Quando assistimos a um filme
acreditamos ver os atores em movimento. Porém, o que vemos é uma sequência de fotos
que dão a ilusão de movimento, mais precisamente uma sequência de vinte e quatro
fotos por segundo, que é o padrão da indústria cinematográfica. Como nossa percepção
é bem menor, temos a ilusão do movimento. Acaso não ocorreria o mesmo em relação
a nossas vidas?
Dessa analogia decorre que
a vida é uma sequência de instantes, cada qual isolado. Graças a nossa memória lembramos
os instantes vividos, e somente quando os narramos damos uma sequência. Sem perceber
conectamos os instantes uns aos outros, dando assim um sentido à vida. Nossa memória
é a câmara da vida que dá a ilusão de continuidade. Para lembrar nosso passado,
e projetar nosso futuro, unimos os instantes vividos ou imaginados na forma de narrativa.
É esta que dá um sentido à vida. E o que é a narrativa senão o mito em seu significado
original: mythos – palavra grega que significa discurso ou narrativa. Em outras
palavras, criamos o nosso mito ao fazer a colagem dos instantes captados pela memória.
Por isso quem conta um conto aumenta um ponto, pois a cada vez que contamos a nossa
história recriamos a colagem.
Nietzsche dizia que vivia
fora de seu tempo, que só o depois de amanhã lhe pertencia, e considerava-se discípulo
do filósofo Dionísio. Ora, ao se dizer discípulo de Dionísio, ele, de alguma forma,
se distende para o passado, e ao dizer que o depois de amanhã lhe pertence, se distende
para o futuro. Seria a dilatação, então, uma propriedade do tempo ou do homem? Se
for do homem, Santo Agostinho (354-430) estava certo. Segundo ele, o tempo é a distensão
da alma, que vive um dilaceramento entre o passado e o futuro. Para Agostinho, só
a união com Deus pode nos livrar desse dilaceramento. O tempo dos homens tem uma
finalidade, que é participar com a eternidade de Deus. Para ele, a lembrança e o
prognóstico estão em nosso espírito no presente, e não vivemos o presente sem sofrimento
porque estamos presos ao passado e ao futuro. Segundo Paul Ricoeur (1913-2005),
essa é a solução de Agostinho para a aporia do ser e não-ser no tempo – não existe
passado e futuro, existe presente do passado (lembrança), presente do presente (visão)
e presente do futuro (expectativa). Tudo existe no presente, em nosso espírito.
O passado é não-ser, já passou, portanto não é. A expectativa do futuro é – existe
no presente. Mas surge então um novo problema: como identificar algo como sendo
do passado e não do futuro?
Ricoeur identifica ainda em Agostinho uma segunda
aporia – a da medida. Só podemos medir o que existe e só existe o presente. Mas
este não tem extensão. Para resolver a medida do tempo, Agostinho mais uma vez traz
o espírito – a medida se dá no espírito. Isso leva a um paradoxo: há uma espécie
de contração do tempo, a ponto de não ter extensão e, ao mesmo tempo, é distendido.
Na leitura de Ricoeur, a presença do passado no espírito só se faz presente quando
o próprio espírito se dirige a ela. O presente é pura intenção do espírito. Este
é ao mesmo tempo intenção e distensão. O presente é o puro espírito fazendo o ato
de passar. É um tríplice presente em tríplice intenção.
A distensão da alma em Agostinho é lida por Ricoeur
como discordância. E se a experiência no tempo é dilaceramento, a narrativa, para
Ricoeur, irá promover a integração do que a experiência desintegra, uma vez que
articula presente, passado e futuro, promovendo uma espécie de concordância. É em
Aristóteles que Ricoeur busca o modelo dessa concordância, na maneira que ele lê
a tragédia como mimésis da ação. Ricoeur usa esse modelo para refletir como a narrativa
se articula em nossa experiência temporal. Nós somos esse dilaceramento temporal
(Agostinho), e ao mesmo tempo, somos integrados no tempo. O que dá essa integração
é a narrativa. Como diz Sartre (em A náusea),
ao narrar nossas histórias tentamos capturar o tempo. “Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como
os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo”.
