A ensaísta e tradutora Eliane Robert Moraes
acaba de publicar um volume intitulado Lições de Sade. Ensaios sobre a
imaginação libertina (Ed. Iluminuras, 2006). O livro reúne ensaios
sobre o tema, que foram publicados entre 1999 e 2005 na imprensa brasileira.
Eliane já havia publicado um outro livro sobre o “divino marquês”, Sade
– A felicidade libertina (Imago, 1994), além de haver traduzido
Georges Bataille (História do olho, Cosac & Naify, 2003). Neste
nosso diálogo conversamos um pouco sobre os dois autores, considerando suas
afinidades. [FM]
FM Diversas são as maneiras com que muita gente se aproxima de Sade.
Lembro aqui uma declaração de Luis Buñuel, ao dizer que se sentiu
essencialmente atraído pelo pensamento ateu. Em teu caso, o que primeiro te
chama a atenção nesta ainda hoje controversa figura?
ERM O que mais me atrai em Sade é essa “ruptura com o mundo” que sua
literatura opera, na tentativa de despertar e colocar em jogo virtualidades
humanas ainda insuspeitas, valendo-se da imaginação para aceder aos domínios do
impossível. Por isso mesmo, minha leitura da literatura sadiana sempre
privilegia a força imaginativa, fazendo eco a uma conhecida passagem das 120
journées que afirma: “toda felicidade do homem está na imaginação”.
Assim, busco compreender o pensamento de Sade por dentro, a partir de seus
próprios princípios, acreditando que ele funda um domínio único de expressão,
alheio às exigências de coerência, sejam elas formais ou conceituais, sejam
elas literárias ou filosóficas. Meu lugar de leitura está comprometido, antes
de mais nada, com a fantasia do escritor.
FM Em um breve comentário acerca do livro Sade contra o Ser
Supremo, de Philippe Sollers, observas que os textos que compõem esta obra,
"escritos em tom de manifesto, eles pecam pela superficialidade com que
abordam as diferenças entre as idéias do marquês e outros pensamentos, o que,
por certo, exigiria um rigor do qual o autor julga poder prescindir". Eu
pediria aqui um detalhamento maior sobre a referida superficialidade, bem como
a tua ideia do significado de Deus para o marquês.
ERM Nesse livro, Sollers tenta dar continuidade às ideias sadianas,
substituindo a refutação de Deus pela recusa do culto ao Ser Supremo, tão caro
aos revolucionários de 1789. Para tanto, ele coloca o sistema sadiano em
oposição aos grandes pensamentos dos séculos XIX e XX, como os de Marx, Freud e
Sartre que, segundo sua visão, ainda seriam tributários da “religião” laicizada
e estatal instaurada depois da Revolução Francesa. Ora, além de ser um recurso
anacrônico, Sollers propõe como desdobramentos lógicos da ideia de Ser Supremo
os complexos conceitos de “Espírito”, “Sujeito Transcendental”, “Coisa em Si”
ou “Inconsciente”, sem atentar às particularidades que os distinguem entre si.
Trata-se de uma atitude intelectual apressada, equivocada e leviana.
Como
proponho no texto “O gozo do ateu”, acredito que o ponto de partida do ateísmo
de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre; o homem, lançado ao mundo
como qualquer outro animal, está “acorrentado à natureza”, sujeitando-se como
um “escravo” às suas leis; “hoje homem, amanhã verme, depois de amanhã mosca” –
tal é a condenação que paira sobre a “infeliz humanidade”. Ciente de que as
religiões nascem desse triste destino, o devasso sadiano prefere admiti-lo sem
escapatórias, procurando superar esse desamparo primordial pela via do
erotismo. A volúpia, ensina o libertino, é o único modo que a natureza oferece
para atenuar o sofrimento humano.
FM Há um largo capítulo de teu livro dedicado especificamente à
libertinagem em sua perspectiva filosófica. Que referências podemos encontrar,
no Brasil, em termos de percepção, prática e desdobramento dessa linhagem
voluptuosa?
