D. H. Lawrence marcou uma assinalada função cultural, propondo-se de todas as maneiras alargar e ampliar os limites do humano. Toda sua gestão de escritor, toda sua paixão no decurso da experiência da vida se coligiu nessa tarefa de descobrir “novos céus e novas terras” para o homem. O que implica, sem mais, acreditar que a representação antropológica que, como investidura social, somos compelidos a executar, traduz unicamente uma singular mutilação de nossas possibilidades de ser. Somos uma função social, um conjunto de virtudes que garantem unicamente a nossa aceitação no grupo em que vivemos. O ser para a sociedade, entretanto, atrofiou e absorveu de maneira catastrófica todos os apelos e invocações que assediavam a alma do homem total. O drama da alienação da alma na dimensão simplesmente intersocial e humana constitui o tormento de sua realização intelectual. Prodigou-se em esboçar situações narrativas em que os personagens expiavam e morriam o seu ser antigo, a sua autoimagem ocludente, em vias de metamorfoses e ressurreições.
Encontramos em sua obra Studies in Classical American Literature páginas de uma polêmica mordaz, dirigidas contra o patrono do moralismo puritano ianque, Benjamin Franklin. Contudo, o escopo de nosso artigo não é seguir de perto essa polêmica destruidora contra o credo moralístico de Franklin e de outros representantes do espírito puritano, mas sim o de explicitar o que Lawrence, no correr de seu pensamento, vai revelando sobre a “Colômbia primaveril” de sua própria concepção da vida e do homem. Parodiando a maneira sentenciosa de Franklin, Lawrence estabelece “para brincar de Benjamin”, como ele mesmo ironiza, a sua lista de preceitos e antipreceitos morais, como uma espécie de decálogo sacrossanto. Esse breviário moral e o resumido credo que o procede traduzem, porém, uma impressionante sinopse do que poderíamos denominar o neopaganismo de Lawrence. Na ordem de afirmação de toda afirmação pagã ou neopagã, Lawrence repudia desde o início qualquer ideia finalista ou progressista do destino humano, qualquer escatologia que calunie ou condene a vida, em função de uma redenção espiritual. A concepção de fim é inteiramente alheia à sua sensibilidade religiosa, sendo a realidade ou a vida um estar aqui esplêndido e divino. Os deuses são presenças ou epifanias que rondam o aqui, que vão e vêm em nossa alma e não se pospõem para um além invisível e desencarnado. O credo de Lawrence, oposto ao do “vovô Benjamin”, é tão importante e decisivo para tudo que diz respeito à problemática humana e histórico-social, que vamos reproduzi-lo em seu texto integral.
“Eis aquilo em que creio”, diz Lawrence:
– Que eu sou eu.
– Que minha alma é uma floresta sombria.
– Que o eu que conheço é apenas uma pequena clareira nessa floresta.
– Que deuses, estranhos deuses vão da floresta para a clareira do eu conhecido e depois se afastam.
– Que devo ter a coragem de deixá-los ir e vir.
– Que não deixarei jamais a humanidade me dominar, mas sempre tentarei reconhecer os deuses que estão em mim e a eles me submeter, assim como àqueles que estão em outros homens e outras mulheres.
Apressa-se Lawrence a comentar que os espíritos enquadrados no simplesmente humano da nossa civilização não poderão jamais compreender o seu credo. E já podemos compreender essa “incompreensão” inicial das vítimas do antropocentrismo fechado e dos que se empolgam pelo ídolo dacondition humaine sem portas e sem janelas. Contesta, em primeiro lugar, o “teclado apoticário” das virtudes da respeitabilidade social, do existir unicamente em sociedade do eu moderno: temperança – silêncio – ordem – resolução – frugalidade – trabalho – sinceridade – justiça – limpeza – tranquilidade – castidade – humildade.
Desse piano mecânico de Benjamin, nascem as fastidiosas harmonias do homúnculo social e do animal moral, dissociado das raízes vívidas da alma cósmica. A teoria lawrenciana da alma remete-nos às formulações românticas do psiquismo humano e meta-humano, às antigas ideias de um Karl Gustav Carus, que reconhecia no inconsciente não só “a chave do conhecimento da vida consciente da alma”, mas que também determinava esse Inconsciente do qual emergimos como a vida fantástico-elementar do próprio cosmos. O nosso corpo, em especial, expressa essa vida criadora inconsciente, pois a vida só pode traduzir-se em fenômenos fantástico-somáticos: Wo kein Leiben ist, da ist auch kein Leben. (Onde não há vida no corpo, não há vida.)
