Há poucos
dias, no encerramento de um encontro literário, um professor de literatura
comentava o enorme estrago provocado por nosso ensino de língua e literatura,
ao desestimular a leitura. Mostrava os bons resultados obtidos através da
introdução de procedimentos criativos e abordagens menos formais no ensino. Há
um ano, ouvi um diagnóstico semelhante de Arnaldo Niskier, em outro seminário
do qual participava. O texto a seguir é uma versão ou adaptação do que
publiquei recentemente na revista Xilo, por sua vez baseado em
palestra de 1998, em um seminário sobre crítica. Ambos, o texto publicado e a
palestra, receberam manifestações de aprovação. Ninguém, nem eu, nem os demais
conferencistas aqui mencionados, está dizendo nada de inédito, ou fazendo
qualquer revelação surpreendente. Agora mesmo, foram publicados resultados de
avaliações promovidas pelo Ministério da Educação, mostrando que os estudantes
estão piorando em sua capacidade de articular raciocínios por causa da perda do
hábito da leitura. Pergunto, diante disso: SE ESTAMOS TODOS DE ACORDO,
ENTÃO, ATÉ QUANDO, ATÉ ONDE PROSSEGUIREMOS, VENDO FORMAR-SE UMA NAÇÃO DE
DESCEREBRADOS?
Mesma coisa com relação à crítica. A seguir,
reproduzo trechos da diatribe de José Paulo Paes sobre o estado atual da
crítica literária. Cito o que Leila Perrone-Moisés escreveu em um livro
recente. Também recentemente, Roberto Schwarz deu declarações sobre crítica, na
mesma linha. Ao que parece, dez em cada dez intelectuais de renome estão de
acordo a respeito disso, de que houve uma grave queda de qualidade nas
mediações entre a literatura e seus possíveis leitores. Mas há um detalhe, que
ninguém, ao que parece, quer comentar ou discutir: A CRÍTICA SÃO
ELES! Se fossem às redações, sugerir ou explicar o que deve ser feito,
acredito que seriam ouvidos. Ainda pretendo reapresentar este texto, em
separata ou capítulo de livro, precedido por uma abertura como esta, em tom de
chamamento dos intelectuais a suas responsabilidades.
1. A DÉCADA DE 80 E O FORMALISMO | Reproduzi, em minha coletânea de poemas de Allen Ginsberg (Uivo, Kaddish e outros poemas, L&PM, na edição ampliada de 1999), declarações do poeta Philip Lamantia sobre as razões da resistência à poesia Beat nos Estados Unidos: uma escrita de natureza analógica, metafórica, não-realista, foi praticamente interditada nesses cinquenta últimos anos, mesmo sendo uma prática corrente, quase um hábito na França. E, ainda:mesmo tolerando uma vanguarda à margem - Joyce, Faulkner, talvez Burroughs hoje - a consciência literária americana se fixou no realismo e no positivismo.
1. A DÉCADA DE 80 E O FORMALISMO | Reproduzi, em minha coletânea de poemas de Allen Ginsberg (Uivo, Kaddish e outros poemas, L&PM, na edição ampliada de 1999), declarações do poeta Philip Lamantia sobre as razões da resistência à poesia Beat nos Estados Unidos: uma escrita de natureza analógica, metafórica, não-realista, foi praticamente interditada nesses cinquenta últimos anos, mesmo sendo uma prática corrente, quase um hábito na França. E, ainda:mesmo tolerando uma vanguarda à margem - Joyce, Faulkner, talvez Burroughs hoje - a consciência literária americana se fixou no realismo e no positivismo.
