segunda-feira, 31 de agosto de 2015

CLAUDIO WILLER | Das rebeliões românticas à contracultura: uma história a ser escrita


Simultânea vantagem e desvantagem de ser coeditor de uma publicação como esta Agulha: ver, em primeira mão, textos da qualidade de La maldita vanguardia, de José Ángel Leyva (em tradução de Vania Lacerda), e Cambiar la vida: Rimbaud, las vanguardias y la postmodernidad, de Víctor Sosa, e não resistir ao impulso de prossegui-los, de seguir em frente na discussão de algumas questões tão bem apresentadas nesses dois ensaios. Em especial, no modo como o ímpeto transformador tão bem examinado por ambos se projetou e talvez ainda se projete em um passado imediato e no presente. De minha parte, penso que, sem nenhuma dose exagerada de saudosismo, à distância, hoje, a contracultura e as revoltas juvenis dos anos 60 podem ser vistas como a última rebelião do século XX. E como um brevíssimo instante em nossa civilização no qual revolução e rebelião estiveram bem próximas, e uma rebelião pareceu converter-se em revolução, em um momento que pareceu suprimir antagonismos os quais, hoje, sabemos irreconciliáveis. Por exemplo, na frente ampla do maio parisiense de 68, unindo desde anarquistas e surrealistas até maoístas. Certamente, os acontecimentos históricos mais significativos da segunda metade daquele século XX estão entre 1989 e 1991, da queda do muro de Berlim à dissolução da União Soviética. Mas é impossível não admitir que a década de 60 foi desses períodos que dão a impressão de aceleração e adensamento da História, assim como o final do século XVIII, com a afirmação de ideais iluministas através da Revolução Francesa, ou o ciclo de revoluções do começo do século XX, culminando com o 1917 soviético. E o ano de 1968 foi a condensação, por sua vez, da década de 60, de seus avanços e retrocesso.
De diferentes modos, como exaltação ou crise, euforia ou depressão, a questão da liberdade manifestou-se de modo enfático, exibindo a saturação da dicotomia estalinismo-macarthismo imposta pela Guerra Fria. Mas isso não aconteceu a partir do nada. Foi precedido por idéias. Houve uma realização de produções teóricas e artísticas que a anteciparam, e que já estavam presentes, conforme bem assinalado nos dois artigos desta edição de Agulha, na rebelião romântica, em sua exacerbação por Rimbaud, e naquelas manifestações da vanguarda, a começar pelo Surrealismo e por dada, que não se reduziam a uma tentativa de consagração do moderno tomado como valor, da celebração da união entre arte e progresso técnico-científico - uma união na qual, tal como concebida pelos futuristas ou por nossos concretistas, invariavelmente a arte se torna a parte mais fraca, caudatária da ciência e tecnologia, ao se pretender que incorpore uma ideia que lhe é estranha, a de "progresso". Há, ainda, uma relação mais clara, mais linear de influência, em obras publicadas na década precedente, nos anos 50, que buscaram a incorporação do marxismo a um pensamento crítico mais radical e abrangente, ou então, um pensamento crítico que fosse além do marxismo. Entre outras, Eros e Civilização de Herbert Marcuse e A Vida contra a Morte de Norman Brown. 
Tais antecedentes foram bem observados por Octavio Paz, em um texto escrito em 1967, no calor dos acontecimentos (publicado, com pequenas variantes, no ensaio Conjunções e Disjunções e na entrevista Solo a dos voces): Nos últimos anos, dois movimentos sacudiram o Ocidente: a revolta do corpo e a rebelião dos jovens. (…) As duas são expressões - ou melhor, explosões - de uma corrente subterrânea que nasce com William Blake e os românticos ingleses e alemães, se manifesta no século XIX nas obras de alguns poetas como Rimbaud e Lautréamont, explode no surrealismo e agora, misturada a outras correntes, se estende a todo o planeta.