Através da aferência inconsciente do nosso ser, mergulhamos na vida universal do cosmos e somos essa totalidade criadora. Para Lawrence, de modo semelhante, o nosso ser é um teatro de revelações das potências morfogenéticas da vida ou dos deuses.
O que significa esse estranho enunciado lawrenciano que mais parece ditirambo poético do que proposição antropológica: minha alma é uma floresta sombria? Esse enunciado expressa um ir-além-de-si-mesmo, uma compreensão de si além de si e do cogito ou do humanismo rotineiro. Diz Lawrence: – Eu sou eu, mas não o eu do ego cogito ou da consciência perceptiva vigilante.
Sou uma floresta sombria e, no entanto, em nossa civilização todas as coisas são expressões desse eu simplesmente consciente e acanhado, como momentos de sua realização. É o que nos revela Lawrence em seu poema “New Heaven and Earth”:
I was so weary of the world,
I was so sick of it,
Everything was tainted with myself,
Skies, houses, streets, vehicles, machines,
Nations, armies, war, peace-talking,
It was all tainted with myself, I knew it all to start with
Because it was all myself.
Entretanto, para que não sucumbe diante da ideia de “humanidade” ou do eu isolado, a alma continua sendo uma potência aórgica, devotada ao serviço das cenas primordiais. Se pudermos compreender o homem como uma “flexura” em relação à totalidade das coisas, como um estar-no-mundo no qual todas as potencialidades e aspectos, mesmo os mais inadvertidos e inconscientes colaboram e determinam a sua maneira de ser, então “a nossa alma é floresta sombria”. Nós somos o mundo, justamente o mundo que exorbita a pequena clareira do eu conhecido, esse mundo que inconsciente e florestal pode entrar em cena no nosso discurso existencial. No pensamento de Lawrence, o mundo não contém somente a verdade do homem e de suas veredas de ação, mas um sem-número de itinerários que representam uma simbólica divina. Estranhos deuses vagam da floresta para a clareira, estranhas dominações podem empolgar a nossa alma e o nosso corpo, traduzindo-se então através de nossa criatividade mais profunda. Podemos ser “à maneira de” cada um dos deuses, podemos viver nessas dimensões fascinantes, tornando-nos então emblemas e signos dessas dominações superiores. Só poderíamos aludir a essas dominações como espoliações ou alienações de uma pretensa essência verdadeira do homem, na hipótese de imobilizarmos o homem em sua figura pessoal-espiritual. Não nos devemos deixar dominar pelo exclusivo do homem-só-homem, pelo mitologema cristão da humanidade e pelo plexo de realizações puramente técnico-sociais. A máxima alienação consiste justamente na recalcitrância do querer ser si mesmo e nesse antropocentrismo delirante que oblitera a nossa natureza osmótica e espongiária. Podemos pôr em imagem os deuses que vêm a nós, desde que a nossa essência, como afirma Heidegger, é uma franquia de realizações existenciais. O nosso ser mais profundo não é reclusão, fechamento ou paixão de si, mas entusiasmo, estar-fora-de-si na presença dos deuses. Por isso Lawrence não só declara que devemos permitir que os deuses venham e se retirem de nossa alma, mas consequentemente que nos submetemos à sua paideia. Mais significativa que a escola divina, a educação do nosso espírito para o apelo do mundo em forma da manifestação do divino. Unicamente a hierofania dos mundos virtuais pode suscitar em nós a vontade de formar e o desempenho absoluto das cenas sugeridas.
