segunda-feira, 31 de agosto de 2015

MARYSE CONDÉ | O mundo visível de Aimé Cesaire


Quando um martinicense, pai dos intelectuais antilhanos, recebe uma guadalupeana, rainha das letras, o encontro não pode decepcionar. Os 90 anos de Aimé Césaire foram celebrados no ano passado. Entre as manifestações de homenagens, um colóquio organizado por Maryse Condé se realizou na Universidade de New York e contava entre os convidados com Breyten Breytenbach ou Edouard Glissant. Nele foi apresentado o filme de entrevistas que Aimé Césaire concedeu a Patrice Louis, jornalista parisiense instalado na Martinica e autor de um A, B, C…ésaire (Ed. Ibis Rouge, 2003). No fim dos trabalhos, Maryse Condé, que divide sua vida entre os Estados Unidos e sua ilha natal, emitiu o desejo de rever o irmão mais velho em escritura que ela não revia há vinte anos. Embora próximas, as duas ilhas francesas do Caribe podem parecer separadas pela imensidão de um oceano…
O “Métro(politain)” foi encarregado da missão. No dia marcado, a escritora aterrissou no aeroporto, que deveria levar desde que possível o nome de Aimé Césaire, onde a esperava o mensageiro. Direção: a antiga sede da prefeitura de Fort-de-France, onde o poeta, há muito tempo eleito, conservou um escritório. Durante uma hora, os dois antilhanos nutridos de África trocaram de posição, a autora de Ségou se transmutando em entrevistadora do cantor da negritude - o jornalista tendo o papel do escriba … [Patrice Louis]

MC | Começarei por uma questão de atualidade. O Haiti ocupou um lugar considerável em sua obra. O que você pensa dos acontecimentos que se passam nele?

AC | E patético! A história do Haiti é gloriosa. Jamais esqueci que essa ilha conquistou a liberdade há duzentos anos: a liberdade não lhe foi dada. Os haitianos combateram para tê-la. Mas é preciso insistir no fato de que eles a conquistaram não somente para si mesmos mas para todos nós. Nós devemos lhes ser gratos por isso. No entanto, devo dizer que, esse episódio à parte, houve realmente momentos extremamente penosos, ao ponto que, apesar dessa liberdade conquistada, a desgraça quer que jamais os haitianos tenham podido achar uma organização razoável capaz de assegurar uma espécie de equilíbrio. Eles criaram uma péssima herança. É claro, eles conquistaram a liberdade, mas a sociedade não mudou de maneira tão profunda quanto se teria desejado. Primeiro, houve os brancos, os mestres escravagistas, e depois o povo… nós. Encontra-se agora a situação em que a classe intermediária que substituiu os brancos conservou muitos hábitos, e péssimos hábitos. Eles pegaram um pouco seu lugar e não desempenharam o papel que aguardávamos e esperávamos. O Haiti procura seu equilíbrio e nem sempre o achou.

MC | Você pensa que se pode escrever La tragédie de Jean-Bertrand Aristide como você escreveu La tragédie du roi Christophe?

AC | Conheço muito pouco Aristide. Fui ao Haiti em 1945. O presidente Lescaut estava então no poder. Isso me permitiu ver naquele momento Léon Lalo, Camille Broussan - Depestre era ainda muito jovem. Conheci essa geração. Eu estava lá justamente no momento em que André Breton passava e dava essa conferência sobre o surrealismo que teve muita influência. “Parece-me evidente que o destino desse país é inseparável de suas crenças e de seus ideais seculares, desde o instante em que estes aqui se mostrem ainda tão vivazes. O que lhe deu a força para suportar primeiro, e depois para sacudir todos os jugos, o que foi a alma da resistência, é o patrimônio africano que ele conseguiu transplantar aqui e fazer frutificar apesar de suas correntes.” (André Breton, 1945).
Após, segui a situação com atenção, mas não quis retornar ao Haiti no período de Duvalier. Lembro-me de que, durante minha estada, um tipo realmente muito interessante que conhecia todos os pavimentos do Cabo-Haitiano – esqueço seu nome, estou velho e perco a memória – me apresentou um senhor de ar reservado, um pouco tímido… Era o doutor Duvalier! Eu estava longe de pensar que um dia Duvalier ia se tornar o tirano que foi. E um pouco a mesma coisa para Aristide: eu o vi quando ele voltava dos Estados Unidos. Ele passou aqui, na Martinica. Até mesmo organizamos uma conferência em sua homenagem! Ele falou. Era um intelectual, um católico, antigo padre, cheio de reservas. Mas não senti nele uma doutrina. Vi sobretudo um homem muito reservado, talvez (não estou certo disso) um pouco voltado sobre si mesmo. Qual era sua doutrina? Não sei. O que ele queria fazer? Não sei. Qual era seu caráter e tinha ele a energia necessária para conduzir esse país que não é fácil? Não me dei bem conta disso, na época, mas estava lá para eu ver. E depois, rumores circulavam. Fiquei totalmente espantado quando me disseram que ele empregava métodos que acreditávamos desaparecidos para sempre. O que quer que seja, não me parece que Aristide tenha realizado grande coisa para o povo do Haiti. Se o progresso consistiu em substituir simplesmente os “tontons macoutes” pelas “quimeras”…

