quarta-feira, 20 de outubro de 2021

ANNA APOLINÁRIO | Lascívia e aniquilação: o eros corrosivo em versos de Joyce Mansour


Asas geladas

Dedos partidos

Sexo atravessado

Coração de leão decomposto. 


 JOYCE MANSOUR


 

A gênese e o sangue da linguagem mansouriana

Joyce Mansour (1928-1986), nascida em Bowden na Inglaterra, reconhecida como poeta egípcia de expressão francesa, afinada ao Surrealismo. Logo após seu nascimento, sua família mudou-se para o Cairo, no Egito, onde foi criada, quando adolescente, Joyce destacou-se como atleta no salto em altura e corrida. Em 1944, aos quinze anos de idade, sua mãe faleceu de câncer, e em 1947, aos dezenove anos, seu primeiro marido, igualmente sucumbe em decorrência do câncer, seis meses após o casamento.

Em 1949, casou-se pela segunda vez com o judeu egípcio Samir Mansour, oriundo da colônia francesa no Cairo. Sua língua nativa era o inglês, por ocasião de seu casamento, Joyce então estabelece conhecimento mais profundo com a língua francesa e começa a escrever seus poemas em francês. Após uma vida de intensa criação artística e intelectual, ela acaba amargando o mesmo destino que sua mãe e seu primeiro marido, e falece de câncer em 1986, aos 58 anos.

Sua extensa obra inclui dezesseis títulos de poesia e cinco de prosa, além de uma peça de teatro, destacam-se os livros de poemas Cris (1953), Rapaces (1960), Les Damnations (1967), Pandemonium (1976) e Flamme immobiles (1985). A sua obra completa foi publicada em 1991 em Prose et poésie, œuvre complète, (Actes Sud, Paris). Alguns de seus livros possuem ilustrações feitas pelos pintores Pierre Alechinsky, Enrico Baj, Hans Bellmer, Jorge Camacho, Lam, Matta, Pierre Molinier, Max Walter Svanberg e Reinhoud.

Por volta de 1956 Joyce e seu marido saem definitivamente do Egito, em exílio, instalando-se em Paris, momento este em que a autora se unirá ao grupo surrealista francês liderado por André Breton, e participando dos encontros e atividades do grupo se consolidará como poeta egípcia de expressão francesa enredada ao Surrealismo. Sua primeira coleção de poemas intitulada Cris (Gritos), escrita em francês, foi publicada pelas Edições Seghers em 1953, mesmo antes de integrar o grupo, seus poemas já haviam chegado às mãos de Breton, que se encantou com sua verve selvagem, pois Joyce enviara um exemplar deste seu primeiro livro para o poeta, suscitando-lhe comentários sobre a obra: “Eu amo, senhora, o cheiro de orquídea negra – ultra-negra – de seus poemas.”. A partir de então, Breton e Mansour mantiveram uma correspondência frequente e se encontraram desde o final da década de 1950 até a morte dele. No ensaio Joyce Mansour, la mujer maldita (Joyce Mansour, a mulher maldita) Maite Noeno Caraballo nos traz apontamentos sobre a gênese poética de Mansour e seus desdobramentos:

Seus primeiros poemas, Cris (1953) surgem em uma época em que o erotismo é considerado típico da esfera masculina, mas, apesar disso, essa mulher perturbadora que não passou despercebida pelo grupo surrealista, com seu físico hipnótico e superioridade linguística Mansour fascina por sua infinita capacidade de fazer penetrar o centro de suas obsessões: morte e erotismo. O próprio Breton escreve ao Cairo agradecendo-a por esses poemas, e reconhecendo-a dentro do grupo surrealista, já que os temas-chave do surrealismo são reconhecidos: o amor, a poesia, o humor negro, assim como todo o imaginário do cruel e do erotismo. (CARABALLO, 2009)

No Brasil há apenas uma coletânea com poemas traduzidos, trata-se de Gritos rasgos e rapinas: 23 poemas de Joyce Mansour, publicada pela Lumme editor em 2011, com tradução de Eclair Antonio Almeida Filho e prefácio de Claudio Willer, além desta coletânea, destacam-se as traduções e publicações sobre a autora, feitas pelo poeta, ensaísta e tradutor Floriano Martins, também editor da Agulha Revista de Cultura e estudioso do Surrealismo e da tradição lírica hispano-americana.


