1 | A um século de depuração do Surrealismo, registrada sua
rejeição a ser confundido com uma escola ou apenas mais um ismo, é impossível descartar
a propriedade estética de qualquer obra de criação. Qual o teu entendimento de um
ideal estético do Surrealismo?
GÉRARD CALANDRE | Deve ser visto como uma consequência
da liberdade que o surrealismo apresenta, é como dizer, a originalidade do autor
pintor ou autor poeta ou outra espécie, que procura ir mais longe nas fontes e sem
copiar autores que tiveram seu próprio caminho. A individualidade de este ou de
aquele prolonga a liberdade de todos os que veem ou leem, na sua vida.
JOAQUIM SIMÕES | Parafraseando, de memória, Gilberto Gil:
“Há várias formas de fazer música brasileira. Eu prefiro todas”. O surrealismo estabeleceu
a ligação da arte ao dinamismo da vida na sua permanente transformação e, deste
modo, a recusa de um padrão estético que se afaste dessa transformação. Determinar
um cânone estético para o surrealismo significa negá-lo no mesmo golpe. O único
critério possível para afirmar a inclusão de uma obra no percurso surrealista é
o pulsar vital que nela explode, reestruturando-nos.
MARIA
ESTELA GUEDES | Provavelmente
cada surrealista teria o seu ideal, se bem que todos certamente convirjam na aspiração
à Liberdade. Do meu ponto de vista, o Surrealismo logrou ser diferente, mesmo quando
terçou armas por essa Liberdade com organizações políticas e estéticas de sinal
oposto. Estou a pensar no neo-realismo, tão diferente morfologicamente, e tão parecido
nos ideais políticos e sociais, em Portugal. O Surrealismo logrou ser diferente
e logrou impor-se às gerações subsequentes, mesmo com a deserção de alguns que podiam
ter sido dos seus máximos expoentes.
Vou verificando, com a minha resposta, que
talvez não seja possível desvincular da política a estética surrealista. O simples
facto de o Surrealismo defender o amor, e em especial l’amour fou, como facto esteticamente novo, já é uma arma apontada ao
coração da moral burguesa da ditadura.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Aprendi com o Surrealismo a ver tudo pela primeira
vez, de modo inaugural, mesmo que o objeto em causa tenha sido capturado pelo meu
verbo antes, uma centena de vezes. Ele me ensinou (o Surrealismo não concordaria
com esse verbo “ensinar”!) quase tudo o que sei. Que desmontar o que vejo, quaisquer
coisas que sejam, e procurar nelas outras ilações, as suas “afinidades secretas”,
o seu magnetismo universal, os seus “vasos comunicantes”; que reconstituir esse
objeto, essa palavra, da maneira como eles nunca se mostrariam a mim – é a única
forma de conhecê-los e ao real e a mim própria. Que situá-los em outra dimensão
que a deles, que botá-los em contiguidade com outros que culturalmente não lhe dizem
(até então) respeito – é modo de inventá-los de novo e de novo, de reconhecê-los
através de outra natureza. Que esperar pacientemente que eles se mostrem a mim e
que comecem a manter algum tipo de comunicação comigo – é deixá-los emprenharem-se
de si mesmos e confessarem-me a que vieram, transfigurando o mundo.
O ideal estético
do Surrealismo é, creio firmemente, um humanismo: ele nos incita a reatarmos, à
nossa existência, as nossas forças vitais, tornando o universo habitável – muito
diverso daquele que hoje é o nosso.
2 | As clássicas expulsões de surrealistas levadas a termo
na formação original parisiense foram de natureza comportamental. A má qualidade
de uma obra jamais foi aspecto que chegou a julgamento. Mesmo hoje, embora as expulsões
não sejam mais um fato corrente, surrealistas quando comentam seus pares, o fazem
considerando simpatias e adesões, o que acentua a existência de uma confraria. Até
que ponto esse clube de amigos distorce o entendimento que se poderia ter da mais
relevante revolução cultural do século XX?