MC | O escritor haitiano Jean Métellus fala muito da maldição do Haiti. Você acredita nessa maldição?

AC | Não, mas há o peso da História. No fundo, Haiti – como as outras Antilhas, aliás, mas lá é muito mais trágico – não está inteiramente curado dos males herdados da época colonial, que era infelizmente uma época colonialista. O povo haitiano é inteligente, as elites são numerosas, mas o que há de notável, é que os espíritos mais brilhantes dessa elite emigraram. Eles estão no exterior e jamais encontraram seu lugar no Haiti. Lembro-me de ter conhecido vários deles quando eu estava no Liceu Louis-le-Grand, em Paris - os nomes me escapam às vezes e às vezes não tenho tanta vontade de pronunciá-los -, e quando os revi no Haiti, eles tinham o ar infeliz e davam a impressão de estar um pouco marginalizados.

MC | Ao olhar o estado do mundo, você pensa sempre que a poesia é “arma miraculosa” que pulveriza as barreiras que entravam as liberdades?

AC | Não sei se ela é miraculosa…

MC | Foi você quem disse.

AC | Para mim, a poesia é muito importante, ela é até mesmo fundamental. Com ou sem razão, sempre pensei que a arma para nós - não acreditávamos nisso suficientemente - é a cultura. Não digo a civilização, que é uma palavra muito do século XIX. Opunha-se então a civilização e a selvageria. Mas os etnólogos e a experiência nos ensinaram que há a cultura. Defino a cultura assim: é tudo o que os homens imaginaram para moldar o mundo, para se acomodar no mundo e para torná-lo digno do homem. E isso, a cultura: é tudo o que o homem inventou para tornar a vida vivível e a morte afrontável. Enquanto martiniquense, sempre pensei que havia alguma coisa que não era apreciada em sua justa medida na Martinica e nas Antilhas. Oh, isso não é uma crítica! Há a História, há os Estados. Fomos dominados pela idéia do escravagismo e era preciso lutar contra. Pertencemos à nossa época e é preciso admitir que a terceira República inventou uma doutrina que tínhamos adotado totalmente. Era a doutrina dita da assimilação, que consistia, para ser civilizado e não ser mais um selvagem, em renunciar a um certo número de coisas e em adotar um outro modo de vida. Tudo isso é completamente respeitável mas é muito século XIX e muito rápido, já no liceu - com teu irmão Auguste[1] - eu sabia então que isso era respeitável mas insuficiente. Essa doutrina não respondia mais às necessidades do século XX! Era o século XIX, era o romantismo, eram as ilusões do passado. Não é preciso ser ingrato: é evidente que isso rendeu enormes serviços, mas no mundo moderno, era necessária uma outra coisa. Eis porque fui muito rapidamente conquistado por uma idéia que não tinha então ainda todo seu lugar - mesmo se ela não era desconhecida – em nossos comportamentos e em nossas filosofias: a identidade. Quando os martiniquenses diziam “assimilação”, quando fui eleito deputado, eles me pediam para voltar da França com a Martinica departamento francês. Confesso que fiquei perturbado. Hesitei. E estou convencido, cara Maryse Condé, que aquela que está diante de mim, que revejo ainda sentada, refletindo, em seu escritório da Rua des Ecoles, com Alioune e Christiane Diop, me compreenderá. Hesitei. Finalmente - e isso foi um drama para mim - compreendi. A assimilação, isso significa a alienação, a recusa de si mesmo. E terrível… Mas você pensa então que as pessoas de Fort-de-France e dos subúrbios não entendiam isso totalmente: eles pronunciavam a palavra “assimilação” e lhe davam um sentido bem particular. Aceitei defender essa tese porque compreendi - e é evidente – que há as palavras mas também o que há por trás das palavras. Na realidade, o pobre coitado que vinha se pendurar em mim para me pedir a assimilação, para que a Martinica se tornasse um departamento francês, não é a assimilação que ele queria. Ele queria a igualdade com os franceses. Eis porque nós nos debatemos sobre a idéia de departamentalização, que não supõe forçosamente a assimilação: um departamento é uma medida de ordem administrativa. Mas, para mim, o equilíbrio essencial devia se fazer a propósito da identidade. Daí a importância da cultura. Retorno a tua pergunta: por que as palavras da poesia são “armas miraculosas”? Porque pensei que é de lá que, miraculosamente, devia vir a salvação. Isso era, para mim, o milagre.

