Breves anotações sobre livros & livros
Em geral o espaço de discussão sobre mercado de livro deve agrupar categorias como pequeno e grande mercado, assim como mercado local, nacional e internacional. Uma vez observado como mercadoria, o livro se iguala a qualquer outro objeto de consumo. Dentre outras coisas, portanto, desaparece a lógica que enlaça autor e leitor, assumindo o comando das ações uma outra lógica que rege as relações entre produtor e consumidor. O autor de livro passa a importar unicamente pelo resultado de vendas ou sua perspectiva mais imediata. Este mercado, igual a qualquer outro, tem suas próprias leis e a cultura, entendida como um princípio de conteúdos que expressam a grandeza de um povo, não tem poder de voto em suas estatísticas, não influencia as diretrizes comerciais. Evidentemente que muitos aspectos podem ser evidenciados de maneira distinta ao tratamento que se tem da mercadoria em outros mercados. Mas nada define melhor uma mesa de reuniões quanto estimativas de venda e eficácia de seus mecanismos. E como em todo mercado, uma das estratégias de grande eficiência é a homogeneização do produto.
Não se diz aqui nada de novo, mas é bom lembrar porque em geral escritores, sobretudo escritores que não vendem ou simplesmente não conseguem editoras para seus livros, reclamam acerca da voracidade mercantil de editores. Estes, caso passassem a ser editores, seguramente atuariam da mesma maneira que hoje recriminam. Dois outros aspectos curiosos dizem respeito às categorias que acima mencionei. Em primeiro lugar há um abismo quase intransponível entre pequeno e grande mercado de livros. Por uma série de fatores, que envolve temas como impostos, marketing, distribuição, pequenas editoras estão como que condenadas a manter esta situação, quando muito chegando à categoria de média editora. Por outro lado, internacionalização de mercado de livros não atua em favor de seu correspondente local. Exemplo disto é que as grandes editoras internacionais não costumam internacionalizar seu catálogo, limitando à praça local aqueles autores que são por elas editados em cada país. Assim é que um autor brasileiro editado no Brasil pela Planeta ou um argentino editado na Argentina pela Alfaguara raramente alcança uma distribuição internacional de seu livro. Os livros verdadeiramente internacionalizados o são obedecendo a outra lógica, e uma lógica que hoje prima cada vez mais pela homogeneização. Como certa vez afirmou um editor brasileiro, o futuro (hoje já um presente avassalador) do mercado de livros não contempla a edição do livro de qualidade. Mas o que vem a ser o livro de qualidade?
Em primeiro lugar, o termo tem que ser entendido como um princípio. Não se trata de dizer que não há livros de qualidade nas livrarias atualmente. Tampouco se pode pensar que todos aqueles autores que não encontram lugar no mercado de livros são vítimas de uma circunstância impiedosa. Não esquecer, por último, que estamos falando aqui de literatura, não cabendo em nossa pauta discutir outras ofertas deste mercado, tais como livros didáticos e religiosos. O livro de qualidade atende a um princípio de sensibilidade estética, de avaliar suas características literárias, inclusive aquelas que exijam um pouco mais de investimento em sua aclimatação ao mercado. Evidente que isto foge da zona de interesse de qualquer mercado, onde impera a estratégia de redução de custos visando obter maior rendimento. Tudo que contradiga tal lógica é inaceitável. Assim que o autor de qualidade, por princípio, não terá jamais oportunidade alguma. Outro aspecto que o grande mercado descarta por completo é a perspectiva de patamares de venda distintos de acordo com a natureza da oferta. Podemos pensar rapidamente aqui em termos de gêneros literários, onde a poesia venderá sempre menos que o romance e este mais do que o teatro, o que não significa dizer que sejam irrisórias as estatísticas no teatro e na poesia. O que se passa é que já se estabeleceu um círculo vicioso, de preconceitos e incompetência empresarial – neste caso da parte dos pequenos editores que não fazem senão sonhar com o dia em que serão grandes editores, estupidamente adotando, desde já, a mesma lógica do grande mercado. Pequenos editores poderiam ser os notáveis responsáveis pela edição do livro de qualidade, investindo em difusão, buscando parceria institucional (incluindo rádio e televisão), inclusive desenvolvendo projetos internacionais a médio custo. Mas infelizmente são raros os que atuam nesta direção. E o grande mercado agradece que sua concorrência seja tão insignificante.