Nunca
duvidei de que essa denúncia do positivismo, realismo e cientificismo pudesse
ser projetada no panorama brasileiro. Sabia disso em 1983, quando um amigo,
recém-matriculado em Letras na PUC (Universidade Católica de São Paulo),
mostrou-me o que estavam a ensinar-lhe, uns exercícios parecidos com álgebra e
lógica simbólica. Ao bater os olhos naquelas fórmulas e diagramas, lembrei-me
de quando, décadas atrás, havia estudado e lecionado Psicologia. No fundo, a mesma
coisa, sessões de aplicação e legitimação científica dessa ou daquela
ramificação do positivismo, na versão empirista em Psicologia, nas modalidades
formalistas em Letras. Essas, reflexo do que Octavio Paz, em 1970, denominou deimperialismo
da linguística (em Teoría y Práctica de la Traducción). E
do que Alfredo Bosi, em 1978, chamou de ostentação eufórica do código (emO
Ser o Tempo da Poesia).
No final
daquela década, fui convidado à mesma PUC, ao mesmo curso de Letras, para um
debate, daqueles realizados na abertura dos períodos letivos. Dirigi-me ao
anfiteatro como a uma arena, para criticar a formação de uma geração de
aplicadores de fórmulas e diagramas treinados para, por sua vez, burocratizar
uma subsequente geração destinada a ensinar a mesma coisa, do mesmo modo, em
colégios e faculdades. Farpa adicional, observei que na França, na Europa em
geral,primeiro se lê Rabelais, depois se estuda
Bakthine. Aqui, não: Rabelais ou Dostoievski aparecerão aos olhos do estudante
para ilustrar o que vêm a ser carnavalização e polifonia. E Camões, Vieira,
Machado, Lima Barreto, Drummond, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Dalton
Trevisan e Rubem Fonseca terão algumas de suas páginas lidas, devidamente
xerocopiadas, em função das chances de "cair" em provas ou no
vestibular.
Surpresa: os
presentes, professores da PUC, concordavam comigo! Partilhamos críticas à
instrumentalização do ensino e pesquisa a serviço desse ou daquele modelo,
apresentado como monopólio da verdade científica. Repudiamos, todos, a troca de
lugar entre metalinguagem e linguagem, método e objeto, carro e os bois. A
questão era o que fazer, como ensinar literatura após a vigência do que eles
mesmos denominavam de cientificismo.
Adiantaram,
aquelas abjurações da ortodoxia? Às vezes acho que não. Outro dia, um estudante
de Letras, desta vez da USP, ao ver algo que havia preparado sobre biografias
de escritores, comentou que, em seu curso, ao examinarem Camilo, a orientação
era ater-se exclusivamente ao texto. Não podiam associar o descabelamento de
suas narrativas, o pathos, a exasperação, a seu comportamento e
dramas pessoais. É redutor explicar a obra de Camilo por neuroses e tragédias,
mas é igualmente empobrecedor fazer de conta que não existiram. Antes que
alguém venha lembrar que tragédias pessoais aconteceram depois, são
posteriores a obras dele, direi que um tema ao qual tenho me dedicado é o do
autor como personagem de si mesmo. Os modos como realiza sua
"persona" e encarna o que leu e escreveu. Ninguém melhor do que
Baudelaire para ilustrá-lo, com sua coerência entre o escândalo de As
Flores do Mal e os cabelos pintados de verde, insultos a burgueses
etc.
A vida,
lugar de encontro entre texto e contexto, interessa ao ascender à
literariedade, traduzida ou antecipada pela criação. García Lorca haver sido
mártir, poeta assassinado, está dentro da sua poesia. Ao ler
Artaud, lemos o internado em manicômios, inclusive por ele fazer questão de nos
lembrar disso. Da aura de Abissínias míticas até os gabinetes de trabalho,
passando por inumeráveis bares e casas noturnas, permanece algo, a iluminar o
que seus frequentadores escreveram. por isso, descartar biografias torna a
leitura menos empolgante. James Joyce por Richard Ellman ou García Lorca por
Ian Gibson são necessários para a melhor compreensão desses autores. Bons
estudos biográficos não conflitam com a ideia de autonomia do texto literário e
da linguagem.
2. A DÉCADA DE 90 E A CRÍTICA DA CRÍTICA | Tentativas de sistematização da literatura e artes são inevitáveis e
necessárias. Não é possível a criação ingênua, a partir do nada. Na
modernidade, a metalinguagem impulsiona a linguagem, reflexão produz criação.
