sexta-feira, 21 de novembro de 2014

CARLOS M. LUIS | Bestiário hermético e surrealista





Carlos M. Luis 

Desde os polvos de olhar de seda que aparecem nos Cantos de Maldoror [1] até o grande tamanduá que Breton escolheu como seu animal totêmico, o bestiário surrealista tende a animar-se… escolhido entre aqueles que parecem poder afetar a sensibilidade moderna, embora sua interpretação hieroglífica permaneça até a data reservada em sua totalidade. [2] As palavras de Breton nos situam diante de dois caminhos convergentes: o primeiro nos conduz até a poetização surrealista dos animais, e o segundo nos sugere sua interpretação hermética. Enlaçado à elaboração de uma poesia tanto escrita como visual, encontra-se o simbolismo hermético dos animais, somado à sua intervenção fabulosa em todas as lendas e contos da humanidade. Se acrescentarmos que para os primitivos a presença dos animais fez parte substancial de suas visões sobre a origem do mundo, e por extensão na formação de seus mitos, abrimos uma extensa rede de referências, com as quais a poesia surrealista continua enriquecendo-se.
O aparecimento do animal remonta às suas primeiras representações nas cavernas ou nas pedras onde deixara marcas de sua passagem. Em todas as pinturas rupestres aparecem como parte das atividades humanas relacionadas com a busca do sustento, mas também simbolizando forças superiores. Nas cavernas de Lascaux, um pássaro pousado sobre uma estaca nos surpreende com sua enigmática presença. Contígua a este jaz uma figura com cabeça de ave e seu sexo em ereção, diante de um bisonte recém-lanceado. O espetáculo foi interpretado por George Bataille em seu livro Les larmes de Eros [3] como prova da íntima relação que existe entre Eros e Tanatos. As figuras ictifálicas com cabeça de animal de Wadi Djerat (Sahara), sodomizando rinocerontes, documentam acerca da frequente relação sexual que existiu entre o animal e o homem. A rica arte dos Huicholes abunda em representações zoomórficas como parte da elaboração de seus mitos. Poderíamos, desta forma, seguir mencionando todas as antigas culturas onde o animal desempenha um rol preponderante na vida do ser humano. O essencial, no que concerne a este trabalho, é dar relevo ao precoce aparecimento dos animais como figurações do pensamento mágico. Aparecimento que encontraria seu lugar definitivo na arte moderna, e no surrealismo em particular.

AS ORIGENS PRIMITIVAS | A crença de que o homem pode transformar-se em animal e vice-versa é de origem ancestral. Os xamãs se mascaravam com aparências zoomórficas para praticar suas cerimônias. Em todas as histórias relacionadas com estas, são comuns as transformações mágicas do xamã em um animal. Sua presença nos totens comunica-lhes uma forma de vida, ao narrar, mediante seu simbolismo, a história do clã que representam. A genealogia mítica dos totens transforma-se em maravilhosa aos olhos dos surrealistas, na medida em que um animal emana do outro, criando uma espécie de cadáver delicioso. Jorge Camacho dedicou a ambas manifestações: as xamânicas e as totêmicas, iguais exposições, pondo de relevo a continuidade de uma prática de ordem mágico-poética que se mantém viva dentro do surrealismo. Em seu ensaio intitulado “Les pouvoirs perdus” [4], dois dos mais agudos estudiosos desses temas dentro do seio do movimento, Micheline e Vicent Bounoure, precisam:

Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011Dessa forma, nas esculturas da Nova Irlanda, uma aceleração do sentido perceptivo permite que o olho de um tubarão se incruste em seu ouvido, de imediato aparecendo ao lado de cada comissura a cabeça de um tucano. A multiplicação dos conteúdos é produzida ao redor do mesmo signo e não de uma despersonalização das formas naturais, resultando, melhor ainda, um luxo e interpretação, como se houvessem sido imitadas no estágio da sensação, antes que a percepção os houvesse especializado.