Acrescente-se a tudo isto um outro fator: o comportamento do autor frente aos aspectos aqui anotados. Sigo falando em termos de princípio, o que significa dizer que as exceções não se ausentam de minha perspectiva. Ao contrário, fazem o que sempre fizeram: confirmam a regra. Em geral escritores estão perdidos, buscando a todo custo agradar a este mercado que o suga de todas as maneiras. Conheço bons poetas que deixaram de lado a sua poesia e passaram a escrever uma narrativa inconsequente, quase sempre medíocre, na expectativa de assim encontrar editora. E não esqueçamos ainda, ao montar este cubo mágico das relações entre componentes do mercado editorial, a presença da mídia, que astutamente soube erradicar o que antes conhecíamos como crítica literária, deixando o livro a mercê de breves comentários que em muitos casos não passam de uma linguagem de release. Evidente que trato de desenhar este quadro não como desestímulo à discussão, mas sim como um alerta de que terá que ser outra a estratégia de enfrentamento do tema. Antes de avançar em alguns aspectos que considero pertinentes evocar, queria deixar aqui o depoimento de um editor brasileiro, dado em 2007 e que permanece atual:
Quero fazer livro. Posso até ter prejuízo, mas preciso estar no mercado. E o que é que eu, pequenininho, faço para chegar até uma pessoa numa grande rede? Primeiro, o cara vai me deixar quatro horas sentado, esperando. Depois, vai me olhar, ver meus livros e dizer: “Esse eu quero”. Eu pergunto a ele: “Ah, por que você quer esse?” E ele: “Porque gostei da capa”. Pergunto se ele não quer ouvir algo sobre aquele livro. “Não.” Ele não tem tempo para me ouvir. Isso é decepcionante, me frustra muito. Não acompanho mais meu gerente na hora de vender um livro. Porque meu gerente me dizia: “Vamos comigo, para você falar do livro, você fala melhor do que eu”. É um desastre. Porque eu falo melhor do que ele, sim, mas o cara que está do outro lado não quer me ouvir. Ele não tem tempo. […] Então você tem que ter uma capa vendedora. E uma orelha vendedora com poucas palavras – porque ele também não tem tempo para ler a orelha. E tem que ter uma quarta capa com aquela frase: “Pá!” E não pode ter só um título: tem que ter título e subtítulo.
[…]
Outra coisa: reunião de conselho editorial de uma grande editora. Você está lá, entusiasmado com um livro: “Ele tem uma alta qualidade literária”. Ih, alta qualidade literária? O diretor financeiro, com a calculadora na mão, fala: “Opa, isso aí foi bem lá fora? Entrou na lista do New York Times?” Não, e que diferença faz? A biografia de Darwin que eu editei nunca entrou em listas lá fora e vendeu 50 mil exemplares no Brasil. A menina que roubava livros [1] é um fenômeno brasileiro. O monge e o executivo [2] só vende no Brasil. O seu autor, nos Estados Unidos, é um palhaço. Ninguém o leva a sério. No Brasil, ele é fantástico. Ele deve pensar: “Rapaz, esses brasileiros são ótimos”. Porque lá, nos Estados Unidos, ele não é nada. Faz palestras por dois mil dólares. Mas pagam 150 mil para ele vir para cá. O Brasil é realmente um país fantástico. [3]
Note que em 2007 ainda não havíamos entrado com essa voracidade hoje existente na relação entre cinema e romance, a rigor uma eficiente parceria comercial que tem sido responsável por essa homogeneização tanto da literatura quanto do cinema. De qualquer maneira, vale aqui observar que o depoimento acima não é de um autor e sim de um editor. Ou seja, dentro do próprio mercado é possível encontrar uma leitura correta de suas falhas, justamente da parte de alguém que se sente indignado ante a degradação intelectual, o empobrecimento da literatura e o profundo desrespeito com relação ao leitor. Portanto, se estamos interessados em discutir sobre livro de qualidade na América Latina ou abordar o nível de integração cultural, a partir da literatura, entre nossos países, terá necessariamente que ser outro o ângulo de observação.