Eis que a nossa vida, nesse extraordinário credo lawrenciano tão sucinto, mas tão rico de ideias e sugestões de pensamento, não comparece como uma superfície hígida e por demais conhecida. Não estamos assentados sobre o trivial ou sobre o fartamente conhecido, mas existimos na Floresta Negra do ser, na Amazônia da realidade. “Viva a Colômbia! A alma do homem é uma floresta sombria”, diz Lawrence. E toda a sua obra desloca o centro de apreciação da vida humana, do indivíduo subjetivo para o domínio aórgico dos deuses. Sua visão da existência é uma visão teocêntrica. E o personagem aferente da nossa civilização, o homem renascido em espírito, constitui apenas uma das consignações históricas emitidas pela ordem ex-cêntrica das aberturas religiosas. Somente nessa perspectiva podemos interpretar as normas que, temperadas de “humor” e “à maneira do bom Benjamin”, Lawrence inscreve nas tábuas da lei da vida histórico-divina. O decálogo lawrenciano que na realidade consta de treze preceitos, instala-nos imediatamente no reino da ação afetiva, entusiástica, que ocorre sempre como símbolo e epifania. Eis o primeiro preceito:
I. TEMPERANÇA | Comei e festejai com Baco ou mastigai pão seco em companhia de Jesus, mas não vos senteis à mesa sem um dos deuses.
Qual o contexto que iluminaria plenamente essa norma e medida de ação?
O homem não existe por si, mas é um dos elos da díade homem-deuses. Pensando apenas a partir de si mesmo, o homem é uma abstração, um fragmento tinto de absurdo, um ser desértico e atrofiado. A abertura em que habitamos e somos, na qual se inscreve a árvore dos nossos desempenhos, expressa sempre um Império da divindade. Tanto assim, que os bens culturais de uma civilização têm sempre uma origem ritual-religiosa, e mesmo nossa civilização técnico-científica, quando sondada em sua constituição última e transcendental, é tributária do mitologema cristão. Podemos reconduzir inclusive a nossa maneira de amar, a nossa erótica, às raízes religiosas de onde promana. É o que nos diz Walter Schubart em sua obraReligion und Eros: “A religião não é uma erótica sublimada mas, pelo contrário, o Eros é que é a vivência religiosa contraída a uma expressão puramente sexual”. Assim como o sexo só pode ser desvirtuado quando limitado a uma função fisiológica, assim também o comer e o beber são muito mais do que mera absorção de calorias ou refrigério da sede. Lawrence considera o comer uma comunhão com o cosmos, e uma forma eucarística de incorporação de poderes demônico-energéticos. Essa é a forma que na antiguidade assumia o Symposion que, muito mais do que um banquete, reunião social ou intelectual, era um ato sagrado. Sentar-se à mesa com os deuses significa, entretanto, além de uma absorção de poderes, uma festiva rememoração da razão de ser do nosso ser. De puro ato de conservação do indivíduo, a alimentação aponta para o fato de existirmos, isto é, comemos e bebemos a fim de realizarmos os valores supremos. Comer e beber não são atos intransitivos e opacos, mas atos eucarísticos e presentificação do fundo último das coisas. Comer e beber sem a companhia dos deuses seria uma simples operação físico-química, um carregar-se de poderes para nada, para a manutenção da vida num rumo absurdo e sem finalidade. Como sugere Van der Mühl, a própria festa greco-latina constituía em si mesma uma manifestação de Baco ou Dioniso, deus dos estados psíquicos exaltados e transbordantes.
Contudo, entre os gregos a embriaguez era temperada e moderada, já pelo fato de beberem vinho puro. Lawrence tem razão ao afirmar que a temperança nasce como uma medida relativa, como uma limitação que adquire significado pela obra humana consignada à nossa consciência. Assim, como não existe o homem em si, irrelativo ao contexto mítico-cultural, também não existe a temperança em si, pois o processo de autoconservação depende da forma de vida que realizamos e essa, por sua vez, do pôr-se em forma religiosa de uma época.
II. SILÊNCIO | Permanecei silenciosos quando não tiverdes nada a dizer; quando uma verdadeira cólera dominar-vos, dizei o que deveis dizer, e com ardor.