As transformações às quais é submetida a fauna nos totens respondem a um luxo de interpretação, não alheio, em nada, ao que utilizam os alquimistas em seus emblemas, passando a formar parte do processo criativo dos surrealistas. Neste mesmo ensaio, ambos autores utilizam o termo homonymie para designar a tendência a reproduzir, em nível analógico, dois objetos naturais, os quais abrem no interior de uma obra plástica um campo inesgotável… afirmação esta que a pintura surrealista demonstra amplamente. Por sua parte, a poesia, ao se apossar dos poderes que lhe distribuem a cabala fonética cujo equivalente pode ser buscado de acordo com estes autores na linguagem Malangan da Nova Irlanda, engendra um novo conhecimento onde a percepção conduz à restituição da virgindade das coisas na aurora do primeiro olhar [5], o que explica a frase de Breton que abre seu Surrealisme et la peintureO olho existe em estado selvagem.
Segundo Mircea Eliade, as centenas de milhares de anos vividos em uma espécie de simbiose mística com o mundo animal, deixaram marcas indeléveis [6]. O ser um e outra coisa que ela mesma como resultado dessa simbiose era característico das funções mentais das sociedades primitivas de acordo com Levy Bruhl: a mentalidade primitiva obedece ao princípio de participação: o homem crê que existem laços invisíveis, porém reais, entre os seres que para nós são de natureza diferente, podendo ser eles mesmos e outra coisa. [7] Essa noção passou a formar parte da confecção da arte surrealista, não sem passar também pelas teorias de um Charles Fourier acerca da “atração apaixonada” que comunica os seres mediante a analogia. Seguindo essa linha de pensamento, três aspectos essenciais unem o surrealista ao primitivo: seus mitos e suas crenças no poder revelador dos sonhos e a convicção na existência da unidade analógica universal. Tanto os mitos como os sonhos encontram manifestações na poesia falada dos povos primitivos e suas criações pictóricas, constituindo uma fonte inesgotável de inspiração para os surrealistas. Um novo princípio definido por James Frazer como “magia homeopática” rege as forças espirituais que tornam possível a transformação de um animal em “outra coisa que ela mesma”. As explicações que os primitivos dão à origem do mundo partem, portanto, de uma imaginação que provém, de acordo com a interpretação surrealista, do maravilhoso poético. Nesse sentido, a pintura de Jorge Camacho se converte em depositária de intermitentes viagens que regressam carregadas de encontros surpreendentes, através dos domínios da imaginação.
Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011Se a Oceania proporcionou um abundante mostruário de animais, a América fez o mesmo. Começando pelos totens da Columbia Britânica, até alcançar os confins do Amazonas e os Andes, os povoadores dessas regiões foram prolíficos em representar um bestiário fantástico. A geografia do continente fabulada desde a época dos cronistas, com seus seres híbridos e aparições deslumbrantes, exerceu uma atração para os europeus que perdura até nossos dias, em grande medida graças à atenção que o surrealismo pôs sobre suas possibilidades poéticas. As plumagens dos índios do Amazonas proveem um bom exemplo da reciprocidade existente entre os mitos e os artefatos que seus povoadores utilizam para seus rituais. A energia que emana das cores das plumas refletem as forças mágicas que as aves possuem. Para os xamãs Waimai, quando o sol se nega a reluzir, estes mudam seus adornos das plumas negras do guaco, revestindo-se de plumagens de cores para que torne a aparecer. Os tucanos, as araras e outras aves, proporcionam aos xamãs os “instrumentos” idôneos para realizar seus trabalhos mágicos. Em certos quadros de Toyen a variedade iridescente de cores que emitem essas aves fica impregnada em suas composições. De igual modo, a pintura de Jorge Camacho recolhe a variedade de cores como um fluido que vitaliza seu mundo pictórico. A corrente, portanto, atravessou o Pacífico até chegar à América:

Um raio de luz subsiste deslizando desde a tampa de um sarcófago até uma cerâmica peruana, uma tabuinha da Ilha da Páscoa, mantendo a ideia de que o espírito que sucessivamente foi animando tais civilizações, de alguma maneira parece escapar do processo de destruição que vai acumulando à nossa passagem as ruínas materiais. [8]

O mundo primitivo encarnou para os surrealistas o signo ascendente que motivara sua busca pelos prédios do maravilhoso. A águia branca como a pedra filosofal que planava sobre a Nova Guiné que Breton percebera em um dos poemas de seu Pez Soluble [9], ou as plumas do pássaro maravilhoso de cores variadas que passa pelas Bodas Químicas de Simon Rosenkreuz [10], são aparições que conjuram três concepções afins: a hermética, a primitiva e a surrealista. Essas três concepções originam uma hermenêutica apaixonada, elaborada pelo que Ferdinand Alquié chamou de “saber afetivo”.