Como bem sabemos não há sistemática naquilo que se poderia chamar de integração cultural em nosso continente. As poucas ações registradas nessa direção são casuais e raramente encontram apoio ou são frutos de iniciativa do meio institucional. Recordo que ainda nos anos 1980, quando eu começava a preparar as entrevistas que iriam compor o livro Escritura Conquistada, na correspondência que mantive com vários poetas em toda a América Hispânica, sempre que tocávamos neste hiato existente entre nós, a observação se repetia, da omissão das missões diplomáticas de nossos países no sentido de se proporcionar um intercâmbio de bens culturais. Poetas como Javier Sologuren, Juan Liscano, Fernando Charry Lara, tinham sempre a mesma crítica em relação ao abismo cultural que se verificava entre Peru, Venezuela, Colômbia e Brasil. O mesmo acontecia em relação aos demais países. Alguém possivelmente deve apontar uma exceção, a de Hilda Scarabótolo de Codina e as edições tão bem cuidadas, de autores brasileiros, publicadas em Lima através do Centro de Estudos Brasileiros. Outro exemplo, absolutamente isolado, até pelo seu gigantismo e amplo raio de ação, é o da Fundación Biblioteca Ayacucho, na Venezuela. Algo mais? Vamos ao mercado privado. Há algum caso de coleções específicas de literatura argentina, literatura chilena, literatura paraguaia? Autores nossos são publicados em nossos países apenas esporadicamente. Quase sempre como reflexo de um prestígio internacional alcançado por suas obras. Tragicamente concluímos que não estamos interessados em nós mesmos. Agora, imenso e sem fundo é o mapa das oportunidades perdidas. Um desses casos curiosos é o da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, no Brasil. Publicação de luxo, esta revista circula semestralmente há 20 anos, sempre dirigida por destacados poetas brasileiros. É sua característica editorial dedicar cada número a um país. No entanto, em seus mais de 30 números publicados até aqui, apenas duas tradições líricas latino-americanas foram contempladas: México e Peru. Na edição dedicada ao Peru, o então editor Marco Lucchesi observa, em suas palavras iniciais:
Algumas pontes desafiam a distância Brasil-Peru, como as edições de Ciro Alegria, Scorza, Llosa, Mariátegui, além da antologia El río hablador, de Everardo Norões, marco recente nesse diálogo que se mantém vivo, e há muitos anos, graças também à inspiração de Floriano Martins, com seu passaporte poético latino, que não teme aduanas de fundo ideológico.
A ele coube a tarefa de preparar uma seleção da poesia contemporânea do Peru. A escolha demonstra ao mesmo tempo a mestria do recorte e a fineza da tradução. A começar pelo diálogo instigante entre Carlos Germán Belli, Hildebrando Pérez Grande, Pedro Granados e Rossella di Paolo, que prepara o leitor para a antologia. [4]
No diálogo a que se refere Marco Lucchesi, tratei de indagar a respeito da ausência de um estreitamento de relações entre as literaturas brasileira e peruana, ocasião em que Carlos Germán Belli mencionou “uma efêmera aproximação, como foi o programa editorial que, graças aos esforços da escritora Vera Pedrosa, adida cultural brasileira nos anos 1970, e da escritora Hilda Scarabótolo de Codina, residente em Lima e funcionária da embaixada brasileira, foi levado a cabo com grande brilho e rigor acadêmico até superar uma centena de títulos.” Germán Belli observa ainda que “na maior parte dos casos eram mostras antológicas de poetas brasileiros de todos os tempos, traduzidos por autores peruanos”. [5] Todo um projeto de grande e indiscutível excelência, porém isolado no tempo. O que persiste é o descuido ante o que deveria ser uma preocupação permanente de conhecimento mútuo e correspondência entre essas literaturas. Quero aqui reproduzir as palavras do Hildebrando Pérez Grande com que finaliza sua participação neste mesmo diálogo. Diz ele:
Penso que devemos estimular os encontros, os estudos, as traduções. Há que fomentar uma política editorial que nos permita difundir de maneira massiva nossas melhores obras e aprofundar o conhecimento de nós mesmos. Academicamente, posso dizer que na Universidad Nacional Mayor de San Marcos são ditados, pois estão em nosso plano de estudos, dois cursos de literatura brasileira a cada ano acadêmico. Os jovens estudantes de nossa universidade conhecem tanto a poesia quanto a narrativa brasileira. E nas Oficinas Literárias de San Marcos e na Ruiz de Montoya, nossos jovens criadores se familiarizam com a melhor porção da literatura brasileira. Há que estimular a leitura e a tradução e a difusão de nossas literaturas em cada um de nossos países. [6]