GÉRARD CALANDRE | Se as expulsões foram feitas porque alguns
se aderiram a junturas maldosas e totalitárias é um acto natural e de defesa. Se
é por simpatias sem justeza, acho muito mal, em França isso se chama “oiseaux mouches”.
Devemos verificar os casos, para que a liberdade não se machuque. As confrarias
são más se existentes por intenção de interesses oportunistas, os que se chamam
“jeux de plomb”.
JOAQUIM SIMÕES | Essas confrarias não são mais do que as
manifestações da diversidade de modos e caminhos da vida nas suas afinidades e antagonismos.
Uma visão surrealista autêntica não as ignora nem as repudia, unifica-as num todo
dinâmico. Nada disto, porém, é compatível com quem, dizendo-se surrealista, atenta
contra a dimensão humana em qualquer das suas vertentes, quer pessoal, quer social,
justificando-se com qualquer ideologia.
Refira-se, a propósito, que o termo ideologia
significa uma forma bastarda do pensar e do viver, já que propõe um mapa imutável
de conceitos igualmente imutáveis, antítese da, porque vital, permanente revisão
da imagem de síntese do real exterior e interior da condição humana. A ideologia
é somente a forma intelectualizada da justificação obscurantista da estupidez, uma
espécie de múmia sagrada dos sôfregos de tirania.
MARIA
ESTELA GUEDES | O que me
agrada mais discutir aqui é a desqualificação da qualidade, a desvalorização de
um paradigma não-estético, o do que agrada a uma comunidade bem-pensante que dá
prémios e castigos e, se os dá, é porque detém um poder superior ao da criação pura,
e além disso dispõe de um cânone. Ora, se uma entidade/instituição detém um cânone,
necessariamente ele não se confunde com o cânone da ausência de cânones de uma estética
que defende a liberdade absoluta e nada impõe como modelo. Então eu diria que a
obra de arte tem valores dos quais a qualidade não faz parte. A qualidade pressupõe
um Bom e um Mau, que pertencem à Moral e não à Estética. O que se define para os
surrealistas é a vocação, as capacidades criadoras; nesse perímetro, o grande criador
não escreve mediocridades. Parte-se desse princípio. Se o perigo espreita, então
afasta-se o impostor, aquele que, por ser Mau, pertende ao capítulo da Moral e não
da Estética. Eu, pessoalmente, não entro em linha de conta com esse parâmetro que,
em dado nível, pré-existe ao meu olhar, ça
va de soi. Como quem diz: valorizar um escritor por escrever bem é uma ofensa.
Isso é o mínimo que se espera dele e não o máximo. Se os mínimos não se afirmam,
então não é o texto que deve ser censurado, o autor é que acaba por ser expulso.
Aliás estes termos, “expulsão”, “confraria”, mereciam exegese, quanto mais não seja
porque mais nenhuma forma de agremiação de artistas, que eu saiba, foi tão policiadora.
Não quer isto dizer que os afastamentos históricos
se devam todos à mesma razão. Tenho para mim que a corrida à liderança e a prepotência
de uns sobre outros – o escrutínio das qualidades é um exercício de poder sobre
quem eventualmente não admite ser escrutinado por aqueles que não revelam competência
–, em suma, a expulsão e afastamento fazem parte de competições pela liderança.
Há poucas mulheres envolvidas no assunto, elas tenderiam a controlar os excessos
do que afinal se apresenta como “machismo”.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Esse clube parece desvirtuá-lo na medida em que impõe
à desmesura (que é própria do Surrealismo) um “regramento” que não combina, de modo
algum, com a contra-ortodoxia que é a sua máxima.
Por outro lado,
a minha experiência pessoal do Surrealismo fez dele (para mim) uma maneira de pensar
e de agir. Se isso nos leva a nos descobrir acompanhados de outros, isso não é nem
de longe uma “confraria”, mas antes, quero crer, uma comunidade.
