OS MUITOS NOMES DE DEMOS, NESSES SERTÕES | Se a preterição é a figura de retórica pela qual se declara não querer falar de um assunto, como estratégia discursiva, para dele continuar falando, Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, é uma trans-infinita narrativa de preterição, que nega para dilatar-se, espalhar-se, utilizando, para tanto, o método da teologia negativa, ou apofático, que é aquele em que, não podendo falar a Deus, por sermos finitos e mortais, falamos negando-lhe qualquer forma de predicado, dizendo aquilo que Deus não é.
Por outro lado, a preterição tagarela de GSV, ou o seu não falar de, falando, não se dirige a Deus, mas ao demo, como se fora uma teologia negativa às avessas, duplamente inverossímil, seja porque a referência deixa de ser Deus, ou a transcendência, o uno, a razão, o sujeito, a escrita, o letrado; seja porque, diferentemente da teologia negativa, através da qual falamos o que Deus não é, por não poder dizê-lo, finito que somos, a demologia negativa de GSV fala do demo, pelo demo e para o demo, democraticamente, uma vez que, se o diabo, ao contrário de Deus, é aquele que não é, dizer o demo, através do método apofático, é já assumir o seu lugar de enunciação, é já incorporar-se de devir demo, é já ser o próprio impróprio demo, motivo pelo qual GSV constitui uma narrativa diabólica, pois se negar, para melhor falar-se, é coisa daquele que não é, e nem pode ser; é coisa de não ser, de anjo caído no rés-do-chão da imanência.
Não é circunstancial, assim, que a primeira palavra-frase do romance seja nonada, a respeito da qual, como de resto de toda a narrativa, João Adolfo Hansen, em A ficção da literatura em GSV, diz:
Iniciando-se pelo termo nonada, o texto articula três espécies de negação: uma negação sintática, uma negatividade estrutural e uma negatividade (ou denegação) intencional. A negação sintática, da ordem mesma da frase e do discurso, repartida pelo léxico “negativo” como nonada, nada, não, nunca, nenhum, coisa nenhuma e, ainda, pelos prefixos negativos dês, ou in indica uma relação entre o termo nonada e outros, reais e virtuais como matriz de um discurso dubitativo. (…) Como o tema obsedante de Riobaldo é o Diabo, a negatividade equivale às operações de uma denegação: quanto mais Riobaldo o nega enquanto conteúdo, quanto mais afirma que ele não é, mais ele insiste em sua fala e o assombra. Assim, nonada reitera a negação que é a possibilidade do discurso de Riobaldo enquanto exprime a negatividade mesma da língua.
Se a negatividade constitui a possibilidade mesma do discurso de Riobaldo, segundo Hansen, é porque, seguindo os passos do narrador, “(…) nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento… Estrumes… O diabo na rua, no meio do redemunho…”; no meio, nesse sentido, é possível interpretar, do litígio e do dissenso, porquanto a rua é do demo, da negatividade de qualquer forma de transcendência e/ou de autoridade concentrada, em fortalezas de umbigos.
É por isso que, sempre negando, para mais endiabrar-se, Riobaldo diz: “Do demo, não gloso”, e não glosar, isto é,não narrar, não contar, não ficcionalizar, sob o ponto de vista do não-ser, constitui a única possibilidade, por paradoxal que pareça, de narrar, uma vez que o ser Deus, em sua certeza, estando codificado, é o lugar do notudo, do já dito e já feito, sendo diverso, nesse sentido, do nonada roseano, marcado pelo a dizer e a fazer, condições sem as quais não existem motivos de narrar, posto que a história, se assim não for, já está pronta e acabada.
Por constituir-se, nesse sentido, como nonada, como aberto campo de batalha, GSV é o que o nome diz, lugar de veredas, de armadilhas inusitadas, sertão sem lei, indefinível, escorregadio, metamórfico, como o diabo, uma coisa e outra, e antes de tudo coisa nenhuma, de tal sorte que o narrador é festa de farsa, alegria de engano e engodo; é um narrador legião, pois, como o diabo, tem muitos nomes impróprios, que o próprio é de outra dimensão, que não nos toca, a da paz dos cemitérios, a das ideias instruídas, pois, é porque o Tal não existe, que ele insiste e persiste, para além de toda confirmação legal, institucional, transcendental, de platônicas ideias, como é possível inferir da seguinte passagem de GSV:
E as ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos… Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode contratar pacto com ele?
