“Obsessivo, obsessivo,
obsessivo!” exclamava uma visitante que abanava a cabeça consternada, olhando
em torno de uma das salas da Fundação de Serralves, no Porto, Portugal onde é
possível ver, até 20 de Abril de 2003, uma exposição imperdível. Trata-se de
“Francis Bacon: Caged - Uncaged”, na qual estão patentes algumas das obras mais
carismáticas e marcantes do artista irlandês.
A afluência do público tem sido muito grande e a cobertura mediática suficientemente
marcante para quebrar a passividade dos portugueses que discutem abertamente as
perturbadoras imagens criadas pelo homem que passou a vida a distorcer, de
forma violenta e por vezes grotesca, a pretensa beleza harmónica do corpo
humano.
Assim, quem visitar Serralves irá confrontar-se irremediavelmente com a
singularidade de um pintor que é considerado por muitos como um dos expoentes
máximos da arte do século XX. Bacon tratou com extraordinário vigor e um mínimo
de complacência temas que continuam a chocar mas que fazem parte, cada vez
mais, do quotidiano colectivo. As fantasias masoquistas, a pedofilia, o
desmembramento de corpos, a violência masculina ligada à tensão homoerótica, as
práticas de dissecação forense, a atracção pela representação do corpo - e um
especial fascínio pelos fluídos naturais, sangue, bílis, urina, esperma, etc. -
e, no geral, com tudo o que está directamente ligado à transgressão seja
relacionada com o sexo, a religião ( são paradigmáticos os seus retratos do
Papa Inocêncio X que efectuou a partir da obra de Velasquez) ou qualquer tabu,
foram as peças com as quais Bacon construiu a sua visão “modernista” do mundo.
Francis nasceu em Dublin a 28 de Outubro de 1909. Sofria de asma e foi
educado em casa por professores particulares. A sua debilidade enraivecia o
pai, um homem intolerante, violento e irascível que criava cavalos e costumava
chicoteá-lo para “fazer dele um homem”. Para se vingar, Francis gostava de
exibir a sua homossexualidade, alardeando aventuras com os rapazes das
cavalariças. Tinha cerca de dezasseis anos quando foi apanhado pelo pai a
dançar diante de um espelho, vestido com a roupa interior da mãe. A cena
culminou na sua expulsão de casa, um facto que não parece ter sido motivo de
grande desgosto. Tal como Oscar Wilde e James Joyce, a Irlanda da sua infância
inspirava-lhe um certo desdém e embora reconhecesse a sua identificação com o
espírito irlandês, no que dizia respeito à predilecção pela bebida em grandes
quantidades e pelo divertimento imoderado, a recordação de uma certa
“estreiteza” que ele sempre associou à brutalidade do pai, não lhe deixou
saudades. Bacon costumava afirmar que a violência o acompanhou sempre, primeiro
quando entrou em contacto com o Sinn Fein, depois quanto viveu em Londres durante
a primeira Grande Guerra e ainda ao partir para Berlim no final dos anos vinte
- uma cidade que ele caracterizou como sendo muito aberta, livre e agressiva. O
pai tinha-o enviado a Berlim na companhia de um tio considerado extremamente
viril e que tinha como missão mudar a orientação sexual do sobrinho. Francis
rapidamente descobriu que o tio era realmente uma pessoa sexualmente muito
activa mas que não fazia qualquer distinção entre homens e mulheres. Acabaram
alegremente juntos, na cama.
Já em Paris, onde viveu até 1939, foi a arte o que o cativou pela
primeira vez. O tratamento que Picasso dava ao corpo humano fascinou-o e “O
Massacre dos Inocentes” de Poussin provocou nele um interesse específico. De
volta a Londres iniciou sem sucesso uma carreira de artista. Foi rejeitado como
“não suficientemente surrealista”, demasiado egocêntrico e com uma visão
individualista que escapava a quaisquer cânones. Expôs pela primeira vez em
1937, integrado numa mostra de jovens artistas britânicos mas passou despercebido.
Desanimado, destruiu telas - tinha começado a trabalhar num tema tratado também
por Picasso, o da crucificação - e quase abandonou a pintura, preferindo
dedicar-se ao jogo e ao “design” de roupas de homem e sapatos de mulher. A sua
forma de vida era excessiva mas trabalhava sem parar, em estado de ressaca
permanente. A sua primeira exposição individual na Lefevre Gallery, em 1945,
provocou um choque e não foi bem recebida. Toda a gente estava farta de guerra
e de horrores, só se falava da “construção da paz” e as imagens de entranhas
dos quadros de Bacon, com os seus tons sanguíneos, provocaram mais repulsa do
que admiração. O tríptico foi adquirido por um antigo amante de Bacon que, em
1953, o doou à Tate Gallery a qual, na altura, recebeu a dádiva com extrema
relutância.
Desde então, Londres tornou-se o quartel-general de Francis,
particularmente o bairro de Soho, onde se situava o Wheeler´s o seu restaurante
favorito e o The Colony Room, local que frequentou assiduamente nos quarenta
anos que se seguiram. Aí juntava amigos, gente do mundo artístico, vagabundos e
bêbados do East End. Em 1950 iniciou a série de retratos do Papa Inocente X,
cujo grito espasmódico e convulso pintou de variadas formas e, em 1954,
representou a Grã-Bretanha na Bienal de Veneza, com Lucian Freud e Ben
Nicholson. A partir de 1951 começou a visitar regularmente Tânger, ( onde viveu
paredes meias com William Burroughs e conviveu com o grupo de Paul Bowles), uma
cidade que atraía a comunidade homossexual pela sua liberdade de costumes. Foi
em Tânger que Bacon conheceu Peter Lacy, por quem desenvolveu um amor violento
e destruidor: " estar apaixonado dessa forma extrema - total e fisicamente
obcecado por alguém -é como contrair uma doença aterradora. Não o desejo nem ao
meu maior inimigo” disse Bacon.