De resto, “distorcer”
é verbo muito típico de tal procedimento, tal modo de ser. E se se altera, se modifica
ou se transforma o que era o seu “significado” original – creio que estamos praticando
o Surrealismo comme il faut, dando-lhe
a legitimidade revolucionária que ele se empenha em ativar para si mesmo. Porque,
afinal, trata-se do igual investimento nas metamorfoses para o qual, aliás, ele
não se cansa de apontar.
3 | Revistas surrealistas – antes apenas impressas, hoje também
virtuais e com extensa recuperação dos primórdios dessa atividade em edições fac-similadas
e em formato pdf – formam um acervo incomparável frente a qualquer outro movimento,
escola ou vanguarda ao longo dos séculos. Defendo que as mais valiosas são aquelas
que jamais refutaram outras perspectivas de vida e obra, alheias e/ou complementares
do Surrealismo. Tais revistas são, a meu ver, o espaço entranhável de uma contra
ortodoxia, pleno exercício de generosidade e compartilhamento de mundos dispersos.
No entanto, temos ainda, declarada ou não, imensa rejeição do Surrealismo justamente
por seu princípio ortodoxo. Como separar aqui joio & trigo?
GÉRARD CALANDRE | Isso é porque muitos dos que em escrita
de meios convencionais ou de Net falam, sem bom conhecimento do Surrealismo. Se
o conhecerem bem ou o estudarem bem verão que o surrealismo de trigo é sempre muito
original e verdadeiro, ou seja realmente livre e não de imagens convencionadas.
O surrealismo vai sempre em frente e descobre coisas novas e por isso se vê que
não é de joio, esse não presta porque é escola de imitação.
JOAQUIM SIMÕES | Citando agora Ursula K. LeGuin, recentemente
falecida: “O amor é como o pão, tem que se fazer todos os dias”. Essa separação
é uma tarefa diária na existência explícita de um “ismo” que o não é.
MARIA
ESTELA GUEDES | Separar o
joio do trigo implica o mesmo problema da qualidade. Essas questões não interessam
à arte. Quem acaba por joeirar é o acaso e o tempo. Nada porém garante que, daqui
a 50 anos, a História considere Surrealismo tudo aquilo a que hoje damos esse nome.
Ser ou não ser surrealista/romântico/gótico/índio/dolicocéfalo/molusco é uma questão
de Sistemática, do olhar exterior desejoso de criar listas, porque sem elas não
há acesso ao conhecimento, ora Sistemática, com as suas categorias aprimoradas por
Lineu, tende para a divina perfeição, por isso está sempre a mudar. Tomemos um exemplo
fóbico para melhor apreensão do problema: desde que as aranhas DEIXARAM DE SER Insecta
para constituírem a sua própria classe, Arachnida, já de milhares de desarrumações
e novas classificações foram vítima centenas de ordens, famílias, géneros e espécies
destes artrópodos. Só leigos de idade avançada ainda dizem que as aranhas SÃO insetos.
E são leigos humanos aqueles que, face a um peludo bicho falsamente julgado venenoso,
a tarântula, o acusam de ser inseto ou aracnídeo. Os aracnídeos, esses, além de
não conhecerem as etiquetas, decerto são algo bem diverso para si mesmos.
A questão do SER identifica-se sempre mais
com um ELE É do que com um EU SOU, com a agravante de que o sujeito que decide o
que ELE É é plural, ao passo que eu, pobre de mim, Eu Sou, mesmo repetindo e com
maiúsculas – Eu Sou Aquela que Sou – eu sou apenas um pronome da primeira pessoa
do singular.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Temo ser simplória demais na resposta, mas creio
que o próprio Surrealismo acabou nos curando desse propósito bitolador sacado (e,
malgrado tudo, praticado) aquando da subjugação do movimento a uma escola ou a uma
ideologia – e isso é nocivo. A meu ver, a vontade de desvelamento de outra história
da Humanidade, o uso da “máquina infernal” como arma de demolição da realidade,
o humor negro, o descobrimento da “boca de sombra” que fala em nós, a “desrealização”,
a hostilidade e a inacomodação convulsiva à moral burguesa, a “iluminação profana”,
enfim, esse repertório de trabalho e de corrosão do estabelecido – jamais poderá
ser dogmático. Ao contrário, é a formalização dessas atividades enquanto programa
estético que é tão absurda quanto aquilo que se propõe combater.