Isso foi dito com clareza por Octavio Paz, em seu livro de entrevistas Sólo
a dos voces, ao apontar a relação Eliot-Pound como caso exemplar de diálogo
entre crítico e criador: Na época moderna, a crítica funda a
literatura. Na Idade Média, a religião funda a sociedade. Porém, desde que a
burguesia fez a crítica do mundo sagrado, o fundamento da sociedade é a
crítica. O mundo do passado estava assentado em verdades imutáveis,
invulneráveis à crítica. Agora, o fundamento do mundo é a crítica. No
entanto, ao se fazer a criação servir a um corpus teórico, de
modo igual à experimentação em relação à teoria científica, temos, não o conhecimento
que produz, mas que obscurece. Diante da insuficiência, por arcaísmo, do ensino
e crítica do tipo canônico, a solução não é injetar-lhe doses cavalares de
positivismo.
Não endosso,
de modo algum, críticas generalizadas à universidade. Quem quiser abrir fogo
contra estruturalismos e formalismos, ou dirigir a mira a esse ou aquele
expoente acadêmico, tem que de apresentar propostas alternativas. Em caso
contrário, o que disser não passará de mais um chamado ao obscurantismo, à
supressão do que as universidades têm de produtivo. A propósito, vêm da área
acadêmica, feitas por scholars, algumas contribuições recentes à
crítica da crítica. Uma delas, o livro de Leila Perrone-Moisés, Altas
Literaturas (Companhia das Letras, 1998), trata da simbiose moderna
entre crítico e criador. Reexamina tendências da crítica no século XX,
esse corpus fragmentado desde os confrontos, há duzentos anos,
entre românticos e clássicos, e, há cem anos, entre
simbolistas-esteticistas-decadentistas e realistas-naturalistas.
Contudo,
nesse livro há diagnósticos de crise, não só da crítica, mas da literatura
toda, que me parecem um tanto apocalípticos. A autora chega a indagar: a
literatura fundamentada em valores, tal como concebida pelos modernos, ainda
existe? Vê queda de prestígio da criação de qualidade, da
invenção: A literatura, que durante séculos ocupara um papel relevante
na vida social, tornou-se cada vez menos importante. E, ainda: O
desafeto progressivo pela literatura é um fenômeno internacionalmente
reconhecido. (...) A literatura não desapareceu, mas recolheu-se a
um canto.
Haveria,
portanto, crise do valor literário, determinado com muita
facilidade, e uma quantidade equivalente de equívocos, pelo academicismo
classicista, e com dificuldade pelos novos paradigmas. No meu entender, isso
não acontece em um vazio, em uma pós-modernidade que se segue à vigência do
que, acima, denominei de cientificismo. Já estava embutida naquele momento da
história dos estudos literários. Há décadas, Gore Vidal acusava a estruturalistas,
então em fase de implantação no ambiente acadêmico americano, de jogarem no
mesmo saco Sidney Sheldon e Joyce, banalidades e grandes obras.
Contudo, são
oportunas advertências feitas em Altas Literaturas, quanto ao risco
de, no lugar dessas teorias, vir algo ainda pior, o estudo de literatura
confinado a um capítulo dos "estudos culturais" ou da sociologia dos
multimeios, e, pior, com o exame do suposto conteúdo ético ou antiético da
obra, por essa ser mais ou menos politicamente correta. Isso é censura querendo
voltar pela porta dos fundos. Se há uma obrigação do crítico, independente da
filiação, em qualquer nível, jornalístico ou acadêmico, é, em primeiro lugar,
ser um militante da liberdade de expressão, mesmo não sendo este um tempo de
publicações suprimidas e páginas da grande imprensa obrigadas a publicar
receitas e versos de Camões (por sua vez, até há pouco, estudado em colégios em
edições expurgadas de trechos "perigosos" por criticarem o
absolutismo e elogiarem o paganismo). O Marquês de Sade, Baudelaire,
Lautréamont, Henry Miller, Ginsberg e William Burroughs devem ser vistos, não
como excentricidades, mas como protagonistas de momentos decisivos, que nos
possibilitam dizer e fazer, hoje, aquilo a que temos direito. Nunca é demais
repetir que o maníaco do parque, meninos-assassinos norte-americanos etc., não
se inspiraram em qualquer um desses autores. (1)