Os anos sessenta foram o tempo da sua consagração. Participou em
inúmeras exposições e tornou-se conhecido mas o sucesso não impediu uma
tentativa de suicídio em Nova Iorque, em 1968. Mas foi George Dyer, com quem
vivia desde 1964, quem acabou por se matar num quarto de hotel em Paris, nas
vésperas da inauguração de uma grande retrospectiva de Bacon no Grand Palais,
no início dos anos setenta. Só em 1974 é que Francis encontrou John Edwards com
quem manteve uma relação estável e paternal e que herdou o seu espólio, depois
da sua morte, de ataque cardíaco, aos 82 anos.
Nas muitas entrevistas que deu ao longo da vida, quando já era famoso e
até venerado, Bacon sempre enfatizou o seu lado anárquico e irreverente. Mais
do que uma vez contou como costumava roubar dinheiro aos pais, aproveitar-se de
quem gostava dele e fugir sem pagar a renda dos lugares onde vivia. Depois da
sua morte, e até hoje, a sua obra e personalidade têm sido objecto de
especulações e escândalos. O seu lado “negro”, obscuro e violento e as suas
imagens distorcidas continuam a deixar marcas em artistas como Damien Hirst,
por exemplo, que o considera como “o último dos grandes pintores” e afirma ter
seguido Bacon passo a passo na criação da sua própria obra.
A obra de Francis Bacon não deixa ninguém indiferente e as opiniões
tendem a extremar-se. Os críticos tentaram relacioná-la sucessivamente com o
Cubismo, o Surrealismo, a Pop britânica. Mas o interesse de Bacon por Picasso
foi aquele que caracterizava qualquer jovem aspirante a artista, do seu tempo.
Quanto aos surrealistas, repudiaram-no e embora seja possível encontrar, na sua
obra, certos resquícios de “espírito Pop” , principalmente nos anos sessenta,
ele destaca-se em toda a sua singularidade, distante e desdenhoso de correntes,
movimentos e modas. Pintou retratos de amigos e amantes tal como o fez David
Hockney mas sem o elegante hedonismo deste último; torceu e distorceu os seus
modelos em esgares de agonia enquanto Kitaj e David Hamilton se limitavam a
desfocar o que viam. Dos seus contemporâneos, só com Lucian Freud - de quem foi
amigo, embora tivessem cortado relações sem qualquer explicação lógica ou
ilógica, em 1965 - é possível estabelecer um certo paralelo em termos de
singularidade e originalidade, no tratamento do retrato e do auto-retrato.
Talvez alguém se lembre, ao observar os corpos desfigurados de Bacon, de outro
grande perturbador dos cânones clássicos de representação da figura humana, o
pintor El Greco. Mas enquanto que, neste último, os corpos se “transfiguram”,
se elevam em direcção ao céu, para mais perto da divindade, os de Bacon
“desfiguram-se” na assunção da sua monstruosa e vil humanidade.
Como homem do
seu tempo, Bacon transmitiu a ideia de que o ser humano, ao conquistar e fazer
uso da sua própria liberdade, também liberta a besta que existe dentro de si.
Pouca diferença faz dos animais irracionais, tanto na vida - ao levar a cabo as
funções essenciais da existência como o sexo ou a defecação - como na solidão
da morte. Em lugar de enaltecer o homem como um produto maravilhoso, fruto de
uma criação divina, Bacon mostrou-o retalhado como uma peça de carne em
exposição num talho - os seus detractores gostavam de dizer, com ar de repulsa,
perante os seus “écorchées” que eram mais uma “fatia de bacon”. A utilização
que fez da cor nas suas pinturas, desde os tons mais sombrios, verde musgo,
negro veneziano, vermelho sangue de boi, até à explosão de rosas shocking,
verdes limão, laranjas e púrpuras, etc.demonstra um desdém sublime por
quaisquer restrições ou regras. As figuras vertiginosamente em queda, torcidas
como fetos em agonia ou enjauladas sem possibilidade de fuga, encontram-se
quase sempre enclausuradas num espaço restrito definido pelo artista, que é
como um “frame” (uma “jaula”) dentro da esquadria da tela. Os objectos esparsos
que eventualmente acompanham as figuras são banais e até acentuadamente
desprezíveis como seringas, bidés, lavatórios, sanitas e bacios. A recorrência
à imagem de uma simples lâmpada nua pendurada do tecto contribui para a criação
de um ambiente destituído de conforto, de beleza. Os seus quartos - por vezes
com visão para casas-de-banho esquálidas - são lugares de muitos pesadelos e
nenhuma alegria. A nudez não é sensual mas possui uma carga de demência
erótica. Para Bacon, a Beleza não se encontrava no Amor, na Natureza ou nos
sentimentos. Os pares amorosos- como no quadro “Two Figures in the Grass”,
(1952) ou “Figures in the Landscape”- são figuras acocoradas que parecem
fundir-se numa só e confundir-se com as lâminas de erva que não são bucólicas
ou acolhedoras mas sim afiadas e ameaçadoramente brilhantes como um leito de
espadas. Para Bacon, a Beleza escondia-se algures, por detrás de infindáveis
máscaras de sofrimento e orgulho, de angustia do sexo, de solidão e terror da
morte, de decrepitude e de opulência insolente.
Francis Bacon descobriu e explorou até ao limite do suportável o pior de
todos nós. E viveu para o contar.
***
Agulha Revista de Cultura # 33. Março de 2003.
Página ilustrada com obras de Francisco Bacon.
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