O primeiro contato, ao vivo e a cores, foi
na sua casa em Bangu (RJ), em 1976. Tinha ido com o Fagner convidá-lo para os arranjos
do Maraponga. O interior da casa nada se parecia com uma casa normal, digamos. Era
um misto de estúdio e, ao mesmo tempo, um depósito do que parecia centenas (ou seria
milhares?) de instrumentos musicais, dos mais tradicionais a uns bem singulares...
Tinha uma aura mágica pairando no ar. Afinal, era a casa de um mago da música mundial.
Para nossa alegria (e surpresa), ele aceitou
o trabalho...! De repente, começaram as gravações no estúdio da CBS, na Praça Tiradentes
no centro do Rio. Chegava sempre na hora
trazendo o Itiberê, seu fiel baixista, e o seu personal batera (que não recordo
o nome). Um dia, ele chegou com um rabo de cavalo na sua farta barba branca e fez
todo mundo rir e se alegrar com seu gênio brincalhão.
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Suas partituras eram um caso à parte. Escritas com caneta Futura preta, sua caligrafia musical era tão intensa quanto sua música. Umas notinhas minúsculas sobre as linhas, que ele lia a uma distância mínima da vista, quase roçando o papel nas suas faces rosadas. Quando fazia correções, riscava riscava riscava, até ficar uma mancha preta que quase varava para o outro lado do papel. E ali, naquelas grandes folhas de papel pentagramado, rabiscadas e garatujadas, estavam os seus fantásticos arranjos para sopros e cordas além da linha harmônica para o piano e o baixo.
As gravações, com ele comandando o estúdio,
corriam, ao mesmo tempo, macias, geniais e intensas... Sua presença criava uma atmosfera
prodigiosa irradiando sonoridades musicais por todos os poros do ar, encantando
produtores, músicos e cantores... todos em completo estado de graça.
Tocava, regia, ouvia, repetia, tocava de novo,
até ficar no seu agrado e no de todos, pois sempre queria opiniões: um maestro genial
plenamente democrático...
Dessa experiência, o mais incrível que nos
aconteceu, naquele estúdio, foi a gravação de Cavalo-Ferro. O Fagner mostrou a música
no violão uma única vez. Ele deu um sinal que tinha compreendido e se encaminhou
para o piano desaparecendo por trás de uns biombos. Não podíamos vê-lo. A música
seria gravada direta, como se fosse ao vivo.
De repente, ouvimos surpresos um trote perfeito
de cavalo, depois, uns sopros como numa boca de garrafa (ele arranjou uma na hora...)
e então entrou o piano numa introdução de arrasar... Mas isso, era só a introdução
da introdução... Deixa que suas 'deixas' eram tão claras, que sabíamos exatamente
onde iniciar a cantar e onde silenciar para o piano fazer seus intermezzos geniais.
E daí pra frente, amigos, foi tudo pura feitiçaria
musical. Terminada a gravação, nada mais havia a declarar! Ao ouvirmos, decisão
unânime, é essa mesmo, tá pronta, morreu, fica assim, tá bom demais... Tínhamos
acabado de presenciar e participar de uma gravação antológica, da cabeça aos pés...
Absolutamente inolvidável!
Outra experiência inusitada foi num show que
fomos ver em Niterói. Tudo ia correndo bem, quando do meio pro fim o clima foi esquentando,
os improvisos coletivos já passavam da estratosfera quando, de repente, vi o roadie
entrar no palco e recolher o estande do percussionista... Por que? Depois, fiquei
sabendo que nessa época no clímax do clímax da última música, estava virando costume
do nosso personagem derrubar o estande da percussão para produzir aquele último
e definitivo som... De passagem, um pouco antes do fim do show a banda começou a
descer do palco, cada um com o seu instrumento e tocando foram saindo pelo corredor
central do teatro e o público foi se levantando e seguindo o cortejo e de repente
estávamos todos no meio da rua numa procissão-desfile noturno sonoro-musical da
pesada. Todo mundo dançando e/ou andando, demos uma volta no quarteirão, o som e
o público rolando, e voltamos para o teatro. Cada um foi indo pro seu lugar e a
banda subiu para o palco. O show estava pra terminar e foi aí que aconteceu o lance
do estande do percussionista...
Numas das últimas vezes que veio a Fortaleza,
fui encontrá-lo no camarim depois do show. Ele estava só e sentado na única cadeira
que havia ali. Para falar com ele, achei por bem me ajoelhar à sua frente, assim
ficava melhor pra ele me ver a curta distância e a gente conversar. De joelhos,
não pude deixar de pensar na simbologia da reverência religiosa. E percebi que era
isso mesmo... estava ajoelhado perante uma das maiores santidades da música mundial
da nossa era: Santo Hermeto Paschoal.
Amém!
Fortaleza, setembro, 2017
ACAMPAMENTO MUSICAL
RICARDO BEZERRA (Brasil, 1949). Músico, compositor, arquiteto.
Gravou um disco, Maraponga, em que Hermeto
Pascoal participa como músico e arranjador.
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Organização
a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista
convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens
© Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos
especiais a Jovino Santos Neto
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura,
assim estruturado:
1
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2
VIAGENS DO SURREALISMO, I
3
O RIO DA MEMÓRIA, I
4
VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5
VOZES POÉTICAS
6
PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7
VIAGENS DO SURREALISMO, II
8
O RIO DA MEMÓRIA, II
9
ACAMPAMENTO MUSICAL
A
Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
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