- A questão está em saber – referiu Alice – se
tu podes fazer com que as palavras tenham o significado que tu desejas que
tenham.
- A questão está em saber quem é que manda –
retorquiu Humpty Dumpty.
[Alice no outro lado do espelho]
Neste pequeno estudo abordaremos o problema do
crime e os seus reflexos na Literatura Policial. Consideraremos o crime como
uma “série grupal”, na asserção que lhe é dada por Meininger, que postula:
“Constitui série grupal tudo aquilo que depende de condições que pretendem
passar por conjunto de causas”. Assim, referir-nos-emos à cultura da
responsabilização como um dado que é contrariado por actos dimanados da
entidade que propicia o seu estabelecimento devido à intrínseca perversidade
(cultura da desresponsabilização) que é o invólucro estatal ao mais alto nível
dos seus próceres. Explicaremos o mistério do crime como um acto de ocultação
qualificada assente no fulcro hipócrita que é a este nível o cerne do relacionamento
societário na civilização ocidental capitalista democrática, de bases
judaico-cristãs; bem assim como o esbatimento individual levado a efeito nas
ditaduras capitalistas de Estado (usualmente denominadas comunistas por razões
de propaganda). Far-se-á prova da existência de sociedades criminosas e
sociedades criminais, dando-se conta da dependência do sistema judicial e do
seu uso específico em relação às segundas.
Finalmente, ligar-se-á o tema do policiarismo ao tema dos direitos
individuais dos cidadãos, que se encaminham em certos casos para o nadir.
DO CRIME COMO SÉRIE GRUPAL | Os cidadãos roubam. Os cidadãos matam. Os
cidadãos burlam e entregam-se a depredações as mais diversas. Leia-se, um
sector do todo – que é indiscernível. Este é um facto que se verifica em todos
os países do mundo, em todos os tempos e em todas as sociedades. Contudo,
importa descriptar como tal se dá e, por último, porque se dá, levando em conta
que a assunção da cidadania (que configuraria as chamadas sociedades de Direito)
é um facto relativamente recente em termos modernos, sendo de notar que o crime
não recebia nem recebe o mesmo enquadramento sob o ponto de vista filosófico e
operativo e, nos países periféricos ou terciários, é flutuante.
Deixemos por ora o ponto de vista operativo e detenhamo-nos um pouco
sobre o ponto de vista filosófico.
Assim, na opinião de uns autores existe crime devido às causas
primeiras, ou seja: o Homem, imperfeito, estaria naturalmente votado às más
inclinações, sendo missão da Moral morigerá-lo ou enquadrá-lo adequadamente.
Outros são da opinião que o crime depende de condições sociais bem
determinadas. Outros, ainda, interrogando-se sobre o que é o crime, põem a
tónica na opinião que se tem em relação a actos característicos, defendendo a
teoria de que tudo depende do enfoque que se lhe dê (exemplificando: “roubar é
corrigir efeitos sociais”, como escrevia Roland Castroville em “O espírito das
leis e seus efeitos”). A nosso ver, o crime é uma resultante de tudo isso.
Efectivamente, o que poderemos classificar de más inclinações? E ainda: o que é
moral ou não moral?
Na América do Norte, em toda a civilização plain o roubo inter-tribos
diferentes era encarado não só com naturalidade mas também consideração,
havendo escalas gradativas: roubar cavalos era socialmente mais meritório que
roubar um arco ou uma lança, considerados artefactos indispensáveis ao
guerreiro ainda que inimigo. (Um exemplo, para ilustrar comparativamente, da
nossa sociedade: num derby futebolístico meter golos é muito recomendável; mas
qual o jogador que seria aplaudido por roubar uma ou mais bolas?!). Por seu
turno, era altamente desprestigiante, passível de flagelação (mas quem se
lembraria dum acto assim, excepto debaixo da influencia do álcool fornecido
pelos brancos?), urinar na fogueira do acampamento ou nos caminhos que levassem
à fonte de abastecimento de água. A defecação dentro do perímetro do
acampamento e logradouros adjacentes era permitida, mas só se fosse feita em
terreno ervoso ou fora dos trilhos. Mostrar as partes sexuais a uma anciã era
considerado um insulto grave, mas mostrar o traseiro era tido como delito
menor, quando não picardia sem importância ou filha de exaltação fortuita.
