Segundo Italo Calvino, há leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, na inesgotável escrita e reescrita dessa pirâmide de cabeça para baixo (pois sua base se amplia, paradoxalmente, cada vez mais para o alto), que é a inesgotável história da biblioteca babélica das ficções humanas, sobretudo a literário-cultural, a qual sempre cada vez é outra, seja em sua recepção ativa, posto que cada leitura pressupõe um novo universo de significação, seja em sua condição existencial, no passado, no presente e no futuro, para sempre marcada pela autonomia, pela duração única de sua singularidade, ou pela aura de sua originalidade, para além e para aquém dos tabus e das intervenções desencantadas e assassinas da reprodutibilidade técnica, que repete, como cópia da cópia, como clonagem de um ideal genocida, a barbárie de seu transtemporal gesto, o de caçar e dominar e matar tudo que é diverso, tudo que é vital, que é fome, gozo, alegria, delicadeza, sonho e utopia.
A máquina da reprodutibilidade técnica, contrariando um pouco Walter Benjamin, não destrói a aura, e nunca destruirá, a não ser que o fim do mundo aconteça de vez, agora e sempre. O original não teme a sua reprodução, nem na pintura, nem na escultura, nem em toda e qualquer forma de criação. Quem verdadeiramente teme o fim da aura não é a aura democrática que emana da criação, mas, habitualmente, o seu autor ou autora, uma vez que tende a perder a primazia e a autoridade da posse da patente, e, portanto, do prestígio simbólico e financeiro dela resultante.
O dilema da reprodutibilidade técnica não reside em sua capacidade de destruir a aura, mas em sua apropriação e em seu uso, já que a posse da técnica está nas mãos dos assassinos, os dominadores, os estupradores (e ressalto que também não gosto dos maniqueísmos) da vida, e das auras, na terra, a saber, o tecnocrático poder do lucro imperial, com sua história de poucos, e para poucos.
Nota-se que, neste texto, afirmo o negado, hoje: a criação, a ficção, a poesia, a originalidade, a herança, o único, a aura, mesmo e apesar da tecnocracia, mesmo e apesar do pesadelo que é, e tem sido, parafraseando Cortázar (O livro de Monoel), o fracasso de o que chamamos de realidade humana, o qual nada mais é que um outro nome para a plutocracia, para o impulso de morte, para a tragédia, que é a finitude num ser que deseja e pode o infinito: o humano, cuja aura criativa o dignifica e o faculta a transcender a morte, justamente porque morre, justamente porque é frágil, porque é vulnerável, porque é etéreo, porque é imanente.
E é triste constatar que é dessa vulnerabilidade aurática, da qual todo poder se vale, interpretando-a como sendo o seu ponto fraco (que é verdadeiramente seu ponto forte), porque todo poder unilateral constitui a inscrição, em alguns seres, da própria morte, e ataca, como vírus, tudo que é delicado, como aconteceu no começo da colonização das Américas, em relação aos índios, cuja fragilidade não foi entendida pelos europeus colonizadores, como um gesto aurático de confraternização, mas como motivo para a desconsideração arrogante, como vulnerabilidade a partir da qual a morte virótica, inscrita no desejo de se dar bem, em detrimento de outros, instalou-se e proliferou-se, como infelizmente aconteceu, e tragicamente, com a nossa omissão, ainda acontece.
Toda essa divagação, no entanto (que gosto francamente de fazer, apesar da moda referencial ditada pelas camisas de força dos gêneros oficiais, com as suas manias e taras pelo que chamam de coesão e coerência e sincera preocupação com leitores “simplistas”), é para falar de dois poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, os quais, a seus modos, contribuíram para a revitalização aurática da originalidade histórica, (cultural, econômica, religiosa, social, política e relacional), do mundo ibérico-católico, o qual, apesar das contradições, e das apropriações genocidas (somos também, infelizmente, o resultado de uma história de destruição), é e tem sido também um lugar de beleza, de singularidade, de transcendência, em nome das quais precisamos falar, festejar e reinscrever, na prática, principalmente tendo em vista os tempos atuais, marcados pela hegemonia do império anglo-saxônico.
A produção poética de Carlos Drummond de Andrade e os secos rios de escrita de João Cabral de Melo Neto são partes alegóricas dessa leveza, dessa rapidez, dessa exatidão, dessa visibilidade, multiplicidade e consistência da história cultural da tradição ibérica. No entanto, o modo de realizá-las, poeticamente, de reinventá-las ou reescrevê-las, escrituralmente, é bastante distinto num e noutro poeta.
