segunda-feira, 29 de julho de 2019

SETE VISÕES SUBMERSAS – ENQUETE SOBRE SURREALISMO | GÉRARD CALANDRE | JOAQUIM SIMÕES | MARIA ESTELA GUEDES | MARIA LÚCIA DAL FARRA


1 | A um século de depuração do Surrealismo, registrada sua rejeição a ser confundido com uma escola ou apenas mais um ismo, é impossível descartar a propriedade estética de qualquer obra de criação. Qual o teu entendimento de um ideal estético do Surrealismo?

GÉRARD CALANDRE | Deve ser visto como uma consequência da liberdade que o surrealismo apresenta, é como dizer, a originalidade do autor pintor ou autor poeta ou outra espécie, que procura ir mais longe nas fontes e sem copiar autores que tiveram seu próprio caminho. A individualidade de este ou de aquele prolonga a liberdade de todos os que veem ou leem, na sua vida.

JOAQUIM SIMÕES | Parafraseando, de memória, Gilberto Gil: “Há várias formas de fazer música brasileira. Eu prefiro todas”. O surrealismo estabeleceu a ligação da arte ao dinamismo da vida na sua permanente transformação e, deste modo, a recusa de um padrão estético que se afaste dessa transformação. Determinar um cânone estético para o surrealismo significa negá-lo no mesmo golpe. O único critério possível para afirmar a inclusão de uma obra no percurso surrealista é o pulsar vital que nela explode, reestruturando-nos.

MARIA ESTELA GUEDES | Provavelmente cada surrealista teria o seu ideal, se bem que todos certamente convirjam na aspiração à Liberdade. Do meu ponto de vista, o Surrealismo logrou ser diferente, mesmo quando terçou armas por essa Liberdade com organizações políticas e estéticas de sinal oposto. Estou a pensar no neo-realismo, tão diferente morfologicamente, e tão parecido nos ideais políticos e sociais, em Portugal. O Surrealismo logrou ser diferente e logrou impor-se às gerações subsequentes, mesmo com a deserção de alguns que podiam ter sido dos seus máximos expoentes.
Vou verificando, com a minha resposta, que talvez não seja possível desvincular da política a estética surrealista. O simples facto de o Surrealismo defender o amor, e em especial l’amour fou, como facto esteticamente novo, já é uma arma apontada ao coração da moral burguesa da ditadura.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Aprendi com o Surrealismo a ver tudo pela primeira vez, de modo inaugural, mesmo que o objeto em causa tenha sido capturado pelo meu verbo antes, uma centena de vezes. Ele me ensinou (o Surrealismo não concordaria com esse verbo “ensinar”!) quase tudo o que sei. Que desmontar o que vejo, quaisquer coisas que sejam, e procurar nelas outras ilações, as suas “afinidades secretas”, o seu magnetismo universal, os seus “vasos comunicantes”; que reconstituir esse objeto, essa palavra, da maneira como eles nunca se mostrariam a mim – é a única forma de conhecê-los e ao real e a mim própria. Que situá-los em outra dimensão que a deles, que botá-los em contiguidade com outros que culturalmente não lhe dizem (até então) respeito – é modo de inventá-los de novo e de novo, de reconhecê-los através de outra natureza. Que esperar pacientemente que eles se mostrem a mim e que comecem a manter algum tipo de comunicação comigo – é deixá-los emprenharem-se de si mesmos e confessarem-me a que vieram, transfigurando o mundo.
O ideal estético do Surrealismo é, creio firmemente, um humanismo: ele nos incita a reatarmos, à nossa existência, as nossas forças vitais, tornando o universo habitável – muito diverso daquele que hoje é o nosso.

2 | As clássicas expulsões de surrealistas levadas a termo na formação original parisiense foram de natureza comportamental. A má qualidade de uma obra jamais foi aspecto que chegou a julgamento. Mesmo hoje, embora as expulsões não sejam mais um fato corrente, surrealistas quando comentam seus pares, o fazem considerando simpatias e adesões, o que acentua a existência de uma confraria. Até que ponto esse clube de amigos distorce o entendimento que se poderia ter da mais relevante revolução cultural do século XX?