3. MAS, AFINAL, DO QUE É MESMO QUE ESTAMOS FALANDO?
| O termo "crítica" serve para designar
desde estudos especializados até resenhas jornalísticas. Haveria, contudo,
relação entre o que se passa em salas de aula e instituições acadêmicas, e o
que sai sobre literatura em jornais e revistas? O que é publicado nos
respectivos cadernos da Folha de São Paulo, Jornal da Tarde, O
Estado de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil,
revista Veja, isso tem algo a ver com crítica, entendida como
estudos literários, ou com o tipo de parceria na criação comentada acima,
quando citei Octavio Paz?
Outrora,
jornalismo e literatura não eram dissociados. Há pouco mais de um século, Zola
e Machado de Assis ganhavam a vida colaborando em jornais que, por sua vez, iam
publicando capítulos de suas obras. O trânsito entre ambos ainda era tranquilo
nos anos 50-60, tempo de Sérgio Milliet e suas colaborações em rodapé. Hoje, a
área acadêmica, envolta em seus impasses, tem pouco a oferecer ao jornalismo
cultural. Este, por sua vez, merece o diagnóstico sintético feito por José
Paulo Paes, em um artigo sobre o centenário de Milliet (no Jornal da
Tarde): nas poucas resenhas de livros que a grande imprensa
brasileira condescende ainda em publicar, a auto-suficiência do magister
dixit costuma alternar com a anodinia do press release disfarçado.
Imprensa,
mercado editorial e universidade se tornaram mais complexos; por isso, burocráticos.
Na imprensa há de tudo: aquilo que José Paulo Paes denunciou, ao lado de bons
artigos (inclusive os dele); pautas requentadas e outras de interesse. Seu
decréscimo de qualidade, de 1980 para cá, não deve ser imputado só a editores,
colaboradores e donos-diretores de jornais. Havia acontecimentos extramídia, na
sociedade, que eram estimulantes, desde resistência antiautoritária até a
movimentação em poesia a apresentar-se como inovadora, cujos autores, naquele
momento, tinham algo a dizer.
Além disso,
há diferenças de escala. O mercado editorial era menor. Lançava uma quantidade
de títulos mais fácil de assimilar em umas poucas páginas semanais. A
mediocridade das listas de mais vendidos de hoje, comparadas às de vinte anos
atrás: até que ponto isso é resultado do declínio do jornalismo cultural? Ou,
inversamente, não será o presente jornalismo cultural o reflexo de uma
configuração do mercado? Provavelmente, as duas alternativas são corretas.
Mídia e mercado se alimentam. A extensão e duração desse círculo vicioso é
indeterminável, a julgar pela promoção sistemática, na imprensa, de vozes
divergentes que não passam de perseguidores do sucesso de escândalo obtido
pelas provocações de Paulo Francis. Folheando-os, vejo, aqui, o defensor do
obscurantismo a pretexto de criticar a universidade; ali, a legítima expressão
de coisa alguma além do ressentimento; adiante, o precioso afetado incapaz de
ocultar a ausência de propostas. Devo citar nomes? Não, apenas daria
publicidade ao efêmero. Agora são estes; antes, havia outros; e logo terão sido
substituídos.
Hoje,
jornalismo é profissão. Jornal é parte de corporação. A imprensa, por isso,
tornou-se regrada, ordenada. Medo e insegurança permeiam qualquer burocracia.
Daí o periodismo literário buscar legitimação em instâncias extrajornalísticas.
Uma delas, a universidade. Outra, o mercado. Apoia-se na instituição acadêmica,
pois currículos são um aval de qualquer coisa, assim esvaziando o fértil meio
de campo que devia ser ocupado pelo franco-atirador, o intelectual
não-acadêmico, substituído por gente escrevendo para os colegas e o orientador,
mostrando que estudou a lição de casa. Apoia-se no mercado, e exibe a
onipresente propensão à banalidade, à promoção do sucesso de ocasião,
proporcional ao tratamento que a editoria de música, ao lado, dará a seu
último hit.