ERM Há alguns grandes leitores de Sade no Brasil, mas estão dispersos.
De modo geral, podemos encontrar um traço sadiano em grande parte dos autores
que se vincularam, de uma forma ou outra, ao pensamento surrealista. Penso em
Jamil Almansur Haddad, em Claudio Willer, em Contador Borges, em Jorge Mautner,
no Zé Celso e no Teatro Oficina, só para citar alguns dos nomes mais
significativos. Entre eles destaca-se a figura singular de Roberto Piva, que
tem um poema genial intitulado “Pornosamba ao Marquês de Sade”.
FM Há também aquele poema intitulado “Homenagem ao Marquês de Sade” (Piazzas,
1964), em que ele conclui dizendo que Sade o dilacera e protege “contra o surdo
século de quedas abstratas”, o mesmo século que Apollinaire previra ser
dominado por Sade. Onde mais está presente Sade, confirmando-se tal previsão,
em um raro como Roberto Piva e sua obra tecida em “constante vigília”, ou no
acento equívoco de um Serge Bramly em seu romance O terror na alcova?
ERM São dois opostos. Enquanto o poema de Piva é iluminado, ampliando
a visada do marquês, o romance de Bramly é definitivamente equivocado. Ao
colocar lado a lado o prisioneiro Sade e alguns dos personagens de La
Philosophie dans le boudoir, Bramly reduz o sistema sadiano às
ocorrências biográficas do autor. Com isso, O terror na alcova acaba
por confundir a condição de vítima com a de libertino; equívoco inadmissível
considerando-se que é justamente a partir da contraposição entre essas duas
figuras – tipos absolutos, irredutíveis um ao outro, como são Justine e
Juliette – que Sade projeta sua ficção de um homem completamente livre.
Com esses
pressupostos em mente, não é de estranhar que Bramly manifeste outro senso
comum, este ainda mais grave, que insiste em considerar o marquês como
precursor da suposta “liberdade sexual” contemporânea. Tudo se passa como se o
liberalismo político tivesse enfim conquistado tal estágio de garantias
individuais que, hoje, qualquer “indivíduo normal” seria capaz de realizar seus
desejos sexuais sem o menor constrangimento. Tudo se passa como se a insaciável
erótica de Sade pudesse ser substituída pelas prateleiras de uma sex
shop, reduzindo toda fantasia à circulação das mercadorias.
FM Tradutora de Bataille que és, isto me leva a indagar sobre o
excesso ou recusa à abstinência nos dois autores. Como estabelecer parâmetros
entre o êxtase e a emoção sexual considerando o que defendiam ambos, Sade e
Bataille? Em que exatamente se distinguem?
ERM Valendo-me de uma concepção do próprio Bataille, acredito que se
trata aí de escritores cuja literatura se caracteriza por expressar uma
“hipermoral”. Ou seja, trata-se de um pensamento que busca “descobrir na
criação artística aquilo que a realidade recusa”. Ao realizar tal exploração
fora das dimensões éticas ou morais, esses autores abrem mão de todo e qualquer
escrúpulo da tradição humanista para discorrer sobre aquilo que nega os
princípios desse mesmo humanismo. Para tanto, eles se impõem a tarefa de ouvir
a voz dos algozes, considerando seus motivos, e até mesmo a sua falta de
motivos, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse
sentido, podemos advogar mais uma aproximação do que uma distinção entre Sade e
Bataille.
FM Não havia acaso no Surrealismo um tipo de sublimação do amor, uma
libertinagem poética cuja referência a Sade estava longe de integrá-lo ao
viver?
ERM Com certeza. Há em boa parte dos autores surrealistas uma certa ideia
de redenção pelo amor que não se encontra, jamais, em Sade. Acho que a leitura
surrealista do “divino marquês” concentrava-se, sobretudo, nos domínios do
desejo. O que atraía os membros do grupo em direção ao pensamento sadiano era
justamente a onipotência do desejo, que os escritos do marquês não só
cultivavam como também exaltavam nas dimensões mais imperiosas, radicais e
violentas. Aos olhos dos surrealistas, essa exaltação se revelava ao mesmo
tempo lúcida e irracional, reafirmando a relação entre erotismo e liberdade que
estava no centro das convicções do grupo.