Aristóteles estuda a estrutura
da tragédia sem pensar a temporalidade. Mas, para Ricoeur, a estrutura narrativa
da tragédia é uma forma de ordenar nossa experiência do tempo, e ele se pergunta
se não poderia usar o modelo de Aristóteles para outras narrativas. Aristóteles,
segundo Ricoeur, enfatiza a concordância, e um jogo entre concordância e discordância.
A concordância aparece como a ideia do mytho como disposição dos fatos. Dispor os
fatos, os acontecimentos, de certa maneira, certa configuração. Para Ricoeur isso
implica três grandes traços que sublinham a ideia da concordância, que têm como
características iniciais – a completude, a totalidade e a expressão apropriada.
Para Aristóteles a obra tem começo, meio e fim, e o instante inicial, o começo,
não vem pelo antecedente, mas pelo que vem depois. A sucessão dos instantes obedece
a um encadeamento que, por sua vez, obedece a certa lógica da própria composição.
A composição não é aleatória, mas tem uma lógica interna. Esta, para Ricoeur, é
um tipo de inteligibilidade próxima da inteligibilidade da prática (práxis), não
da teoria. Fatos soltos não têm sentido. Narrar já é compreender de alguma maneira,
dar certo sentido. Em outras palavras, sem a história as coisas ficam ininteligíveis.
Se, sem a história as coisas
ficam ininteligíveis, podemos facilmente afirmar que quanto mais história melhor,
porque mais inteligíveis se tornam as coisas. Nietzsche, em seus primeiros escritos,
discordaria dessa afirmação. Para ele, “o
elemento histórico e o elemento a-histórico são igualmente necessários à saúde de
um indivíduo, de um povo, de uma cultura”. [1] Segundo ele, história em excesso “mata o homem, e, sem este invólucro de a-historicidade, ele jamais poderia
ter começado ou pretendido começar a existir”, e “o excesso de história abala e faz degenerar a
vida, e esta degenerescência acaba igualmente por colocar em perigo a própria história”.
Qual razão de tão feroz crítica ao excesso de história?
Para o Nietzsche das Considerações Intempestivas é necessário uma medida, uma dosagem,
entre lembrança e esquecimento. O homem não poderia viver totalmente sem memória,
embora, segundo Nietzsche, ele sinta uma certa inveja do animal, justamente por
este viver sem memória, por viver somente o momento presente. Muita lembrança é
prejudicial, pois nos faz prisioneiros do passado.
É um verdadeiro milagre:
o instante, aparecendo e desaparecendo como um relâmpago, vindo do nada e retornando
a ele, volta, no entanto, como um fantasma a perturbar a paz de um instante posterior.
Uma após outra, as folhas se soltam do registro do tempo, caem e volteiam, depois
voltam repentinamente a se pôr no colo do homem. Então, este diz: “Eu me lembro”,
e tem inveja do animal que logo esquece e realmente vê cada instante morrer, caído
na noite e na bruma, e desaparecer para sempre. O animal, de fato, vive de maneira
a-histórica (unhistorich): ele está inteiramente absorvido pelo presente, tal como
um número que se divide sem deixar resto; ele não sabe dissimular, não oculta nada
e se mostra a cada segundo tal como é, por isso é necessariamente sincero. O homem,
ao contrário, se defende contra a carga sempre mais esmagadora do passado (…) que
entrava a sua marcha como um tenebroso e invisível fardo.
Para Nietzsche, o animal,
assim como a criança, por não ter um passado a carregar, não tem o que esconder.
Vivendo o presente, são sinceros, não precisam dissimular. A criança, porém, um
dia aprende a diferenciar o passado do presente, aprende a dizer “foi” – “a fórmula
que leva o homem aos combates, ao sofrimento e ao desprezo, e o faz lembrar que
no fundo toda a existência é tão-somente uma eterna incompletude. Quando, enfim,
a morte trouxer o esquecimento desejado, ela suprimirá também o presente e a existência,
selando assim esta verdade, de que 'ser' (Dasein) não é senão um ininterrupto 'ter
sido'…”
Enfim, para o Nietzsche da
II Consideração Intempestiva, a felicidade
depende da faculdade de esquecer. Só esquecendo é que se pode sentir as coisas durante
o tempo que a felicidade dura. Felicidade é estar no tempo presente, sentindo. Só
conhece a felicidade aquele que “sabe instalar-se no limiar do instante, esquecendo
todo o passado (…), colocar-se de pé uma vez sequer, sem medo e sem vertigem (…).