GÉRARD CALANDRE | Se as expulsões foram feitas porque alguns se aderiram a junturas maldosas e totalitárias é um acto natural e de defesa. Se é por simpatias sem justeza, acho muito mal, em França isso se chama “oiseaux mouches”. Devemos verificar os casos, para que a liberdade não se machuque. As confrarias são más se existentes por intenção de interesses oportunistas, os que se chamam “jeux de plomb”.

JOAQUIM SIMÕES | Essas confrarias não são mais do que as manifestações da diversidade de modos e caminhos da vida nas suas afinidades e antagonismos. Uma visão surrealista autêntica não as ignora nem as repudia, unifica-as num todo dinâmico. Nada disto, porém, é compatível com quem, dizendo-se surrealista, atenta contra a dimensão humana em qualquer das suas vertentes, quer pessoal, quer social, justificando-se com qualquer ideologia.
Refira-se, a propósito, que o termo ideologia significa uma forma bastarda do pensar e do viver, já que propõe um mapa imutável de conceitos igualmente imutáveis, antítese da, porque vital, permanente revisão da imagem de síntese do real exterior e interior da condição humana. A ideologia é somente a forma intelectualizada da justificação obscurantista da estupidez, uma espécie de múmia sagrada dos sôfregos de tirania.

MARIA ESTELA GUEDES | O que me agrada mais discutir aqui é a desqualificação da qualidade, a desvalorização de um paradigma não-estético, o do que agrada a uma comunidade bem-pensante que dá prémios e castigos e, se os dá, é porque detém um poder superior ao da criação pura, e além disso dispõe de um cânone. Ora, se uma entidade/instituição detém um cânone, necessariamente ele não se confunde com o cânone da ausência de cânones de uma estética que defende a liberdade absoluta e nada impõe como modelo. Então eu diria que a obra de arte tem valores dos quais a qualidade não faz parte. A qualidade pressupõe um Bom e um Mau, que pertencem à Moral e não à Estética. O que se define para os surrealistas é a vocação, as capacidades criadoras; nesse perímetro, o grande criador não escreve mediocridades. Parte-se desse princípio. Se o perigo espreita, então afasta-se o impostor, aquele que, por ser Mau, pertende ao capítulo da Moral e não da Estética. Eu, pessoalmente, não entro em linha de conta com esse parâmetro que, em dado nível, pré-existe ao meu olhar, ça va de soi. Como quem diz: valorizar um escritor por escrever bem é uma ofensa. Isso é o mínimo que se espera dele e não o máximo. Se os mínimos não se afirmam, então não é o texto que deve ser censurado, o autor é que acaba por ser expulso. Aliás estes termos, “expulsão”, “confraria”, mereciam exegese, quanto mais não seja porque mais nenhuma forma de agremiação de artistas, que eu saiba, foi tão policiadora.
Não quer isto dizer que os afastamentos históricos se devam todos à mesma razão. Tenho para mim que a corrida à liderança e a prepotência de uns sobre outros – o escrutínio das qualidades é um exercício de poder sobre quem eventualmente não admite ser escrutinado por aqueles que não revelam competência –, em suma, a expulsão e afastamento fazem parte de competições pela liderança. Há poucas mulheres envolvidas no assunto, elas tenderiam a controlar os excessos do que afinal se apresenta como “machismo”.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Esse clube parece desvirtuá-lo na medida em que impõe à desmesura (que é própria do Surrealismo) um “regramento” que não combina, de modo algum, com a contra-ortodoxia que é a sua máxima.
Por outro lado, a minha experiência pessoal do Surrealismo fez dele (para mim) uma maneira de pensar e de agir. Se isso nos leva a nos descobrir acompanhados de outros, isso não é nem de longe uma “confraria”, mas antes, quero crer, uma comunidade.
De resto, “distorcer” é verbo muito típico de tal procedimento, tal modo de ser. E se se altera, se modifica ou se transforma o que era o seu “significado” original – creio que estamos praticando o Surrealismo comme il faut, dando-lhe a legitimidade revolucionária que ele se empenha em ativar para si mesmo. Porque, afinal, trata-se do igual investimento nas metamorfoses para o qual, aliás, ele não se cansa de apontar.