Sim, nos enganemos, que é lúdica, para não dizer lúcida, ou lúcifer, essa narrativa de demos, sagaz, e, desde nonada, sua primeira negativa, o vazio dos começos, o narrador de demos, ou Riobaldo, esse demos narrador legionário, jagunço da multidão, sem o dizer, nos diz, é pactária essas veredas de grandes sertões e, letra a letra, invoca demos: “Ei Lúcifer, santanaz dos meus infernos!”, constituindo-se como uma narrativa de tumulto e sinuosidade, razão pela qual, o interlocutor letrado, com quem Riobaldo fala, o senhor, é ele mesmo a figuração divina da transcendência, uma vez que, com relação a ele, Riobaldo, o pactário, apenas – e destaco a força desse apenas – simula aceitar o seu ponto de vista, o do senhor, como se fora o portador das ideias instruídas, aquelas da paz dos cemitérios, do platônico mundo das ideias, cujo papel é o de denunciar o lugar do litígio, o de demos, como simulacro, cópia da cópia, porque tem que defender-se da diabólica multiplicação metamórfica de nomes-bando, bandoleiros, de bandidos, de jagunços.
É essa a função das ideias do senhor, o interlocutor-doutor, tornar sem crédito, logo inverossímil, a existência de demos: ele não existe! No entanto, é negando – menos vezes menos é igual a mais, matematicamente; é sendo negado que o “Não-sei-que-diga”, o Coisa Ruim, inscreve o seu próprio impróprio lugar, o das existências inexistentes, sob o ponto de vista das oficialidades institucionais, porque “o demônio não precisa existir pra haver”.
É, nesse sentido, como recusado, que demos, na rua, no meio do redemoinho, instância do comum, faz-se pactariamente presente, através do relato desse narrador-legião, Riobaldo, do qual passo a tratar.
RIOBALDO, O BARROCO NARRADOR DO LITÍGIO, NESSES SERTÕES SOBERANOS | Lendo GSV, como narrativa diabólica, nos termos deste ensaio, logo como narrativa de não ser, é possível contra-argumentar em relação a dois pontos de vista teórico-ideológicos, digamos, transcendentais, porque assumiram ares de verdades absolutas, divinas, na contemporaneidade:
O PRIMEIRO está ligado à tese benjaminiana do fim da experiência, em função da modernidade ter, pela razão mesma da divisão social do trabalho, inviabilizado a possibilidade de experiência comum, coletiva;
O SEGUNDO está ancorado na up-to-date certeza em relação ao fim da política com P maiúsculo, logo como instância através da qual é possível alterar a trama determinista do mundo, motivo pelo qual, subentende-se e entende-se, que o humano, com o suposto fim da política e das ideologias, deve render-se ao niilismo e ao cinismo, duas afetividades que andam de mãos dadas, porque, ao mesmo tempo que ridicularizam qualquer tentativa de práxis transformadora, fazendo emergir seu lado cínico; desacreditam da utopia, da História, das metanarrativas, apressadamente decretando suas mortes, momento em que o niilismo prevalece.
Em relação ao primeiro ponto de vista, ligado ao argumento benjaminiano do fim do narrador clássico, com o advento da modernidade, GSV, mesmo que a partir de outras vias, que desviam, traz à tona novamente o narrador que conta sua experiência, individual e coletiva, ainda que seja uma tinhosa e diabólica experiência de uma comunidade de jagunços, do litígio de demos, “no meio da rua, no meio do redemoinho”, razão pela qual não poderá mesmo ser interpretada como a experiência de um transcendental e divino narrador clássico, porque, ao contrário deste, GSV não universaliza, de forma epopeica, suas peripécias, de vez que a legião de veredas da e na narrativa de Rosa inviabiliza qualquer codificação centralizadora.
Não podendo ser clássico, porque não universal, o narrador Riobaldo ainda assim nos diz que a experiência é possível e narrável, antes, agora e depois, embora seja uma experiência barroca, ao invés de clássica, razão pela qual, em GSV, o narrador é barroco, não sendo, assim, nem aquele que detém a experiência da arte de narrar, nos termos de Walter Benjamin, no seu O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov; nem tampouco um narrador pós-moderno, argumento defendido por Silviano Santiago, para aquelas obras literárias supostamente pós-modernistas, produzidas no interior da sociedade do espetáculo.