FM Referindo-se às aspirações do Surrealismo, disse certa vez Robert
Desnos que estas haviam sido formuladas essencialmente por Sade, por ter sido
ele primeiramente a entregar “a vida sexual integral como base para a vida
sensível e inteligente”. No posfácio do 2º vol. da Poesia Completa de Roberto
Piva, observas a insensatez de uma escrita “que insiste sem cessar nas próprias
obsessões, reiterando o mote transgressivo para deixar a descoberto o princípio
de subversão que une definitivamente o sexo à poesia”. Nos dois casos, até que
ponto interessa distinguir perdas e ganhos de linguagem, ocasionados justamente
pela obsessão de um projeto maior que extrapola os domínios da própria
linguagem?
ERM Acredito que haja aí uma contradição produtiva que vale tanto para
os escritos dos surrealistas franceses quanto para a poesia de Piva. Num dos
artigos incluídos em La part du feu, Maurice Blanchot toca nesse
ponto ao dizer que, apesar das suas furiosas invectivas, “o surrealismo aparece
principalmente como uma estética e se mostra primeiramente ocupado com as
palavras”.
Por trás
dessa aparente inconsequência estaria a proposta de "liberar" as
palavras que os surrealistas teriam realizado em duas direções. De um lado, na
tentativa de aproximar a linguagem e a liberdade humana até o ponto de
transformá-las na mesma coisa: "penetro na palavra, ela guarda minha marca
e é minha realidade impressa; adere à minha não aderência". De outro, no
reconhecimento de que havia uma espontaneidade própria das palavras, de tal
forma que elas poderiam se liberar por si mesmas, independentes das coisas que
expressam, agindo por conta própria e recusando a simples
transparência.
Ora,
persistindo nessa ambiguidade, os surrealistas foram levados tanto a desprezar
a escrita em função da vida quanto a afirmar sua importância no próprio ato de
viver: "escrever é um meio de experiência autêntica, um esforço mais do
que válido para dar ao homem a consciência do sentido de sua condição".
FM Em um comentário ao tabelião Gaufridy, disse Sade: “são minhas
desgraças, meu descrédito, minha posição que aumentam meus erros, e enquanto
não for reabilitado, tudo de mal que acontecer nas redondezas será sempre
atribuído à mesma pessoa: o marquês de S.”. Porém até que ponto
Sade teria se beneficiado desse estigma, de tal maneira que sua reabilitação
pudesse vir a ser um obstáculo na influência de sua obra?
ERM Não acredito que tal estigma tenha resultado em benefício. Antes,
penso que ele serviu para transformar Sade em uma “marca”. Vale lembrar que não
é nada pequeno o aparato pornográfico que leva seu nome, abrangendo revistas,
filmes e, ainda, as edições do gênero que seus livros acabaram por inspirar. No
perverso mundo contemporâneo, caracterizado por uma vertiginosa circulação de
mercadorias, o marquês transformou-se até mesmo em marca de um champanhe francês,
tornando-se objeto de incansáveis e descabidos apelos de marketing!
Apesar disso, a obra sadiana sobrevive a seu estigma e, se isso acontece, é
porque o pensamento de Sade permanece como um grande enigma.
FM Em um extraordinário estudo sobre Sade, Alexandrian destaca que “o
ideal da heroína sadiana é a puta transcendente”. Já me dirás se estás de
acordo, porém eu principalmente gostaria que comentasses algo sobre a
composição de personagens na obra de Sade, inclusive atentando para a mescla de
características que buscava junto ao próprio ambiente social de seu tempo.
Penso aqui também no mesmo Alexandrian ao dizer que “a história fornece a Sade
um quadro negro que este reveste com brilhantes ornamentos de estilo”.
