O
mais antigo livro de Carlos de Oliveira, Turismo, publicado na origem em 1942, começa
com o grupo de seis poemas “Infância”, o primeiro dos quais traz “Terra” por título.
Utilizo nesta comunicação o volume das Obras, publicado em 1992 pela Caminho. É
necessária esta informação porque o autor, ao decantar obsessivamente os textos,
suprimiu sequências frásicas e versos. Não raro transmuta longos poemas em menos
que haikus. Assim, na versão final, “Terra” apresenta uma única frase, quebrada
em três versos, num total de nove sílabas: Terra / sem uma gota/ de céu.
Os poemas de “Infância” são seis, e Turismo é um livro constituído
por apenas três grupos de poemas: “Infância”, “Amazónia” e “Gândara”. Ao referir
tanto algarismo, estou a chamar a atenção para a circunstância de a obra de Carlos
de Oliveira exibir com frequência uma simbologia de cariz maçónico, ora expressa
na numerologia ora na alquimia. O Aprendiz de Feiticeiro, por exemplo, é um dos
seus títulos. Quanto à simbologia maçónica, é obsessivo o uso do três, dir-se-ia
mesmo que esse é o único número que o poeta conhece. Alguns exemplos, coligidos
só no grupo “Cristal em Sória”, parte do livro Entre duas Memórias: “a terceira
luz” que o anjo camponês planta como uma árvore; (p. 330), “a terceira mulher” que
sustém no ar o desenho da casa (p. 339); as “três sílabas fulgentes” que o poeta
escolhe e se tornam “três ímanes” (p. 343).
“Cristal em Sória”, ao evocar o poeta António Machado e o rio
Douro em Espanha, representa uma das raras excepções ao facto de o espaço geográfico
privilegiado de Carlos de Oliveira ser a gândara.
Voltemos entretanto ao livro inicial, Turismo: se o primeiro
poema de “Infância” nos diz que a terra não tem uma gota de céu, o sexto e último
apresenta o “Céu/ sem uma gota / de terra”.
Pelo meio, no poema III vemos o sol transmutado em oiro, e outras
transformações ocorrem, como a dos seres terrestres, que se tornam aéreos e ganham
asas, caso das árvores.
O segundo bloco de poemas de Turismo é “Amazónia”. Esta notação
volta a transgredir a norma de que a terra inspiradora, matricial, é a gândara.
Como já foi observado por autores vários, mais fundamente por Vital Moreira, toda
a obra de Carlos de Oliveira, ficcional e poética, tem por lugar geográfico a região
gandaresa. Enunciemos, e por ordem de primeira edição, pois Carlos de Oliveira foi
autor de poucos livros: Trabalho Poético é o conjunto das suas obras em verso; O
Aprendiz de Feiticeiro reúne ensaios; e depois temos os romances: Casa na Duna,
Pequenos Burgueses, Uma Abelha na Chuva e Finisterra - Paisagem e Povoamento. Salvo
então referências mais ou menos ocasionais a outras terras, as obras de Carlos de
Oliveira apresentam como espaço geográfico e como personagens de eleição a gândara
e os seus habitantes.
O poema sobre a Amazónia, remetida para a infância, merece esclarecimento.
Carlos de Oliveira nasceu em Belém do Pará, na Amazónia, em 1921. Essa seria em
princípio a sua terra natal, mas regressou do Brasil aos dois anos de idade, para
os pais fixarem residência na zona da gândara, essa faixa costeira de dunas entrecortadas
por lagoas, povoada por pinhais e vegetação rasteira, plana e pobre, que vai mais
ou menos desde Coimbra até à Ria de Aveiro. Foi em Febres, povoação próxima de Cantanhede,
que o pai se fixou como médico. Carlos de Oliveira licenciou-se pela Universidade
de Coimbra, por isso é à sua infância e juventude que pertence a matriz cultural
gandaresa. Tendo passado em Lisboa o resto da vida, ligado às tertúlias literárias
do Saldanha, e muito em especial à do Toni dos Bifes, na Av. Praia da Vitória, onde
morava, causa alguma perplexidade que a presença da capital na sua obra seja fraca
ou nula.