Com o argumento de que Riobaldo constitui um personagem-narrador barroco, não quero dizer que GSV seja um romance do século do Barroco, o XVII e/ou XVIII. Também não ignoro que GSV seja um romance produzido na década de 50 do século passado e que, portanto, tenha incorporado a experiência narrativa, sobretudo a de vanguarda, das obras de referência do modernismo literário, como as de Proust, de Joyce, Mann, Woof, para mencionar apenas alguns.
Sustento tal argumento tendo como parâmetro a negatividade diabólica de GSV, em relação ao seguinte trecho em que Walter Benjamin apresenta seus argumentos para defender a morte da narrativa e o surgimento do romance, a saber:
O primeiro indício da evolução que vai culminar da morte na narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinga da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los.
Pela negatividade, o narrador de GSV, como uma teologia negativa, bem poderia ser explicitado, se assim pode ser dito, pelo o que não é, em relação ao narrador do romance, de Walter Benjamin. Nesse sentido, o narrador barroco de GSV, embora esteja estritamente vinculado ao livro, GSV, vale-se da tradição oral, assim como a alimenta, além de retirar, ainda que pela ficcionalidade, da sua experiência o que ele conta, sendo esta a sua própria experiência.
Não sendo o narrador moderno – o narrador do romance, nos termos de Walter Benjamin – poderíamos deduzir que simplesmente seja uma forma de narrador clássico, uma vez que seus traços convergem com a descrição, feita por Benjamin, de tal narrador, tradição oral, experiência, conselho. No entanto, também não o é, o clássico. E não o é em função da infrapresença de demos, em GSV, como negatividade em relação a qualquer forma de transcendência, típica do narrador clássico.
Mas, afinal, quem é esse demos do litígio, para, tinhosamente, deslocar-se, a um tempo, do narrador clássico e do moderno? Tomo emprestado as palavras de Jacques Rancière, do seguinte trecho de seu ensaio Os enunciados do fim e do nada, para apresentá-lo como:
Uma esfera de aparência, uma conta ímpar, um litígio em nome do qual a parte se faz valer pelo todo, os pobres pelo povo: é este o real anárquico da política democrática, essa amarração singular do absoluto da justiça com a factualidade da massa no litígio interminável do povo. É contra essa comunidade impensável do demos que se institui o projeto da politeia, da verdadeira comunidade baseada em sua medida própria. O projeto da politeia, tal como Platão o elabora, é o de pôr fim a esse estado anárquico do político, desfazer o aparecer de um povo para realizar o fim de uma comunidade efetivamente una. Fim da “má política”, que talvez seja um fim da política tout court.”
Em diálogo com Jacques Rancière, sustento o argumento de que tanto o narrador clássico como o moderno, de Walter Benjamin, inscrevem-se na dinâmica epistemológica da politeia platônica, cujo traço básico é o de pôr fim, ou tentar, ao estado anárquico do demos, do povo, como potência de litígio, “no meio da rua, no meio do redemunho”.
Ambos os narradores, o clássico e o moderno, partem, ao menos teoricamente, da ideia de Deus. O clássico porque o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, dois modelos descritos por Benjamin, constituem dois estilos de vida típicos de uma sociedade da soberania, de poder soberano, porque ancorados, nos termos de Foucault, no território, referência para domesticar demos, com sua endiabrada potência de litígio, porque, agora com Guimarães Rosa, o demos “está misturado em tudo”, motivo pelo qual o soberano, via território, tenta apreender, e calar, sua voz dissonante.
A respeito do poder soberano, Foucault diz:
Este tipo de poder se opõe, em seus mínimos detalhes, ao mecanismo que a teoria da soberania descrevia ou tentava transcrever. A teoria da soberania está vinculada a uma forma de poder que se exerce muito mais sobre a terra e seus produtos do que sobre os corpos e seus atos: se refere à extração e apropriação pelo poder dos bens e da riqueza e não do trabalho; permite transcrever em termos jurídicos obrigações descontínuas e distribuídas no tempo; sem recorrer a sistemas de vigilância contínuos e permanentes; permite fundar o poder absoluto no gasto irrestrito, mas não calcular o poder com um gasto mínimo e uma eficiência máxima.
Na sociedade da soberania, o narrador clássico, seja ele o camponês sedentário ou o marinheiro comerciante, é aquele que narra uma experiência que de forma alguma é comum, razão pela qual tenho que discordar de Benjamin, quanto ao argumento do fim da experiência, com a morte do narrador clássico.
