Asas
geladas
Dedos
partidos
Sexo atravessado
Coração de leão decomposto.
JOYCE MANSOUR
A gênese e o sangue da linguagem
mansouriana
Joyce Mansour (1928-1986), nascida em Bowden
na Inglaterra, reconhecida como poeta egípcia de expressão francesa, afinada ao
Surrealismo. Logo após seu nascimento, sua família mudou-se para o Cairo, no Egito,
onde foi criada, quando adolescente, Joyce destacou-se como atleta no salto em altura
e corrida. Em 1944, aos quinze
anos de idade, sua mãe faleceu de câncer, e em 1947, aos dezenove anos, seu primeiro
marido, igualmente sucumbe em decorrência do câncer, seis meses após o casamento.
Em 1949, casou-se
pela segunda vez com o judeu egípcio Samir Mansour, oriundo da colônia francesa
no Cairo. Sua língua nativa era o inglês, por ocasião de seu casamento, Joyce então
estabelece conhecimento mais profundo com a língua francesa e começa a escrever
seus poemas em francês. Após uma vida de intensa
criação artística e intelectual, ela acaba amargando o mesmo destino que
sua mãe e seu primeiro marido, e falece de câncer em 1986, aos 58 anos.
Sua extensa obra inclui dezesseis títulos
de poesia e cinco de prosa, além de uma peça de teatro, destacam-se os livros de
poemas Cris (1953), Rapaces (1960), Les Damnations (1967), Pandemonium
(1976) e Flamme immobiles (1985).
A sua obra completa foi publicada em 1991 em Prose et poésie, œuvre complète, (Actes Sud, Paris). Alguns de seus
livros possuem ilustrações feitas pelos pintores Pierre Alechinsky, Enrico Baj,
Hans Bellmer, Jorge Camacho, Lam, Matta, Pierre Molinier, Max Walter Svanberg e
Reinhoud.
Por volta de 1956 Joyce e seu marido saem definitivamente do Egito,
em exílio, instalando-se em Paris, momento este em que a autora se unirá ao grupo
surrealista francês liderado por André Breton, e participando dos encontros e atividades
do grupo se consolidará como poeta egípcia de expressão francesa enredada ao Surrealismo.
Sua primeira coleção de poemas
intitulada Cris (Gritos), escrita em francês,
foi publicada pelas Edições Seghers em 1953, mesmo antes de integrar o grupo, seus poemas já haviam
chegado às mãos de Breton, que se encantou com sua verve selvagem, pois Joyce enviara
um exemplar deste seu primeiro livro para o poeta, suscitando-lhe comentários sobre
a obra: “Eu amo, senhora, o cheiro de orquídea
negra – ultra-negra – de seus poemas.”. A partir de então, Breton e Mansour
mantiveram uma correspondência frequente e se encontraram desde o final da década
de 1950 até a morte dele. No ensaio Joyce Mansour, la mujer maldita (Joyce Mansour, a mulher maldita) Maite
Noeno Caraballo nos traz apontamentos sobre a gênese poética de Mansour e seus desdobramentos:
Seus primeiros poemas, Cris (1953) surgem em uma época em que o
erotismo é considerado típico da esfera masculina, mas, apesar disso, essa mulher
perturbadora que não passou despercebida pelo grupo surrealista, com seu físico
hipnótico e superioridade linguística Mansour fascina por sua infinita capacidade
de fazer penetrar o centro de suas obsessões: morte e erotismo. O próprio Breton
escreve ao Cairo agradecendo-a por esses poemas, e reconhecendo-a dentro do grupo
surrealista, já que os temas-chave do surrealismo são reconhecidos: o amor, a poesia,
o humor negro, assim como todo o imaginário do cruel e do erotismo. (CARABALLO,
2009)
No Brasil há apenas uma coletânea com poemas
traduzidos, trata-se de Gritos rasgos e rapinas:
23 poemas de Joyce Mansour, publicada pela Lumme editor em 2011, com tradução
de Eclair Antonio Almeida Filho e prefácio de Claudio Willer, além desta coletânea,
destacam-se as traduções e publicações sobre a autora, feitas pelo poeta, ensaísta
e tradutor Floriano Martins, também editor da Agulha Revista de Cultura e estudioso do
Surrealismo e da tradição lírica hispano-americana.