Com uma lavra essencialmente subversiva, Mansour explora a fusão causticante de amor e morte e celebra a rebelião feminina, expressão genuína de voracidade e transgressão. Seus versos exibem as entranhas de corpos atravessados por uma erótica desconcertante e desafiadora. Em seu livro História da Literatura Erótica (1993), especificamente no tópico “A revolta das mulheres surrealistas”, Alexandrian refere-se à Joyce, salientando o furor de sua poética, e a “erupção de sua sexualidade vulcânica”:

 

O Surrealismo, tendo exaltado muito a mulher e a liberdade, era normal que estimulasse as poetisas a exprimir livremente sua sexualidade. A mais audaciosa de todas é Joyce Mansour, que em 1954, se revelou com, Cris, uma plaquete contendo poemasde um tom inteiramente novo. O sexo e a morte, Eros e Thânatos, eram os dois temas misturados numa única obsessão uivante, rosnante, os versos de Joyce Mansour pareciam rugidos de pantera negra, da qual ela própria tinha o porte e o ímpeto selvagem. (ALEXANDRIAN, 1993)

 

A lírica mansouriana emerge impregnada da poderosa e transformadora volúpia de corpos dissidentes, a poeta instaura novas formas de poder através da linguagem, ambiciona o desmoronamento da ordem falocêntrica dos discursos, o estilhaçamento de tabus e o domínio libertário da sexualidade. Em seu reino bacante, ela ruge insolente, Lilith insubmissa, fêmea devoradora, “[…] Joyce Mansour não parou nunca de exaltar a revolta feminina integral.” (ALEXANDRIAN, 1993). Seu texto revela a insurgência gozosa de vozes e corpos que não estão a serviço do patriarcado, dos preceitos e convenções sociais. Poesia corpórea que grita e esgarça as potencialidades das experiências afetivas, explora e revira zonas soturnas da afetividade humana, ateia chamas na arena em que duelam amor e morte. No prefácio do livro Júlio César História Nociva (1987), novela de Joyce Mansour publicada em Portugal pela Hiena Editora, Aníbal Fernandes discorre sobre a diegese poética da autora:

 

[…] A poesia de Joyce Mansour é um monólogo de vagina dentata (deixarei devorado quem me violar os flancos/ com pulsações/ bárbaras) (e o meu fundo corpo, esse polvo que não pensa/ engole o teu agitado sexo), com momentos de cansaço heterossexual onde o repúdio do homem cede à escolha da mulher (…atraio às raparigas/ à maior violência da minha viragem) (… no veludo vermelho do teu ventre/no negrume dos teus gritos secretos/penetrei (…)/ e a terra baloiça a dar voltas a cantar(…)/ Sou o turbilhão de Gomorra), opções de um mesmo jogo que se resolve com a vida e a morte, para rasgar solidões. (FERNANDES, 1987)

 

Os liames libidinosos da poética mansouriana reverberam a gula deletéria de seu verbo, verve efervescida pela concupiscência humana, rejubilada pela respiração furiosa das paixões. Mansour nos regala uma vida criativa vociferada na vastidão dos deleites dissolutos, seus poemas são habitados por vultos famélicos, carne cobiçosa em confabulação com a angústia de uma devassidão destrutiva, chama que se consome no próprio ardor. Observamos em sua palavra poética, a expressão erótica regida pelo contínuo embate entre as forças pulsionais de vida (eros) e morte (tânatos), potência bacante de corpos que buscam freneticamente a fusão e a continuidade, ao passo que se deslocam, langorosamente, para a decomposição. Em seu prefácio para a antologia poética Gritos, rasgos e rapinas23 poemas de Joyce Mansour (2011), o poeta Claudio Willer identifica as linhas de força e elementos dominantes no repertório estético de Mansour:

 

[…] estão presentes o surrealismo intenso, visceral; o lirismo ambivalente, transformando cada poema em arena de confronto de Eros e Tânatos; a violência ao investir contra a moral, os bons costumes e as ideias recebidas; a religiosidade pagã e blasfematória; a equivalência verbal à nudez; à exposição total, pois, citando-a, “O amor não tem o que fazer do anonimato”; por isso, deve ser proclamado com ênfase. (WILLER, 2011).

 


A poesia de Joyce Mansour nos revela faces abissais do amor, o sangue de sua linguagem flui dos caldeirões incandescentes em que se agitam e transbordam as forças pulsionais primevas, as viscerais aventuras afetivas, excessivamente humanas. Em seu reino imagético, mormente brilham os poderes brutais do amor e os horrores do gozo, carnalidade de uma lírica devoradora, despudor de uma poeticidade que cintila na antessala incandescente de fabulações lascivas.