As tentativas de
Breton no sentido de desentranhar as raízes luminosas e ardentes do Surrealismo
são uma demonstração de achego ao outro, e não um princípio de monopolização do
alheio. Tal atividade arqueológica de vasculhar a História para vislumbrar as atuações
antecipadoras e preconizadoras do Surrealismo, enfim, esse esforço de enxergar e
discernir os parentescos que estavam traçados avant la lettre – rompem com o estaticismo de qualquer ortodoxia.
4 | Duas denominações sempre me chamaram a atenção, dentro
do ambiente surrealista, não porque me pareçam inapropriadas, mas antes pela partição
que levam entre si de elogio e rejeição: movimento surrealista e civilização surrealista.
Até onde tais denominações se distinguem e o que representam a ponto de parecerem
antípodas?
GÉRARD CALANDRE | Surrealismo é na realidade uma aventura
de existir, não devemos esquecer que a civilização surrealista contrasta com a civilização
dos que dominam o mundo onde existem as diversas formas de andar através do tempo.
Eu então devo dizer fortemente que a prática surrealista vai contra o que obrigam
o comum de cidadãos a ser, querem comprometer a sua liberdade e imaginação que age
em quotidiano. As ideologias são muitas vezes o inimigo porque lançam nos dias obrigações
que não correspondem a nada que leve os homens na viagem do sonho que ajuda a realidade
a existir.
JOAQUIM SIMÕES | Não existe uma tal coisa a que possamos
chamar civilização surrealista. A vida é que é surreal, na constante ultrapassagem
e reconhecimento da realidade de si mesma. Falar de civilização surrealista é negar
a própria noção de surrealismo. O surrealismo faz-se ser a ser e, colectivamente,
no encontro temporal desses seres na consciência da vida como surrealidade, gerando
um movimento no sentido desse horizonte. Mas um horizonte é uma abstracção temporária.
A República platónica e a Cidade de Deus agostiniana são exemplos dessa abstracção
que, apesar dos esforços de Platão e de Agostinho para o tornarem claro, continuam
a servir de base ideológica aos “ridículos tiranos”, parafraseando desta vez Caetano
Veloso.
MARIA
ESTELA GUEDES | A civilização
define-se pelo mais alto patamar a que chega a invenção de instrumentos que servem
à construção e pelo desenvolvimento intelectual e cultural de um povo que permitiu
chegar a eles; a nossa civilização atual, carregada de maquinaria comunicacional
e de transportes, que viaja entre planetas e comunica por satélites, não se confunde
com a “civilização” bosquímana, que não pôde chegar ainda à fase da roda ou equivalente,
não tem língua escrita e provavelmente se extinguirá por efeito da fome e, quem
sabe?, da miscigenação com populações de civilização tão avançada que puderam experimentar
os benefícios libertadores do movimento surrealista.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Não sei se você se refere à tendência em se cunhar,
com tal expressão “civilização surrealista”, uma espécie de anarquismo maléfico
ao funcionamento social, supondo-a referente a um mundo caótico, sem regras, carnavalizado,
onde tudo pode acontecer, e, por isso mesmo, uma civilização a ser grandemente evitada.
Na linguagem vulgar, costuma-se apodar de “surrealista” a uma situação “kafkiana”,
digamos, impensável e absurda em moldes civilizacionais. Designa-se com isso a uma
sociedade de barbárie – que é, aliás, aquela em que vivemos.
Com o fito de criticá-la,
questioná-la e modificá-la, teria sido esta a sociedade que, de propósito, o “movimento”
surrealista procurou sempre desocultar através da sua arte?!