MC | Você também disse que, enquanto houver negros sobre a terra, a negritude viverá. Isto é sempre verdadeiro?

AC | Sim, é perfeitamente verdadeiro. E eu o mantenho. O que isso significa? Tem-se falado muito nesse assunto. Para mim, a negritude é a cultura, a poesia. Por que? Amo muito tudo o que aprendi no liceu, na Sorbonne. Acredito muito nisso. Sou um grande admirador dos latinos e mais ainda dos gregos, mas sei também que há os egípcios e que os gregos e os romanos devem muito ao Egito, à Etiópia, a tudo esse mundo. Portanto, à África. Tomei consciência disso muito rapidamente. Atenho-me à cultura, e não a uma cultura tacanha, clássica, sancionada pelos exames e pelos diplomas europeus. É para mim uma coisa bem diferente. O que é a poesia? Porque me liguei a ela? Porque tenho sido poeta e surrealizante? Foi sem querer, eu não fiz de propósito; não foi para ser de uma escola que me aliei. E, quando André Breton me conheceu, dei-me conta de que, na realidade, eu praticava surrealismo sem saber… Mas por que? O me que me arrebatava na sociedade antilhana, era a aparência, a adaptação mais ou menos destra, todo um lado que eu não suportava, mas eu sabia que, no homem antilhano, havia outra coisa além dessa aparência. Há algo mais profundo que isso. E a poesia é a realidade profunda que aparece. Você sabe que no momento atual procura-se muito por tudo aquilo que está por debaixo da crosta terrestre. Ah então, o que eu queria fazer, era buscar o que há por debaixo da crosta mundana, acadêmica. O que o revela? Quando bruscamente você se depara com a imagem poética que brilha, preste atenção! Diria agora, não conheço muito bem a geografia - que é um geyser… Atenção para a imagem poética: ela é reveladora do mundo mais profundo. Eis porque ela é miraculosa.

MC | Você pensa que, graças à negritude, os martiniquenses e os guadalupeanos mudaram?

AC | Não, não peço que eles mudem, mas que tomem consciência de sua realidade profunda.

MC | Eles o fizeram?

AC | Sim, acredito. Acredito que houve progresso. Mas não é fácil, você sabe, não é de todo fácil. Acredito que a consciência de uma identidade fez grandes progressos entre nós.

MC | Olhe a África de hoje: guerras civis, lutas, doenças, destruições de povos inteiros. O que você poderia dizer a um jovem antilhano para que ele mantenha a fé na África?

AC | Penso, bem simplesmente, que é a juventude que deve dizer o que ela vai fazer. Fizemos uma experiência, mas tenho bastante consciência de que um ciclo terminou, e há um outro mundo a inventar. Para inventá-lo, é preciso fazer o balanço do que foi feito e do que existe. O tempo das ideologias sumárias está esgotado. Precisa-se de outra coisa. Precisa-se de uma outra África. Mas tenha certeza: precisa-se também de um outro mundo.

MC | Quem fará nascer essa outra África?