É significante o fato de Lawrence opor a cólera ao silêncio, como se não existissem outros impulsos que nos levassem a romper o silêncio. O certo é que ele não compreende o Universo como um mecanismo pacífico, harmonioso, como o living room de hóspedes inteligentes e virtuosos, mas sim como a conflagração criadora de potências obscuras e violentas. No cerne da vida, na raiz de todo vir a ser aninham-se o ódio e a cólera, forças primigênias por essência. Tanto assim que na mitologia dos povos aurorais, e mesmo no repertório de todas as religiões, encontramos a galeria apavorante de deuses monstruosos e selvagens, dos deuses-dragões. Toda autoformação da vida, toda plasmação, todo querer-viver, é uma transgressão impetuosa, uma prepotência. O furor originário da vida-paixão, com seus deuses sanguinários e ameaçadores, traduz essa infraestrutura primordial do ser, a vida como ainda persiste nos estratos profundos do nosso frágil Eu. Assim, o fundo secreto da vida é uma chama impetuosa e colérica, um querer-viver agressivo, sem o que a vida se diluiria na indiferença e na renúncia do não-ser. Toda a nossa existência deve ser uma afirmação inelutável, uma decisão nítida, uma vontade de onde promane aquele furor criativo da vida-paixão. Lawrence imaginou homens de grande tônus emocional, ígneos, entusiásticos, violentos e apaixonados, seres verdadeiramente vitais. Portanto, só a vontade colérica da vida, o querer-mais-vida, deve romper o silêncio e a calmaria dos sons adormecidos. A vida deve falar acerca da vida e não extraviar-se numa tautologia enfadonha, num discorrer sobre os mortos, sobre o passado ou sobre as possibilidades já conquistadas. Devemos deixar de contar “histórias” sobre o ente, sobre o já dado, pondo-nos em consonância com o entusiasmo criador da mais-vida. Quem se obstina na tautologia do pensamento perene ou da filosofia perene está repetindo o já dito e redito, e portanto o melhor que teria a fazer seria preservar o silêncio. A tediosa característica da vida como aferição é a subordinação talmudística ao texto e à palavra autoritária, é a não-liberdade sob o disfarce de pensamento. Transcender o silêncio deve ser uma palavra das “cavernas do ser”, da sombria floresta.
III. ORDEM | Sois responsáveis para com os deuses que habitam em vós e para com os homens através dos quais esses deuses falam. Reconhecei vossos superiores e inferiores segundo os deuses. Essa, a raiz de toda ordem.
Para Lawrence, toda ordem é uma ordem “segundo os deuses”, é a ordem em sua raiz e em sua origem. Assim, pois, a ordem não é uma disposição arbitrária das coisas de acordo com um critério arbitrário, não é uma seriação escolhida ao acaso, ou uma relação serial posta pelo intelecto. A hierarquia é uma disposição meta-humana que provém das investiduras carismáticas outorgadas pelos deuses. Já os antigos admitem os dii minores e os dii maiores, potências numinosas de diverso valor e sentido. Correspondendo a essa ascensão e descida na escala das revelações dos aspectos da vida (os deuses são Weltaspekte), se distribui a hierarquia das posições humanas na medida em que, através dos homens, são os deuses que falam. Os homens representam momentos de uma hierática iniciação nos arcanos da vida, uma vez que todo comportamento é iniciático e abre perspectivas irrisórias ou grandiosas no fundamento das forças meta-humanas.
Ao agir, o homem revela-se e ao revelar-se revela os princípios tutelares de seu ser, isto é, seus deuses. Há homens que confinam e confrangem a nossa alma, que nos remetem a uma verdadeira micrologia do ser e outros que, pelo contrário, como andrópteros, nos incitam a voar no ilimitado, no amplo universo das diacomeses divinas.
IV. RESOLUÇÃO | Tomai a resolução de obedecer aos vossos desejos mais profundos e de sacrificar sempre o inútil ao essencial. Matai, se for necessário, ou aceitai a morte: a injunção procedendo dos deuses que vos habitam ou daqueles em que reconheceis o Espírito Santo.
Toda decisão e vontade devem representar uma extrema docilidade à vida, uma resolução obediente, mas de obediência volitiva, um permitir a passagem da corrente da autêntica criatividade. Em linguagem heideggeriana, poderíamos dizer que devemos abrir-nos à abertura (Offenheit) que nos instaurou às disposições do Fascinator. Obedecer aos desejos mais profundos significa a superação do Eu adventício, da persona social, do Eu exterior, para dar livre curso ao fundo ilimitado e criador de onde emergimos. A resolução é um testemunho dos deuses, é um testemunho criador, pois, afirmou Walter Otto, nada se revelou mais túrgido de criatividade do que a Imagem do divino.