Como observa Vital Moreira, a presença da gândara não se pode
explicar por simples constante geográfica, é muito mais do que isso: ela é a pátria
mental, afectiva, social, e mesmo ideológica do poeta. Quando se trata de minimamente
intervir na situação política, de acordo com algumas traves-mestras do neo-realismo,
a problemática social que traz à superfície, mediante a criação de personagens,
é a relação de poder entre camponeses e senhores da gândara.
“Gândara” é um título que já aparece nesse livro de estreia,
Turismo. A descrição do lugar é decantada, precisa e funerária. Mais do que funerária,
faz renascer a vida no atanor do aprendiz de feiticeiro. São seis versos apenas,
três em cada estrofe:
os sinos dobrados
já pela tarde fria.
Porque arde em mim ainda,
de mágoa e bronze,
o sol do dia?
O aspecto mais original da visão da terra, no Trabalho Poético,
fica patente sobretudo em Descida aos Infernos, e mais tarde em Micropaisagem, ao
tornar-se evidente o cariz geo-mítico de uma terra que merece o nome de Gaia, por
se harmonizar com a visão do planeta que vieram a fundar Lynn Margulis e James Lovelock,
a partir dos anos sessenta do passado século, na já bem conhecida teoria de Gaia.
2. Descida aos Infernos – visão
geomítica da Terra
Descida aos Infernos foi publicado pela primeira
vez em 1949. Até cerca do meio do livro, o discurso é mais intensamente concreto,
referindo-se sobretudo à geologia da parte sólida da Terra e à matriz sexual feminina,
mais concretamente ainda, ao útero, enquanto metáfora do subsolo; para além do meio
do livro, tão claro quanto a censura o haja permitido, o discurso é mais social,
sugerindo que o inferno é o da injustiça e da prepotência política. O neo-realismo,
muito transfigurado em Carlos de Oliveira, existe em todo o caso, e patenteia-se
no vocabulário, já que a gramática do verso corre pelo caminho de uma abstracção
capaz de se dissimular aos olhos da censura. Vocábulos como “gestapo”, “justiça”,
“réus” e “revólveres” atribuem ao leitor a tarefa de construir com eles um discurso
político compatível com as ideias de esquerda nos tempos da ditadura de Salazar.
O poeta desce sem guias ao centro da terra.
Menciona Dante, mas com mais propriedade podia mencionar Orfeu ou Júlio Verne; no
caso de Orfeu, o poeta vai ao inferno buscar o fogo, e lá conversa com Eurídice,
mas não é em Descida aos Infernos, sim no grupo de três poemas intitulado «Fogo»,
em Micropaisagem; no segundo caso, a sua descida é feita no espírito da técnica
e da ciência, através das minas, das grutas, dos estratos de granito e seus componentes
de quartzo, mica e feldspato, para trazer à superfície do poema os seus heróis e
mártires, os mineiros. Não obstante a tendência para o discurso sistemático da tecnologia
e da ciência, com a necessidade de identificar as espécies minerais e metalúrgicas,
o centro da terra, em Descida aos Infernos, é sexual, justificando a nossa proposta
de que a visão da terra em Carlos de Oliveira é geomítica. Nem só geológica, nem
apenas Gea como deusa-mãe. Não, o aspecto geomítico harmoniza-se com a teoria de
Gaia, isto é, mantém raízes no espaço religioso, exactamente como, à margem das
religiões dominantes, o exprime James Lovelock, ao escrever: “O facto de imaginarmos
o nosso planeta como um ser vivo dá-nos a sensação de que, em dias felizes, toda
a Terra está a celebrar uma cerimónia sagrada” (Lovelock, p. 186).
É com o útero da deusa que o poeta identifica
as minas e as grutas calcárias. A sua descida é movida pela busca do fogo criador,
identificado, numa primeira fase, com o desenvolvimento embrionário, depois com
um estado fetal mais avançado, e finalmente com a situação do nascituro que sai
da manta placentária para a luz do dia. Nesta completa imagem da gestação e parto,
não faltam sequer o monstro e o aborto.
Visão geomítica, ainda, porque a terra é um
ser materno, e ainda por esse útero subterrâneo ser também local de enterramento,
o túmulo de que a vida renasce e onde as estrelas levedam.