Imaginemos, para tomar um exemplo extremo, um homem que não possuísse força suficiente
para esquecer e que estivesse condenado a ver em tudo um devir (Werden): um homem
assim não acreditaria mais na própria existência, não acreditaria mais em si, veria
tudo se dissolver numa multidão de pontos móveis e deixar-se-ia arrastar por esta
torrente do devir: como um verdadeiro discípulo de Heráclito, ele acabaria por nem
sequer ousar mexer um dedo. Toda ação exige esquecimento.”
O contrário da felicidade
seria viver de forma exclusivamente histórica. Isso seria tão nocivo quanto não
dormir. Assim como o homem precisa do dia e da noite, precisa da lembrança e do
esquecimento. Trata-se de uma necessidade vital. “Há um grau de insônia, de ruminação,
de sentido histórico, para além do qual os seres vivos se verão abalados e finalmente
destruídos…”
Vemos que para o Nietzsche
da II Consideração Intempestiva, o tempo
se faz subjetivo. E a saúde e a felicidade de um indivíduo ou de um povo dependem
da maneira como lida com o presente. Ricoeur diz que aquilo que aconteceu uma vez,
não tem como deixar de ter acontecido, não há como apagar o fato que aconteceu.
Nietzsche concordaria com Ricoeur, desde que não precisasse carregar consigo o que
aconteceu. Para Nietzsche, feliz é aquele que não arrasta consigo os grilhões de
seu passado. Para isso é necessário ter uma força que transforme o que vem do passado,
capaz de reparar as perdas e curar as feridas, permitindo que o indivíduo se desenvolva
de forma original e independente. Um indivíduo cuja “natureza profunda” possui fortes
raízes tem melhores condições para assimilar o passado. Sem essa força plástica
e uma natureza profunda com raízes firmes, capaz de transformar o passado em seu
“próprio sangue”, o sentido histórico cumpre um papel de usurpador. Para que isso
não aconteça o homem tem que ser forte para utilizar o passado em benefício da vida.
Segundo Nietzsche, para as pessoas totalmente desprovidas dessa força, basta um
único acontecimento, um sofrimento ou injustiça para esvaziá-las de todo o seu sangue,
enquanto que aqueles cuja força se faz sentir em maior grau podem passar por grandes
catástrofes sem serem muito afetadas. Creio estar Nietzsche se referindo a identidade
da pessoa no sentido de “natureza profunda”. A pessoa cuja “natureza profunda” não
tem raízes fortes perde sua identidade, perde todo o seu sangue, pela identidade
de seu passado. “… a história só é suportável
para as personalidades fortes; para as personalidades fracas, ela somente consegue
sufocá-las”.
Me parece
que ao dizer que sem o invólucro de a-historicidade o homem nem sequer poderia ter
começado a existir, Nietzsche quer mostrar que somente num estado de a-historicidade
é possível iniciar algo novo. O espírito criativo, o lutador e o empreendedor são
movidos por um tipo de paixão que não vê mais nada em sua frente além do objeto
da paixão.
…nenhum artista realizaria
a sua obra, nenhum general alcançaria a sua vitória, nenhum povo conquistaria a
sua liberdade, sem que estas coisas tivessem sido previamente desejadas e perseguidas
num tal estado de a-historicidade. Assim como o homem de ação é sempre, segundo
a expressão de Goethe, despojado de escrúpulos, da mesma maneira ele é também privado
de consciência, esquece tudo exceto a coisa que quer fazer, é injusto para com aquele
que o precede, e não conhece senão um direito, o direito daquele que vai agora nascer.