Em 2007, estive à frente de um projeto-piloto a que intitulamos “I Encontro de Agentes Culturais – América Hispânica”, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. A ideia era criar um fórum de discussão sobre estrutura e conteúdo da próxima edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, evento cuja curadoria então caberia a mim. Por uma semana reunimos em um teatro em Fortaleza representantes eleitos por nós em países como Colômbia, Peru, México, Venezuela, Chile e República Dominicana. Um segundo encontro teria lugar, já em 2008, dentro do próprio espaço da Bienal. O tema central de nossas conversas girou em torno do comportamento das feiras internacionais de livros, em nossos países, no tocante ao livro e ao escritor. Os depoimentos apontavam todos em uma mesma direção. A convidada colombiana, Amparo Osorio, diretora da Editorial Común Presencia, observou que:
É lamentável que as feiras do livro não estejam orientadas para uma difusão da literatura propriamente dita. São empresas com interesse econômico, o que as torna excludentes de valiosas literaturas e cúmplices econômicas das grandes editoras agora dedicadas à publicação de obras banais. […] Isto nos leva a pensar na urgência de adiantar negociações entre escritores, editores e feiras a fim de pactuar uma cota importante de leitura e formação, que precisamente afaste essa cultura do espetáculo em que se converteram estes eventos. [7]
A partir deste fórum, ampliando a rede de representantes para todos os países hispano-americanos, assim como incluindo a Espanha e os países de língua portuguesa em todo o mundo, em 2008 foi montada, no Ceará, nordeste do Brasil, uma primeira feira do livro que buscava equilibrar as forças até aqui referidas, não descuidando da área comercial, porém sem levar prejuízo à exposição de livros de qualidade, assim como objetivando um espaço mais amplo de reflexão em torno da literatura e seus mecanismos, não convertendo o ambiente da feira em mero palco de espetáculos. O próprio anúncio da Bienal já deixava bem clara a sua pauta de novas propostas:
O tema da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará é A aventura cultural da mestiçagem, o qual abrange duas comunidades lingüísticas: a portuguesa e a espanhola e, ainda, suas manifestações artísticas e culturais, totalizando 30 países situados em quatro continentes: África, América, Ásia e Europa. A ousadia de tal abrangência desloca o foco habitual das programações literárias de outros eventos similares, concentrando-se aqui em evocar a multiplicidade de culturas e a condição mestiça de suas raízes. […] Motivada pelo tema central, a programação da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará estará comprometida com a integração das culturas envolvidas, reconhecendo seus hábitos, costumes e literatura, e com a democratização e a mobilização do acesso universal ao livro, à leitura e à produção literária. Serão realizadas atividades baseadas na promoção e geração de conhecimentos destinados ao público. […]As sessões literárias incluem palestras, debates, leituras de poemas, encontros especiais, lançamentos de livros. Esta agenda foi configurada, por sua vez, a partir do tema central. Os debates contemplarão assuntos como produção e circulação de revistas e suplementos literários, casas de cultura, política cultural dos centros de estudos brasileiros na América Hispânica, movimentos contraculturais, circuito editorial universitário, encontros internacionais de escritores, dentre outros. Já as palestras tratarão de aspectos ligados aos fundamentos da mestiçagem, jornalismo cultural e obras literárias, considerando particularidades regionais e continentais dos países envolvidos. […] Haverá ainda uma integração entre segmentos da criação artística, produção cultural e mídia, envolvendo uma série de salas permanentes que, no decorrer dos 10 dias de realização da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, por meio das quais será permitido um convívio entre público, escritores, artistas e produtores culturais. Ao todo haverá um conjunto de 9 salas, assim distribuídas: Arena Jovem, Arte Postal & Poesia Visual, Artes e Ofícios, Cordel, Gravuras, Música, Rádio, Revistas e Vídeos. Outro diferencial é a criação de um espaço intitulado “Ilha dos Continentes”, cuja área de 234m² destina-se a receber editoras estrangeiras que, em geral, não dispõem de condições de participar de eventos internacionais.