AC | É essa juventude. É a nova juventude. Lutamos pela descolonização e encontramos uma África dividida, um novo tribalismo. Veja o estado do Congo, da Libéria, da Costa do Marfim. Isso não é doloroso? Lembro-me de quando eu estava na Assembléia nacional com Houphouët-Boigny: nós o criticávamos com freqüência muito amistosamente. Houphouët, na realidade, tinha empreendido alguma coisa e acreditava ter obtido êxito nela. Talvez porque ele tivesse meios totalmente insuficientes não era forçosamente a boa direção, mas havia uma experiência. Houphouët-Boigny queria a marfinidade. Ele devia empregar meios diplomáticos que tiveram êxito enquanto permaneceu vivo, mas depois o problema, no entanto, não ficou resolvido. E o Senegal: sei de todas as dificuldades que Léopold Sédar Senghor encontrou…

MC | Você não respondeu à pergunta: como se pode manter a fé?

AC | Não conheço o método. Temos a fé ou não a temos, mas eu me recuso a perder as esperanças na África. Isso seria recusar ter esperança, tão simplesmente. É enraizado, fundamental. Conheço todas as desgraças que aconteceram. Não as nego, sou extremamente lúcido, mas recuso perder as esperanças porque perder as esperanças é recusar a vida. É preciso manter a fé.

MC | Quando se vê que Martinica e Guadalupe permanecem departamentos após um combate tal como o teu, o que nos pode fazer crer que amanhã será melhor?

AC | Você parece acreditar que somos prisioneiros desse hábito de circunstância. Mas isso foi um meio entre outros! É preciso levar em conta essa experiência, o que ela trouxe e, ao mesmo tempo, suas insuficiências. Quando os martiniquenses e os guadalupeanos (toda essa população que era um pouco como Haiti, sem recursos, sem moradia, sem trabalho) se tornaram os habitantes dos departamentos franceses, vi a desertificação da Martinica: essas pobres pessoas se precipitavam em direção a Fort-de-France e vinham me ver. E você acredita que era preciso ficar imóvel? O que fazer? Elas pediam indenizações, a previdência social etc. Progressos eram feitos do ponto de vista social na metrópole: e porque não entre nós? É isso que elas queriam, na realidade. Acredito que, efetivamente, isso ajudou, não se pode negá-lo. Progressos reais foram realizados. Pensava já um pouco, eu suspeitava - mas agora estou convencido disso - que era totalmente insuficiente. Era preciso começar por lá, mas é preciso agora ir mais longe e encontrar instituições novas que compreenderão o sentido profundo da história desses povos. De imediato, é preciso levar o homem antilhano a tomar suas responsabilidades diante da História. Isto não é simplesmente “vítima-vítima”! Não. Agora chegou o momento da responsabilidade. No fundo, Mme Girardin, ministra das Relações Ultramarinas, não estava tão errada quando ela nos disse a propósito do referendum de dezembro último: “Você começa a nos aborrecer! Responda: o que você quer?” Na minha opinião, isto foi muito mal conduzido, mas pouco importa. Em todo caso, isso indica que o homem antilhano está agora aos pés do muro. “Hein! Vá! Escolha!”

MC | Na ocasião do colóquio Césaire de dezembro último, em Nova Iorque, tratei do tema “Aimé Césaire e a América”. Confesso que tive muito trabalho. Você pode clarificar suas relações com os Estados Unidos, onde, contrariamente ao que se acredita, você passou várias temporadas. Em 1945, você encontrou lá André Breton. E descobri no livro de Patrice Louis que você foi à Flórida em 1946. Você voltou lá em 1987 por convite de Carlos Moore. A América é o quê para você?

AC | Não tenho resposta… Como não pensar na América? É assim mesmo um mundo sagrado, uma força, uma potência, uma experiência. Mas, não escondo de você, o que sempre me interessou na América - não sei se está ultrapassado -, são os negros americanos, o movimento negro. Isto era essencial para mim. Toda a nossa geração foi profundamente marcada por essa experiência. Quando eu era estudante de filosofia, era para nós um caminho diferente daquele que conhecíamos na França. A América era o negro moderno, mas que permaneceu negro. Era Langston Hughes, Countee Cullen, a Black Renaissance. Isso me parecia uma enorme experiência. Havia lá um movimento em profundidade.

MC | Você traduziu poemas de Sterling Brown. Por que?

AC | But I have forgotten all my english. [Aimé Césaire brinca de pronunciar seu inglês escolar.] I have learned at school when I was a boy. I can read a little but I can’t speak. I don’t understand[2].

