sábado, 22 de novembro de 2014

CARLOS FELIPE MOISÉS | O poeta, o rapsodo, o aedo






Carlos Felipe MoisésComo tantos outros poetas e pensadores, Auden não acredita que o poeta nasce feito e que tudo é uma questão de oportunidade e inspiração súbita. Para ele, poesia é um ofício que, para ser exercido com proficiência, exige um árduo e constante aprendizado. Mas ele também não acredita que “poesia” possa ser ensinada em algum Liceu de Artes e Ofícios, nos moldes de “marcenaria” ou “desenho industrial”, embora não repelisse de todo a ideia.
Em dado momento, com uma ironia que ao mesmo tempo demonstra a implausibilidade do intento e faz pensar em outra coisa, Auden chegou a imaginar o currículo básico de um curso de formação de poetas, por ele concebido em nível superior: “a College for bards”. Além do idioma nativo, estudado em extensão e profundidade, se­riam exigidas uma língua antiga e duas línguas modernas. Milhares de versos, nessas línguas, seriam aprendidos de cor. Haveria cursos regulares, obrigatórios, de prosódia, retórica e filologia comparada, e todos os alunos precisariam escolher três cursos, entre matemática, história natural, geologia, meteorologia, arqueologia, mitologia, liturgia e culinária. A biblioteca não teria livros de crítica literária e o único exercício exigido dos alunos seria escrever paródias. Fazer poesia? Só depois de formado. E Auden remata: todos seriam obrigados a cuidar de um animal de estimação e a cultivar um pequeno jardim.
Qual o candidato a poeta, hoje, que abriria mão da esplêndida liberdade de sair versejando ao primeiro impulso, ao sabor da inspiração (versos “livres”, não é mesmo?), ou que trocaria sua estimulante oficina de criação literária por um curso desses, ainda que ministrado por Baudelaire, Rilke, T.S. Eliot, Ezra Pound, Valéry, Pessoa, Mário de Andrade, Bandeira, Drummond, João Cabral...?
Auden acreditava que, “em nossa cultura, um poeta em potencial precisa autoeducar-se”, começando por conhecer bem o que existe, vale dizer toda a tradição, para chegar a escolher o ponto a partir do qual seguir adiante. Em nosso tempo, ele garante, o fardo da seleção e da escolha recai inteiramente sobre os ombros de cada poeta, “e é um fardo pesadíssimo”.
Silvia WestphalenNós, mais pragmáticos, obviamos a dificuldade, concedendo a todos o direito universal, inquestionável, de poetar à vontade. Como ninguém se sente seguro, e muitos che­gam até a desconfiar, o resultado tem sido, em nossos dias, a generalizada proliferação de oficinas de criação literária, de corpo presente e à distância, todas politicamente corretas nisso de aceitar que as pessoas estão aí para “aprender”, mas ninguém é ingênuo ou megalômano a ponto de achar que “ensina”. Mestre Caeiro sempre virá em au­xílio dos mais céticos: “...isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender”.
Antigamente, corria uma piada sem graça, segundo a qual, indagado se sabia tocar piano, o indivíduo respondia: sei lá, nunca experimentei. Só alguém excessiva­mente ingênuo, candidato natural a protagonista de piada, poderia imaginar que tocar piano é questão de experimentar. Hoje, no entanto, é só substituir “tocar piano” por “fazer poesia” e já não será mais piada, com ou sem graça. Será só uma resposta aparentemente plausível, e, embora estejamos no mesmo caso, a maioria não verá aí vestígio algum de ingenuidade. Tarso de Melo, poeta dos bons, arguto investigador desses assuntos, chamou-me a atenção para o fato de que, quando o da piada se aproximasse de um piano pela primeira vez, para experimentar, ninguém teria dúvida em constatar, ao primeiro contato dos seus dedos com o teclado, que ele realmente não sabe tocar. Já em relação à poesia, haverá sérias dúvidas (in dubio pro reo?): muitos ficarão felizes com a descoberta e acharão que sabem. Poucos leitores, ou ouvintes, se darão conta do engodo, pois aí não estarão mais em causa as razões estéticas, mas as da moralidade vigente: saber fazer e fazer bem feito, hoje, contam bem menos do que o sagrado e inalienável direito que todos temos de tentar, e seguir tentando, qualquer que seja o resultado.