3 | Revistas surrealistas – antes apenas impressas, hoje também virtuais e com extensa recuperação dos primórdios dessa atividade em edições fac-similadas e em formato pdf – formam um acervo incomparável frente a qualquer outro movimento, escola ou vanguarda ao longo dos séculos. Defendo que as mais valiosas são aquelas que jamais refutaram outras perspectivas de vida e obra, alheias e/ou complementares do Surrealismo. Tais revistas são, a meu ver, o espaço entranhável de uma contra ortodoxia, pleno exercício de generosidade e compartilhamento de mundos dispersos. No entanto, temos ainda, declarada ou não, imensa rejeição do Surrealismo justamente por seu princípio ortodoxo. Como separar aqui joio & trigo?

GÉRARD CALANDRE | Isso é porque muitos dos que em escrita de meios convencionais ou de Net falam, sem bom conhecimento do Surrealismo. Se o conhecerem bem ou o estudarem bem verão que o surrealismo de trigo é sempre muito original e verdadeiro, ou seja realmente livre e não de imagens convencionadas. O surrealismo vai sempre em frente e descobre coisas novas e por isso se vê que não é de joio, esse não presta porque é escola de imitação.

JOAQUIM SIMÕES | Citando agora Ursula K. LeGuin, recentemente falecida: “O amor é como o pão, tem que se fazer todos os dias”. Essa separação é uma tarefa diária na existência explícita de um “ismo” que o não é.

MARIA ESTELA GUEDES | Separar o joio do trigo implica o mesmo problema da qualidade. Essas questões não interessam à arte. Quem acaba por joeirar é o acaso e o tempo. Nada porém garante que, daqui a 50 anos, a História considere Surrealismo tudo aquilo a que hoje damos esse nome. Ser ou não ser surrealista/romântico/gótico/índio/dolicocéfalo/molusco é uma questão de Sistemática, do olhar exterior desejoso de criar listas, porque sem elas não há acesso ao conhecimento, ora Sistemática, com as suas categorias aprimoradas por Lineu, tende para a divina perfeição, por isso está sempre a mudar. Tomemos um exemplo fóbico para melhor apreensão do problema: desde que as aranhas DEIXARAM DE SER Insecta para constituírem a sua própria classe, Arachnida, já de milhares de desarrumações e novas classificações foram vítima centenas de ordens, famílias, géneros e espécies destes artrópodos. Só leigos de idade avançada ainda dizem que as aranhas SÃO insetos. E são leigos humanos aqueles que, face a um peludo bicho falsamente julgado venenoso, a tarântula, o acusam de ser inseto ou aracnídeo. Os aracnídeos, esses, além de não conhecerem as etiquetas, decerto são algo bem diverso para si mesmos.
A questão do SER identifica-se sempre mais com um ELE É do que com um EU SOU, com a agravante de que o sujeito que decide o que ELE É é plural, ao passo que eu, pobre de mim, Eu Sou, mesmo repetindo e com maiúsculas – Eu Sou Aquela que Sou – eu sou apenas um pronome da primeira pessoa do singular.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Temo ser simplória demais na resposta, mas creio que o próprio Surrealismo acabou nos curando desse propósito bitolador sacado (e, malgrado tudo, praticado) aquando da subjugação do movimento a uma escola ou a uma ideologia – e isso é nocivo. A meu ver, a vontade de desvelamento de outra história da Humanidade, o uso da “máquina infernal” como arma de demolição da realidade, o humor negro, o descobrimento da “boca de sombra” que fala em nós, a “desrealização”, a hostilidade e a inacomodação convulsiva à moral burguesa, a “iluminação profana”, enfim, esse repertório de trabalho e de corrosão do estabelecido – jamais poderá ser dogmático. Ao contrário, é a formalização dessas atividades enquanto programa estético que é tão absurda quanto aquilo que se propõe combater.
As tentativas de Breton no sentido de desentranhar as raízes luminosas e ardentes do Surrealismo são uma demonstração de achego ao outro, e não um princípio de monopolização do alheio. Tal atividade arqueológica de vasculhar a História para vislumbrar as atuações antecipadoras e preconizadoras do Surrealismo, enfim, esse esforço de enxergar e discernir os parentescos que estavam traçados avant la lettre – rompem com o estaticismo de qualquer ortodoxia.