Repare-se que o crime praticamente não existia no interior das tribos
estudadas (e nos sílvidas o panorama era semelhante). Eram muitíssimo raros os
crimes de sangue, bem como o furto ou o roubo. Evidentemente que a relação
inter-nações (Lakotas versus Pawnees, Arikaras versus Comanches, Apsarokas
versus Kiowas) explica o facto: as tais “más inclinações”, na asserção
ocidental induzida e controlada pelos “operadores do sector moral”(igrejas) ou,
como nós preferimos dizer, os instintos dinâmicos e vitais de combate e rapina
esbatiam-se no confronto decorrente, sempre vivaz e vigoroso mas não cruel
socialmente.
Sem irmos a outros exemplos históricos, por redundantes e para além do
nosso âmbito de enfoque (remetemos os interessados para a consulta de experts
da romanidade e do mundo grego), podemos concluir:
1. Crime é tudo o que, tendo efeitos desestabilizadores, não é
consentido por lei expressa ou consuetudinária;
2. Crime é tudo o que recebe legislação específica como tal; Crime é
tudo o que interessa a uma sociedade que assim se classifique.
(Exemplifiquemos um pouco: se alguém, nos tempos romanos, dissesse em
altos brados na rua que Júpiter era um canalha, ladrão e gay desbocado, seria
imediatamente preso e possivelmente executado. Mas quem, actualmente, prenderia
um cidadão por essas imprecações?).
Haverá, no entanto e a nosso ver, que efectuar uma necessária correcção
para adequar: deverá substituir-se sociedade por classe dominante nas
“sociedades criminais”, porque é esta efectivamente quem determina os ritmos
sociais aceitáveis. O sistema judicial, em qualquer país moderno ocidental
secundário (pese aos ingénuos ou iludidos que acalentam a ficção da existência
de “sociedades de Direito”) está dependente dos interesses definidos por aquele
sector social, bem assim como a acção das polícias. (Toda a chamada gente comum
conhece a realidade existente v.g. em Portugal). O conceito “sociedade de
Direito” só é aceitável se pretender significar “sociedade onde o Direito
escrito e a Lei definem o ritmo social”, nunca sociedades onde este ritmo seja
definido pelo “equilíbrio positivo” que as determinações do Direito conformam.
Tal não se verifica, nunca se verificou e é uma perigosa ilusão - para quem
deseje ver claro – tal concepção que assenta, digamo-lo decididamente, numa
atitude autoritária dos dirigentes sociais.(As pessoas não se interrogam muitas
vezes por medo).
Com efeito, ao forçarem-nos, mesmo intelectualmente, a conceber através
da ameaça impressa (ou mesmo expressa) que o Direito pauta o ritmo social das
chamadas democracias, efectuam nada mais que uma impostura (que lhes é necessária
e intrínseca). Efectivamente, é pacífico que quem manda neste país, por
exemplo, não são as Leis nem sequer a emanação maior do sistema político (o Sr.
Presidente da República, garantido pela denominada Assembleia da mesma) e muito
menos a emanação executiva (o Sr. Primeiro Ministro, um mero “mordomo” ou
efectivador de tarefas alto-administrativas), mas sim o complexo
industrial-comercial e a alta finança de que aqueles são simples delegados no
jogo político apelativo.
(Deixo à consabida inteligência dos leitores a não necessidade de
exemplificar. Mas não resisto a refrescar algumas memórias menos ágeis: quem
não se lembra do célebre caso dum argentário luso que, depois de convocado pela
tal “Assembleia”, apareceu nos entrepostos da mesma quando bem quis, com o ar
assumidamente de mandante característico e, efectivamente, natural que lhe
assiste?).
Não será inteiramente necessário assinalar, mediante menções de relevo,
o que se afirmou naqueles três pontos acima. Apenas epigrafaremos um íten:
assim, por exemplo, é facto que não sofre contestação que o assassínio é
considerado o pecado maior social-civilizacional, de acordo com o geralmente
legislado (sendo ficcionalmente o dado mais apelativo e motivador). No entanto,
na sociedade dependente em grau primário do complexo industrial-comercial, isso
não é pacífico. Efectivamente, como pode definir-se assassínio?
