Melhor: o sistema de ideias das quais o tempo vive.
José Ortega y Gasset
Inicialmente o texto de Jorge Luis Borges nos apresenta as seguintes questões: “Poucas coisas mais belas e mais patéticas registrará a história além dessa consagração de um médico árabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam quatorze séculos; às dificuldades intrínsecas devemos acrescentar que Averróis, ignorando o grego e o siríaco, trabalhava sobre a tradução de uma tradução”. E, por conseguinte: “… duas palavras duvidosas o detiveram no princípio da ‘Poética’. Essas palavras eram tragédia e comédia. Encontrara-as anos atrás no livro terceiro da ‘Retórica’: ninguém, no âmbito do Islã, atinava com o que queriam dizer”. Além de acrescentar: “Inutilmente fatigara-se nas páginas de Alexandre de Afrodisia, inutilmente compulsara as versões do nestoriano Hunain ibn-Ishaq e de Abu-Bashar Mata”. De modo que, nessa primeira abordagem, nos deparamos com alguns aspectos, concernentes aos estudos de autores e de filósofos antigos, os quais suscitam muitas dúvidas e/ou incertezas, e que podem ser assim expressas ou traduzidas: o tempo, e tudo o que dele pode ser derivado (diferenças sociais, linguísticas e culturais), serviria para nos aproximar ou nos distanciar dos ditos autores, e no caso em questão , do próprio Aristóteles? Como compreendê-los (os filósofos antigos), sem que acrescentemos algo às suas ideias? Ou então, o tempo se encarregaria de propor algo a mais, ou seja, na medida em que reconfiguraria ou atualizaria conceitos e pensamentos de uma outra época? E, em sendo isso possível , as ideias seriam produzidas dentro de um contexto e/ou de uma situação específica?
Nessa perspectiva, segundo Aristóteles (2009) – o estagirita, o filósofo, o sábio a quem Averróis se dedica, em seus comentários e estudos filosóficos, conforme descrito na obra de Borges –, em seu livro De Anima, o homem é um animal dotado de algumas faculdades, consideradas por ele como especiais, sendo elas a imaginação e o intelecto. Dito de outro modo, para o filósofo grego, a base de todo o conhecimento humano provém da sensibilidade, já que o intelecto precisaria, portanto, de tal elemento, para se atualizar e se tornar inteligível. Sendo assim, a abstração se daria por meio da percepção sensível, ou seja, os elementos fornecidos pelos sentidos (visão, tato, audição, paladar e olfato) seriam o substrato do qual a inteligência se utilizaria para efeito de constituição de um saber, ligado à materialidade e às coisas do mundo. No dizer do filósofo: “O fato de pensar depende do sujeito que pode exercer este ato; o ato de sentir, por outro lado, não depende dele: sendo para isso necessário que o sensível lhe seja concedido” (LIMA apud ARISTÓTELES, 2009, p. 23).Ademais, para Aristóteles (2009), a faculdade imaginativa é a que possibilitaria, ao indivíduo, produzir imagens advindas do contato direto com os objetos materiais presentes na realidade, e sendo que tais imagens ficariam retidas na memória. Assim, estas imagens poderiam ser acessadas sem que houvesse a necessidade de nova experiência sensível com vistas a “reacendê-la” em nosso intelecto. E, conforme se verifica no texto de Borges, essa experiência pode ser também observada no trecho em que o personagem, Abulcásim, relata uma experiência – considerada como insólita -, no qual há uma descrição de uma encenação e de um fato parecido com uma peça de teatro, apesar de desconhecer totalmente o significado daquela experiência, ou melhor, ele não tinha uma explicação válida e convincente sobre o fato ao qual havia testemunhado, tempos atrás, em uma de suas viagens em Sin Kalan (Cantão).Como assevera Davidson (2009), Aristóteles não foi capaz de esclarecer, de forma clara e evidente, a natureza desse processo intelectivo; ele não conseguiu estabelecer a que tipo pertence tal intelecção, ou mesmo, no que consiste esta atividade em seu sentido estrito. Logo, o referido filósofo baseou-se tão somente em analisar a conexão existente entre as faculdades intelectiva e imaginativa, ao definir que o intelecto seria dependente das imagens fornecidas pela imaginação, bem como a sua atuação derivar-se-ia delas (as ditas imagens sensoriais). O autor, também, destacou que a indefinição, proposta por Aristóteles, no que tange ao intelecto e suas funções e/ou propriedades, gerou uma série de interpretações e, consequentemente, diversos comentários (referentes tanto à tradição helenística quanto à medieval) a esse respeito. Desta feita, embora existam lacunas no que toca à relação entre o que é dado pela sensação e o que é estabelecido pelo intelecto, tais concepções baseiam-se, em grande medida, na chamada descrição aristotélica do processo de cognição, que trata da recepção da forma de um objeto específico do qual se extraiu a sua materialidade.Averróis (2009), por sua vez, define como formas materiais a relação existente entre as formas dos objetos físicos e as formas da alma oriundas tanto dos dados externos quanto dos sentidos internos (sentido comum, imaginação, cogitação e memória), através do qual os inteligíveis podem ser assim acessados ou mesmo adquiridos. Nesse sentido, a aquisição de algo que é universal – como o conceito de cor ou a de uma espécie animal, por exemplo – passaria, necessariamente,
pela afecção material de um dado objeto, a ser percebido sensorialmente, e depois depurado na alma. Por causa disso e em razão dessa interferência, no plano da percepção, é que um cego jamais poderia adquirir o conceito de cor. Vê-se, pois, que Cultura é o sistema de ideias vivas que cada época possui.