Essa decisão ou resolução a partir dos estratos profundos da alma implica o abandono espontâneo do inútil e do inessencial, e a tergiversação da ação insistencial. Com tremenda radicalidade, Lawrence adverte-nos que a ação como “injunção vinda dos deuses”, como presentificação de uma ordem superior, pode autorizar-nos a matar ou morrer. Assim, não deveríamos mostrar uma excessiva complacência com o homem intransitivo, antropocêntrico, como simples proliferação biológica. Não servir jamais a humanidade, dirá o item referente ao Trabalho. Isso significa que a História deve ser manifestação dos deuses e não teatro do homem autotélico. Obedecendo ao Espírito Santo, obedecemos a um Espírito que é Santo, nascendo assim as obras do sentido reverencial aos deuses. O mundo é manifestação, mas manifestação não do “meio” de manifestação – o homem – mas do manifestável, do digno de manifestar-se, do festivamente manifestado. E através da História e em muitas eventualidades, o sagrado se manifesta e se afirma sobre a hecatombe dos humanos.
V. FRUGALIDADE | Não pedir nada; aceitar o que vos parecer justo. Não desperdiceis vosso orgulho, nem prodigueis vossa emoção.
Para Lawrence, a frugalidade não reside na ordem das coisas, não é economia ou avareza, segurança obtida por um espírito mesquinho ou retentivo. A frugalidade deve manifestar-se na ordem do ser e não na ordem do ter. O que não devemos dilapidar e dissipar é a nossa emoção e nosso orgulho, nosso celeiro reservado ao Espírito Santo dos deuses. Não devemos prodigar-nos ao menor, esgotando nosso orgulho e nossa vida em questiúnculas, comparecendo exangues e desvalidos à convocação dos grandes. Devemos respeitar os valores potenciais do nosso ser, respeitando e amando o possível, o inaudito, o irrevelado e oculto em nós. É próprio do divino ser uma infinita possibilidade de realização, é próprio do divino manifestar-se em sua ocultação. Nós também, só podemos ser livres reverenciando o ilimitado que nos habita, isto é, superando o dito, o feito e atualizado.
VI. TRABALHO | Não deveis perder tempo com as ideias, mas servir o Espírito Santo. Jamais servir a humanidade.
O sentido profundo dessa norma lawrenciana provém da excedência do nosso ser em relação a qualquer e exclusivo ser-para-a-sociedade. A sociedade e o homem, tal como se determinam na civilização atual, representam o fruto de “ideias” e da compreensão da experiência no leito de Procusto das formas platônicas. As formas ou ideias platônicas são as “receitas”, as fórmulas de ser de cada coisa, fórmulas e receitas que se configuram em vista de um certo fim, isto é, da ideia do Bem. Esse valor supremo, luz do mundo das ideias, princípio revelador de todas as ideias, é concebido à imagem da supremacia do espírito incorpóreo sobre as outras possibilidades do ser. A transcendência do espírito conferiria uma determinação a cada ente, sendo as determinações eidéticas das coisas configuradas pelo impulso transcendente e em gesto de transcendência em relação à consecução do melhorespiritual. Como demonstrou magistralmente Heidegger, com Platão a filosofia passou a medir e avaliar todas as coisas em função do pensamento humano, iniciando o itinerário ascendente do humanismo antropocêntrico. Essa tendência alicerçou a concepção da vida e das coisas no mundo ocidental. A essência humana, uma vez determinada pela supremacia do nous ou da alma cognoscente incorpórea, acarretou a essência das instituições sociais e da sociedade em seu conjunto, como instrumento de realização da pirâmide da natureza humana na hierarquia de suas funções. Quando Lawrence obtempera que não devemos perder tempo com as “ideias” ou com a “humanidade” (que é a ideia geral do homem), sugere-nos que a nossa ação – o nosso trabalho – não deve propiciar um só aspecto das coisas ou cumprir-se sob a inspiração hegemônica do bem social. Além da justiça social, ou acima dela, existem inúmeros universos de oportunidades existenciais que clamam pela nossa ação e obediência. Em outro mandamento dirá Lawrence: “Cuidado com os absolutos! Há muitos deuses!” A diké platônica é o bem do Eu consciente, do Eu de pequena clareira, apartado do homem plutônico de outras fascinações existenciais. Em seu romance Lady Chatterley’s Lover, Lawrence propõe o dilema Platão-Plutão, decidindo-se evidentemente pelo segundo termo da alternativa.