Coube ao jornalista Lira Neto – hoje um destacado nome no ambiente cultural no Brasil, graças às biografias que vem escrevendo de nomes fundamentais de nossa cultura – fazer a entrevista que funcionaria como carta de princípios da Bienal. Conversamos abertamente sobre as novas propostas e sobre o que eu considerava uma série de desgastes no formato das feiras de livro no país. Em certo momento, Lira Neto indagou a respeito do esgotamento das sessões literárias, oportunidade em que fiz a seguinte aclaração:
Acho que há um desequilíbrio nas razões culturais e de mercado que atuam em eventos desta natureza. Maior acento na área de mercado implica em demasiada dependência de suas cotações e exposições de mídia. Estes aspectos podem, em geral, assumir uma conotação negativa em um ambiente cultural fragilizado como o que temos hoje no Brasil. Posso ser acusado de eufemismo, porém tento aqui apenas evitar cair em seu revés, o sentido catastrófico derrotista. O fato é que é preciso evitar simplificações e reiterações temáticas na formatação das sessões literárias, inclusive qualificando o mediador das mesas de maneira a não permitir que as explanações dos convidados caiam no vazio, sem que os encontros produzam tanto um enriquecimento crítico no público quanto perspectivas de parcerias entre as partes envolvidas. Posso dar aqui dois exemplos, referentes a mesas de debate: uma delas reúne diretores dos mais atuantes Centros de Estudos Brasileiros existentes na América Hispânica, o que nos permitirá uma avaliação do comportamento do Itamaraty e sua política cultural no tocante à integração continental; uma outra mesa, com dupla jornada, reúne algumas das principais editoras universitárias do país, ocasião em que evocará aspectos como planejamento editorial e distribuição. As próprias sessões de leitura de poemas serão mais abrangentes, permitindo aos poetas comentarem sobre sua poesia e responder a perguntas do mediador e do público. Enfim, trata-se de dar mais substância ao evento. [8]
Estatísticas de presença de público e acompanhamento de registro de imprensa atestam em favor de um êxito na realização desta Bienal, embora algumas das propostas de mudança não tenham obtido o resultado desejado. Hoje me parece que é natural que assim tenha ocorrido, considerando a alta aposta de revitalização do modelo em curso. No entanto, observo com curiosidade que certos vícios são mais persistentes do que outros. Neste caso a grande contrariedade, sobretudo pro parte da imprensa – o que torna o aspecto ainda mais curioso – era a de que estávamos fazendo uma Bienal sem nomes conhecidos. Questiona-se aí a função do Estado ao promover um evento desta natureza, que não deve ser a de acomodar-se ao terreno estabelecido e sim tratar de inovar em ofertas de qualidade. Evidencia-se também a preocupação única da imprensa com a veiculação fácil de material já amplamente identificado por seu cliente, o público consumidor de mídia. Não há como sair do imobilismo cultural desta maneira. Muito pelo contrário, agindo assim a tendência será – e já vemos isto de forma assustadora – tornar-se cada vez mais refém desse mecanismo, fazendo concessões na direção de uma homogeneização e conseqüente empobrecimento dos bens culturais. Como era ideia da curadoria da Bienal, o Governo do Estado deveria avançar em outras atividades, sobretudo no intervalo existente entre esses eventos, seja através da realização de pequenos eventos ou da criação de um selo editorial. Em 2009 houve a oportunidade de levar a Fortaleza parte substanciosa da diretoria da Fundación Casa de las Américas, por ocasião dos 50 anos de existência da mesma. Também foi criada uma coleção de livros, por onde se editou livros do nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, do argentino Juan Gelman e uma antologia de poesia mexicana – o que apontava na direção de uma grande e substanciosa novidade, a de que o Estado poderia criar uma política cultural de aproximação concreta com a América Hispânica. Nova Bienal é projetada para 2010 e uma vez mais fui convidado para ser o seu curador. Durante sua preparação, no entanto, repetia-se a insistência, agora já internamente, no próprio ambiente institucional, de que a Bienal deveria promover aqueles nomes mais destacados em termos de mídia, voltando a prevalecer uma política de espetáculo. Lamentando que não fosse possível mais dar seqüência ao projeto original, achei por bem me afastar da curadoria.