Em Gritos, Desgarraduras y Rapaces (2009) estão reunidos os três primeiros livros de Mansour traduzidos ao espanhol por Eugenio Castro, a obra foi publicada na Espanha pelas Edições Igtur. O volume inclui um epílogo escrito por Eugenio Castro, intitulado “Joyce Mansour: el grito y la carne consumados” (“Joyce Mansour: o grito e a carne consumados”) no qual o autor assinala suas ponderações sobre a essência da arquitetura poética de Joyce:

 

Desse modo, assim como o inconsciente físico reveste o corpo do desejo, o inconsciente psíquico intervém qualitativamente no surgimento e na construção dessa escrita que se conduz de acordo com o desencadeamento daquele desejo do desejo sem fim que caracteriza a poesia de Mansour, sendo um de seus pré-requisitos inapeláveis ​​e, claro, desafiadores, olhar para ela face a face como só se pode fazer diante da face do Eros, infinitamente mais temível do que diante do rosto da Realidade. Joyce Mansour o faz. Compreender-se-á, assim, que toda abordagem a esta poesia se faz sob a aceitação total desse desafio. (CASTRO, 2009)

 

A violência da palavra mansouriana engendra um corpo convulso guiado pelo desejo de amar e aniquilar, explorando um léxico que esculpe o paroxismo mortífero na pele. A poeta celebra o império do interdito suscitando camadas sinestésicas, rítmicas, semânticas e sensoriais, interpelando as potencialidades do prazer em transfiguração verbal e fusão alquímica.

 

Mergulhando no turbilhão: tessitura do eros em versos

No tecido poético de Mansour reúnem-se elementos que expressam comunhão com o erotismo. Sua obra explora o território do Eros insidioso, espelha magnitude da experiência orgiástica em flerte contínuo com a morte e aniquilação, engenho poético em movimento pelos terrenos da transgressão, através da violação dos interditos. A figuração do impulso erótico em conflito com o entalhe tanático permeia todo o corpo poemático da autora, as forças de vida e morte pulsam entrelaçadas em construção emblemática. Diante das vigorosas nuances eróticas mescladas à morte na lavra mansouriana, nosso aporte teórico se concentrará nos escritos do filósofo Georges Bataille, especificamente no livro O Erotismo (1987).

Em seu longo ensaio, Georges Bataille discorre sobre o erotismo como experiência essencialmente humana, distinta da atividade sexual dos animais, portanto experiência essencialmente interior, singular e subjetiva. Experiência permeada de fabulação e marcada pela interdição e transgressão, o erotismo comporta múltiplas e complexas formas. Na leitura batailliana, apreendemos o caráter fronteiriço e indelével do erotismo, quando o autor assim nos descortina seus pensamentos: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. (BATAILLE, 2020).

O poema aqui citado, integra o primeiro livro de Mansour, Cris (Gritos) publicado em 1953. O poema traduzido ao português apresentado neste artigo foi colhido no livro de Alexandrian, História da Literatura Erótica (1993). No cerne do poema, a experiência erótica surge com virulência, através da voz lírica avassalada voluntariamente aos suplícios da paixão:

 

Ela me ama egoistamente

Ela ama que eu beba suas salivas noturnas

Ela ama que eu passeie meus lábios de sal

Por suas pernas obscenas por seu corpo desmoronado

Ela ama que eu chore minhas noites de juventude

Enquanto ela exaure meus músculos que se indignam

Com seus caprichos abusivos

(MANSOUR, 1953, apud ALEXANDRIAN, 1993)

 

Os versos disparam modulações de uma erótica selvática, visceral e subversiva, e delineiam desejos saciados através de uma luxuriosa imolação. A cena lírica escancara a sexualidade dissidente de corpos femininos, os delitos da lascívia corrosiva de amantes inebriadas pelos sortilégios de uma volúpia dilacerante, em Bataille encontramos a raiz deste engaste soturno incorporado aos versos, “O erotismo abre para a morte. A morte abre para a negação da duração individual. Poderíamos, sem violência interior, assumir uma negação que nos conduz ao limite de todo o possível?” (BATAILLE, 2020, p.47). No poema, a fusão das amantes é alimentada através do enleio erótico marcado pelo flagelo, gozo e agonia mesclam-se em profundo tensionamento corporal e psíquico na busca pelo êxtase completo. O texto desponta como palco para a vociferação das amarguras de uma mulher jovem, cuja voz é dominante no texto, em relação à sua amante senil e libertina, apresentando-nos o cerne de uma relação homoerótica recoberta pelo caráter abusivo e ambíguo de seus pares.