A experiência comum do narrador clássico, bem entendida, é aquela do poder soberano, por isso a sua exemplaridade, sob a forma de conselho, tem como função mítica a garantia de que todos os súditos possam se tornar partes do corpo-território do soberano, embora, de forma alguma, possam fazer parte, como pobres, do corpo desterritorializado de demos, razão mais que suficiente para constatar que, sob esse ponto de vista, a experiência comum é uma fraude, por não poder ser comum uma experiência fundada no poder absoluto, onipresente, do soberano.
Por outro lado, no que diz respeito ao narrador moderno, este tem a sua politeia platônica, como forma de domesticar demos, regida não mais pelo poder soberano, mas disciplinar, sobre o qual Foucault diz o seguinte:
Este novo mecanismo de poder apoia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza (…). Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar.
Assim, com Foucault, diferentemente do poder soberano, que não assenta a subalternização de demos no território, o poder disciplinar, por outro lado, se inscreve no corpo, seja no corpo individual do homem, da mulher, da criança, do louco, do gay, da puta; seja nos corpos simbólicos, dentre os quais o corpo-livro da escrita literária.
Encerrar, outra palavra para o poder disciplinar, o lugar de litígio, de demos, no interior do suporte livro, reificando-o como obra de arte, esteticamente, não deixa de ser uma forma de esconjurar sua potência dissonante, limitando a algaravia babélica de demos, ao não reconhecê-la, (através de um rotundo “não existe”!) nos gritos do dissenso, de pobres, nome cujo plural se justifica, aqui, por ser essa parte irrepreensível, sinuosa, de demos, do povo, adquirindo, conforme as circunstâncias, uma legião de outros nomes, jagunçagem, vadiagem, bandidagem.
Não sendo nem clássico ou moderno, restaria, e já é hora, de procurar entender o motivo pelo qual o chamo de narrador barroco, como contraponto aos outros dois, marcados pela batuta asséptico-transcendental da politeia platônica, seja sob a forma de poder soberano, o narrador clássico; seja sob a forma de poder disciplinar, o narrador moderno.
Barroco, aqui, é a pedra irregular da crise ou abalo sísmico que sofreu a transcendência, sob o nome, na Europa, de aristocracia e clero. A Reforma protestante não foi, por ela mesma, um avanço civilizatório, em relação ao teocentrismo medieval, sob qualquer ponto de vista. Mais que contribuir para fazer emergir, como acontecimento, um ponto de vista laico, em contraposição à centralidade aristocrático-clerical da Idade Média. A Reforma, na História do Ocidente, representou o primeiro grande impulso para a abstração sistêmica, referência indispensável para irrupção da modernidade, cuja abstração se inscreve na centralidade do dinheiro, doravante o epicentro metafísico da mercantilização universal dos bens simbólicos, materiais e naturais.
Lutero foi, sem o saber, o primeiro grande teórico da modernidade. Seus três mais significativos postulados (1. a fé é suficiente para a salvação; 2. a graça de Deus é independente do mérito; 3. e o livre exame divino, sua seleção das almas, independe do homem no mundo) constituem um verdadeiro libelo a favor da abstração sistêmica do estar no mundo, pois os três simplesmente preconizam que o face a face, a práxis do e no mundo, não tem importância alguma para a salvação, uma vez que basta ter fé para salvar-se, o que equivale, hoje, a ter dinheiro; basta tê-lo para se tornar o centro divino do mundo, porque, a partir desse ponto de vista ideológico-abstrato, tudo independe do homem no mundo, o que é o mesmo que dizer que, doravante, a autorreferencialidade será a lei, numa sociedade disciplinar, seja a autorreferencialidade da família, sua autonomia para vigiar e punir; seja a da iniciativa privada, para impor seus próprios parâmetros de posse; seja a da obra de arte, ela mesma parte do mesmo mundo sem mundo, aquele em que “o livre exame divino” – a jurisprudência do Estado e/ou da crítica especializada -, sua seleção das almas, constituirá a única garantia para o que chamamos de excelência, rigor e valor.
Com todas as suas contradições e perturbações, o Barroco, como arte da Contra-Reforma, como arte literalmente de reação, reacionária, reagiu à Reforma protestante, propondo um retorno ao corpo medieval do mundo, embora não ao corpo aristocrático-clerical, desacreditado pela Reforma, mas ao corpo da paixão de cristo, tatuado de sofrimento, de oralidade, de devir plebeu.