Trato de persistir de outras maneiras nesta obsessão por um diálogo aberto entre nossas culturas. Vale aqui mencionar que historicamente a grande vanguarda neste sentido de integração sempre esteve nas mãos dos diretores de revistas, sobretudo aquelas não institucionais. Em geral poetas, eles mesmo que também se encontram à frente na coordenação dos festivais internacionais de poesia que hoje são parte da agenda cultural de vários países, exceto no Brasil, onde o modelo foi preterido pelo que se chama de Festa Literária, a rigor mais um palco de espetáculos realizados em função do mercado de livros. Esta estranha relação entre livro e autor no Brasil tem uma singularidade impressionante. Em meu país o lançamento de livros é um evento unicamente comercial, do qual o autor participa tão-somente para autografar os livros vendidos. Esta prioridade comercial assume tal proporção que o espaço comum ao lançamento de um livro, que seria uma livraria, pode ser substituído facilmente por bares ou clubes sociais. Já se pode falar hoje em adesão de um novo instrumental de difusão de bens culturais que é a Internet, pela criação de bancos de consulta e de revistas com pauta expressiva. De qualquer modo, estamos ainda tratando de aspectos isolados, que exigem sistematização e ampliação constante. É nesta direção, no entanto, que parece ser possível rever perspectivas para o livro de qualidade em nosso continente. Particularmente não tenho talento para otimismos aleatórios, assim que me mantenho na feição de um pessimista produtivo. Uma olhada geral para o que se chama mercado de livros na América do Sul nos últimos tempos já nos deixa bastante de sobreaviso sobre os caminhos que devem ser evitados. Um grande centro editor como é a Venezuela, por exemplo, incorre num erro brutal que é o da politização de mercado. Assim que há um abismo impressionante entre autores, editores, livreiros, propiciados por um cisma ideológico, que opera no sentido mais amplo de desperdício de oportunidade e mesmo de depredação de um patrimônio cultural adquirido e inclusive respeitado internacionalmente. Nos demais países sul-americanos, o que pude constatar graças a consultas que fiz a amigos escritores, a situação remete aos obstáculos habituais do mercado de livros, fatores estruturais pertinentes a cada sociedade, os baixos níveis de educação pública, falência ou inexistência de programas de leitura etc. Todos estes fatores hoje enormemente piorados pela invasão do mercado espanhol. A este respeito quero mencionar um segundo depoimento do mesmo editor brasileiro já aqui citado:
Os espanhóis têm um projeto estratégico. Quando acabou a ditadura de Franco, a Espanha começou a crescer, se redemocratizou. Ainda está crescendo. Enquanto isso, na Itália, houve a “Operação Mãos Limpas”. Muita gente presa: políticos, empresários, sindicalistas. A Máfia, então, saiu da Itália e foi para a Espanha. A Espanha recebeu dinheiro criminoso, que foi lavado e ficou “sério”. Lá, os antigos mafiosos se tornaram empresários engravatados. A Espanha, hoje, é um país rico. E o seu projeto estratégico é nada mais, nada menos que reconquistar a América. Antes, eles nunca haviam dado atenção ao Brasil porque, aqui, se fala outra língua. Mas agora descobriram que dá para ganhar muito dinheiro entre os brasileiros. E estão chegando. […] Já compraram praticamente todas as editoras de livros didáticos do Brasil. […] Tudo está à venda. Se não foi vendido é porque ainda não apareceu aquela proposta irrecusável. A Editora Objetiva já vendeu 75%. Então, os espanhóis compram. Têm um projeto estratégico. Estão entrando na telefonia celular. No jornalismo, nas revistas, nas gráficas, nos livros didáticos, nas editoras. Estão chegando com fome e com dinheiro. Quem vai resistir? E o que pode acontecer conosco, os editores supostamente independentes, editores por acidente ou por gosto? [9]
