terça-feira, 3 de outubro de 2017

ESTER FRIDMAN | Como tornar-se uma obra de arte – a escultura de si mesmo


Ninguém pensa autonomamente. A quase totalidade de nossos pensamentos, assim como nossas crenças, nossos valores e convicções em geral, têm sua origem em visões do mundo estruturadas ao longo da história das ideias. Estudar história da filosofia é estudar o surgimento e evolução dessas ideias que vão criando raízes dentro de cada um de nós. Se não podemos ter um pensamento independente, pelo menos podemos entender por que pensamos de uma determinada forma e não de outra. Entrar em contato direto com as grandes obras filosóficas é uma experiência enriquecedora, que contextualiza nossas vidas dentro da história da humanidade.
Os primeiros filósofos viviam em Mileto, nas colônias orientais da Ásia Menor - ponto de encontro das caravanas vindas do Oriente. Alguns estudiosos acreditam ter sido esse cenário efervescente, de grande comércio e encontros, o que propiciou a emergência da Filosofia. Esta foi a época em que os gregos fundaram as cidades-Estado, ou Polis, na Grécia e em suas colônias na Ásia Menor e no sul da Itália. A organização política da polis se autodenominava democrática. A elite de Atenas se reunia em praça pública para discutir, argumentar e deliberar. Esse exercício contínuo da discussão propiciou o desenvolvimento de um pensamento independente dos cultos religiosos. Os lugares onde esses debatedores encontravam-se deram nomes às primeiras escolas filosóficas. O Estoicismo, por exemplo, vem do grego stoa, que quer dizer “pórtico”. Isso porque o pai desta escola, Zenão de Cítio (c.334-262 a. C ), ensinava sob um pórtico.
Sócrates (470-399 a. C.), que disse que “uma vida sem busca não é digna de ser vivida”, não deixou nada escrito e o o que sabemos sobre ele nos veio por meio de algumas fontes como Platão e o historiador Xenofonte (c. 428-354 a. C.). É dito que ele costumava indagar as pessoas em plena praça para saber suas opiniões a respeito de diversos assuntos, e conforme elas lhe respondiam, ele continuava indagando, até que elas entrassem em contradição, mostrando com isso que suas opiniões não tinham fundamento. Platão, em muitos de seus livros, relata como isso acontecia. No livro intitulado
Teeteto, por exemplo, ele aborda o que hoje chamamos Teoria do conhecimento. Teeteto, um matemático que dialoga com Sócrates, afirma que sua opinião é verdadeira. Sócrates, então, lhe pergunta: mas o que é a verdade? Em outros livros Platão aborda outros temas, como, por exemplo, a justiça. Uma pessoa lhe diz que se considera justa. Sócrates, então, lhe pergunta: o que é a justiça? Dessa forma, indo a fundo numa determinada questão, a resposta do interlocutor levava a uma nova pergunta, e as novas respostas sempre acabavam levando o interlocutor a se contradizer, até que, por fim, este reconhecia não saber o que a princípio pensava que sabia. Sócrates costumava dizer que sua mãe era parteira de crianças e que ele era parteiro de almas. Por induzir os jovens a questionar a respeito dos valores e crenças vigentes, Sócrates foi condenado à morte. Enquanto os filósofos pré-socráticos indagavam sobre a natureza, e por isso eram chamados de físicos ou naturalistas, Sócrates investigava, principalmente, a natureza do raciocínio.
De acordo com Platão (429-347 a.C.) e Aristóteles  (384-322 a.C.), a origem do pensamento filosófico é o espanto (thauma). [1] Ou seja, quando as questões da vida nos causam espanto, admiração, indagação. As crianças naturalmente têm esse espanto, mas o adulto acaba se acomodando em sua rotina e não mais se admira com a vida, não mais indaga sobre ela. O filósofo é aquele que mantém viva essa capacidade de se espantar, e isso o leva a questionar e refletir sobre a vida. De acordo com Gaarder Jostein, “Um filósofo nunca é capaz de se habituar completamente com este mundo. Para ele ou para ela o mundo continua a ter algo de incompreensível, algo até de enigmático, de secreto. Os filósofos e as crianças têm, portanto, uma importante característica comum. Podemos dizer que um filósofo permanece a sua vida toda tão receptivo e sensível às coisas quanto um bebê.” [2] Filosofia, no sentido etimológico da palavra, significa “amor à sabedoria” ou “amigo do saber”: Philos deriva de philia, que significa amizade e amor fraterno; sophia significa sabedoria. Como diz Jacob Needleman, “O homem não pode viver sem filosofia. (…) Há, no coração humano, uma busca que é nutrida apenas pela autêntica filosofia, sem a qual o homem morre como se fosse privado de alimento ou ar”. [3]
A Filosofia é um trabalho de reflexão e análise sobre a vida, o mundo, o homem no mundo, seu comportamento, sua cultura, política, religião, arte, ciência, tecnologia, e todo e qualquer assunto que se relaciona ao ser humano. A reflexão requer um distanciamento do objeto que está sendo considerado. Há, portanto, uma separação entre o sujeito que pensa e o objeto pensado. O pensamento científico filosófico se dá por conceitos, ou seja, faz uso de uma linguagem conceitual. Esse tipo de linguagem foi sendo, ao longo da história, incorporada por toda a civilização ocidental cuja cultura originou-se na Grécia. Todos pensamos por conceitos, mas o filósofo acadêmico é treinado ao pensamento rigoroso, sendo que a filosofia tradicional faz uso da lógica para justificar seus argumentos.