5 | É comum evocar-se no Surrealismo sua potência imaginativa
e seu caráter experimental, a rigor aspectos complementares. No entanto, na inquestionável
impossibilidade de uma renovação perene no ambiente da criação artística, em muitos
casos, o que se verifica no Surrealismo são uma repetição de recursos, modos de
ser e truques de linguagem. Como lidar com essas oscilações tão comuns a qualquer
território criativo?
GÉRARD CALANDRE | O verdadeiro poeta e outros, de pintura,
música, escultura e todo resto de expressão sabe ser descobridor, original autêntico.
Os que procuram a andar no seu surrealismo sem fogo de Prometeu são ora mais tarde
ou mais cedo postos em nu, há sempre alguém que os mostra como são, “les cocus de
la ville”, são pessoas que querem fama ou fingimento tudo simplesmente. O surrealismo
sobrevive, nunca será morto por esses meliantes. Encontra em si mesmo a cura como
em alquimia.
JOAQUIM SIMÕES | As novas formas de vida, tanto a dita natural
como a dita intelectual (distingo-as apenas para melhor me explicar), demoram muito
a eclodir; surgem no cadinho das que surgiram antes e que agora permanecem, misturando-se
e integrando-se umas nas outras, na preparação do parto de algo diferente. Ora a
gestação e, depois, o parto, é um processo morosíssimo e nada cómodo, algo – como
exprimiu, num poema, Manuel Grangeio Crespo – feito em meio de “febres atrozes e
inconfessáveis”. Essa repetição de recursos, modos de ser e truques de linguagem
nada mais indicia do que a fermentação secreta da nova espécie num (ou em poucos)
e sempre ignorados de entre nós, frequentemente onde, quando e em quem menos se
esperaria. Como lidar, pois, com tudo isso? Da maneira que já referi, quando citei
Ursula K. LeGuin.
MARIA
ESTELA GUEDES | “Houve um
momento em que o Surrealismo, ao já não criar e ao repetir-se, se transmutou na
sua própria lápide funerária” – a datar.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Se o pensarmos através de uma ótica burguesa, claro
que tudo no Surrealismo não passa de “truque”. Mas se o dito “truque” pode se constituir
numa via de conhecimento – por que não utilizá-lo?! Os recursos, como você diz,
podem ser os mesmos, mas o mundo, que é sempre outro e outro (e essa convicção foi
o Surrealismo quem – depois de Heráclito – nos inculcou), os transforma numa fonte
inesgotável de criação.
O Herberto Helder
tem um texto exemplar a respeito disso no Retrato
em Movimento (1968): a história de um pintor que pintava um peixe amarelo, mas
que, para ser fiel ao peixe, o fixava em vermelho na tela, visto que não queria
correr o risco de ser surpreendido pelo real, já que este, sim, é que é… “prestidigitador”!
6 | Aldo Pellegrini é um dos raros estudiosos do Surrealismo
que tratou especificamente de seu ambiente poético. Em uma bibliografia surrealista,
a tônica reforça a relevância da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu
uma falha crítica, porque a essência renovadora, já no princípio do século XX, diz
respeito à imagem em si e suas múltiplas perspectivas. Esta é uma das inúmeras adulterações
dos princípios surrealistas ou sequer entre eles pouco se percebeu a inexistência
de uma distinção – exceto meramente técnica – entre imagem plástica e poética?
GÉRARD CALANDRE | Tivesse Pellegrini pensado sobre essas
diversas perspectivas e veria claro, ambas têm seu mundo próprio e a imagem poética
não é equivalência da de plástica. É por isso que muitos quadros surrealistas ou
assim ditos, que encontramos na Net são apenas distorções enjoativas de figuras
ou coisas, a imagem poética vive de situações que jogando entre si criam sua própria
substância e matéria de que as palavras formam o seu corpo especial.
JOAQUIM SIMÕES | Para se perceber o conceito de poesia é
necessária uma reflexão e um amadurecimento muito profundos, por se tratar de um
conceito que constitui uma meta – no sentido do conceito grego do “ir além de”,
no caso: de uma forma específica do real para a essência de todo e qualquer real.