4 | Duas denominações sempre me chamaram a atenção, dentro do ambiente surrealista, não porque me pareçam inapropriadas, mas antes pela partição que levam entre si de elogio e rejeição: movimento surrealista e civilização surrealista. Até onde tais denominações se distinguem e o que representam a ponto de parecerem antípodas?

GÉRARD CALANDRE | Surrealismo é na realidade uma aventura de existir, não devemos esquecer que a civilização surrealista contrasta com a civilização dos que dominam o mundo onde existem as diversas formas de andar através do tempo. Eu então devo dizer fortemente que a prática surrealista vai contra o que obrigam o comum de cidadãos a ser, querem comprometer a sua liberdade e imaginação que age em quotidiano. As ideologias são muitas vezes o inimigo porque lançam nos dias obrigações que não correspondem a nada que leve os homens na viagem do sonho que ajuda a realidade a existir.

JOAQUIM SIMÕES | Não existe uma tal coisa a que possamos chamar civilização surrealista. A vida é que é surreal, na constante ultrapassagem e reconhecimento da realidade de si mesma. Falar de civilização surrealista é negar a própria noção de surrealismo. O surrealismo faz-se ser a ser e, colectivamente, no encontro temporal desses seres na consciência da vida como surrealidade, gerando um movimento no sentido desse horizonte. Mas um horizonte é uma abstracção temporária. A República platónica e a Cidade de Deus agostiniana são exemplos dessa abstracção que, apesar dos esforços de Platão e de Agostinho para o tornarem claro, continuam a servir de base ideológica aos “ridículos tiranos”, parafraseando desta vez Caetano Veloso.

MARIA ESTELA GUEDES | A civilização define-se pelo mais alto patamar a que chega a invenção de instrumentos que servem à construção e pelo desenvolvimento intelectual e cultural de um povo que permitiu chegar a eles; a nossa civilização atual, carregada de maquinaria comunicacional e de transportes, que viaja entre planetas e comunica por satélites, não se confunde com a “civilização” bosquímana, que não pôde chegar ainda à fase da roda ou equivalente, não tem língua escrita e provavelmente se extinguirá por efeito da fome e, quem sabe?, da miscigenação com populações de civilização tão avançada que puderam experimentar os benefícios libertadores do movimento surrealista.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Não sei se você se refere à tendência em se cunhar, com tal expressão “civilização surrealista”, uma espécie de anarquismo maléfico ao funcionamento social, supondo-a referente a um mundo caótico, sem regras, carnavalizado, onde tudo pode acontecer, e, por isso mesmo, uma civilização a ser grandemente evitada. Na linguagem vulgar, costuma-se apodar de “surrealista” a uma situação “kafkiana”, digamos, impensável e absurda em moldes civilizacionais. Designa-se com isso a uma sociedade de barbárie – que é, aliás, aquela em que vivemos.
Com o fito de criticá-la, questioná-la e modificá-la, teria sido esta a sociedade que, de propósito, o “movimento” surrealista procurou sempre desocultar através da sua arte?!