MC | Em sua obra, há uma influência americana?

AC | Sim: a atitude diante da vida, diante da civilização. Senti que havia lá uma verdade, uma profundidade. Sair do academicismo francês. Liberdade, Igualdade, Fraternidade: muito bem. Mas por que jamais veio para nós a fraternidade? Jamais a tivemos. Temos a liberdade, como se pode tê-la no mundo. Houve um esforço para a igualdade. Mas a fraternidade, onde ela está? Acredito que não poderemos jamais tê-la, a fraternidade. Se você não me reconhece, porque quer que sejamos irmãos? Eu te respeito, reconheço-te, mas é preciso que você me respeite e me reconheça. E aí a gente se abraça. Para nós, a fraternidade é isto.

MC | Aimé Césaire teria um herdeiro?

AC | Jamais me coloquei esta questão. Não tenho nenhuma pretensão particular. Disse o que pensava, disse o que eu acreditava. Não sei se tenho ou não razão, mas permaneço fiel a isso e à África fundamental. Já me deformaram, transformaram, caricaturaram muito. Acredito simplesmente no homem. Não sou de maneira alguma racista. Respeito o homem europeu. Conheço sua história. Respeito o povo francês. Respeito todos os homens quaisquer que eles sejam, mas penso também que é preciso lhes fazer a lição e lhes dizer que o homem negro, isso existe, e que a ele também é preciso respeitar. Por que eu disse “negritude”? Não é de maneira alguma porque acredito na cor. Não é de maneira alguma isso. É preciso sempre ressituar as coisas no tempo, na História, nas circunstâncias. Não se esqueça de que, quando a negritude nasceu, na véspera da Segunda Guerra mundial, a crença geral, no liceu, na rua, era uma espécie de racismo subjacente. Há a selvageria e a civilização. De boa fé, todo o mundo estava convencido de só havia uma civilização, a dos europeus - todos os outros eram selvagens. É claro, há pessoas mais ou menos brutais ou mais ou menos inteligentes. Lisez Gobineau. Até mesmo em Renan, fiquei perturbado, encontrei páginas absolutamente extraordinárias. Bem entendido, a opinião pública deforma, vulgariza. Até mesmo os negros… Lembro-me ainda que, um dia em que eu estava perto da biblioteca Sainte-Geneviève, um grande tipo vem em direção a mim, um homem de cor. Ele me diz: “Césaire, gosto muito de você, mas há uma coisa que reprovo em você. Por que você fala assim da África? É um bando de selvagens. Não temos mais nada a ver com eles.” Eis o que ele me disse. É terrível! Até mesmo os negros estavam convencidos disso. Eles estavam penetrados de valores falsos. É contra isso que se tratava, e que se trata, ainda, de reagir. E depois, um belo dia, Léopold Sédar Senghor disse: “Estamos pouco nos lixando! Negro? Mas sim, sou um negro! E daí?!” E eis aqui como nasceu a negritude: de um movimento de humor. Dito de outra maneira, o que era proferido e lançado na cara como um insulto trazia a resposta: “Mas sim, sou negro, e daí?!”

MC | Neste ano aparece uma nova tradução inglesa dos Damnés de la terre, de Frantz Fanon. Para você, aquele que pareceu um visionário para as lutas do terceiro-mundo mantém sua pertinência e sua atualidade?

AC | Não segui Frantz Fanon porque era uma outra geração e porque ele foi nem mais nem menos do que meu aluno, portanto não o conheci muito bem. Mas sempre vi que era uma coisa extremamente importante. Há coisas fundamentais que são sempre verdadeiras. Agora, é preciso levar em conta as circunstâncias nas quais ele viveu. Para um antilhano, tudo não está em Frantz Fanon porque a vida quis que, o país colonizado, as Antilhas não fossem primordiais para ele. Toda a sua atividade, sua fé, sua energia, ele as pôs a serviço da Argélia, de um outro mundo. Sua obra é muito importante. Ela vale também para nós. O que ele pensava das Antilhas? Ele não teve o tempo de nos dizer de maneira muito completa. Em todo caso, é uma reflexão considerável… Concretamente, Fanon não pôde se ocupar da questão antilhana. Não é uma crítica. As Antilhas nunca estiveram prontas também para ouvir a mensagem dele. É uma crítica que eu faria aos antilhanos.

