De diferentes modos, como exaltação ou crise, euforia ou depressão, a
questão da liberdade manifestou-se de modo enfático, exibindo a saturação da
dicotomia estalinismo-macarthismo imposta pela Guerra Fria. Mas isso não
aconteceu a partir do nada. Foi precedido por idéias. Houve uma realização de
produções teóricas e artísticas que a anteciparam, e que já estavam presentes,
conforme bem assinalado nos dois artigos desta edição de Agulha, na rebelião romântica, em sua
exacerbação por Rimbaud, e naquelas manifestações da vanguarda, a começar pelo
Surrealismo e por dada, que não se reduziam a uma tentativa de consagração do
moderno tomado como valor, da celebração da união entre arte e progresso
técnico-científico - uma união na qual, tal como concebida pelos futuristas ou
por nossos concretistas, invariavelmente a arte se torna a parte mais fraca,
caudatária da ciência e tecnologia, ao se pretender que incorpore uma ideia que
lhe é estranha, a de "progresso". Há, ainda, uma relação mais clara,
mais linear de influência, em obras publicadas na década precedente, nos anos
50, que buscaram a incorporação do marxismo a um pensamento crítico mais
radical e abrangente, ou então, um pensamento crítico que fosse além do
marxismo. Entre outras, Eros e Civilização de Herbert Marcuse
e A Vida contra a Morte de Norman Brown.
Tais antecedentes foram bem observados por Octavio Paz, em um texto
escrito em 1967, no calor dos acontecimentos (publicado, com pequenas
variantes, no ensaio Conjunções e Disjunções e na
entrevista Solo a dos voces): Nos últimos anos, dois
movimentos sacudiram o Ocidente: a revolta do corpo e a rebelião dos jovens. (…) As
duas são expressões - ou melhor, explosões - de uma corrente subterrânea que
nasce com William Blake e os românticos ingleses e alemães, se manifesta no
século XIX nas obras de alguns poetas como Rimbaud e Lautréamont, explode no
surrealismo e agora, misturada a outras correntes, se estende a todo o planeta.
Foi decisivo, diretamente determinante, também, o grupo de jovens
autores - Allen Ginsberg, William Burroughs, Jack Kerouac - que, através de uma
combinação de misticismo e desregramento, atualizou a rebelião romântica e
integrou a ela a contribuição das vanguardas europeias. Aquilo que, no início
dos anos 50, se apresentou como geração Beat, no final da mesma década já havia
extrapolado, passando de movimento literário a fenômeno social, até
transformar-se, a partir de 1965, em contracultura e geração hippie.
Várias foram, no Brasil, as expressões desse ethos rebelde-revolucionário.
Em boa hora, vêm sendo lembradas ou recuperadas, bastando observar que, na data
em que escrevo este artigo, abre-se mais um ciclo sobre o cinema
"marginal" ou da "boca do lixo" de 1968 a 75, e que os jornais
publicam comentários sobre o relançamento de Panamérica (Editora
Papagaio), o poderoso painel apocalíptico de José Agripino de Paula,
reconhecendo seu alcance profético. De algum modo, essas e outras obras e seus
autores se relacionaram com a Tropicália. Entre outras razões, por sua
capacidade de interagir e agregar outras manifestações, sua singularidade na
pluralidade. O tropicalismo está bem documentado através de ensaios e
depoimentos como Verdade Tropical de Caetano Veloso e Geração
em Transe de Luís Carlos Maciel. São leituras necessárias para a
geração que pode ter visto encenações recentes de Zé Celso Martinez Corrêa,
ouvido bastante Caetano e Gil, vistoDeus e o Diabo na Terra do Sol e Terra
em Transe de Glauber Rocha, mas não teve a chance de participar do
processo, ver de perto o contexto revolucionário reconstituído nessas
obras.
Contudo, é inevitável identificar em nosso Tropicalismo uma simultânea
realização e traição da rebelião romântica e do componente subversivo dos
movimentos vanguardistas. De um lado, em um artista como Zé Celso, observa-se a
firme convicção de estar prosseguindo uma cultura de resistência, à frente de
seu Teatro Oficina, apresentado por ele como trincheira de um combate
empreendido contra a massificação, a padronização do gosto e do comportamento
pelo show-business. Glauber Rocha, por sua vez, sempre transmitiu a
impressão de estar convencido de que fazia cinema para transformar o mundo. Em
um artista como Hélio Oiticica, vemos algo mais radical ainda, a transformação
da própria vida levada às últimas consequências. Por outro lado, na vertente
mais voltada para a produção musical daquele movimento, depois dos momentos heroicos
de confronto simultâneo com a repressão do regime militar e com o sectarismo da
esquerda mais ortodoxa, a questão, de alguns anos para cá, parece reduzir-se a
uma discussão sobre as estratégias de ocupação de espaços e crescimento no
mercado de discos e de espetáculos, ou seja, a legitimidade do prestígio e
sucesso comercial dessa ou daquela tendência da nossa música. Isso,
reconhecidas as qualidades de um livro como Verdade Tropical de
Caetano (que fala de acontecimentos e personagens dos quais estive
suficientemente próximo para reconhecer seus relatos como verdadeiros), e
exceções como, possivelmente, aquela de Jorge Mautner, sistematicamente
anunciando-se como profeta e agente visionário da síntese entre rebelião
romântica e transformação da sociedade.