A imagem, sendo mais directa, é também mais tirânica, na medida em que nos cinge
aos elementos nela presentes, mesmo ordenando-os para uma outra visão e perspectiva
que não a do senso-comum.
Da mesma forma, aliás, que o filme, por mais
fiel que seja ao argumento e à concepção geral do romance em que foi inspirado,
nos impõe as formas, humanas e plásticas em geral, que o realizador escolheu, raramente
coincidentes com aquelas que, ao lê-lo, as palavras nos deram a liberdade de imaginar.
São raros os casos em que se reconhece ao realizador o ter interpretado universalmente,
através das imagens, o espírito (a poesia) do texto.
Por este motivo, a obra plástica pouquíssimas
vezes se consegue demarcar, na nossa mente, da condição de objecto, para passar
à condição de poema. Essa incompreensão do seu significado e a quase instantânea
imediatidade das suas evocações faz com que os que, menos esclarecidos sobre as
implicações do conceito de surrealidade, a privilegiem nas respectivas considerações
e bibliografias.
MARIA
ESTELA GUEDES | Não conheço
o assunto, porém o Surrealismo é híbrido, compósito, nele sempre lidámos com artistas
plásticos e poetas, e com obras a três dimensões com participação da escrita, por
isso parece produtiva a análise de imagens numa dimensão retórica e de imagens no
plano das formas, dos volumes e das cores. Os dois tipos de imagem, aliás, costumam
coexistir no texto literário. Tomemos a cantiga de D. Dinis, “Ay flores do verde
piño” – de um lado, o da filosofia, António Telmo leva a imagem poética até aos
confins do messianismo; de outro, eu, por exemplo, concentrada na imagem plástica,
pergunto porque é que só as flores do pinheiro e as da aveleira, ambas anti-flores,
no sentido em que nenhum leigo diria que o são, aparecem na lírica trovadoresca.
Se é disso que se trata.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Quando falo em imagem no Surrealismo só me ocorre
aquela obtida por meio da “razão ardente”, aquela que convoca para uma conciliação
inaugural, para uma “unidade secreta”, aquela que fornece “luz” ao real. A imagem
surrealista é a prova de que não se trata de “truque” ou de “brincadeira artística”,
mas de “experiências mágicas sobre as palavras”, como diz o Walter Benjamin.
Para além disso
(poderíamos admitir para especular) toda a imagem é plástica, de modo que nomear
“imagem plástica” consistiria em produzir uma redundância. Todavia, nem toda imagem
é poética. É isso que você quer discutir?
Não tenho a leitura
do Pellegrini viva na memória para apreciar devidamente a sua colocação. Talvez
a aproximação (ou a suposta identificação) do Surrealismo com a imagem “plástica”
dar-se-ia de maneira mais evidente (e corrente) porque o “movimento” se fez conhecer
(ou seja, foi mais divulgado ou teve maior acesso junto aos apreciadores) enquanto
arte da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema. A poesia, pela sua própria
dificuldade intrínseca (sic), não obteve certamente a mesma penetração junto àqueles,
que as outras artes. E daí que se suponha que, por ter sido conhecida como essencial
ao “movimento” (por meio de outras manifestações mais explícitas), a “imagem plástica”
também acabasse nomeando o tipo de linguagem poética mais afeita ao Surrealismo.
Serão estes os pressupostos do seu questionamento?
7 | Em seu surgimento, as expectativas sociais do Surrealismo
giravam em torno do que então se apresentava como ações revolucionárias, em especial
o que tomava por base as proposições de Marx e Freud. Octavio Paz chegou a declarar
que o século XX seria lembrado como o século de Freud e do Surrealismo. Ao eliminar
Marx de suas profecias esqueceu-se – isto se de fato se trata de esquecimento –
que o mercado derrotaria, para dizer o mínimo, todas as pretensões revolucionárias,
sem deixar de fora as duas destacadas pelo mexicano. Como avaliar o tema em nossa
época? Diante de um virulento absolutismo do mercado, o que houve com as forças
deflagradas por Freud, Marx e o Surrealismo?