VII. SINCERIDADE | A sinceridade consiste em lembrar que eu sou eu e que o outro não sou eu.
Para sermos sinceros é mister precisamente que sejamos nós mesmos, que superemos o “todo mundo” em nós e que nos resgatemos das formas inautênticas de ser. A verdade íntima autentificada não implica evidentemente que de forma obrigatória ou imperativa sejamos “sinceros” com os outros. Lawrence refere-se a uma sinceridade intrínseca conosco mesmos e a uma originalidade individual como significado determinante da autorrevelação de cada qual. Essa verdade pessoal exigiria eventualmente uma estratégia sutil das máscaras do nosso trato com o outro, uma hipocrisia aristocrática que preservasse nossa verdade fundamental. Tudo o que é profundo se oculta, fugindo às expectativas rotineiras do maior número, desenvolvendo-se em paragens inóspitas. Entretanto, a revelação de si mesmo não é o encontro de um Eu-coisa, ou de uma coisa-Eu, a apreensão de uma alma fechada em si mesma. Pelo contrário, a sinceridade é a total “flexura” em direção à floresta sombria do nosso ser, desse ser que é essencialmente um ser-no-mundo e consignação a um mundo. Ser sincero é ser livre e desobstruído para as atestações de um mundo, para os deuses que vão e vêm na representabilidade da nossa ação. A verdade em relação à qual devemos ser sinceros é certamente a verdade da nossa alma, mas acontece que a nossa alma é uma floresta sombria. A pujança da experiência da vida e do Eu em Lawrence torna risível qualquer absoluto moral das “belas almas” que vivem no Kindergarten da vida beata.
VIII. JUSTIÇA | A única justiça é a de obedecer à intuição sincera da alma, seja ela de cólera ou de doçura. A cólera é justa e a piedade é justa, mas o julgamento nunca é justo.
Essa afirmação de Lawrence identifica a justiça com a vontade divina e com as condições dessa vontade. O direito e a justiça de uma intuição de vida – e de uma vontade de vida – de um certo tipo humano. Eis por que ele afirma que uma representação isenta ou imparcial das coisas, um juízo, não pode ser justo. Justo ou juridicamente válido é o que preserva e favorece uma intuição sincera da alma, uma postulação fundamental da existência.
IX. MODERAÇÃO | Cuidado com os absolutos – Há muitos deuses.
A confissão veemente de seu politeísmo torna Lawrence o representante de um fenômeno insólito entre nós. Não se trata evidentemente de um parnasianismo satisfeito em evocar nomes divinos ou vislumbrar desgastadas imagens de festins divinos. A pluralidade das manifestações do sagrado é a fonte da qual mana o pensamento lawrenciano, cuja paixão intelectual representa o mais autêntico desafio filosófico-religioso à sensibilidade geral do homem contemporâneo. A primazia do Deus Único tornou o homem cego para a pluralidade das formas de vida e para a multiplicidade de realizações possíveis. O desenvolvimento linear de nossa civilização, em seu estágio presente, é a decorrência da definição distrófica do homem e de seu destino: um Deus, uma virtude, uma realização humana, sociopolítica. Vivemos na sanha, na paixão imoderada da forma única, dos valores únicos, da teleologia única. Transformamos o número Um no absoluto. E Lawrence adverte-nos contra esse fanatismo, essa imoderação. Investindo contra esse pitagorismo religioso, exorta-nos para que não cerremos nossas portas a novas experiências, a novas maneiras de ser, destruindo o monopólio empobrecedor do homem linear, e favorecendo a plenificação das múltiplas solicitações do divino em novos ciclos de vida e pensamento. Superando o absoluto do absoluto, reencontraremos de novo a Vida e a polivalência do chamado religioso. Nessa docilidade e plasticidade vitais reside, segundo ele, a moderação.
X. LIMPEZA | Não exagerar o imperativo da limpeza. Isso empobrece o sangue.
Lawrence alude aqui ao sentido puritano e rigorista da limpeza e ao seu horror às vicissitudes corpóreas, isto é, à própria vida, como imperfeição, mácula e pecado. Em sua Defesa de Lady Chatterley encontramos essa passagem: “O espírito conserva um antigo terror do corpo e de seus potenciais físicos. É urgente liberar o corpo...” E lembra em seguida a insanidade de um grande espírito como Swift quando, num poema dedicado à sua amante, repete como refrão de desencanto e de repulsa que Célia, Célia, a bem-amada também vai ao W.C. No fundo, é o espírito desejando que o corpo não seja corpo, mas espírito, limpo, inodoro, insípido e imaculado. Mas acontece que o corpo é uma diversa manifestação do divino...