A construção de um determinado conceito (o inteligir sobre algo) está vinculado às imagens que se tem acerca de uma determinada coisa. Logo, para Averróis, os inteligíveis pertencentes a um indivíduo não são completamente idênticos aos de outro indivíduo. E tais inteligências, sobretudo o intelecto potencial e a faculdade cogitativa, estão também sujeitas à mudança, bem como vinculadas a cada um desses indivíduos – enclausurados em suas formas perceptuais e imagéticas –; não obstante o fato de existirem outras formas de inteligência, apontadas pelo mencionado filósofo, em muitos dos seus comentários com relação a Aristóteles, dentre as quais podemos citar: as inteligências separadas (dos corpos celestes), inteligências agentes e a inteligência em ato puro (Deus: o primeiro motor), e todas elas prescindindo, parcial ou totalmente, da materialidade. Ainda, segundo o filósofo árabe-cordobês, o nosso processo cognoscitivo (como se dá o nosso conhecimento) envolve a recepção e a captura de uma substância que é separado da matéria, embora tenha o seu início nos dados provenientes dos sentidos, passando, doravante, pela imaginação até atingir o seu ápice no intelecto. Com efeito, o sensível é tudo que pode ser captado pelo intelecto, a exemplo da passagem, no conto de Borges, em que o personagem de Averróis defende a tese de que as rosas, cultivadas em todo tipo de terreno e encontradas em quaisquer regiões, pudessem ser descritas por meio de palavras. Sendo, portanto, a escrita uma arte e, como toda e qualquer experiência a ela relacionada, definida a partir do nosso intelecto. Conforme se pode deduzir da seguinte passagem, do Conto, em tela:
“(…) Então Averróis declarou, prefigurando as remotas razões de um ainda problemático Hume: – Menos me custa admitir um erro no douto Ibn Qutaiba, ou nos copistas, do que admitir que a terra dê rosas com profissão de fé.– Assim é. Grandes e verdadeiras palavras – disse Abulcásim.– Certo viajante – lembrou o poeta Abdalmalik – fala de uma árvore cujos frutos são pássaros verdes.É menos difícil acreditar nele que em rosas com letras.– A cor dos pássaros – disse Averróis – parece facilitar o milagre. Além disso, os frutos e os pássaros pertencem ao mundo natural, mas a escrita é uma arte. Passar de folhas a pássaros é mais fácil que de rosas a letras” (BORGES, 1998, p. 74).