Quem nunca experimentou, e “portanto” não sabe se sabe fazer poesia, fatalmente recorrerá, na primeira tentativa, a um vocabulário impreciso, sintaxe desgovernada e negli­gente, linguagem falsamente “elevada”, uma enfiada de clichês pretensamente “profun­dos”, nenhuma noção de ritmo, tudo muito prolixo, redundante, nenhum esforço no rumo da concisão e da originalidade, simples memória involuntária de leituras mal assimiladas. Mas como farão o leigo e o próprio aspirante a poeta para distinguir entre a tentativa bisonha, tão bisonha quanto a do pianista da anedota, e um poema verdadeiro? Nada fácil, sem dúvida; a confusão é praticamente inevitável. O caminho possível é, pri­meiro, convencer-se de que ninguém nasce sabendo fazer poesia e que, portanto, não é mera questão de experimentar. Segundo, é preciso assumir com humildade o propósito de aprender os fundamentos do ofício – lendo, lendo muito, lendo muita poesia, mas com olhos e ouvidos atentos, espírito crí­tico, e não apenas para se deleitar e depois imitar, servilmente, a aparência do que tiver sido mal assimilado. 
Será um fardo pesadíssimo, não há dúvida, e a advertência de Auden vale para o poeta, o músico, o pintor, o escultor e tantos outros praticantes de atividades similares, ou­trora conhecidas como “belas artes”. Ao contrário, porém, do que se passa com o praticante da maior parte das demais artes e ofícios, o aprendiz de poesia não estará apto a desempenhar satisfatoria­mente a sua arte se se limitar a aprender o que houver de mais avançado na área, as técnicas mais atuais, desobrigando-se de tomar conhecimento das etapas anteriores, irremediavelmente “ultrapassadas”. Para além ou aquém do que possa haver de obsoleto na poesia de outras épocas, os fundamentos da velha arte continuam a ser essencialmente os mesmos, o que em parte justifica o apaixonado exagero de um Leopardi, para quem “tudo se aperfeiçoou de Homero em diante, mas não a poesia”.

Silvia Westphalen

Que necessidade terá o arquiteto, hoje, movido por um mínimo de espírito prático, de insistir na régua de cálculo e na prancheta, quando um bom software coloca à sua disposição, na telinha de cristal líquido, automaticamente, tudo de que ele precisa? Assim também, o moderno marceneiro, disposto a fazer uma boa cadeira, não perderá tempo aprendendo primeiro as técnicas rudimentares do artesão medieval, por exemplo, e em seguida, passo a passo, as dos seus sucessores. Ele não só pode como deve ir diretamente aos apare­lhos, às ferramentas e aos utensílios, mais novos e eficientes que uma oficina bem equipada lhe ofereça. Mas o caminho será outro se, em vez de fabricar uma honesta cadeira onde pessoas se sentem, ele se empenhar em criar, em madeira, uma obra de arte, destinada não a abrigar traseiros mas à contemplação dos apreciadores. Sim, já se vê, tomada essa decisão, nosso amigo abandonará a utilíssima seara da marcenaria, para adentrar por sua conta e risco o misterioso, incerto e inútil reino da escultura – tão inútil, incerto e misterioso quanto o da poesia. Sua tarefa será, então, similar à do poeta em potencial, obrigado a conhecer, e de um modo ou de outro a experimentar (agora sim), a arte de seus antecessores, não para retroagir nem para imitar algum obsoleto estilo de época, mas para extrair, do amplo e variado repertório tradicional, os recursos ainda válidos, necessários à expressão do seu intento genuíno e singular.
A razão é paradoxal: o intento do poeta só será genuíno e verdadeiramente singular se ele estiver firmemente atado, ao mesmo tempo, ao presente e ao passado, à rea­lidade imediata e à tradição. Leopardi talvez tivesse pretendido dizer que os avanços tecnológicos, com base nos quais “tudo se aperfeiçoou de Homero em diante”, são bem-vindos e indis­pensáveis para uma quantidade inumerável de afazeres e ofícios, no âmbito dos quais só o último avanço de fato interessa; mas não assim com a poesia, em cujo âmbito, a cada momento, é necessário reaprender tudo de novo (Caeiro: aprender a desaprender), para poder avançar.