A dado passo, nesta concepção da Terra como
ser vivo, o poeta responsabiliza o planeta por negligência: tendo poderes para destruir
tudo, não chama à ordem os que à sua superfície merecem ser julgados e punidos.
Ora uma das ideias centrais da teoria de Gaia é a de ter ela mecanismos de auto-regulação,
sendo por isso capaz de se defender de certas agressões da espécie humana. Nesta
teoria considerada de ecologia profunda, a Terra seria capaz até de castigar as
espécies que a predam mais ferozmente, diminuindo com epidemias os seus efectivos
populacionais. Face à sequência de cataclismos que têm ultimamente assolado o mundo,
sobretudo tsunamis e temporais, já temos o hábito de por eles responsabilizar a
geral falta de cuidados ambientais; quer isto dizer que estamos cientes de que muitas
catástrofes são reacções da biosfera à nossa predação. Vejamos o que diz Lovelock
sobre o comportamento da Terra: «Gaia não é nem uma mãe extremosa que tudo tolera,
nem uma donzela frágil e delicada exposta a uma humanidade brutal. Ela é forte e
dura, mantendo o mundo em condições para aqueles que obedecem às leis, mas que se
mostra impiedosa quando destrói os transgressores» (p. 192).
Carlos de Oliveira labora na mesma ordem de
ideias de James Lovelock, ao acusar a terra por não reagir às agressões, tendo poderes
para arrasar tudo:
o teu ódio me degrede
a este inferno,
e me condene
a séculos de sede,
também te acuso, terra:
de sendo fogo
os não queimares,
de tendo vento
os não levares,
de trazeres sobre o dorso
o horror dos mares
onde eles se não somem;
de não soltares
a besta vingadora
no nosso orgulho de homens.
De notar ainda, entre as tendências científicas
em que assenta a modernidade do pensamento de Carlos de Oliveira, a concepção do
tempo. A memória não diz respeito unicamente a uma hipotética biografia individual,
nem ao registo histórico do passado recente de um povo. A memória, para já, é dupla:
também se projecta no futuro de forma antecipativa, como aliás fica patente no título
Entre duas Memórias. A antecipação, a que o poeta também chama memória ao contrário,
deve-se ao conhecimento científico de leis naturais. A regularidade com que se registam
certos fenómenos permite a sua previsão.
Pelo menos três leis da Natureza são evidentes
no Trabalho Poético: a de Lavoisier, aplicada à poética e ao desejo de transformação
social – na vida nada se perde, nada se cria, tudo se transforma; a lei da gravidade;
e a lei da evolução. Ora o tempo antecipativo, tal como a memória do passado, projectam-se
à escala geológica, dando-nos então a imagem do tempo evolutivo, aquele em que laboram
as transformações da gândara. É assim que aparecem menções a fósseis, e sobretudo
às florestas petrificadas, com “as flores esboçadas /na cal” (p. 305). Segundo Vital
Moreira, o poeta leu trabalhos de geologia sobre a região, pois é facto que no passado
da gândara ela era arborizada, existindo registo fóssil da floresta subjacente às
dunas e lagoas actuais.
O tempo geológico é a medida da evolução da
Terra, e portanto da sua idade. Porém a escala do tempo geológico, em Carlos de
Oliveira, não se aplica ao planeta, o que nos poria face a números muito grandes,
sim à constituição do solo da gândara, instável, e cuja morfologia actual é por
isso recente. Claro que o tempo da evolução de um lugar da Terra, por muito curto
que seja, ultrapassa sempre em centenas ou mesmo em milhares de anos o curso da
vida de um indivíduo. O tempo da evolução é lento, lentíssimo, vejamos como o poeta
descreve a lenta formação das grutas, em
«Estalactite»:
O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou pedra
hão-de cair
daqui a alguns milénios
e acordar
as ténues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim
3. O céu e a lei dos graves
Se na visão da terra dominam a lei da transformação
da matéria de Lavoisier, e a do tempo geológico oriundo das descobertas de Lyell
e Darwin, que é o tempo da evolução, na visão do céu domina a lei da gravidade,
mesmo se aplicada a objectos ou seres que deviam estar ao abrigo dela. De facto,
no Trabalho Poético, tudo quanto voa, flutua ou levita, mais tarde ou mais cedo
acaba por cair, caso das aves, dos anjos, e mesmo das estrelas, apesar de, por sua
natureza, algumas serem cadentes. Vejamos um fragmento de Entre Duas Memórias:
A primeira forma é ainda
elástica; as outras endurecem
no ar, mais angulosas;
mas todas pesam,
elaborando as leis da queda;
e caem; graves; reduzidas
ao espaço do seu peso;
o voo é singular e abstracto,
melhor, a metáfora das asas,
que subentende coisas
por enquanto sem leis;
É verdade que tudo o que está em cima, em
Carlos de Oliveira, pode cair; mas esclareça-se que não se devem as quedas apenas
à lei dos graves. Para análise mais correcta é necessário dizer que a presença da
ciência é muito forte neste escritor, sim; mas a força da sua imaginação é ainda
superior. Por isso, acrescentemos à lei da queda dos graves fenómenos incompatíveis
com uma visão científica da vida, como é o caso da levitação ou da ascensão ao céu
de objectos e seres mais pesados do que o ar, e não dotados de asas nem de motor.