5 | É comum evocar-se no Surrealismo sua potência imaginativa e seu caráter experimental, a rigor aspectos complementares. No entanto, na inquestionável impossibilidade de uma renovação perene no ambiente da criação artística, em muitos casos, o que se verifica no Surrealismo são uma repetição de recursos, modos de ser e truques de linguagem. Como lidar com essas oscilações tão comuns a qualquer território criativo?

GÉRARD CALANDRE | O verdadeiro poeta e outros, de pintura, música, escultura e todo resto de expressão sabe ser descobridor, original autêntico. Os que procuram a andar no seu surrealismo sem fogo de Prometeu são ora mais tarde ou mais cedo postos em nu, há sempre alguém que os mostra como são, “les cocus de la ville”, são pessoas que querem fama ou fingimento tudo simplesmente. O surrealismo sobrevive, nunca será morto por esses meliantes. Encontra em si mesmo a cura como em alquimia.

JOAQUIM SIMÕES | As novas formas de vida, tanto a dita natural como a dita intelectual (distingo-as apenas para melhor me explicar), demoram muito a eclodir; surgem no cadinho das que surgiram antes e que agora permanecem, misturando-se e integrando-se umas nas outras, na preparação do parto de algo diferente. Ora a gestação e, depois, o parto, é um processo morosíssimo e nada cómodo, algo – como exprimiu, num poema, Manuel Grangeio Crespo – feito em meio de “febres atrozes e inconfessáveis”. Essa repetição de recursos, modos de ser e truques de linguagem nada mais indicia do que a fermentação secreta da nova espécie num (ou em poucos) e sempre ignorados de entre nós, frequentemente onde, quando e em quem menos se esperaria. Como lidar, pois, com tudo isso? Da maneira que já referi, quando citei Ursula K. LeGuin.

MARIA ESTELA GUEDES | “Houve um momento em que o Surrealismo, ao já não criar e ao repetir-se, se transmutou na sua própria lápide funerária” – a datar.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Se o pensarmos através de uma ótica burguesa, claro que tudo no Surrealismo não passa de “truque”. Mas se o dito “truque” pode se constituir numa via de conhecimento – por que não utilizá-lo?! Os recursos, como você diz, podem ser os mesmos, mas o mundo, que é sempre outro e outro (e essa convicção foi o Surrealismo quem – depois de Heráclito – nos inculcou), os transforma numa fonte inesgotável de criação.
O Herberto Helder tem um texto exemplar a respeito disso no Retrato em Movimento (1968): a história de um pintor que pintava um peixe amarelo, mas que, para ser fiel ao peixe, o fixava em vermelho na tela, visto que não queria correr o risco de ser surpreendido pelo real, já que este, sim, é que é… “prestidigitador”!

6 | Aldo Pellegrini é um dos raros estudiosos do Surrealismo que tratou especificamente de seu ambiente poético. Em uma bibliografia surrealista, a tônica reforça a relevância da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu uma falha crítica, porque a essência renovadora, já no princípio do século XX, diz respeito à imagem em si e suas múltiplas perspectivas. Esta é uma das inúmeras adulterações dos princípios surrealistas ou sequer entre eles pouco se percebeu a inexistência de uma distinção – exceto meramente técnica – entre imagem plástica e poética?

GÉRARD CALANDRE | Tivesse Pellegrini pensado sobre essas diversas perspectivas e veria claro, ambas têm seu mundo próprio e a imagem poética não é equivalência da de plástica. É por isso que muitos quadros surrealistas ou assim ditos, que encontramos na Net são apenas distorções enjoativas de figuras ou coisas, a imagem poética vive de situações que jogando entre si criam sua própria substância e matéria de que as palavras formam o seu corpo especial.