Dessa perspectiva o novo
não nasce do passado, não há uma continuidade. Somente os espíritos históricos veem
uma continuidade, e creem que o futuro poderá ser melhor que o passado. Aliás, é
o passado que os lança para o futuro. Eles veem a existência como um processo que
progride. Talvez isso ocorra pelo fato de que a história narrada produz efeitos
em nós. Há, para Nietzsche, três formas de história, que correspondem a três razões
pelas quais o homem se interessa pela história: a história monumental, porque os
homens agem e perseguem um fim; a história tradicionalista, porque eles conservam
e veneram o que foi; e a história crítica, porque eles sofrem e têm necessidade
de libertação. Na II Consideração Intempestiva Nietzsche explica detalhadamente
as diferenças entre esses três tipos de história. A história tradicionalista pode
paralisar o homem de ação, impedindo-o de optar pelo que é novo. Os espíritos supra
históricos, no entanto, não veem a existência como um processo. Para eles “o passado
e o presente são uma única e mesma coisa, a saber, um conjunto imóvel de tipos eternamente
presentes e idênticos a si mesmos, para além de todas as diversidades (…). Assim
como as centenas de línguas diferentes exprimem sempre as mesmas necessidades típicas
do homem, de maneira que o conhecimento de todas as línguas não ensinaria nada de
novo àquele que tivesse sabido compreender estas necessidades, também o pensador
supra histórico esclarece a partir de dentro toda a história dos povos e dos indivíduos…”
Para eles o mundo é feito de instantes, e cada instante já alcançou o seu fim.
Se pensarmos
o tempo como algo que só ganha substância pela narrativa, ou, só se tornando humano
através da narrativa, como diria Ricoeur, o tempo do espírito supra histórico é
insubstancial e inumano. Para Nietzsche não existe uma unidade entre os acontecimentos.
Ele diz nesse período que “pensar a história
como tendo esta objetividade, este é o trabalho secreto do dramaturgo: juntar tudo
pelo pensamento, relacionar cada acontecimento particular ao conjunto da trama,
com base no princípio de que é preciso introduzir nas coisas uma unidade de plano,
quando na realidade ela aí não existe. É assim que o homem estende a sua teia sobre
o passado e se torna senhor dele, é assim que se manifesta o seu impulso artístico
– mas não o seu impulso para a verdade e para a justiça”. Para Ricoeur, o
tempo está ligado à narrativa porque são os acontecimentos narrados que lhe dão
consistência. Os instantes se ligariam em uma sucessão, dentro de um encadeamento
lógico, formando uma composição. Isso só se faz dentro de uma concepção linear do
tempo, tal qual a concepção de tempo judaico-cristã. Em Nietzsche eu não creio que
se possa falar em tal concepção de tempo. A concepção cíclica do tempo, como a da
Grécia antiga, mesmo de forma diferencial, seria mais adequada. Uma concepção nietzscheana
cíclica do tempo esclarece o destronamento que Nietzsche faz da razão, colocando
o corpo como sendo a grande razão. Se o tempo em Nietzsche é cíclico, o pensamento
racional, lógico, linear, não é o mais adequado. Este não consegue capturar o tempo,
não pode abarcar a totalidade. Mas o tempo, de qualquer forma, sendo ele linear
ou cíclico, flui, não é fixo, em contraste com a linguagem conceitual, que é estática.
Aristóteles já dizia que o tempo não é o movimento, mas está ligado a ele. Tempo
e linguagem conceitual mostram-se, portanto, incompatíveis. A concepção cíclica
do tempo pode ser mais adequada a Nietzsche, porém não suficiente, se lembrarmos
que ele fala em simultaneidade intemporal:
Tempo virá em que abdicaremos
sabiamente de elaborar um processo universal ou simplesmente a história da humanidade,
uma época na qual não se levará mais em conta as massas, mas apenas os indivíduos
que formam uma espécie de ponte sobre a torrente selvagem do devir. Estes não dão
continuidade a qualquer processo, mas vivem numa simultaneidade intemporal (zeitlos-gleichzeitig);
graças à história que permite a eles unificar os seus esforços, estes indivíduos
constroem esta República de gênios da qual Schopenhauer falou em algum lugar: um
gigante chama outro através dos intervalos desérticos do tempo, sem levar em conta
os anões ruidosos e turbulentos que se agitam a seus pés; assim, eles perpetuam
o elevado diálogo dos espíritos. A tarefa da história é a de servir de mediadora
entre eles, para, fazendo isso, suscitar constantemente e promover o nascimento
da grandeza. Não, o fim da humanidade não pode residir no seu termo, mas somente
nos seus exemplares superiores.