Portanto, um filósofo também importante e que merece ser citado nesse contexto teórico – a exemplo da passagem acima descrita do texto de Borges –, é David Hume. Uma vez que, de acordo com Hume, o conhecimento é fruto da experiência e só pode ser adquirido por via das sensações . Para esse filósofo , qualquer noção, sendo ela simples ou complexa, somente pode ser concebida a partir do modo como é então percebida, ou seja, o pensamento deriva-se e compõe-se de impressões sensíveis . A impressão seria, nesse caso, a causa direta da ideia surgida na mente. A lembrança de tal impressão é o que geraria a noção que se tem sobre a coisa vivida e experimentada na prática. De tal modo que, a experiência (sensorial) que se tem de um limão, por exemplo: o seu cheiro, a sua cor e o seu sabor (puxado para o azedo) é o que constituiria a noção e o conceito que se tem desse objeto a que se pode chamar de limão; é o que serviria de base para o nosso entendimento disso que se diz ser um limão. Em poucas palavras, graças aos sentidos é que obtemos o material necessário para a formação de um conhecimento que tem correlação direta com a realidade. Para Hume (1996), existe um problema relativo às noções complexas que não têm correspondentes complexos na realidade material. Razão pela qual determinados conceitos, como o de anjo ou mesmo o de Pégaso (o mito do cavalo alado), não podem ser conhecidos e nem tampouco percebidos. Nessa vertente é que surge a seguinte pergunta: de que impressões surgiram tais noções? Para o filósofo, essa questão só pode ser respondida, na medida em que: uma noção complexa possa ser decomposta em suas noções simples, sendo estas constituintes daquela. Dessa forma, então, é que podemos dizer que a mente produziu um conceito complexo acerca das duas noções (a de anjo e o de Pégaso) a partir de noções advindas de impressões simples; ou seja, a mente realizou a junção entre a impressão de um animal – no caso o cavalo –, e a impressão de um par de asas, formando assim uma ideia de uma criatura que não existe, mas que pode ser construída por meio de uma associação mental de impressões “reais”. Com isso , a mente humana teria um papel criativo, de acordo com as próprias palavras do filósofo Hume, ao afirmar que a mente nada mais é do que “uma espécie de teatro”, nele influindo diversos elementos que “se sucedem em suas entradas e saídas de cena, e se misturam numa infinidade desordenada de posições e de tipos” (GAARDER apud HUME, 1996, p. 293). O texto de Borges parece remeter a uma situação, na qual não há possibilidade de se conhecer algo sem, no entanto, ter tido a impressão e a experimentação deste algo face à realidade e em contato direto com aquilo do qual se quer entender. E para além dessa experiência (imediata), como noção de alguma coisa complexa, que requer a conjugação de inúmeras impressões sensíveis para que possa ser de fato apreendida e compreendida. É o que podemos observar, portanto, da busca de Averróis pela definição de duas palavras, tragédia e comédia, encontrados no livro A Poética, de Aristóteles. Essas noções, por se tratarem de dois significados que remetem as mais variadas formas de experiência sensível – uma vez que a experiência teatral também trabalha com essa concatenação de impressões e sensações, demonstradas em pleno palco –, precisam ser encenadas, colocadas em ação na mais pura mise-en-scéne, para que o seu efeito, mimético-catártico, produza no espectador uma fruição no campo estético-emocional. Entretanto, vale destacar que, Averróis talvez nunca tenha participado de uma experiência como essa: a da dramatização teatral e da interpretação cênica . A sua realidade e o seu contexto social era outro, isto é, o ambiente intelectual no qual estava inserido era típico do mundo muçulmano e ligado ao Islã. Por isso ele nunca assistiu a um espetáculo teatral, nos moldes propostos pelos gregos. E a sua definição de tragédia e comédia ficou, nesse aspecto, comprometida e distante daquilo com o que Aristóteles se baseou para se trabalhar o significado e o sentido dos dois termos. Exemplo claro disso, foi o simples fato de Averróis não ter reconhecido na brincadeira realizada entre dois garotos – como indicado no início da narrativa borgiana – diversos elementos (cênicos) referentes a esses dois conceitos: como os de pantomima, [1] do quiasmo [2] e de outras questões afetas à representação teatral. Muito embora, ele tenha partido de uma vivência cultural; de um ethos e de uma visão de mundo, com base em critérios e em modelos explicativos fornecidos pelos árabes (com a influência dos seus tradutores e dos seus estudiosos), para daí, então, dar a sua interpretação e o seu significado às palavras de Aristóteles, tal como se segue:
“Os muezins chamavam à oração da primeira luz quando Averróis voltou a entrar na biblioteca. (…) Algo lhe revelara o sentido das duas palavras obscuras. Com firme e cuidadosa caligrafia juntou estas linhas ao manuscrito: Aristu (Aristóteles) denomina tragédia aos panegíricos e comédias às sátiras e aos anátemas. Admiráveis tragédias e comédias são abundantes nas páginas do Corão e nos versos do Santuário” (grifo nosso) (BORGES, 1998, p. 79).