Nesse sentido, o Barroco foi, antes de tudo, uma forma de resistência à abstratização das relações sociais e, por paradoxal que pareça, jogou o mundo, com seus erros, seus pecados, suas contradições, mas também com suas linhas de fuga, o corpo maculado de Cristo, chagas leprosas da legião de corpos de pobres, de demos; jogou, enfim e em começo, a concreta e sincrética fé plebeica contra o invisível muro da abstração sistêmica da Reforma, configurando, assim, um verdadeiro retorno às fontes das fissuradas brechas do poder soberano, retorno que me obriga a citar um fragmento do texto, Do Barroco (1996), de Jacques Lacan, por usar essa mesma expressão, para analisar o Barroco, retorno às fontes.
Eis o fragmento:
Vou lhes colocar uma questão: que importância pode haver, na doutrina cristã, o fato de Cristo ter uma alma? Essa doutrina não fala senão da encarnação de Deus num corpo, e supõe mesmo que a paixão sofrida por essa pessoa tenha constituído o gozo de uma outra. Mas não há nada que falte ali, notadamente nenhuma alma. (…) Eu lhes digo tudo isso porque justamente estou retornando de museus e que, em suma, a contra-reforma era retornar às fontes, e o barroco, sua aplicação. O barroco é a regulação da alma pela escopia corporal. (…) Seria preciso, alguma vez – não sei se jamais terei tempo –, falar da música, nas margens. Falo somente por ora do que se vê em todas as igrejas da Europa, tudo que está pregado nas paredes, tudo que chamei ainda há pouco de obscenidade – mas exaltada.
Com Lacan, assim, defino o Barroco como obscenidade exaltada, sendo essa a expressividade corporal de GSV, assim como de seu barroco narrador legionário, Riobaldo, órfão de pai e mãe, porque a escopia corporal, esse ver através do corpo, em GSV, exalta-se das brechas maculadas do território da soberania, seja o território do corpo da obra, que exala enxofre do começo ao fim, em sua negatividade morfológica, sintática e estrutural; seja o território ficcionalizado desses grandes sertões, um verdadeiro estado de exceção a nos dizer, retomando Benjamin, agora o inquestionável Benjamin das teses sobre a História, que “A tradição do oprimido nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral”, motivo pelo qual, por ser regra geral, as veredas desse grande sertão roseano exalam enxofre de litígio de demos, que não reconhece, ou não deve reconhecer, a autoridade do soberano pai transcendental, porque demos, no estado de exceção, é só orfandade legionária, de nascença, como nos sugere Riobaldo na seguinte passagem, em que dialoga com Diadorim:
Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum filho é perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas.
O órfão narrador de GSV, de escuro nascimento, é barroco por realizar um retorno às fontes fissuradas da sociedade da soberania, distinguindo-se do clássico, cuja referência também é o território, por partir de demos, e seu outro muitos nomes, o pobre, em estado de fuga e litígio, com seu devir pássaro, que a nada se apega, de modo que, de galho a galho, desterritoriaza a jurisprudência soberana a partir mesmo do centro de sua referência, que é a terra, e sua posse, inscrevendo o devir jagunço, na fuga e pela fuga, em relação à transcendência, ao soberano.
Acompanhemos, novamente, Riobaldo:
Ou que me pegassem no caminho, bebelos ou Hermógenes, me matassem? Morria com um bé de carneiro ou um au de cão; mas tinha sido um mais destino e uma mor coragem. Não valia? Não fiz. Quem sabe nem pensei sério culpa para meu preceito, mesmo. Quanto pior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga. As razões de não ser.
É assim que, definindo o Barroco como arte da Contra-Reforma, em relação aos impulsos sistêmico-abstratos da Reforma protestante, o seu retorno às fontes, constitui-se pelo decaimento órfico nas fendas, em crise, do poder soberano, donde se conclui que o Barroco é, ele mesmo, a expressão da crise de tal poder, o soberano, cujo rosto, estilhaçado pelos influxos dos novos tempos, respondia pelo nome de clero e aristocracia.
Eis porque retorno às fontes constitui, antes de tudo, retorno ao horizonte do comum, o que, de forma alguma, significa uma volta à ideia de origem, as míticas, as cosmogônicas, as divinas, como linguagem exotérica para justificar privilégios de fundamentalismos identitários, como os de classe, os étnicos, os de gênero, os epistemológicos.