Creio que temos aqui um conjunto de aspectos que exige reflexão sistemática. De qualquer forma, entendamos este editorial como um sinal de alerta, o de que agravamos ainda mais o quadro, já bastante complexo e assustador, se persistimos em embaralhar seus componentes como se o desdobramento do tema fosse alheio à ordem interna deles mesmos. Em geral, há um descompasso entre a gravidade do problema e sua percepção. Autores, sobretudo, têm um compromisso de denúncia, de combate na forma de depoimento de suas experiências, de voz a ser aberta na busca de uma honestidade intelectual. Mas naturalmente não recrimino aqueles que querem apenas o espetáculo fácil de seus dotes literários. Apenas saibamos que se trata de outra gente. Ou que sou eu a outra gente. Abraxas.
Os editores
NOTAS
***
SUMÁRIO
|
1. ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO |
André Breton libertário e automatista
|
2. CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo e
filosofia
|
3. DAVID CORTÉS CABÁN | Conocerse es el relámpago: Caballo
de palo, de Clemente Soto Vélez
|
4. EDUARDO DALL’ALBA | As
poéticas do grupo Matrícula
|
5. FEDERICO RIVERO SCARANI | El simbolismo en la obra de Julio
Inverso
|
6. GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Tropicalismo y Europeismo en la
literatura venezolana: Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll vistos por
Miguel de Unamuno
|
7. HAROLD ALVARADO TENORIO | Hace 145 años nació Rubén Dario
|
8. HÉCTOR ROSALES | María Meleck Vivanco, iluminada por el
fuego
|
9. JOSÉ ALCÁNTARA ALMÁNZAR | Reencuentro con Héctor Incháustegui Cabral
|
10. JULIO MENDONÇA | Qorpo-Santo: o poeta
que escreveu o contrário do que pensava
|
11. LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA | A
origem da escrita
|
12. MARLISE BASSFELD-MUHME | A
arte de Ana Luisa Kaminski
|
13. NICOLAU SAIÃO | A face oculta do
planeta
|
14. OMAR CASTILLO | Lo subversivo en La valija de
fuego de Aldo Pellegrini
|
15. PAULO SPOSATI ORTIZ: Thomas
Rain Crowe e os Postais do Peru
|
16. RICARDO MATTOS | Poesia e pederastia: o
Mário de Andrade de Roberto Piva
|
17. RICARDO ROQUE BALDOVINOS | Piedra y Siglo: breve historia de un
colectivo poético
|
18. RODRIGO BARBOSA DA SILVA: A voz
& o silêncio: a geometria do espírito em A origem Diágora, de
Jota Medeiros
|
19. RUBÉN SICILIA | Entre Vicente Revuelta y Jerzy
Grotowski: Fascinación, Desafío y Éxtasis
|
20. TERESA SÁ COUTO |
Poesia de José Emílio-Nelson: a lanterna do feio
|
ARTISTA CONVIDADO | ENRIQUE GRANELL - JUAN-EDUARDO CIRLOT
- RICARDO SENABRE | Tres veces Antonio Beneyto y las voces de la crítica
|
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 8 | Março de 2014
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equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
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|
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