Ora, Averróis era um homem do seu tempo. Preso às suas circunstâncias e a uma realidade bastante controversa: o período medieval. Por outro lado, foi um crítico das tradições e dos dogmas religiosos do seu povo, haja vista ele ter sido banido e vivido um longo tempo exilado, no Norte da África, devido às suas ideias “heréticas” sobre a imortalidade da alma e outros temas correlatos. E por falar em circunstâncias, há que se mencionar e fazer referência a outro grande filósofo, do século XX – espanhol assim como Averróis –, que é o Ortega y Gasset. Um dos feitos deste filósofo foi ter cunhado a expressão (e uma das mais promissoras da filosofia): “O eu sou eu e minhas circunstâncias”. Assim, n o sistema orteguiano, pensar é uma forma de circunstancializar. E para se ter algum conhecimento, o indivíduo precisa primeiro tentar compreender a sua circunstância, o qual não é possível sem que ele tenha que se integrar a outras circunstâncias, de uma maneira tal que, ao voltar à sua própria circunstância possa melhor analisá-la. Ocorre que, n a concepção de Ortega y Gasset (1994), a circunstância de cada um de nós é parte constitutiva do nosso eu, como se aquela fosse a contraparte e a outra metade deste. Não existimos primeiro para depois nos sujeitarmos a uma situação, seja ela de ordem histórica, social, ou até econômica. Para o filósofo espanhol , o eu e as minhas circunstâncias são duas instâncias que se constituem simultaneamente, se bem que rigorosamente distintas entre si; isoladas elas são incompletas, embora sejam claramente diferentes uma da outra. De onde se conclui que, Averróis foi alguém, ao mesmo tempo, influenciado e que influenciou demandas pertinentes ao seu tempo.Tomando como critério de análise tudo o que foi exposto até aqui, podemos dizer que Borges tentou conceber um Averróis estribado em informações e em detalhes que escapam à realidade e ao contexto em que se baseou para escrever essa estória . A sua busca é a busca de um autor por meio de um labirinto – o de Creta com o seu Minotauro –, em que imaginou este filósofo “como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto”. [3] Portanto, ao procurar retratar o filósofo Averróis, em seus pensamentos e em sua época, o poeta se viu obrigado a reavivá-lo e a descrevê-lo fielmente no que tange aos aspectos e aos parâmetros ficcionais, sem nenhum outro recurso a não ser aquele fornecido pela imaginação e o que o tempo nos relegou face a esse importante personagem da história da filosofia.De forma idêntica, foi o que aconteceu com o próprio Averróis que “atirou no viu e acertou no que não viu”, como bem nos ensina o ditado popular. Isto é, ele, Averróis, ao tentar comentar o pensamento de Aristóteles, o qual remontava há mais de dois mil anos, acabou por fazer uma interpretação e/ou uma avaliação das suas ideias à luz de preceitos e de toda uma conjuntura histórico-cultural vinculada à Andaluzia, ou al-Andalus, o nome então utilizado pelos árabes para designar a Península Ibérica. Alguém que quis compreender e descrever um sistema de pensamento, mas que, além disso, chegou a acrescentar outras tantas ideias e conceitos a esse mesmo quadro conceitual; passando então a reinventá-lo – para não dizer que o tal pensamento tenha sido distorcido ou até deturpado – sob o seu ponto de vista, de cidadão muçulmano e que habitava a Espanha em pleno século XII d.C.. Enfim, uma situação que reflete bem as palavras do autor do Conto, em que se inspirou este artigo , Jorge Luís Borges:
“Na história anterior quis contar o processo de uma derrota. (…) Refleti, em seguida, que mais poético é o caso de um homem que se propõe um fim que não está vedado a outros, mas sim a ele. Lembrei-me de Averróis, que, encerrado no âmbito do islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia. Contei o caso; à medida que me adiantava, senti o que teve de sentir aquele deus mencionado por Burton, que pretendeu criar um touro e criou um búfalo. Senti que a obra zombava de mim. Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, não era mais absurdo que eu, querendo imaginar Averróis, sem outro material além de alguns rudimentos de Renan, de Lane, e de Asín Palacios. (…) (No instante em que eu deixo de acreditar nele, ‘Averróis’ desaparece)” (BORGES, 1998, p. 79 - 80).
NOTAS
3. Trecho do poema “O Labirinto”, de Jorge Luís Borges.
Alexandre Flores Alkimin (Brasil). Pedagogo, graduando em filosofia, e técnico em assuntos educacionais da Pró-reitoria de Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: floresalkimim@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras de Nelson de Paula (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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