Podemos aqui lembrar, a título
de comparação, o que diz Sartre a esse respeito. Diz o filósofo que os homens vivem
cruamente, sem história e sem significado. Se estamos vivendo, se estamos dentro
da existência, não pensamos sobre ela, apenas existimos. Na história há um trabalho
no arranjo dos fatos. Os fatos passados se tornam significativos, mas no momento
que aconteceram ninguém sabia que iriam ser significativos, pois os acontecimentos
em si mesmos são insignificantes. Para Sartre, o narrar é uma ilusão que todos têm
em comum. A narrativa de nossa vida é um fazer de conta. Assim, nos iludimos de
que nossa vida faz algum sentido. Enquanto para Sartre a relação entre viver e narrar
é uma relação de exclusão, para Ricoeur é uma relação de entrelaçamento.
É isso que ilude as pessoas:
um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas
histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver
sua vida como se a narrasse.
De qualquer maneira, Nietzsche
neste escrito aceita o conhecimento do passado, desde que este não enfraqueça o
presente ou corte as raízes de um futuro vigoroso, desde que tenha como função servir
ao presente e ao futuro. Ele pergunta, e responde: “O que resta fazer ao homem que possui uma cultura histórica, o fanático
moderno do processo que nada e se afoga no fluxo do devir, o que lhe resta fazer
para colher o desprezo, que é a uva deliciosa desta vinha? Nada senão continuar
a viver como sempre viveu, continuar a amar o que amou, continuar a odiar o que
odiou e continuar a ler os jornais que sempre leu – só há para ele um único pecado:
viver de modo diferente de como tem vivido. Para Nietzsche, o problema está
em querer fazer da história uma ciência, e se respeitar mais a história do que a
vida. Ao olhar sua época, indaga: “no que
se transformou esta ligação pura, clara e natural que deveria unir a vida e a história?”
E diz que “o saber histórico, alimentado
por fontes inesgotáveis, o afoga (ao homem moderno) e o invade cada vez mais; ele é assaltado por
fatos desconhecidos e incoerentes, a sua memória abre todas as portas, mas ela não
está ainda aberta o bastante; a natureza faz todo o possível para acolher, arrumar
e honrar esses hóspedes estranhos, mas eles estão em conflito uns com os outros,
por isso é preciso dominá-los e controlá-los, para que não se caia vítima destas
lutas”.
Como sabemos, na natureza
tudo acaba se adaptando, mas essa adaptação tem como consequência a transformação
numa segunda natureza, mais fraca e instável que a primeira, e menos sadia. O homem
moderno se empanturra de um saber que se dissimula numa certa “interioridade”, e
chama esse saber sobre a cultura de “sua cultura”, como se fosse sua. O homem moderno
não possui uma cultura autêntica porque ele próprio não é autêntico. Autêntico é
aquele que não se deixa permear pelo saber enciclopédico de uma boa memória - um
saber de histórias que não são as suas, que não as vive e não as viverá. É essa
história em excesso que Nietzsche critica, uma história que pertence a um saber
intelectual, muito diferente do saber visceral, do saber da vida. “Ninguém ousa
mais ser o que é, cada um se oculta atrás de uma máscara de homem culto, de erudito,
de poeta, de político. Se nos ativermos a estas máscaras, acreditando lidar com
pessoas reais e não como simples fantoches – pois todas são levadas muito a sério
– de repente nos descobriremos com somente trapos e ouropéis variegados nas mãos.
Por isso, não se deve deixar enganar; por isso, é urgente gritar para eles: 'Tirai
os vossos véus…!”.
NOTA
1. Friedrich Nietzsche. II
Consideração Intempestiva sobre a Utilidade e os inconvenientes da História para
a Vida, in Escritos sobre História. Tradução de Noéli C. De Melo Sobrinho. RJ: Editora
PUC; SP: Edições Loyola, 2005. Todas as citações pertencem a este mesmo trabalho.
ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963).
Filósofa e escritora,
pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche.
Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras
de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de
2017
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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