Silvia WestphalenAprender, desaprender, reaprender... Se fosse só uma questão de “experimentar”, que necessidade teria o poeta de se preparar ou de aprender seja o que for? Conhecer bem a tradição? À quoi bon?!, perguntaria M. Jourdain. Não sabemos todos que tradicional é o que está condenado à obsolescência, devendo ser, mais cedo ou mais tarde, inapelavelmente descartado? Então, melhor descartá-lo in limine e começar logo a experimentar. Quanto ao perigo que seria, para o principiante, vir a ser influenciado por um desses poetas antigos, ça va sans dire, sentenciaria o afrancesado Conselheiro Acácio. No nosso tempo não é raro o poeta que se recusa a ler poesia, para não tolher a manifestação de sua personalidade, única e intransferível, e outras fantasias com que todos têm, sem dúvida, o legítimo direito de so­nhar. Quando não, a autoestima do aspirante e o honesto afeto que as pessoas lhe dediquem se incumbirão de confundir as coisas.
Tendo experimentado, e reconhecido o fracasso, o candidato a pianista tratará de procurar uma escola de música ou um conservatório, onde alguém mais experiente lhe en­sine a identificar as notas e o convença a se dedicar, por largo tempo, a solfejar uns exercícios variados, muito monótonos, associando-os a noções práticas de compasso, cadência, ritmo e por aí vai. Ao longo do processo, marcado por crescente comple­xidade, o candidato a concertista irá adquirindo, aos poucos, a necessária familiaridade com o instrumento e seus recursos. Só depois, às vezes muito depois, às vezes nunca (muitos desistem no meio do caminho), começará a tocar.
Haverá aprendizado equivalente se o caso for “fazer poesia”? Sim e não. Não, se o candidato esperar que alguém lhe ensine, primeiro, a dominar o instrumento para só de­pois executá-lo. Não há escola que seja capaz disso, razão pela qual o esplêndido currí­culo imaginado por Auden é terrivelmente irônico. Mas sim, se entender que seu instrumento é a própria língua e, para utilizá-la como tal, ser falante nativo ou ter sido alfabetizado não bastam. E de nada lhe valerá decorar um bom dicionário ou empanturrar-se de gramática. Isso poderá, quem sabe, despertar seu interesse pela filologia, mas não lhe dará o preparo adequado para praticar a arte dos aedos com um mínimo de proficiência.
O pianista está para a arte da música assim como o rapsodo, na Grécia antiga, está para o aedo: é só o intérprete ou executante de composições criadas por outrem. Tal é caso do festejado Íon, ganhador de prêmios, graças à habilidade que desenvolveu de declamar Homero. Sócrates, no diálogo famoso conservado por Platão, leva Íon a perceber que sua inspirada capacidade declamatória não é apenas uma técnica, que ele poderia aplicar a qualquer poeta, mas depende da sua profunda compreensão da arte e dos sentidos dos poe­mas homéricos. Sócrates assevera que “inspiração” é um dom, concedido pelos deuses aos aedos, e destes transmitido indiretamente aos rapsodos. “Ninguém será um rapsodo”, o filósofo explica a seu amigo Íon, “se não compreender o que diz o poeta. O rapsodo deve interpretar a mente do poeta para os ouvintes, mas como poderá fazê-lo, e fazê-lo bem, se não souber o que este pretende?”.
A tradição que a partir daí se desenrola, ao mesmo tempo em que põe ênfase no mito da “inspiração” (maneira metafórica de dizer, que falseia a importância decisiva de compreender, aprender e, sobretudo, exercitar-se – tarefas humanas que têm pouco a ver com inspiração), vai aos poucos se desfazendo da distinção entre rapsodo e aedo. O primeiro é substituído pelo ator, que continua a subir ao palco, para encantar a plateia com suas ins­piradas encenações; o outro passa a se chamar vate (o que vaticina), bardo (o que canta), trovador (o que encontra) e finalmente poeta (o que faz), para continuar a ser o que sempre foi: criador de arte e sentido, por meio de palavras. Mas a lição socrática prevalece: o candidato a poeta deverá, à semelhança de Íon, adquirir a melhor compreensão possível da arte dos poetas que o antecederam, não para aprender a declamar com persuasão, mas para assimilar os fundamentos da arte poética – similares àqueles que o candidato a pianista adquirirá, nos seus exercícios de solfejo e compasso.