Em Carlos Drummond de Andrade, a tradição cultural hispanolusoafroindioamericana é experimentada e vivida a partir do que, no mundo ibérico, é e tem sido estamento, verticalidade, culpa, pecado, inquisição, dor, massacre. Daí sua poéticagauche, daí, desse lugar sombrio da tradição ibérica, o poeta mineiro traça sua “flor e a náusea” poéticas, pois escreve a partir de Minas Gerais, cujo iberismo é interior, visceral, montanhoso, lavral e mineral.
Daqui de Minas, Drummond escavou sua poética como quem bate, com a goiva da paixão, no duro mineral de uma gruta que sangra os passos de uma cultura marcada pela submissão escravocrata, como quem intui que, apesar da morte e do sacrifício de muitos, apesar da lógica do castigo e da culpa, uma linha de fuga se desata, o da mistura, o do forno alquímico de um coração, Minas Gerais, que é capaz de criar, através de um impulso órfico, católico-infernal, a ressurreição da beleza leprosa das obras de um Aleijadinho, cujo imaginário, conforme Lezama Lima (A expressão americana, p. 106), confecciona as chispas da rebelião, as da grande lepra criadora do barroco nosso, as de uma cultura que insiste em sua multiplicidade inconformada, e que resgata a memória viva de uma humanidade marcada, desde tempos imemoriais, pela dramaturgia do encontro de povos e de culturas e que, se existe e persiste até hoje, não é porque o mesmo, com sua pureza antissemítica, com sua vontade de insularidade, tem dado, imperiosamente, as cartas, mas porque compartilhamos nossas diferenças, nossos saberes, nossos sabores, e lançamos os dardos da utopia e da vida, como o Zaratustra de Nietzsche, para a outra margem, diferencial e antieuclidiana, como bem ilustra o poema Áporo, de A rosa do povo (1945):
Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape/ Que fazer, exausto, em país bloqueado, / enlace de noite/ raiz e minério?/ Eis que o labirinto/ (oh razão, mistério)/ presto se desata: / em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/ uma orquídea forma-se.
Ressaltando que, embora áporo seja o nome de um inseto himenóptero, em grego, por sua vez, significa um problema de solução difícil. Para mim, Carlos Drummond de Andrade é o poeta do devir inseto, que, em sua poética, cava os subterrâneos do inconsciente coletivo de uma tradição cultural, a ibérica (e desde seus primórdios medievais, das cruzadas religiosas para expulsão dos árabes), revelando-a como um problema complicadíssimo, intrincado, aparentemente insolúvel, mas que traz, nele mesmo, sua própria solução, sob o signo de uma orquídea utópica, o da simbiose aurífera subjacente no imaginário de um catolicismo, o qual, ao se expandir pelo planeta, por mais que impusesse sofrimento, dor e culpa, não conseguiu conter a promessa messiânica da ressurreição da letra quixotesca, a daqueles que lutam não contra, mas a favor dos moinhos de vento, os das pétalas errantes das flores de uma história bíblica protagonizada não por reis, nobres, cleros, burgueses, mas por ladrões, prostitutas, pescadores, marinheiros, crianças, pobres.
Eis a verdadeira Rosa do povo da poética drummondiana, seu modo de inscrever sua alguma poesia, seu claro enigma: o de uma poética que dialogou com as trevas obscuras do legado ibérico, constatando um ganho não previsto, “o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado,/ que, decifrado, nada mais existe”(Amor e seu tempo), visto que o que existiu, não existe simplesmente, mas resiste, é antes, agora e depois, um amar se aprende amando.
Por outro lado, se Carlos Drummond de Andrade tece sua rede intertextual, com a tradição cultural ibérico-católica, lançando-a no fundo de seu labiríntico rio de sonho, em sua correnteza e redemoinhos intestinais, marcados pelo peso, no mundo, de ser e fazer-se como múltiplo, como impurezas no branco (no esquecimento) de uma memória não seletiva, porque periférica; João Cabral de Melo Neto o faz através da exterioridade, da luminosidade, da solaridade, do fora e da visibilidade, o que, em meu entendimento, fica patente já no próprio “Auto de Natal” que inscreve os títulos de seus primeiros livros,Pedra do Sono (1942), Os três mal amados (1943), O engenheiro (1945), Psicologia da Composição(1947), O Cão sem Plumas (1950), O Rio (1954), Quaderna (1960).