GÉRARD CALANDRE | Nos dias em que estamos já se entende
melhor que o que veio a nós de Marx foi apenas servirem se das descobertas dele
não para libertarem, mas para aprisionarem mais o Homem. Marx dizia (eu não sou
marxista) que os partidos ditos marxistas são como os de igreja que se servem do
que dizem que Cristo disse não para seguirem sua filosofia de vida, mas para exercer
poder ao serviço de seus chefes, papas e bispos e governantes desse campo. Visto
isto e a seu propósito, surrealismo e surrealistas que aderiram a partidos comunistas
se ficaram por contradições, pois não se pode meter, em um mesmo plano, liberdade
e razão totalitária. O absolutismo de mercado é uma das faces dessa medalha, lados
que são paralelos. E da lição de Freud o que a classe que domina fez? Fórmulas de
fazer manipulação de pessoas, quando muito preparando-as para o quotidiano de mercado
capitalista, servos obedientes e “curados” para não causarem problemas a seus donos.
E no sector de Leste, casas de saúde e outros eram verdadeiros campos de prisões
onde os adversos do regime eram concentrados.
JOAQUIM SIMÕES | Penso haver já respondido parcialmente
à questão nas respostas anteriores, excepção feita a Freud.
Freud, como ele próprio disse, não fez mais
do que dar forma sistemática e académica a algo que o saber comum sabe desde sempre,
subtraindo-o ao domínio da hipocrisia tirânica instalada pelo medo de si, dominante
não apenas nas culturas ocidentais e ocidentalizadas. Contudo, a exemplo de quase
todos os pioneiros no deslumbramento pelo novo ser que, através deles e neles, se
expandem para todo o mundo, caiu em exageros redutores e, até, prejudiciais no que
respeita à mente e às respectivas origens e funções.
O passo que deu foi, no entanto, decisivo
e inestimável. Mesmo após a enormíssima divulgação e consequentes reflexos disseminativos
culturais que teve durante um largo período do século XX, entretanto esbatidos graças
à concretização das mudanças para cuja necessidade apontava no plano da mentalidade
vigente, permanece actual.
MARIA
ESTELA GUEDES | A tríade
é constituída por Freud, Marx e Darwin. O Surrealismo, ao divulgar Freud, colheu
nele um dos mais singulares filões, dando assim imagem plástica à sua alma.
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Para já continuo a pensar que o Surrealismo realiza,
dentro da história das vanguardas do século XX, um grande tento. É a derradeira
vanguarda histórica, e esse papel heroico ninguém lhe tira. Também não creio que
Marx foi esquecido no andar dessa carruagem – talvez Octavio Paz não tivesse querido
mexer num ninho de gatos, nesse enxame de abelhas africanas, de cuja história já
ouvimos tanto falar. O fato é que se o Surrealismo buscou fazer frente ao mercado
na medida em que se nutre do “escândalo”, do fato insólito e do “espanto” (para
citar Adorno: do “shock”, da montagem) como maneira de minar a moral burguesa –
o mercado, por sua vez, o assimilou de tal forma, que utilizou (e usa) tais recursos
para a sua atualizada implementação e crescimento, como um valor especulativo, tomando
o que lhe era contra a seu favor. Não dá para escapar a esse imperialismo consumista,
e a arte que se preza passa o tempo medindo forças contra essa heterofagia – que
é, a meu ver, o que o Surrealismo continua a fazer desde sempre.
Assim, para responder
direto a sua última pergunta: as forças deflagradas por Freud e Marx continuam vivas
e atentas dentro do Surrealismo e, a cada tempo, engendrando reações próprias à
sua respectiva época. Isso é uma parada eterna, é um certame interminável, um litígio
infindável – e, de certa forma, o combustível para a teimosa (e gloriosa!) permanência
da arte.
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Marcelle Ferron (Canadá, 1924- 2001)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 139 | Agosto de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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