Imprensa e
universidade refletem um fenômeno moderno, a especialização e consequente
curricularização da vida, do mundo. Quem pretender alguma chance profissional
tem que apresentar certificados e títulos, comprovando informação sistematizada
e institucionalizada. Cursos estão aí para ordenar o conhecimento. A ordenação
acarreta a equivalente burocratização. Diante disso, precisamos,
dramaticamente, dos personagens e instâncias da desordem, dos desarrumadores do
saber. A crítica, no sentido amplo da palavra, da qual todos os demais deveriam
ser extensões, se exerce negativamente. Esquecendo isso,
naufragaremos em uma estéril enxurrada de positividade, normatizada por manuais
de boa conduta literária. O escândalo, aí está algo que não pode ser
considerado datado, circunscrito no tempo. Ao fazer, em palestras, o elogio da
rebelião e provocação em Baudelaire, Rimbaud, Jarry, surrealistas, Artaud, a
Beat, às vezes alguém, na hora do debate, argumenta que tais exemplos pertencem
a um passado de sociedades repressivas (seja qual for o passado, do final do
século XVIII do Marquês de Sade à década de 60 da contracultura). Penso o
contrário: esse padrão de artista radical e independente é atual e necessário.
4. NO ENTANTO, NEM TUDO É ASSIM | Não acho graça em pintar quadros sombrios. Nem chegam a sê-lo. Em
primeiro lugar, a crise de paradigmas, já comentada por vozes qualificadas, é
positiva. Melhor que qualquer grade pétrea. Há suficientes pessoas
declarando-se em favor da heterodoxia e pluralismo para que isso venha, não
apenas a ser proclamado, porém praticado. Cada modelo, formalismo, new
criticism, psicanálise, o que for, pode dar sua contribuição, se aplicado
com inteligência. Nunca tive dificuldades com o pluralismo. Ao trabalhar com
Ginsberg, falei dele como revolucionário, expoente da contracultura, e como
leitor da prosódia e poética de Pound. Idem com o Lautréamont dos surrealistas
e dos estruturalistas. Por isso, choca-me a ortodoxia.
Em segundo
lugar, haver novas publicações que preencham o meio de campo, nem grande
jornalismo, nem produção estritamente acadêmica - Cult, Medusa, Monturo, Azougue e
afins - é animador. Só precisam de mais apoio, financeiro e da mídia, para
darem sua plena contribuição, arejando o ambiente. Sobreviverão as que não
forem decalques da grande imprensa. É por aí, através dos periódicos, que
poesia e crítica respiram. No início do século, em lados opostos do Canal da
Mancha e do vanguardismo, Pound e Breton faziam que a literatura se movesse
através de revistas, veículo da melhor criação e crítica naquele momento, em um
dos muitos exemplos de como o periodismo cultural pode ser decisivo, definindo
movimentos e tendências. Pela dificuldade econômica, hoje, desse tipo de
iniciativa, apoiá-las deveria ser prioridade da administração pública.
Reconheço
um parti pris, por minha principal referência ser o excitante
panorama cultural dos anos 60, marcado pela expectativa apocalíptica de
mudanças na forma de catástrofe, utopia, ou ambos. No entanto, a contrapartida
disso era o provincianismo. Nem incomodava a imprensa mostrar maior ou menor
simpatia ao que fazíamos, pois podíamos nos dirigir diretamente ao público:
estavam todos lá, gravitando na mesma órbita. Desde então, mudou a escala de
certos fenômenos. Da crítica em jornais com dez a cem mil exemplares, passamos
às tiragens nipônicas, cem mil a um milhão de exemplares. Portanto, a outra
coisa. A diferença quantitativa, obviamente, acarreta diferenças qualitativas,
para melhor e para pior.