Nos dois primeiros títulos, Pedra do Sono e Os três mal amados, além da influência do surrealismo, há, em João Cabral, uma nítida relação de dívida parafrásica com Carlos Drummond de Andrade, pois sua poesia ainda não encontrou sua dicção exteriorizante, no que diz respeito à relação com a cultura ibérica, teatralizando-a pelo viés drummondiano do dentro, do interior e da culpa.
Engenheiro e Psicologia da Composição são livros de transição, do dentro para o fora ibéricos, resultando daí, a meu juízo, serem textos metapoéticos, posto que a metapoesia, neles, constitui uma espécie de rito de passagem, através do qual (embora não incorporem ainda a exterioridade da paisagem cultural ibérica, com seus personagens, suas geografias) Cabral vai gradativamente incorporando o horizonte da luminosidade solar, como metáfora de uma poética que se desvelará, como visibilidade geográfico-cultural, a partir de O Cão sem Plumas.
Como discursividade metapoética, a insistência cabralina, em palavras como objetividade, como lâmina, como antilirismo e antiode, nada mais é, no meu entendimento, que outros nomes para a solaridade epifânica de seu iberismo, dotado de potência para mostrar, não através da representação realista, mas daquela capitada pelos focos de uma cultura, a ibérica, que se expandiu rumo à abertura solar do mundo, o nordeste brasileiro, a paisagem espanhola, a savana luminosa dos territórios africanos.
Antes, porém, era necessário atravessar o deserto, como na Fábula de Anfion; “No deserto,/ entre a paisagem de seu /vocabulário, Anfion, /ao ar mineral isento/ mesmo da alada / vegetação, no deserto (…) Como antecipar / a árvore de som / de tal semente?
João Cabral de Melo Neto percorre o deserto de sua metapoesia para, enfim, descobrir “a paisagem de seu vocabulário”: a apresentação epifânica da explosão solar ibérica, ainda que, como em “Morte e Vida Severina”, seja uma explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é assim pequena/ mesmo quando é uma explosão/ como a de há pouco, franzina;/ mesmo quando é a explosão/ de uma vida severina”.
Essa explosão de luminosidade, como cenário da dramaturgia ibérica, pelos tempos e espaços, acontece claramente em O cão sem Plumas, o qual, embora escrito em Barcelona, lança o poeta de vez na paisagem pernambucana, a de um rio, cuja inconsciência se faz exterioridade de “um não saber sabendo”, porque “aquele rio/ era como um cão sem plumas./ Nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa,/da água de cântaro,/ dos peixes de água,/ da brisa na água”, porque sabia, fundamentalmente, da beleza incontida e institucionalmente não representável de um outro mundo, o do nordestino qualquer, sujeito cultural, econômico, político e poético de um universo subterrâneo que, uma vez isentado da culpa de sua diferença, e do peso da inquisição dos poderes (como dramatiza a poética de Drummond), se revela, epifanicamente, na poesia de João Cabral de Melo Neto, como “uma mulher febril que habita ostras” (O Cão sem Plumas) de uma história que é passado e é futuro, mas é principalmente visibilidade solar, apesar de tudo, no presente.
Sob o meu ponto de vista, de modo excepcional, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto são os dois poetas brasileiros, por excelência, da tradição ibérico-católica mundial, e ambos compõem, em suas poéticas, os dois lados desse devir cultural, que é o nosso, latino-americano, africano, autóctone, asiático, europeu, planetário, pois, se João Cabral de Melo Neto delineia e apresenta, poeticamente, a corporeidade objetiva e laminal do iberismo, Carlos Drummond de Andrade configura sua alma, sua esfera subjetiva, como um cabalístico “poema de sete faces”, e cuja profissão de fé, já vem anunciada, como destino, em seu primeiro livro, Alguma Poesia (1930): “Vai, Carlos! Ser gauche na vida. ”
Ser ibérico.
Luís Eustáquio Soares (Brasil, 1966). Poeta, escritor e ensaísta. Publicou Paradoxias (1999), Cor Vadia (2003), José Lezama Lima, anacronia, barroco e utopia (2008), El evangelio según Satanás (2010). Contato: artevicio@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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