O Surrealismo, tendo exaltado muito a mulher
e a liberdade, era normal que estimulasse as poetisas a exprimir livremente sua
sexualidade. A mais audaciosa de todas é Joyce Mansour, que em 1954, se revelou
com, Cris, uma plaquete contendo poemasde um tom inteiramente novo. O sexo e a morte,
Eros e Thânatos, eram os dois temas misturados numa única obsessão uivante, rosnante,
os versos de Joyce Mansour pareciam rugidos de pantera negra, da qual ela própria
tinha o porte e o ímpeto selvagem. (ALEXANDRIAN, 1993)
A lírica mansouriana emerge impregnada da poderosa e transformadora
volúpia de corpos dissidentes, a poeta instaura novas formas de poder através da
linguagem, ambiciona o desmoronamento da ordem falocêntrica dos discursos, o estilhaçamento
de tabus e o domínio libertário da sexualidade. Em seu reino bacante, ela ruge insolente,
Lilith insubmissa, fêmea devoradora, “[…]
Joyce Mansour não parou nunca de exaltar a revolta feminina integral.” (ALEXANDRIAN,
1993). Seu texto revela a
insurgência gozosa de vozes e corpos que não estão a serviço do patriarcado, dos
preceitos e convenções sociais. Poesia corpórea que grita e esgarça as potencialidades
das experiências afetivas, explora e revira zonas soturnas da afetividade humana,
ateia chamas na arena em que duelam amor e morte. No prefácio do livro Júlio César – História Nociva (1987), novela de Joyce Mansour publicada em Portugal pela Hiena Editora,
Aníbal Fernandes discorre sobre a diegese poética da autora:
[…]
A poesia de Joyce Mansour é um monólogo de vagina
dentata (deixarei devorado quem me violar
os flancos/ com pulsações/ bárbaras) (e
o meu fundo corpo, esse polvo que não pensa/ engole o teu agitado sexo), com
momentos de cansaço heterossexual onde o repúdio do homem cede à escolha da mulher
(…atraio às raparigas/ à maior violência da
minha viragem) (… no veludo vermelho do
teu ventre/no negrume dos teus gritos secretos/penetrei (…)/ e a terra baloiça a
dar voltas a cantar(…)/ Sou o turbilhão de Gomorra), opções de um mesmo jogo
que se resolve com a vida e a morte, para rasgar
solidões. (FERNANDES, 1987)
Os liames libidinosos da poética mansouriana
reverberam a gula deletéria de seu verbo, verve efervescida pela concupiscência
humana, rejubilada pela respiração furiosa das paixões. Mansour nos regala uma vida
criativa vociferada na vastidão dos deleites dissolutos, seus poemas são habitados
por vultos famélicos, carne cobiçosa em confabulação com a angústia de uma devassidão
destrutiva, chama que se consome no próprio ardor. Observamos em sua palavra poética,
a expressão erótica regida pelo contínuo embate entre as forças pulsionais de vida
(eros) e morte (tânatos), potência bacante de corpos que buscam freneticamente a fusão
e a continuidade, ao passo que se deslocam, langorosamente, para a decomposição.
Em seu prefácio para a antologia poética Gritos,
rasgos e rapinas – 23 poemas de Joyce
Mansour (2011), o poeta Claudio Willer identifica as linhas de força e elementos
dominantes no repertório estético de Mansour:
[…] estão presentes o surrealismo intenso,
visceral; o lirismo ambivalente, transformando cada poema em arena de confronto
de Eros e Tânatos; a violência ao investir contra a moral, os bons costumes e as
ideias recebidas; a religiosidade pagã e blasfematória; a equivalência verbal à
nudez; à exposição total, pois, citando-a, “O amor não tem o que fazer do anonimato”;
por isso, deve ser proclamado com ênfase. (WILLER, 2011).