Já o todo no qual se inserem as manifestações brasileiras aqui
discutidas, ou seja, a contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60 e 70,
ganhou uma bibliografia fragmentária e lacunar, apesar de enorme. Não existe um
relato abrangente daquela interseção de cultura e política, das tentativas de
transformar a vida e a sociedade. Ainda há uma história a ser escrita, de
quando e como essa rebelião pareceu converter-se em revolução. Esse estudo mais
detalhado mostraria que a derrota da contracultura aconteceu quando incorporou
a si as características dos movimentos políticos revolucionários, a
organização, o planejamento. Sob essa ótica, 1968 foi um ano com um movimento
pendular: primeiro semestre de euforia (Maio francês, primavera de Praga),
segundo semestre de revertério (da invasão soviética na Tchecoslováquia e o
massacre de Tlatelolco em agosto até o nosso AI-5 em dezembro). No movimento
norte-americano, o "racha" do SDS (Students for a Democratic
Society) dividiu-o em uma ala pacifista e outra favorável à luta armada,
que em seguida degenerou nas frações terroristas como os Wheatermen, anunciando
o fim daquilo que parecia começar. Indício da desmobilização, os protestos de
Chicago em agosto de 68, na convenção do Partido Democrata, liderados por Jerry
Rubin e Abie Hoffmann, reuniram menos de um décimo dos 500.000 manifestantes da
marcha pacifista sobre o Pentágono do ano anterior.
Perdemos, mas talvez estejamos recuperando, neste início de milênio, a
perspectiva apocalíptica, do colapso iminente da sociedade burguesa sob forma
de revolução, catástrofe ambiental ou crise econômica profunda. Contudo,
adotando a distinção feita por Octavio Paz, no ensaio intitulado Revolta,
Revolução, Rebelião (publicado na coletânea Signos em Rotação,
Ed. Perspectiva), vê-se que agora há revoltas (entendidas como atividade
pré-revolucionária): a de Chiapas, no México, é uma delas; outra, a dos nossos
sem-terra; e outra, ainda, a forte mobilização toda vez que há reuniões de
cúpula para discutir integração econômica. Mas não há nenhum movimento coletivo
suficientemente amplo, transformador e ameaçador à ordem social, para ser
considerado uma revolução. Nem radical o suficiente para ser visto como
rebelião, adotando-se a visão de Paz do rebelde como o herói maldito, o
poeta solitário, os enamorados que pisam as leis sociais, o plebeu genial que
desafia o mundo, o dandy, o pirata. Para ele, rebelião também
alude à religião. Não ao céu e sim ao inferno: soberba do príncipe caído,
blasfêmia do titã encadeado. (…) A arte e o amor foram rebeldes: a política e a
filosofia, revolucionárias. Assim, vemos que não há, hoje, nenhum movimento
suficientemente amplo, universal, para ser considerado uma revolução, nem
radical o suficiente para ser visto como rebelião. Isso, mesmo reconhecendo
como correto o balanço feito em Verdade Tropical de
Caetano: não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos sequer
encontrado uma face humana no socialismo existente; tampouco tínhamos entrado
na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo; não tínhamos superado o
Ocidente, não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia
sexual. Mas as coisas nunca voltariam a ser como antes.
Por mais que o Estado burocrático, representado pelo modelo soviético do
"socialismo real", tenha sido uma perversão do socialismo e da
revolução, tudo indica que, com seu fim, também houve um colapso equivalente da
própria perspectiva de uma revolução. Pode ser, conforme bem apontado nos dois
ensaios aqui publicados, citados acima, que as chances de transformação da
sociedade estejam no retorno à rebelião romântica, invocando-se, no lugar de
Marx e Lenin, a Baudelaire e Rimbaud como fontes de ideias subversivas. Se a
paisagem à superfície não é instigante, sempre se pode tentar reconstruir esses
férteis subterrâneos de onde brotaram todas as tentativas de negação ou
transformação da civilização ocidental e da sociedade capitalista.
***
Claudio Willer (1940) é tradutor de Allen Ginsberg, Antonin
Artaud e Lautréamont. Publicou Volta (1996). É um dos editores
de Agulha, bem como
presidente da UBE - União Brasileira de Escritores. Contatos: cjwiller@uol.com.br. Agulha Revista de Cultura # 13/14. Junho
de 2001.
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