JOAQUIM SIMÕES | Para se perceber o conceito de poesia é necessária uma reflexão e um amadurecimento muito profundos, por se tratar de um conceito que constitui uma meta – no sentido do conceito grego do “ir além de”, no caso: de uma forma específica do real para a essência de todo e qualquer real. A imagem, sendo mais directa, é também mais tirânica, na medida em que nos cinge aos elementos nela presentes, mesmo ordenando-os para uma outra visão e perspectiva que não a do senso-comum.
Da mesma forma, aliás, que o filme, por mais fiel que seja ao argumento e à concepção geral do romance em que foi inspirado, nos impõe as formas, humanas e plásticas em geral, que o realizador escolheu, raramente coincidentes com aquelas que, ao lê-lo, as palavras nos deram a liberdade de imaginar. São raros os casos em que se reconhece ao realizador o ter interpretado universalmente, através das imagens, o espírito (a poesia) do texto.
Por este motivo, a obra plástica pouquíssimas vezes se consegue demarcar, na nossa mente, da condição de objecto, para passar à condição de poema. Essa incompreensão do seu significado e a quase instantânea imediatidade das suas evocações faz com que os que, menos esclarecidos sobre as implicações do conceito de surrealidade, a privilegiem nas respectivas considerações e bibliografias.

MARIA ESTELA GUEDES | Não conheço o assunto, porém o Surrealismo é híbrido, compósito, nele sempre lidámos com artistas plásticos e poetas, e com obras a três dimensões com participação da escrita, por isso parece produtiva a análise de imagens numa dimensão retórica e de imagens no plano das formas, dos volumes e das cores. Os dois tipos de imagem, aliás, costumam coexistir no texto literário. Tomemos a cantiga de D. Dinis, “Ay flores do verde piño” – de um lado, o da filosofia, António Telmo leva a imagem poética até aos confins do messianismo; de outro, eu, por exemplo, concentrada na imagem plástica, pergunto porque é que só as flores do pinheiro e as da aveleira, ambas anti-flores, no sentido em que nenhum leigo diria que o são, aparecem na lírica trovadoresca.
Se é disso que se trata.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Quando falo em imagem no Surrealismo só me ocorre aquela obtida por meio da “razão ardente”, aquela que convoca para uma conciliação inaugural, para uma “unidade secreta”, aquela que fornece “luz” ao real. A imagem surrealista é a prova de que não se trata de “truque” ou de “brincadeira artística”, mas de “experiências mágicas sobre as palavras”, como diz o Walter Benjamin.
Para além disso (poderíamos admitir para especular) toda a imagem é plástica, de modo que nomear “imagem plástica” consistiria em produzir uma redundância. Todavia, nem toda imagem é poética. É isso que você quer discutir?
Não tenho a leitura do Pellegrini viva na memória para apreciar devidamente a sua colocação. Talvez a aproximação (ou a suposta identificação) do Surrealismo com a imagem “plástica” dar-se-ia de maneira mais evidente (e corrente) porque o “movimento” se fez conhecer (ou seja, foi mais divulgado ou teve maior acesso junto aos apreciadores) enquanto arte da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema. A poesia, pela sua própria dificuldade intrínseca (sic), não obteve certamente a mesma penetração junto àqueles, que as outras artes. E daí que se suponha que, por ter sido conhecida como essencial ao “movimento” (por meio de outras manifestações mais explícitas), a “imagem plástica” também acabasse nomeando o tipo de linguagem poética mais afeita ao Surrealismo. Serão estes os pressupostos do seu questionamento?

7 | Em seu surgimento, as expectativas sociais do Surrealismo giravam em torno do que então se apresentava como ações revolucionárias, em especial o que tomava por base as proposições de Marx e Freud. Octavio Paz chegou a declarar que o século XX seria lembrado como o século de Freud e do Surrealismo. Ao eliminar Marx de suas profecias esqueceu-se – isto se de fato se trata de esquecimento – que o mercado derrotaria, para dizer o mínimo, todas as pretensões revolucionárias, sem deixar de fora as duas destacadas pelo mexicano. Como avaliar o tema em nossa época? Diante de um virulento absolutismo do mercado, o que houve com as forças deflagradas por Freud, Marx e o Surrealismo?