MC | Você pensa que essa globalização da qual se fala tanto afetará a literatura? Já, como disse o poeta Monchoachi, não se sabe mais onde começa e onde termina o Caribe. Segundo você, quais serão os efeitos desses exílios e dessas migrações?

AC | É por isso, precisamente, que é preciso manter a fé, e manter a negritude. No momento atual, a França é um pouco, em relação ao mundo, o que a Martinica é em relação à França. É isto a mundialização. Os franceses começam também a reagir. E isto é vital. Estou convencido de que, na mundialização e na uniformização, a identidade não está morta. Ela despertará. Não é tão fácil assim é claro, mas a Europa sentirá essa necessidade de se retomar, como as Antilhas sentirão a necessidade de se repersonalizar.

MC | Você escreve as suas Memórias?

AC | Minhas Memórias? Não, minha cara Maryse, não tenho tempo… Jamais tive a intenção de escrever as minhas Memórias. Não era meu objetivo essencial. Sempre reagi à minha maneira. Posso também dizer “Merda!”. É tudo. Isto não é uma obra. Há coisas que me são insuportáveis e que me parecem fundamentais. Não quis ser prefeito de Fort-de-France de maneira alguma, mas respondi ao que me parecia então uma necessidade, uma exigência. Aos 91 anos, estou realmente muito velho. O que eu queria é que a fé não estivesse perdida. Haverá outras expressões, elas serão diferentes mas a partir de uma coisa fundamental…

MC | E a qual você fundou …

AC | Não, tomei consciência simplesmente daquilo que sou e, acredito, daquilo que somos. Não conheço a forma que isso tomará exatamente, mas sei que isso é a coisa fundamental.

MC | Você tem uma fé que minha geração não tem. Nós somos, antes, desesperados porque temos a impressão de que nada foi feito, que Guadalupe e Martinica permanecem no mesmo estágio, que não há progressos profundos. Somos sempre departamentos, temos passaportes franceses… Como você faz para manter esse dinamismo que nós não temos?

AC | Dinamismo? Não tenho isso, não tenho mais. Mas acredito nisto. Isto é a fé, talvez, não? Não é forçosamente a razão…

MC | Não seria mais justo substituir a palavra “fé” pela palavra “esperança”?

AC | Tenho sempre uma esperança porque acredito no homem. Talvez isso seja estúpido. O caminho do homem é cumprir a humanidade, tomar consciência de si mesmo. Velhas lembranças retornam a mim: em Louis-le-Grand tínhamos professores muito admiráveis: Louis Lavelle, uma espécie de existencialista muito cristão, e o padre Cresson, um kantiano que escreveu um livro pela editora Armand Colin. Eu não sou kantiano; o kantismo é muito ocidental. Para ele, a obra de Kant se reduz a três questões fundamentais: “Quem sou eu?” (nos bancos da Sorbonne, aconteceu-me de me perguntar isso, e compreendi muito bem quem eu era); “Que devo fazer?” (isso é a moral, uma questão que coloco a mim mesmo); e “O que me é permitido esperar?” Ele não disse: “O que eu espero?” E para mim este último ponto é tudo.

NOTAS
1. Auguste Boucolon, irmão mais velho de Maryse Condé, condiscípulo de Aimé Césaire e primeiro agregado de gramática guadalupeana.
2.  “Mas eu esqueci todo o meu inglês. […] Aprendi na escola quando garoto. Sei ler um pouco mas não sei falar. Não entendo.” [N.T.]




***


Esta entrevista foi publicada originalmente na revista Lire (Paris, junho de 2004). Maryse Condé (Guadalupe, 1937) é uma notável romancista, autora de livros como Heremakhonon (1976), Ségou (2 volumes, 1984-85), Desirada (1997), e Célanire cou-coupé (2000). A nota de apresentação está assinada pelo jornalista francês Patrice Louis, autor de um livro fundamental intitulado A B C…ésaire (2003), principal retrato crítico da obra e do pensamento do poeta Aimé Césaire (Martinica, 1913). A tradução da entrevista esteve a cargo de Éclair Antonio Almeida Filho. Contato com Patrice Louis: patrice.louis-atv@wanadoo.fr. Agulha Revista de Cultura # 53. Setembro de 2006.

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