski (meu objeto de estudo , que é um estudioso que elaborou a teoria
histórico-cultural) dizia que toda tradução é
uma deformação ? Você
concorda? Por quê ?
ML | Certamente. E nos
termos como ele o define. Começa deformando. E depois transforma. Perdas e ganhos.
Apuros. Desacertos. Deforma, porque não entra na metafísica da língua. Cada língua
sendo um tônus solitário, rude, feroz, impenetrável. Um gesto de violência. Ou de
insubordinação. Mas sem isso...
ZP | Como poeta você acha que a forma e o conteúdo podem
ser traduzidos ou
deve-se, numa tradução , optar
por um
dos dois ?
ML | Sou radical. Mesmo
sabendo dos aspectos aditados acima – impossibilidade, deformação, deslocamento
– escolho as duas coisas. Como traduzir “Insônia” de Marina Tzvetaieva, sem aquela música estranha, os ventos da noite,
os gansos e a melancolia? Como explicar a “Dama” de Blok, o “Homem Negro” de Iessiênin
ou a noite profunda de Tiuchev, sem o matrimônio do céu e da terra, ou seja, o casamento
da forma e do conteúdo, inseparáveis? A não ser dentro de uma perspectiva meramente
instrumental.
ZP | As primeiras traduções dos escritores
como Dostoievski e Tolstoi foram feitas para o português , no Brasil, a partir do
francês . Você
lembra se leu essas traduções ou as leu em francês ? Gostou do que
leu?
ML | Li no início em
português, através da França. Mas também em italiano, que iam ao original, além
do alemão e do inglês. Lia aos doze anos, com o samovar em pleno verão carioca.
Essas traduções me pareciam boas. Quatro anos depois decidi estudar o russo com
a professora Zoe Stepanov.
ZP | Vigotski via na obra literária um meio não de satisfação , mas de “refundição”
do ser humano
por meio
da emoção e da imagem
que a palavra
representa. Você concorda com
essa afirmação? (p. 117 do Iarochevski);
ML | Estou completamente
de acordo. Seria impossível a vida sem essa busca de refundição. E a literatura
é uma pátria ambígua e solidária.
ZP | Para Vigotski a
percepção de uma obra
de arte não é
uma contemplação passiva ,
mas uma forma
de co-criatividade que exige da pessoa um trabalho espiritual intenso . O que você acha dessa afirmação?
ML | É o caso do leitor-tradutor.
Para Eco, a literatura é uma espécie de máquina preguiçosa. Precisamos trabalhar
sempre. O autor precisa do corpo e da alma do leitor, a um tempo protagonista e
coautor do livre que percorre.
ZP | Você escreve seus poemas em português . Já tentou fazer versões de dos seus
próprios poemas
para esses idiomas ? (Caso a
resposta seja positiva ,
por favor , fale
um pouco
da recepção e da crítica .
Caso a resposta
seja negativa , por
favor , diga por
quê ?)
ML | Sim. A minha condição
é bilíngue. Italiano e português. Escrevi em italiano e em outras expressões, mas
o português é meu centro de gravidade. Escrevi em russo um poema à saudosa escritora
búlgara Svoboda, no livro Meridiano celeste
& bestiário, de 2006.
*****
Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela
(Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira
fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada
no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo
de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob
a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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