Assim, no século VI a. C. teve início uma nova forma de pensar. Mas, se  antes do século VI não pensávamos como pensamos hoje, ou seja, conceitualmente, como pensávamos então? Pensávamos simbolicamente, ou seja, não por conceitos, mas por símbolos. É o caso do pensamento mítico. Sabemos que antes do florescer da Filosofia, o homem dava sentido ao mundo e à vida através das narrativas mitológicas. Mas não eram narrativas entendidas pelo intelecto. A humanidade de então não entendia intelectualmente os mitos, mas vivia-os. Para que haja um entendimento intelectual faz-se necessário um distanciamento; para a vivência faz-se necessário a comunhão. O pensamento mítico é um pensamento simbólico, ou seja, um tipo de pensamento onde não há separação entre sujeito e objeto; estes permanecem unidos. Não há abstração. O pensamento abstrato como o conhecemos hoje ainda não existia nessa época remota na civilização ocidental. Em meados do século VI a. C. dá-se então o início da passagem do pensamento simbólico para o pensamento conceitual. Os mitos foram sendo deixados de lado, para em seu lugar entrar a ciência. Evidentemente, essa passagem não ocorre de maneira abrupta, mas gradual. Talvez possamos remeter o início dessa transição a Homero [4] e Hesíodo. [5]
Nesta transição os gregos definiram o ser humano como um animal racional,  com o pensamento e a linguagem definindo a razão. As narrativas que eram até então somente ouvidas, passaram a ser escritas e lidas, dando uma brecha para o distanciamento, a reflexão e a discussão.  Foi nesta época que teve início a crença de que o conhecimento verdadeiro só pode ser adquirido pela razão. Esta crença é baseada numa outra, a de que existe um conhecimento verdadeiro. Assim, teve início também uma investigação sobre o funcionamento da razão: suas leis, regras e princípios de operações. Estabeleceu-se então o que seria um pensamento verdadeiro: aquele que se fundamenta e se justifica através de argumentos, mediante demonstrações e provas. A filosofia exige o pensamento rigoroso, ou seja, imbuído do rigor da lógica, com justificação do argumento. Ela não trabalha com opiniões, mas com fundamentação racional, baseada em regras de argumentação que devem ser seguidas, a partir das quais as ideias desenvolvidas são articuladas. Faz parte da filosofia a adoção de uma atitude crítica. Esta envolve um exame racional isento de preconceitos, embora saibamos que isso é impossível. Envolve ainda a capacidade de discernimento e julgamento.
Assim, a Filosofia tem início nas colônias do mar jônico, é elaborada em Atenas, desenvolvida no mundo helênico, e depois apropriada pelo mundo latino e cristão. De acordo com Aristóteles, o saber filosófico é um saber livre, sobre todas as coisas. Livre porque não se prende a uma utilidade – é um saber pelo saber. É sobre todas as coisas porque o filósofo não é um especialista de um conhecimento especifico e utilitário. A Filosofia é uma atividade que indaga a respeito de tudo o que faz parte do mundo em que vivemos. Nas palavras de Espinosa (1632-1677): “É um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade”. Para Merleau-Ponty (1908-1961): “É um despertar para ver e mudar nosso mundo”.
Mas a filosofia dos antigos era muito diferente da atual. Os gregos acreditavam que havia uma ordem lógica operando por trás do caos, e que essa ordem era divina, e o homem poderia compreendê-la através da razão, ou logos (lei ou princípio). Eles denominavam a ordem e a harmonia do mundo de cosmos. Para Aristóteles, aquele que julga o mundo desordenado ou mau, só está olhando para um detalhe, e não para a totalidade. A corrupção reina somente no mundo sensível. Os antigos empregavam a palavra “teoria” no sentido de “eu vejo o divino” (theion = o divino; orao = eu vejo). Para os estoicos, teoria consistia em contemplar o que é divino, ou seja, a estrutura ordenada do universo. Para muitas escolas antigas, os atos eram mais importantes do que o discurso. Heráclito (c. 480 a. C.) defendia a ideia de um Logos (lei ou princípio), eterno e divino, que é subjacente a tudo, que unifica os opostos e que, de algum modo, está associado ao fogo. Esta ideia e o contraste entre um mundo instável e a ordem que está por trás dele será de grande influência em Platão. Para Anaximandro (c.610-547 a.C.), o mundo em que vivemos é um dos muitos mundos que surgem e se dissolvem. Os filósofos de Mileto acreditavam na existência de uma substância primordial, de onde tudo se originava e depois retornava. Para Tales (c.650-550 a.C.), por exemplo, o princípio de tudo, ou arché, era a água. Para Heráclito essa substância era o fogo, para Anaximandro era o apeíron (o indeterminado, também traduzido por infinito); já Anaxímenes (c.550-480 a.C.) achava que tudo vinha do ar.
Mas, a meu ver, uma das coisas mais fascinantes entre os antigos é seu conceito de ethos, origem da palavra ética. Vivendo hoje uma crise ética em todos os âmbitos da sociedade e em seu desgoverno, temos muito a aprender com nossos antepassados. Ethos significa o conjunto de hábitos, costumes e valores de uma sociedade. Os romanos traduziram para moris, do qual provém moralis, que deu origem à nossa palavra portuguesa moral. Para o grego antigo, o ethos de uma pessoa se traduz pelos seus hábitos, seu porte, maneira de caminhar e de responder a todos os acontecimentos da vida. Ou seja, é a maneira de ser e de se conduzir. A sociedade grega antiga exigia que cada cidadão prestasse atenção em si próprio para o bem da cidade. Essa maneira de ser não era inata, mas trabalhada arduamente. Responder com serenidade e respeito aos acontecimentos da vida, ter bons hábitos, boa conduta, é o que determinava o valor de uma pessoa. Se uma pessoa quer um mundo honesto, ela deve ser honesta, se quer um mundo justo, deve ser justa. Para desenvolver essas virtudes há que se fazer um trabalho consigo mesmo, meditar, estudar, se auto observar. Esta era a forma concreta de liberdade – esculpir a si mesmo para tornar-se uma obra de arte – verdadeira maestria na arte de viver.