XI. TRANQUILIDADE | A alma move-se em muitas direções, muitos deuses vêm e vão. Nas situações confusas procurai vosso intento mais profundo e aplicai-vos a ele. Obedecei ao homem no qual reconhecerdes o Espírito Santo, e comandai quando a vossa honra assim ordenar.
Entendemos comumente a paz e a tranquilidade como um descanso em Deus, ou ainda a redução das forças em luta em nossa alma a um princípio de ordem soberana. Lawrence não ama essa paz oriunda de uma mutilação dos movimentos anímicos, pois essa paz significa o sacrifício de múltiplas formas de ser. Em seu preceito incita-nos a reconhecer e acolher o deus que mais profundamente fala em nossa alma, isto é, procurar nosso intento mais profundo e ser fiéis a seu apelo. A alma humana, para Lawrence, é o cenário para a mise en scène do sobre-humano. Em lugar da paz na fixidez morta, devemos atingir aquela tranquilidade oriunda da proximidade do divino que pode ser exuberância e suprema atividade, na medida em que representa a plenitude do cumprimento sacral. Esse lawrenciano “estar com Deus” não se expressa, pois, necessariamente na quietude da alma, pois a face divina, sua índole e propulsividade podem variar, impelindo-nos ao Espírito Santo em nós mesmos ou naqueles em que acaso se manifeste, não haverá tranquilidade no sentido acima indicado.
XII. CASTIDADE | Não pratique “o ato venéreo”. Deveis obedecer vossa impulsão passional se o outro a ela responder, mas sem ter em vista qualquer finalidade, nem de geração, nem de saúde, nem mesmo de prazer ou de caridade. O “venéreo” pertence aos deuses todo-poderosos. É uma oferenda aos deuses sombrios e todo-poderosos – nada mais.
O “ato venéreo” – como o denomina Lawrence parodiando o eufemismo do “bom Benjamin” – é uma das típicas criações do homem subjetivo, reduzindo a vida à consciência dotada de um “corpo” material. Contribui decisivamente para essa “objetivação” sexual a nossa interiorização, o nosso existir como um “dentro”, isto é, a nossa metamorfose num espírito não sensorial.
O “ato venéreo”, na acepção puritana, é a recorrência de uma compreensão anatômico-fisiológica da existência, compreensão que procura projetar a nossa realidade no cenário físico. Foi sem dúvida essa representação que criou a perspectiva dessacralizadora da natureza, induzindo uma visão positivista e científica do amor. Lawrence, em toda sua prodigiosa obra, pugnou apaixonadamente contra essa perversão e redução do Eros. Em seu pensamento, o sexo é uma “oferenda” aos deuses, isto é, uma cena onde são atualizadas forças não feitas pelo homem. O universo afrodítico-sexual constitui uma realização de dispositivos atávicos e, como afirma Lawrence, pertence ao campo dos deuses poderosos. No amor, é o amor que se realiza através de nós.
XIII. HUMILDADE | Deveis encarar todo homem e toda mulher relativamente ao Espírito Santo que os habita. Nunca ceder àquilo que é estéril.
Desde que o homem, para Lawrence, é um receptor ou transmissor de correntes mais profundas, nunca deve ser apreciado em sua presença opaca e intransitiva ou, segundo sua expressão, estéril. Estéril, porque o homem incomunicante e fechado não está em conexão com o húmus dos poderes inconscientes e criadores; nada pode nascer do homem incomunicante, pois não possui a humildade necessária para deixar passar a corrente do divino. O valor do homem, para Lawrence, reside em sua disponibilidade infinita em relação ao Holy Ghost que habita sua alma.
Vicente Ferreira da Silva (Brasil, 1916-1963). Filósofo. Ensaio originalmente publicado na revista Diálogo # 15 (São Paulo, 1962). Posteriormente incluído em Transcendência do mundo: obras completas (organização, preparação de originais, prefácio e introdução geral a cargo de Rodrigo Petronio, É Realizações, São Paulo, 2010). Agradecimentos a Rodrigo Petronio (rodrigopetronio@gmail.com) e Inês Bianchi (inesbianchi@uol.com.br). Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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