Conceptualmente, a eliminação propositada e nefanda de um ser ou um grupo de
seres com o intuito de se atingir uma determinada conclusão racional e
gratificante para o homicida. O móbil pode ser a vingança pessoal ou social, o
lucro – qualquer espécie de lucro, físico, material ou espiritual – havendo
gradações específicas relativamente irrelevantes, aliás, mas inscritas para
entravar a descriptação in situ. O que importa estabelecer é que, para uns, o
assassínio atinge os direitos vitais inscritos na espécie (eliminação da vida,
que é pessoal mas depende de acto fundacional do Criador), ao passo que para
outros coarta de maneira formidanda e decisiva a coesão social a um elevado
grau de insalubridade; outros, ainda, consideram que é um atentado, sim, contra
o adquirido”legítimo individual”, uma vez que elimina de forma definitiva o
direito à permanência distribuído pelos anos possíveis.
Adicionalmente, pode perguntar-se: o assassínio depende do tempo de
execução? Pergunta pertinente, uma vez que se um indivíduo atingir um outro,
que entrementes leve um fragmento considerável de tempo a morrer (há uma
célebre estória policial que aborda precisamente este facto) já poderá ficar
enquadrado noutro estatuto (a nosso ver, melífluo). E depende do instrumento
que se utilizar? Assim, que pensar dos industriais (companhias) que
deliberadamente extinguem determinados valores ecológicos ou vivenciais,
determinando a morte a médio ou longo prazo para sectores da população ou
etnias? Ou mesmo de nações que o fazem não inconscientemente?
Em suma e concluindo: o assassínio inscreve, isso sim, a perturbação
mais intensa e comovente no seio dum agregado maior ou menor. E é essa
perturbação que importa qualificar. O assassínio é punido e é alvo de sanção
apenas na medida em que conflitua com a normalidade legal existente em código.
E nada mais. Existem inúmeros assassinos que jamais foram punidos, tudo
dependendo até da agilidade processual da polícia ou dos magistrados (há
assassinos provados que são soltos pelos juízes porque se verificaram, a seu
ver, ineficácias legais de pormenor…). Pelo que, se conclui: o que faria
realmente mal, dum ponto de vista de Sírius, seria a “ausência de censura”,
inscrita em lei – e não da punição efectiva. O que se pretende, ao censurar ou
cominar o assassínio, não é deter os seus resultados penosos (assassínios
existirão sempre…o curso do mundo não depende da maior ou menor quantidade de
assassínios que haja) mas desencorajar o seu curso marcado operativo mental. E
qual a razão? Creio que pode conceber-se o seguinte: porque a assumpção da
naturalidade do assassínio precarizaria, desestabilizaria os processos sociais
das classes - nomeadamente daquela que é a efectiva desfrutadora da protecção
do sistema judicial – obrigando-as a existir de uma forma não reconhecível no
quotidiano. Ou seja, a cominação sobre o assassínio existe como um repto à
fragilização dos ritmos sociais dominantes que este põe em causa.
No entanto, sempre que é necessário a classe dominante recorre ao
assassínio, muitas vezes de massas, sendo muito normal, ainda, nas sociedades
criminais, a desculpabilização dos próceres de qualidade.
A Literatura Policial tem dado conta destes factos, através não só do
romance de enigma (whodunit) como do “hardboiled” ou do “social thriller”.
Repare-se que o acento tónico, no que respeita ao assassínio, é posto sobre a
responsabilidade individual e de consciência do seu executor. A não ser assim
não haveria distinção sofrível e justificável entre assassínio e homicídio
involuntário (uma morte é sempre uma morte, como por exemplo na civilização
hebraica). Daí que nas sociedades criminais o homicídio involuntário ou
negligente seja punido com penas extremamente exíguas, pois neste tipo de
sociedade não se respeita a vida humana mas sim os seus sinais formais de
utilidade. O que permite esta conclusão inquietante mas real: as sociedades
criminais são sempre pré-fascistas.