NOTAS
1. Teeteto, 155 c 8, de Platão, e Metafísica, A 982 b, de Aristóteles.
2. JOSTEIN GAARDER, O Mundo de Sofia, Cia das Letras, 2007, p.30.
3. JACOB NEEDLEMAN, O Coração da Filosofia, Ed. Palas Athena, 1991, p. 13.
4. Não há provas concretas sobre a vida de Homero. Alguns estudiosos acreditam que ele tenha vivido no séc. VIII a.C. A ele são atribuídos os poemas épicos Ilíada e Odisséia.
5. Junto a Homero, Hesíodo, também do séc. VIII a.C., é o mais antigo poeta grego cujas obras chegaram a nós. A Teogonia e Os trabalhos e os dias são duas de suas obras.

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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Valdir Rocha (Brasil, 1951), artista convidado desta edição de ARC.


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● ÍNDICE # 103

Editorial | Os horizontes não param de brotar

ESTER FRIDMAN | Como tornar-se uma obra de arte - a escultura de si mesmo

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Algunas variaciones  sobre la metamorfosis de Franz Kafka

HAROLD ALVARADO TENORIO Piedra y Cielo 1936-1942

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | O teatro de Aimé Césaire: Une saison au Congo

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Pier-Paolo Pasolini et l’anthologie de Mario Pinto de Andrade sur la poésie nègre de langue portugaise

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Florbela Espanca e Ada Saffo Sapere: Alentejo e Reggio Calábria no feminino

OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ | En la muerte de Germán List Arzubide (1898-1998)

OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ | Meditaciones antimetafísicas

PIER PAOLO PASOLINI | La Résistance nègre

ROXANA RODRÍGUEZ | Rubén Sicilia y el Teatro del Silencio

ARTISTA CONVIDADO | VALDIR ROCHA | ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR | Valdir Rocha, um olhar sobre o abismo


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Agulha Revista de Cultura
Número 103 | Outubro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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2 comentários:

  1. ''...há que se fazer um trabalho consigo mesmo, meditar, estudar, se auto observar. Esta era a forma concreta de liberdade – esculpir a si mesmo para tornar-se uma obra de arte – verdadeira maestria na arte de viver.'' Isso!Tarefa nada fácil mas com certeza, o melhor que temos a fazer por nós e pelos outros ;)

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  2. Muito obrigada pela leitura e pelo excelente comentário, Maria.

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