GÉRARD CALANDRE | Nos dias em que estamos já se entende melhor que o que veio a nós de Marx foi apenas servirem se das descobertas dele não para libertarem, mas para aprisionarem mais o Homem. Marx dizia (eu não sou marxista) que os partidos ditos marxistas são como os de igreja que se servem do que dizem que Cristo disse não para seguirem sua filosofia de vida, mas para exercer poder ao serviço de seus chefes, papas e bispos e governantes desse campo. Visto isto e a seu propósito, surrealismo e surrealistas que aderiram a partidos comunistas se ficaram por contradições, pois não se pode meter, em um mesmo plano, liberdade e razão totalitária. O absolutismo de mercado é uma das faces dessa medalha, lados que são paralelos. E da lição de Freud o que a classe que domina fez? Fórmulas de fazer manipulação de pessoas, quando muito preparando-as para o quotidiano de mercado capitalista, servos obedientes e “curados” para não causarem problemas a seus donos. E no sector de Leste, casas de saúde e outros eram verdadeiros campos de prisões onde os adversos do regime eram concentrados.

JOAQUIM SIMÕES | Penso haver já respondido parcialmente à questão nas respostas anteriores, excepção feita a Freud.
Freud, como ele próprio disse, não fez mais do que dar forma sistemática e académica a algo que o saber comum sabe desde sempre, subtraindo-o ao domínio da hipocrisia tirânica instalada pelo medo de si, dominante não apenas nas culturas ocidentais e ocidentalizadas. Contudo, a exemplo de quase todos os pioneiros no deslumbramento pelo novo ser que, através deles e neles, se expandem para todo o mundo, caiu em exageros redutores e, até, prejudiciais no que respeita à mente e às respectivas origens e funções.
O passo que deu foi, no entanto, decisivo e inestimável. Mesmo após a enormíssima divulgação e consequentes reflexos disseminativos culturais que teve durante um largo período do século XX, entretanto esbatidos graças à concretização das mudanças para cuja necessidade apontava no plano da mentalidade vigente, permanece actual.

MARIA ESTELA GUEDES | A tríade é constituída por Freud, Marx e Darwin. O Surrealismo, ao divulgar Freud, colheu nele um dos mais singulares filões, dando assim imagem plástica à sua alma.

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Para já continuo a pensar que o Surrealismo realiza, dentro da história das vanguardas do século XX, um grande tento. É a derradeira vanguarda histórica, e esse papel heroico ninguém lhe tira. Também não creio que Marx foi esquecido no andar dessa carruagem – talvez Octavio Paz não tivesse querido mexer num ninho de gatos, nesse enxame de abelhas africanas, de cuja história já ouvimos tanto falar. O fato é que se o Surrealismo buscou fazer frente ao mercado na medida em que se nutre do “escândalo”, do fato insólito e do “espanto” (para citar Adorno: do “shock”, da montagem) como maneira de minar a moral burguesa – o mercado, por sua vez, o assimilou de tal forma, que utilizou (e usa) tais recursos para a sua atualizada implementação e crescimento, como um valor especulativo, tomando o que lhe era contra a seu favor. Não dá para escapar a esse imperialismo consumista, e a arte que se preza passa o tempo medindo forças contra essa heterofagia – que é, a meu ver, o que o Surrealismo continua a fazer desde sempre.
Assim, para responder direto a sua última pergunta: as forças deflagradas por Freud e Marx continuam vivas e atentas dentro do Surrealismo e, a cada tempo, engendrando reações próprias à sua respectiva época. Isso é uma parada eterna, é um certame interminável, um litígio infindável – e, de certa forma, o combustível para a teimosa (e gloriosa!) permanência da arte.

Gérard Calandre | Joaquim Simões | Maria Estela Guedes | Maria Lúcia Dal Farra
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Marcelle Ferron (Canadá, 1924- 2001)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 139 | Agosto de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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