Estes dois movimentos, de descida ou queda e de subida ou levitação, representam
a dinâmica metafórica mais saliente no Trabalho Poético. Deles resulta a flutuação
em que tudo se instala, a instabilidade do território verbal. Por vezes, o poeta
recorre à separação de caracteres da palavra, à divisão silábica, ou à simulação
gráfica de equações e fórmulas químicas, para transformar o poema em objecto visual;
o recurso torna patente assim a desagregação do seu mundo poético, espelho da instabilidade
e desagregação de terras no perímetro arenoso e calcário, por isso de forma frágil,
da paisagem gandaresa.
Com efeito, a flutuação e instabilidade morfológica
constituem fenómeno geológico próprio da gândara. Basta aliás pensarmos no solo
arenoso, e no estratagema de plantar pinhais para fixar as areias, para saltar à
vista a instabilidade do terreno: a paisagem é metamórfica, transmuta-se em lapsos
de tempo curtos, o que deve ter exercido tremendo fascínio na imaginação do poeta.
A paisagem móvel, como é sempre a dos planos de água, torna-se hipnótica. Além das
lagoas e dos charcos verdes, em que reinam sapos, o poeta recebeu ainda o estímulo
dos movediços areais e das ondas do Atlântico.
A paisagem em movimento revela-nos logo a
sua juventude: o que agora vemos não é o que no ano transacto tínhamos admirado.
Ou seja, este tipo de formação geológica caracteriza-se pela sua pouca idade. A
gândara, tal como a conhecemos hoje, tem poucas centenas de anos. Nada de comparável
aos milénios necessários para pingos de água formarem uma gruta, como o poeta sugere
em «Estalactite», e nada de comparável à idade total de Gaia, medida em eras e períodos,
e calculada em quatro a cinco biliões de anos.
Já por diversas vezes falámos de anjos, e
os anjos são clássicos habitantes do céu. Que anjos povoam então a poesia de Carlos
de Oliveira? Vejamos o poema II de «Sub Specie Mortis», em Entre Duas Memórias:
Diz-se que os anjos voam
doutro modo; leves;
que não levam peso
quando partem:
a nossa miséria já filtrada,
a sua misericórdia imponderável;
flutuam; pairam; vogam:
verbos de pouca densidade;
cânones vigiaram
o crescimento das asas
nas pinturas heréticas;
concílios redigiram normas
a impor asas mais breves:
para que voem; ut volent;
basta a sua essência aérea;
e assim, nenhum anjo sofreu
as leis reais do nosso peso;
nem pôde, por isso, conhecer-nos.
Tal como o solo surge numa dimensão geológica
e mineralógica, unida à biologia de Gaia, assim o céu, não obstante a presença de
um sagrado folclórico, povoado por bruxas, e de uma mitologia católica, pelos vistos
preocupada em legislar sobre o comprimento das asas dos anjos, o céu, repito, é
o firmamento da astrofísica, imagem sobretudo nocturna da nossa galáxia, com o sistema
solar inscrito a fogo na Via Láctea.
Página
ilustrada com obras de Sérgio
Bonzón (Argentina, 1959), artista
convidado desta edição.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
109 | Abril de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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