Algo da
dispersão na quantidade pode ser enfrentado pela administração cultural. O
exemplo são experiências de ensino extracurricular, arejando a transmissão do
conhecimento em ciclos de palestras e oficinas literárias. Promovem a formação
de grupos, a troca de figurinhas, algo que, naquela outra década, acontecia
naturalmente, sem mediação institucional. Consciente de, por enquanto, retirar
baldes d’água de um oceano de carências, acho viável um sistema dinâmico,
heterodoxo, incluindo cursos, ciclos de palestras, debates, depoimentos de
autores e oficinas. Da minha perspectiva, como administrador cultural, não vejo
essa ameaça toda ao valor e à própria literatura. Há crise, ou crises, porém
localizadas nas instâncias mediadoras: ensino e produção teórica, mercado
editorial, jornalismo. A resposta a ela está na quantidade e interesse do
público presente a palestras, leituras, oficinas.
Crise
cultural, e, por extensão, da crítica, não acontece por falta de neurônios e
informação, mas, principalmente, por falta de recursos. Para ser claro: quando
preparei uma coletânea de obras de Artaud, em 1983, examinei uma edição
norte-americana, aquela preparada por Susan Sontag, dez vezes maior. Na
abertura da edição, agradecimentos às instituições que a haviam patrocinado. É
óbvio que, dadas as mesmas condições para sobreviver enquanto produzia, faria
algo dessa dimensão. Em resumo, muito do que falta, e do que faz falta, em
matéria de alternativas ao marasmo e falta de perspectivas, apareceria se
houvesse mais recursos, sob forma de bolsas não-acadêmicas e subvenções,
através de instituições mais ágeis e modernas, em favor da cultura.
Haveria
incompatibilidade entre o chamado que fiz à rebelião radical, e o apelo ao
patrocínio, público ou privado? De modo algum. Basta ler a biografia de
Baudelaire. Mesmo condenado e censurado, acabou recebendo subvenções
governamentais, adiantamentos de editores e pagamentos por artigos na imprensa,
que minoraram sua miséria e lhe permitiram avançar na criação. Houvessem-lhe
dado mais, e teríamos mais textos explicando, profeticamente, o que é
modernidade, como o maravilhoso se realiza nas cidades, porque a obra de arte é
um sistema de relações e não uma representação, e a criação é um produto da
imaginação ativa e não a cópia da realidade.
Temos
mecanismos de subvenção para teatro e cinema, e entendo que poderia haver mais
ainda. Porém, considerando que palavra é mediação fundamental, constitutiva da
cultura, deveria haver mecanismos equivalentes em favor do livro, da
literatura, de ideias. Fala-se, com razão, da importância da educação. Pois
bem: favorecer a palavra escrita faria, rapidamente, subir o nível educacional.
A quantidade e qualidade do investimento em livro e literatura podem definir o
futuro deste país. A inteligência não pode continuar entregue ao miserabilismo
oficial e à burocracia das corporações. Essa é uma grande questão política, da qual
a sociedade deve ser sensibilizada.
Se insisti
na carga de negatividade inerente à boa crítica, insisto, com igual ênfase, na
positividade do trabalho em favor da cultura. Problemas de crítica e
administração cultural são aspectos da mesma configuração. Mudaram, nas últimas
décadas. Contudo, as soluções, ou, ao menos, as propostas a apresentar, são
quase as mesmas.
NOTA
NOTA
[1] O notável ensaísta norte-americano Roger Shattuck, em Os
Limites da Literatura (Companhia das Letras, 1998 - fui induzido à
leitura dessa obra por artigos de João Alexandre Barbosa na revista Cult),
para sustentar sua argumentação de que se deve estabelecer limites à obra de
autores como o Marquês de Sade, cita o caso de Ian Bradley e Mira Hindley,
praticantes de rituais escabrosos que chocaram a opinião pública na década de 1960.
Para mim, esse exemplo só demonstra uma coisa: a queda de nível cultural, até
mesmo dos assassinos. Naquela época, inspiravam-se em Sade; agora, se inspiram
em jogos eletrônicos.
***
Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Foi
um dos nossos editores, de 2000 a 2009. Agulha Revista de Cultura
# 2/3. Setembro de 2000.
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