OS CONTATOS HERMÉTICOS | Antoine Faivre, em seu livro Acces to Western Esoterism [11] propôs o que ele considerava as seis características do pensamento esotérico ocidental:

1. As correspondências. Baseada na crença de que todo o universo se encontra conectado por um sistema de correspondências que une as coisas entre si.
2. A natureza vivente. A noção de que o universo se encontra animado por uma energia viva.
3. Imaginação e mediação. A crença de que o conhecimento esotérico se adquire através da imaginação visual como mediadora das correspondências entre as coisas.
4. A experiência da transmutação. A metamorfose das substâncias naturais e humanas, podem transmutar-se a um estado superior.
5. A prática da concordância. A evidência de que as diferentes correntes esotéricas se encontram entrelaçadas por um denominador comum.
6. A transmissão. A ideia de que o conhecimento esotérico passa do iniciado ao discípulo.
Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011
Sob essas seis condições apareceram os bestiários desde a mais tenra data no cenário ocidental, trazidos pelas correntes esotéricas que antes e depois do Cristianismo proliferaram no berço do Mediterrâneo. A iconografia apocalíptica como a que aparece nos “Comentários ao Apocalipse” do Beato de Liébana (970) reproduzem as visões de São João de Patmos dentro de um contexto onde a presença do mundo pagão se superpõe ao das crenças cristãs. A diversidade de suas imagens impactou a Idade Média e desde essa época continuou realizando um longe périplo até plasmar-se nas obras de um Max Ernst ou Leonora Carrington. Porém não foi até o século XIV, quando as ilustrações começaram a aparecer nos livros dos alquimistas, que os bestiários fizeram sua aparição nos mesmos. Em tratados comoHyerogliphica de Horapollo (atribuído a um dos últimos magos egípcios do século IV), publicado em Florência em 1505, e nos Emblemas de Alciato (1522), começou a surgir uma iconografia ligada às tradições herméticas cuja influência foi crescendo durante o renascimento. Basta recorrer a quadros como os de Hieronymus Bosch para ali surpreender um imaginário vegetal e animal derivado dos místicos, astrólogos e alquimistas. A sensibilidade dos surrealistas não foi alheia a essas representações, como testemunham muitas das obras de seus pintores mais representativos. Cada animal passou, portanto, a possuir um simbolismo mágico que ainda subsiste. A antiga propensão de comunicar aos animais um significado totêmico perdura em nossa sociedade, embora adulterada por sua banalização comercial, como demonstram os anúncios publicitários.
O simbolismo animal confere ao surrealismo uma chave de caminho para penetrar nos segredos da natureza, igual como ocorrera com os alquimistas. Referindo-se ao bestiário fabuloso que pintara Aloys Zotl, Breton expressou que: sabemos quais enigmas escondem (os animais) em cada um de nós e o rol primordial que desempenham no simbolismo do subconsciente. [12] A correspondência entre os animais e o pensamento hermético passa por essa via, como bem o compreenderam Victor Brauner, Jorge Camacho ou Max Ernst. A presença nos emblemas ou escritos da alquimia de animais fantásticos: dragões, basiliscos e unicórnios unidos a corvos, leões, sapos, águias, pelicanos etc., forma parte essencial do processo do opus. Portanto, falar do surrealismo em relação com o simbolismo hermético dos animais é incidir em um tema reconhecido por todos os estudiosos desse movimento. Não se trata de converter os surrealistas em praticantes dessa arte, embora o caso de Jorge Camacho seja uma exceção. Este pintor dedicou parte de sua vida a seu estudo e prática, seguindo os passos de mestres como René Alleau, Eugene Canseliet, Alain Grugier e Bernard Roger. Em colaboração com este último, dedicou um estudo ao bestiário hermético da catedral de Sevilha. [13] Seu interesse pela heráldica o levou a realizar, por outro lado, uma exposição sobre este tema identificado com a Ciência de Hermes. Anterior a ele, Kurt Seligmann, autor de uma importante história da magia, havia realizado uma série de gravuras e pinturas com temas heráldicos, sublinhando a presença hermética dos animais nos mesmos.
Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011Nos textos herméticos e nas ilustrações que os acompanham, surpreendemos uma variedade de animais, possuidores de um simbolismo polissêmico. Esse simbolismo contribui para confirmar a crença surrealista – herdada dos adeptos – da correspondência universal entre o animado e o inanimado que, segundo Breton, reflete a convicção de que seus realizadores possuíam uma mensagem de importância que desejavam fazer chegar, que estavam de posse de um segredo… não repetiremos o suficiente que segredo é tudo. [14] Se pusermos atenção nas diversas cores que cobrem a pele dos quadrúpedes e dos peixes e das plumagens das aves, e nas metamorfoses que sofrem, veremos que formam parte dessa polissemia que abre ricas possibilidades poéticas. Os alquimistas utilizaram suas diversas gamas, como o cromatismo da cauda do pavão real ou a negritude do corvo, para fixar as etapas de sua obra. Baseando-se na pintura de Matta, Breton expressou:

A interpretação simbólica das cores, sozinhas ou relacionadas entre si, é encontrada nele relacionada pela interferência constante do visual e do visionário… fenômenos que não conhecem equivalentes senão nos espíritos dos primitivos, por um lado, e por outro em certos textos esotéricos de grande categoria: a cabeça do corvo desaparece com a noite, um dia o pássaro voa sem asas, vomita o arco-íris, seu corpo se torna vermelho, e sobre seu dorso boia a água pura. [15]

É possível, portanto, surpreender nas pinturas, collages, cadáveres deliciosos e outras técnicas inventadas pelos surrealistas, uma continuidade com as iluminações, criptogramas e emblemas herméticos e as pictografias rupestres que aludem a mitos e crenças primordiais. Nesse sentido é possível afirmar com Octavio Paz que o surrealismo é uma atitude do espírito humano. Talvez a mais antiga e constante, a mais poderosa e secreta. [16] Que as bestas ocupem um lugar preferencial no interior dessa atitude, brinda a garantia de um sentido de sucessão com todos esses mundos e outro deiniciação, que a imaginação surrealista continua enriquecendo.

NOTAS
1. O exuberante bestiário dos Cantos de Maldoror foi estudado por Gastón Bachelard em seu livro Lautréamont, Libraire José Corti, Paris, 1939.
2. “Cometa surrealista”, em La Llave de los Campos, Libros Hiparión, Madrid/Pamplona S/F, traducción de Ramón Cuesta y Ramón García Fernández.
3. Éditions Jean-Jacques Pauvert, Paris, 1961.
4. La Breche # 5, Outubro de 1963.
5. Ibid.
6. Historia de las creencias e ideas religiosas, traducción de J. Valiente Mallá, Editorial Cristiana, Madri, 1978.
7. La mentalié primitive, Libraire Félix Alcan, Paris, 1933.
8. Le surrealisme et la peinture, Nouvelle Edition, Gallimard, Paris, 1965.
9. Há uma tradução ao espanhol, André Breton, Poemas, versão de Manuel Angel Ortega, Visor Libros, Madri, 1978.
10. Le surrealisme et la peinture, ibid.
11. Antoine Faivre: Acces to western esoterism, State University of New York Press, 1994.
12. Le surrealisme et la peinture, ibid.
13. Bernard Roger & Jorge Camacho, La Cathedrale de Seville et la Bestiare Hermétique, Foundation Pol François Lambert, Huelva, 2001.
14. “Oceanía”, em La llave de los campos, ibid.
15. “Matta”, en Le surrealisme et la peinture, ibid.
16. Las peras del olmo, Libros Enlace, Seix y Barral, Barcelona, 1971. 

Carlos M. Luís (Cuba, 1932-2013). Poeta, ensaísta e artista plástico. Dirigiu em seu país o Museu Cubano. Entre seus livros de ensaios se encontram Tránsito de la mirada (1991) y El oficio de la mirada (1998). Este ensaio faz parte do livro Horizontes del surrealismo (em preparo). Ensaio traduzido ao português por Floriano Martins. Contato: karmaluis1@bellsouth.net. Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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