Evidenciado o desejo de vivenciar o amor e o prazer através da exploração dos limites, os corpos brutalizam-se para seguir violentamente e irremediavelmente vivos. Na perspectiva batailliana, o erotismo respira nos precipícios mais íntimos e bárbaros do ser, essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação.” (BATAILLE, 2020), isto posto, através da exploração de suas potencialidades eróticas ostensivas, o ser alcançará sua mais imperiosa experiência interior, a plenitude tempestuosa de seus mais íntimos desejos.

 

Elucubrações finais

O percurso poético mansouriano espraia a fúria das subjetividades em erupção catártica, sua escrita desloca-se impregnada de gritos, gozos e dilacerações, rumo ao mergulho entranhável nos abismos psíquicos e oníricos do humano. Sua caligrafia erótica e surrealista esculpe magnetizantes espirais que deslizam velozes como curtos-circuitos na retina do leitor, Joyce constrói uma teia lírica de voltagem avassaladora e assim seduz, captura e devora seus ouvintes.

Por conseguinte, no Dicionário amoroso da psicanálise (2019) da historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco, encontramos o verbete amor: “Logo, em sua força primordial, e seja qual for seu objeto, o amor é um ato incondicional, um ato de liberdade.” (ROUDINESCO, 2019), mais adiante, nos defrontamos com o verbete Eros: “O amor é companheiro da morte”, dizia Freud, “eles juntos governam o mundo.” O psiquismo, portanto, é um campo de batalha no qual se enfrentam duas forças primordiais – Eros e Tânatos – fadadas a se amar e se odiar para todo o sempre.” (ROUDINESCO, 2019). Percebemos no poema de Joyce Mansour, a urdidura lírica alinhavada na díade de elementos poderosos e antagônicos (amor e morte, êxtase e violação, júbilo e destruição), ao passo que compreendemos o texto poético da autora, apartado do amor romântico e confluente ao erotismo multímodo e à reconfiguração das reverberações sobre sexualidade, denotando um sentido de liberação total do desejo erótico e suas ramificações.

Na escrita de Mansour pulsa o inarredável encontro com a erotismo, através da criação de enunciados e imagens que confluem para a insurgência da póetica voluptuosa de corpos femininos, que figuram não como simples objetos erotizados frutos do patriarcado, mas como seres empoderados de sua sexualidade. Corpos e corações: construtos subjetivos verdadeiramente liberados para a totalidade da concupiscência, da experiência e escritura do sexo, ligados ao prazer e dor, à vida e morte, efígies do desejo em erupção nas fissuras existenciais.

 

Referências

ALEXANDRIAN, Sarane. História da literatura erótica. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

BATAILLE, George. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

BERRIOS,G.E.;BERLINCK,M.T. Erotomania. São Paulo: Escuta, 2009.

CARABALLO, Maria Teresa Noeno. Joyce Mansour, la mujer maldita - Texto Y Sociedad En Las Letras Francesas Y Francófonas, Departament de Filologia Clàssica, Francesa i Hispànica Universitat de Lleida, 2009. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3707210 Acesso em 30 de julho de 2021.

CASTRO, Eugenio. In: MANSOUR, Joyce. Gritos, Desgarraduras y Rapaces. Traducción: Eugenio Castro. Espana: Edições Igitur, 2009, p.191-196.

DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985.

FERNANDES, Aníbal. In: MANSOUR, Joyce. Júlio César -História Nociva – Trad. Aníbal Fernandes. Portugal: Hiena, 1987, p. 07-11.

KERNBERG, Otto F. Psicopatologia das relações amorosas. Jones & Bartlett, 2004.

NOEL, Jean Bellemin. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1978.

PAES, José Paulo. Poesia erótica em tradução – seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes, São Paulo: Cia das Letras, 2006.

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário amoroso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

WILLER, Claudio. A lírica selvagem de Joyce Mansour. In: MANSOUR, Joyce. Gritos, rasgos e rapinas – 23 poemas de Joyce Mansour, Trad. de Eclair Antonio Almeida Filho. São Paulo: Lumme Editor, 2011, p. 07-11.



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[A partir de janeiro de 2022]


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