Em Gritos,
Desgarraduras y Rapaces (2009) estão reunidos os três primeiros livros de Mansour
traduzidos ao espanhol por Eugenio Castro, a obra foi publicada na Espanha pelas
Edições Igtur. O volume inclui um epílogo escrito por Eugenio Castro, intitulado
“Joyce Mansour: el grito y la carne consumados” (“Joyce Mansour: o grito e a carne
consumados”) no qual o autor assinala suas ponderações sobre a essência da arquitetura
poética de Joyce:
Desse modo, assim como o inconsciente físico
reveste o corpo do desejo, o inconsciente psíquico intervém qualitativamente no
surgimento e na construção dessa escrita que se conduz de acordo com o desencadeamento
daquele desejo do desejo sem fim que caracteriza a poesia de Mansour,
sendo um de seus pré-requisitos inapeláveis e, claro, desafiadores, olhar para ela face
a face como só se pode fazer diante da face do Eros, infinitamente
mais temível do que diante do rosto da Realidade. Joyce Mansour o faz. Compreender-se-á,
assim, que toda abordagem a esta poesia se faz sob a aceitação total desse desafio. (CASTRO,
2009)
A violência da palavra mansouriana engendra
um corpo convulso guiado pelo desejo de amar e aniquilar, explorando um léxico que
esculpe o paroxismo mortífero na pele. A poeta celebra o império do interdito suscitando
camadas sinestésicas, rítmicas, semânticas e sensoriais, interpelando as potencialidades
do prazer em transfiguração verbal e fusão alquímica.
Mergulhando no turbilhão: tessitura do
eros em versos
No tecido poético de Mansour reúnem-se elementos
que expressam comunhão com o erotismo. Sua obra explora o território do Eros insidioso,
espelha magnitude da experiência orgiástica em flerte contínuo com a morte e aniquilação,
engenho poético em movimento pelos terrenos da transgressão, através da violação
dos interditos. A figuração do impulso erótico em
conflito com o entalhe tanático permeia todo o corpo poemático da autora, as forças
de vida e morte pulsam entrelaçadas em construção emblemática. Diante das vigorosas
nuances eróticas mescladas à morte na lavra mansouriana, nosso aporte teórico se
concentrará nos escritos do filósofo Georges Bataille, especificamente no livro
O Erotismo (1987).
Em seu longo
ensaio, Georges Bataille discorre sobre o erotismo como experiência essencialmente
humana, distinta da atividade sexual dos animais, portanto experiência essencialmente
interior, singular e subjetiva. Experiência permeada de fabulação e marcada pela
interdição e transgressão, o erotismo comporta múltiplas e complexas formas. Na
leitura batailliana, apreendemos o caráter fronteiriço e indelével do erotismo,
quando o autor assim nos descortina seus pensamentos: “Do
erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. (BATAILLE,
2020).
O poema aqui citado, integra o primeiro
livro de Mansour, Cris (Gritos) publicado
em 1953. O poema traduzido ao português apresentado neste artigo foi colhido no
livro de Alexandrian, História da Literatura
Erótica (1993). No cerne do poema, a experiência erótica surge com virulência,
através da voz lírica avassalada voluntariamente aos suplícios da paixão:
Ela
me ama egoistamente
Ela
ama que eu beba suas salivas noturnas
Ela
ama que eu passeie meus lábios de sal
Por
suas pernas obscenas por seu corpo desmoronado
Ela
ama que eu chore minhas noites de juventude
Enquanto
ela exaure meus músculos que se indignam
Com
seus caprichos abusivos
(MANSOUR, 1953, apud ALEXANDRIAN, 1993)
Os versos disparam modulações de uma erótica
selvática, visceral e subversiva, e delineiam desejos saciados através de uma luxuriosa
imolação. A cena lírica escancara a sexualidade dissidente de corpos femininos,
os delitos da lascívia corrosiva de amantes inebriadas pelos sortilégios de uma
volúpia dilacerante, em Bataille encontramos a raiz deste engaste soturno incorporado
aos versos, “O erotismo abre para a morte. A morte abre para a negação da duração
individual. Poderíamos, sem violência interior, assumir uma negação que nos conduz
ao limite de todo o possível?” (BATAILLE, 2020, p.47). No poema, a fusão das amantes
é alimentada através do enleio erótico marcado pelo flagelo, gozo e agonia mesclam-se
em profundo tensionamento corporal e psíquico na busca pelo êxtase completo. O texto
desponta como palco para a vociferação das amarguras de uma mulher jovem, cuja voz
é dominante no texto, em relação à sua amante senil e libertina, apresentando-nos
o cerne de uma relação homoerótica recoberta pelo caráter abusivo e ambíguo de seus
pares.