Foi decisivo, diretamente determinante, também, o grupo de jovens autores - Allen Ginsberg, William Burroughs, Jack Kerouac - que, através de uma combinação de misticismo e desregramento, atualizou a rebelião romântica e integrou a ela a contribuição das vanguardas europeias. Aquilo que, no início dos anos 50, se apresentou como geração Beat, no final da mesma década já havia extrapolado, passando de movimento literário a fenômeno social, até transformar-se, a partir de 1965, em contracultura e geração hippie
Várias foram, no Brasil, as expressões desse ethos rebelde-revolucionário. Em boa hora, vêm sendo lembradas ou recuperadas, bastando observar que, na data em que escrevo este artigo, abre-se mais um ciclo sobre o cinema "marginal" ou da "boca do lixo" de 1968 a 75, e que os jornais publicam comentários sobre o relançamento de Panamérica (Editora Papagaio), o poderoso painel apocalíptico de José Agripino de Paula, reconhecendo seu alcance profético. De algum modo, essas e outras obras e seus autores se relacionaram com a Tropicália. Entre outras razões, por sua capacidade de interagir e agregar outras manifestações, sua singularidade na pluralidade. O tropicalismo está bem documentado através de ensaios e depoimentos como Verdade Tropical de Caetano Veloso e Geração em Transe de Luís Carlos Maciel. São leituras necessárias para a geração que pode ter visto encenações recentes de Zé Celso Martinez Corrêa, ouvido bastante Caetano e Gil, vistoDeus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe de Glauber Rocha, mas não teve a chance de participar do processo, ver de perto o contexto revolucionário reconstituído nessas obras. 
Contudo, é inevitável identificar em nosso Tropicalismo uma simultânea realização e traição da rebelião romântica e do componente subversivo dos movimentos vanguardistas. De um lado, em um artista como Zé Celso, observa-se a firme convicção de estar prosseguindo uma cultura de resistência, à frente de seu Teatro Oficina, apresentado por ele como trincheira de um combate empreendido contra a massificação, a padronização do gosto e do comportamento pelo show-business. Glauber Rocha, por sua vez, sempre transmitiu a impressão de estar convencido de que fazia cinema para transformar o mundo. Em um artista como Hélio Oiticica, vemos algo mais radical ainda, a transformação da própria vida levada às últimas consequências. Por outro lado, na vertente mais voltada para a produção musical daquele movimento, depois dos momentos heroicos de confronto simultâneo com a repressão do regime militar e com o sectarismo da esquerda mais ortodoxa, a questão, de alguns anos para cá, parece reduzir-se a uma discussão sobre as estratégias de ocupação de espaços e crescimento no mercado de discos e de espetáculos, ou seja, a legitimidade do prestígio e sucesso comercial dessa ou daquela tendência da nossa música. Isso, reconhecidas as qualidades de um livro como Verdade Tropical de Caetano (que fala de acontecimentos e personagens dos quais estive suficientemente próximo para reconhecer seus relatos como verdadeiros), e exceções como, possivelmente, aquela de Jorge Mautner, sistematicamente anunciando-se como profeta e agente visionário da síntese entre rebelião romântica e transformação da sociedade.
Já o todo no qual se inserem as manifestações brasileiras aqui discutidas, ou seja, a contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60 e 70, ganhou uma bibliografia fragmentária e lacunar, apesar de enorme. Não existe um relato abrangente daquela interseção de cultura e política, das tentativas de transformar a vida e a sociedade. Ainda há uma história a ser escrita, de quando e como essa rebelião pareceu converter-se em revolução. Esse estudo mais detalhado mostraria que a derrota da contracultura aconteceu quando incorporou a si as características dos movimentos políticos revolucionários, a organização, o planejamento. Sob essa ótica, 1968 foi um ano com um movimento pendular: primeiro semestre de euforia (Maio francês, primavera de Praga), segundo semestre de revertério (da invasão soviética na Tchecoslováquia e o massacre de Tlatelolco em agosto até o nosso AI-5 em dezembro). No movimento norte-americano, o "racha" do SDS (Students for a Democratic Society) dividiu-o em uma ala pacifista e outra favorável à luta armada, que em seguida degenerou nas frações terroristas como os Wheatermen, anunciando o fim daquilo que parecia começar. Indício da desmobilização, os protestos de Chicago em agosto de 68, na convenção do Partido Democrata, liderados por Jerry Rubin e Abie Hoffmann, reuniram menos de um décimo dos 500.000 manifestantes da marcha pacifista sobre o Pentágono do ano anterior.
Perdemos, mas talvez estejamos recuperando, neste início de milênio, a perspectiva apocalíptica, do colapso iminente da sociedade burguesa sob forma de revolução, catástrofe ambiental ou crise econômica profunda. Contudo, adotando a distinção feita por Octavio Paz, no ensaio intitulado Revolta, Revolução, Rebelião (publicado na coletânea Signos em Rotação, Ed. Perspectiva), vê-se que agora há revoltas (entendidas como atividade pré-revolucionária): a de Chiapas, no México, é uma delas; outra, a dos nossos sem-terra; e outra, ainda, a forte mobilização toda vez que há reuniões de cúpula para discutir integração econômica. Mas não há nenhum movimento coletivo suficientemente amplo, transformador e ameaçador à ordem social, para ser considerado uma revolução. Nem radical o suficiente para ser visto como rebelião, adotando-se a visão de Paz do rebelde como o herói maldito, o poeta solitário, os enamorados que pisam as leis sociais, o plebeu genial que desafia o mundo, o dandy, o pirata. Para ele, rebelião também alude à religião. Não ao céu e sim ao inferno: soberba do príncipe caído, blasfêmia do titã encadeado. (…) A arte e o amor foram rebeldes: a política e a filosofia, revolucionárias. Assim, vemos que não há, hoje, nenhum movimento suficientemente amplo, universal, para ser considerado uma revolução, nem radical o suficiente para ser visto como rebelião. Isso, mesmo reconhecendo como correto o balanço feito em Verdade Tropical de Caetano: não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tampouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo; não tínhamos superado o Ocidente, não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. Mas as coisas nunca voltariam a ser como antes
Por mais que o Estado burocrático, representado pelo modelo soviético do "socialismo real", tenha sido uma perversão do socialismo e da revolução, tudo indica que, com seu fim, também houve um colapso equivalente da própria perspectiva de uma revolução. Pode ser, conforme bem apontado nos dois ensaios aqui publicados, citados acima, que as chances de transformação da sociedade estejam no retorno à rebelião romântica, invocando-se, no lugar de Marx e Lenin, a Baudelaire e Rimbaud como fontes de ideias subversivas. Se a paisagem à superfície não é instigante, sempre se pode tentar reconstruir esses férteis subterrâneos de onde brotaram todas as tentativas de negação ou transformação da civilização ocidental e da sociedade capitalista. 



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Claudio Willer (1940) é tradutor de Allen Ginsberg, Antonin Artaud e Lautréamont. Publicou Volta (1996). É um dos editores de Agulha, bem como presidente da UBE - União Brasileira de Escritores. Contatos: cjwiller@uol.com.br. Agulha Revista de Cultura # 13/14. Junho de 2001.

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