ERM Concordo em gênero e número. Muitos intérpretes da obra sadiana, ofuscados pela
imaginação delirante do marquês, deixam de atentar para o fato de que o
romancista propõe-se também como historiador. Como esquecer a paixão de Sade
pela história? Ora, não define ele como “historiadoras” as quatro prostitutas
que relatam as paixões das 120 journées a partir de sua
experiência nos bordéis parisienses?
É como se
não pudéssemos aceitar que o “inconcebível” da literatura tivesse sido
realmente concebido na história; em que medida isso ocorre, não sabemos; porém,
as histórias dos libertinos setecentistas provam que não foi Sade quem
introduziu a crueldade na libertinagem. Ele é o primeiro a alertar disso,
insistentemente, recorrendo de forma exaustiva a exemplos históricos. A
questão, certamente, não é descartar a prodigiosa imaginação de Sade; mas,
abordar sua obra a partir da história pode trazer surpresas para os estudiosos
que, muitas vezes, ignoram tal associação. Como
ignorar, por exemplo, a relação entre a Sociedade dos Amigos do Crime e as
inúmeras sociedades secretas libertinas que se formam na França a partir do
século XVIII?
FM O epíteto “Divino Marquês” me recorda uma passagem do Ecce
Homo, em que Nietzsche defende que “o divino não consistiria em chamar a si
a punição mas os erros”. Para além da incitação à liberdade total, estaria Sade
empenhado em descarnar a tragédia de uma sociedade cuja hipocrisia confundia
virtude e vício? Neste sentido, seria o oposto de Restif de La Bretonne,
considerando que este declarava venerar “a Virtude no Vício”?
ERM Aqui também temos um par de opostos. Nosso aristocrático e erudito marquês não vê nada
que lhe interesse em Restif, marcando de forma bastante clara sua distância com
o tipo de literatura produzida por este plebeu. Já em 1783, antes mesmo de
escrever seu primeiro romance, encarcerado em Vincennes, Sade envia uma carta à
marquesa encomendando-lhe alguns livros, e adverte: “Sobretudo não compreis
nada de Restif, pelo nome de Deus! É um autor da Pont-Neuf e da Biblioteca
azul, de quem seria estranho que imaginásseis enviar-me qualquer coisa”.
A
hostilidade, porém, não é unilateral. E, se as palavras de Sade podem sugerir apenas
uma avaliação estritamente literária, as críticas de Restif ao autor de Justine mostram
que estão mesmo em jogo diferentes concepções de libertinagem: “Ninguém ficou
mais indignado que eu com as obras do infame Sade”, diz ele no prefácio a l’Anti-Justine.
FM Disse Sade: “O homem nasce para gozar e só através da libertinagem
conhece os mais doces prazeres da vida: só os tolos se contêm”. Observando a
maneira como Octavio Paz foi paulatinamente se distanciando de Sade, não
haveria aí uma maneira de preservar-se a si mesmo, distanciando poeta e
pensador, escapando de toda sorte de exceção ou capricho?
ERM É possível que sim. Passado um quarto de século desde a publicação
de seu primeiro ensaio sobre o marquês, Paz realmente distancia-se de suas
proposições iniciais, voltando um olhar bem menos benevolente ao que ele chama
de “incômodo interlocutor”. Sua visada concentra-se então em outro princípio do
sistema libertino, precisamente aquele que traduz “um mais além erótico”: a
negação universal. Ou, numa só palavra: o Mal. Ora, ao investigar a exigência
de negação que orienta a ficção sadiana, o escritor mexicano realmente
assume mais sua persona de pensador do que um poeta. Mas,
cumpre dizer, ele nunca perde o vigor da palavra.
FM Esquecemos algo?
ERM Tomara que sim! Dessa forma, deixamos uma nova conversa no
horizonte.
***
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta,
tradutor e editor. Entrevista realizada em agosto de 2006. Contato com Eliane
Robert Moraes: elianermoraes@uol.com.br. Agulha
Revista de Cultura # 53. Setembro de 2006.
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