Ao se aproximar pela primeira vez da poesia, para experimentar, para saber se está apto ou não a praticá-la, o poeta em potencial deverá ter em mente que todo poema, além de abrigar sentidos (pensamentos, sentimentos etc.), que o situam no plano do inteligível, é constituído também de qualidade acústica, massas sonoras, voz audível, ritmos – materialidade sensível, portanto. Será esse, talvez, o derradeiro vestígio do legado transmitido pelo rapsodo aos poetas. Wallace Stevens o diz, com simplicidade: “Acima de tudo, poesia é palavras; e palavras são, em poesia, acima de tudo sons”. E Dylan Thomas o confirma: “Os primeiros poemas de que tive conhecimento foram as canções de ninar e, antes que pudesse lê-las por mim, já me apaixonara pelas palavras, as palavras em si. O que elas representavam ou simbolizavam ou queriam dizer era de importância secundária. O que im­portava era o som delas, enquanto as ouvia pela primeira vez, produzidas pelos lábios dos adultos distantes”.
Silvia WestphalenBem antes disso, Paul Verlaine já o decretara, em seu emblema famoso: “De la musique avant toute chose”, verdade defensável, desde que não se tome a frase ao pé da letra. “Música”, no caso, quer dizer apenas matéria acústica, estrato sonoro, cujo aliciamento precede a percepção dos significados, como explica Dylan Thomas; mas não quer dizer “música” em sentido lato, ou “melodia”, que já remete a outra arte, paralela, que pode perfeitamente prescindir das palavras enquanto portadoras de sentido, subsistindo por si própria, ainda que os versos e a canção tenham nascido juntos. Não é o que Verlaine teria em mente, na teoria e na prática.
Não é, também, o que conta quando o candidato a poeta se aproxima da poesia pela primeira vez, para experimentá-la. O que conta é fazê-lo ciente de que, aí, a apreensão dos sons antecede o entendimento dos significados, mas para vir a formar com estes, logo em seguida, uma unidade indissolúvel: o que o poema quer dizer já começa a ser dito pelo encadeamento das sonoridades, antes que nos demos conta da camada semântica. Quando o movimento de percepção se perfizer, já não será mais possível separar uma coisa da outra, não do mesmo modo como podemos vocalizar uma melodia qualquer (música propriamente dita), mesmo que não nos lembremos da letra, e isso ainda será uma arte válida em si. Já uma fieira de palavras, separadas dos sons que as acompanham e reduzidas a seus significados, deixará de ser um poema, será só uma paráfrase.
Além disso, pensando ainda na frase lapidar de Verlaine, “música” tende a se associar, para quase todos nós, a acordes e cadências suaves, melodia harmoniosa, mas nem sem­pre é assim. O poeta, sobretudo o moderno, muitas vezes recorre a sonoridades ásperas, dissonâncias, ritmos duros, compassos truncados, nada harmoniosos – “música” de outra espécie, que não pretende adular os ouvidos do leitor, mas mantê-los em estado de alerta, como queria João Cabral, para que nenhum sentido escape.
Tudo isso é muito controvertido, sem dúvida, e tentar desfazer os nós dos fios aí subentendidos nos levaria para muito longe. Sugiro então voltar, já agora para concluir, àquele momento privilegiado em que o poeta em potencial decide ensaiar seus primeiros exercícios. Digamos que algum talento ou dom inato ou até mesmo a “inspiração divina”, da metafórica linguagem platônica, sempre conta, de um modo ou de outro, ainda que não sejamos capazes de defini-lo. Mas até hoje, que se saiba, ninguém chegou a negar essa espécie de verdade revelada, e isso explica a persistência do mito. Mas ninguém foi capaz, também, de negar que o aprendizado é decisivo, imprescindível. E o poeta aprenderá não antes de fazer (o que talvez leve alguns a invejar o pianista da anedota), mas simplesmente fazendo. E, se for tangido pelo genuíno propósito de compreender o que faz, seguirá aprendendo, vida afora.

Carlos Felipe Moisés (Brasil, 1942). Poeta, tradutor e ensaísta. Capítulo do livro Frente & verso: sobre poesia e poética, a sair em 2013. Contato: carlos_moises@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Silvia Westphalen (Peru), artista convidada desta edição de ARC.

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