Elucubrações finais
O percurso poético mansouriano espraia a
fúria das subjetividades em erupção catártica, sua escrita desloca-se impregnada
de gritos, gozos e dilacerações, rumo ao mergulho entranhável nos abismos psíquicos
e oníricos do humano. Sua caligrafia erótica e surrealista esculpe magnetizantes
espirais que deslizam velozes como curtos-circuitos na retina do leitor, Joyce constrói
uma teia lírica de voltagem avassaladora e assim seduz, captura e devora seus ouvintes.
Por conseguinte,
no Dicionário amoroso da psicanálise (2019)
da historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco, encontramos o verbete
amor: “Logo, em sua força primordial, e seja qual for seu objeto, o amor é um ato
incondicional, um ato de liberdade.” (ROUDINESCO, 2019), mais adiante, nos defrontamos
com o verbete Eros: “O amor é companheiro da morte”, dizia
Freud, “eles juntos governam o mundo.” O psiquismo, portanto, é um campo de batalha
no qual se enfrentam duas forças primordiais – Eros e Tânatos – fadadas a se amar
e se odiar para todo o sempre.” (ROUDINESCO, 2019). Percebemos no poema de Joyce
Mansour, a urdidura lírica alinhavada na díade de elementos poderosos e antagônicos
(amor e morte, êxtase e violação, júbilo e destruição), ao passo que compreendemos
o texto poético da autora, apartado do amor romântico e confluente ao erotismo multímodo
e à reconfiguração das reverberações sobre sexualidade, denotando um sentido de
liberação total do desejo erótico e suas ramificações.
Na escrita de Mansour pulsa o inarredável
encontro com a erotismo, através da criação de enunciados e imagens que confluem
para a insurgência da póetica voluptuosa de corpos femininos, que figuram não como
simples objetos erotizados frutos do patriarcado, mas como seres empoderados de
sua sexualidade. Corpos e corações: construtos subjetivos verdadeiramente liberados
para a totalidade da concupiscência, da experiência e escritura do sexo, ligados
ao prazer e dor, à vida e morte, efígies do desejo em erupção nas fissuras existenciais.
Referências
ALEXANDRIAN, Sarane. História
da literatura erótica. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
BATAILLE, George. O Erotismo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
BERRIOS,G.E.;BERLINCK,M.T. Erotomania. São Paulo: Escuta, 2009.
CARABALLO, Maria Teresa Noeno. Joyce Mansour, la mujer maldita - Texto Y Sociedad En Las Letras Francesas
Y Francófonas, Departament de Filologia Clàssica, Francesa i Hispànica Universitat
de Lleida, 2009. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3707210 Acesso em 30 de julho de 2021.
CASTRO, Eugenio. In:
MANSOUR, Joyce. Gritos, Desgarraduras
y Rapaces. Traducción: Eugenio
Castro. Espana: Edições Igitur, 2009, p.191-196.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática,
1985.
FERNANDES, Aníbal. In: MANSOUR, Joyce. Júlio César -História Nociva – Trad. Aníbal Fernandes. Portugal: Hiena,
1987, p. 07-11.
KERNBERG, Otto F. Psicopatologia
das relações amorosas. Jones & Bartlett,
2004.
NOEL, Jean Bellemin. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1978.
PAES, José Paulo. Poesia erótica em tradução – seleção, tradução,
introdução e notas de José Paulo Paes, São Paulo: Cia das Letras, 2006.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo:
Siciliano, 1994.
ROUDINESCO, Elisabeth.
Dicionário amoroso da psicanálise. Rio
de Janeiro: Zahar, 2019.
WILLER, Claudio. A lírica selvagem de Joyce Mansour. In: MANSOUR, Joyce. Gritos, rasgos e rapinas – 23 poemas de Joyce Mansour, Trad. de Eclair Antonio Almeida Filho. São Paulo: Lumme Editor, 2011, p. 07-11.
*****
|
|
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 184 | outubro de 2021
Artista convidado: Jaime Suárez (Puerto Rico, 1946)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2021
Visitem também:
Atlas Lírico da América Hispânica
Nenhum comentário:
Postar um comentário