Retorno às fontes significa simplesmente tornar comum o que é comum: a nossa dimensão órfã, de mortais e finitos, sendo por isso mesmo que Riobaldo diz: “Quanto pior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar”, uma vez que esse cair mais baixo pode ser traduzido como o retorno a um mundo sem pai, visto que o comum é bastardo; é sem sistema de filiação, sem paternidade, motivo pelo qual constitui aquilo que é de todos e de ninguém, considerando que tudo é, antes que patrimônio, matrimônio comum das vidas, sejam os bens materiais, sejam os bens simbólicos, sejam os naturais.
É por isso que a dimensão do comum constitui, por excelência, o lugar do retorno às fontes, porque sem origem, porque sem paternidade, porque marcado pela potência do nome demos, que é legionário, que é turbulência de fluxos abertos, em constante e inconstante fuga de qualquer forma de territorialização estética, econômica, social.
Eis porque Riobaldo foge até da precisão de fugir, sendo esse o motivo porque foge do bando de Zé Bebelo, que é aquele que representa o Estado, o progresso, a lei; assim como foge, também, do bando de Hermógenes, o outro que é o mesmo do bando de Zé Bebelo, por constituir-se como o lugar da barbárie, embora, bem entendido, ambos, Zé Bebelo e Hermógenes, o progresso e o atraso, constituem a face e a contra-face da violência imposta, com o propósito de conter demos, pelo estado de exceção.
Este, o estado de exceção, é o dispositivo que mantém o estado do oprimido, como difuso e soberano território da crise permanente, pois, para o oprimido, sua própria existência é a encarnação de sua crise, razão pela qual ele é legião em litígio e dissenso.
GSV é o romance desse litígio e constitui, portanto, uma ficção do estado de exceção da crise, desde sempre, do e no oprimido, na periferia do sistema-mundo, como cenário dramático e naturalista dessa guerra civil planetária em que vivemos. Seu retorno às fontes não pode ser interpretado como culto aos valores pré-modernos, ou mesmo como reacionária regressão a um passado bárbaro. Antes pelo contrário, o estado de exceção, nesses grandes sertões mineiros, constitui o cenário de seu plano de imanência antissistêmico, um contraponto às abstrações/reduções/submissões disto a que chamamos de civilização, com seus sistemas de valores, suas instituições econômicas, políticas, epistemológicas e jurídicas, soberanos, porque distantes da realidade do homem comum, porque recusam e mesmo ignoram terminantemente a necessidade da travessia do Liso do Sussuarão, alegoria de nosso estar no mundo, na lisa superfície, porque sem reificações, de nós conosco, que é a laica superfície com a qual, e não há outra, temos que nos haver com a vida nua, esse outro nome de demos, e vida nua é, segundo Agamben, “(…) na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens”.
Como o cacto do poema homônimo, de Manoel Bandeira, o plano de imanência sertões “é belo, áspero intratável (…)”, e está aqui, dentro, fora, entorno, diante de nós, por ser o dramático cenário da cidade dos homens, cenário, cujo plano de imanência não apenas inscreve as linhas dolorosas do nervo ciático de nossa política, mas que também deve ser vivido, e encenado e transformado, tendo como referência o que aqui chamei de demologia negativa, que é a negação a toda forma de transcendência soberana, afirmando ao mesmo tempo o horizonte utópico da legionária vida nua de demos, que é, como dizia Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago de 28, “raça crédula”, pois acredita – daí o litígio – que é possível transtornar, acreditando no mundo, porque, com Gilles Deleuze, “o que nos faz mais falta é crer no mundo, assim como suscitar acontecimentos, ainda que sejam mínimos, que escapem ao controle; fazer nascer novos espaços-tempos, ainda que sua superfície e seu volume sejam reduzidos”.
Fazer nascer novos espaços-tempos, novos mundos no mundo, a partir do retorno às fontes laicas da vida nua, a única maneira de salvar-nos, a nós mesmos, de nós mesmos, abrindo veredas, nonada.
Luís Eustáquio Soares (Brasil, 1966). Poeta, escritor e ensaísta. Publicou Covardia (2003), José Lezama Lima, anacronia, barroco e utopia (2008) e El evangelio según Satanás (2010). Contato: artevicio@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Kurt Seligmann (Suíça), artista convidado desta edição de ARC.
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