Em conclusão deste capítulo, temos então que é crime tudo o que
conflitue com os interesses sociais da classe dominante, mesmo que por
arrastamento ou inevitabilidade isso possa aproveitar a franjas da população.
No entanto, nas sociedades criminais – de que este país tem sido um exemplo
consistente – existe sempre um manejo de desresponsabilização, muitas vezes
conseguido mediante um acto simples e bem conhecido (as incríveis demoras
processuais, que não são fortuitas ou infelizes mas sim propositadas, inerentes
ao sistema). Tal não parte de uma perversão da dita Justiça ou dos magistrados
(que são sem ironias em geral pessoas de bem), mas sim porque é uma
característica conformativa “genética”desta estruturação social.
SOCIEDADES CRIMINOSAS E
SOCIEDADES CRIMINAIS | a. O crime é um barómetro, podendo ser um conteúdo específico duma
determinada civilização. Assim, por exemplo, a sociedade romana assentava os
seus princípios formais e civilizacionais no roubo e na rapina, a que
geralmente se dá o nome de conquista. Em vista disso era uma sociedade
esclavagista. Possuidora e incrementadora de postulados e códigos de Direito,
este pautava os seus ritmos sociais mas de forma muito peculiar, uma vez que
era uma sociedade de castas e classes bem definidas. Curioso é verificarmos que
o crime mais insuportável para um romano era a prática do fellatio com um
escravo, não o homicídio ou mesmo o parricídio. Era, portanto, uma sociedade
criminal, pois são “sociedades criminais” aquelas onde os postulados do Direito
estão ao serviço não da generalidade dos cidadãos, ainda que por propaganda o
sustentem, mas sim das classes ou castas sedimentadas.
Os Estados Unidos da América do Norte, por seu turno, foram construídos
mediante o pioneirismo, protagonizado por gente de todas as classes e, a
princípio, por gente que na Europa tinha sido relativa ou realmente
despossuída.
Esse pioneirismo assentou, a princípio, na iniciativa individual
caldeada pelo relacionamento dentro de comunidades, muitas vezes com a mesma
origem nacional. A pouco e pouco, contudo, vazou-se no roubo e no extermínio de
terras e dos autóctones e na famosa mediaticamente lei do mais forte, o chamado
“livre empreendimento” – no qual o promotor comercial ou industrial utiliza
golpes adequados para estorvar, inibir ou ultrapassar os concorrentes. E que é
alvo, no caso de falhanço, descaímento ou prevaricação acentuada ou grosseira,
de duras sanções. Uma vez que não havia propriamente ou realmente uma classe
dominante estratificada, cimentada e consolidada, havia que preservar a “livre
concorrência” que assim ia forjando a pátria ultramarina e é um dos seus apelos
fundacionais mais queridos e respeitados.
Esta nação, com todas as vantagens e desvantagens duma sociedade aberta,
é pois uma “sociedade criminosa”, ou seja: verifica-se crime nela, mas este é
duramente atingido uma vez que o interesse da livre concorrência assim o exige
e determina.
(No entanto, durante os consulados de Georges Bush - seguindo-se aos
prolegómenos de Lyndon Johnson, cuja subida ao poder resultou do assassinato de
Kennedy por apparatchikis, Richard Nixon, cuja administração teve claros ressaibos
de tipo cripto-fascista, e Georges W.Bush, por razões de carácter – tentaram-se
claros manejos buscando modificar o país, criando sectores típicos de
“sociedade criminal”).
Nas sociedades criminosas existe, por exemplo, corrupção – nomeadamente
em sectores das forças de segurança – mas, uma vez descoberta por operadores
específicos, o jogo livre determina consequentes condenações. Toda a gente
sabe, é claro, que um Presidente prevaricador (Nixon) foi destituído e presos
vários dos seus ajudantes. Numa sociedade criminal nunca, repito nunca,
tal coisa sucederá. Uma vez que as eventuais corrupção ou prevaricação são
consideradas naturais, tacitamente consentidas por consabidas, quando não
camufladas ou abafadas com o pretexto de que é a vida. Na verdade, é um facto
estrutural como se referiu atrás, não uma perversão sectorial ou pessoal. Ou
seja, não por intrínseca maldade mas porque o jogo social, nas sociedades
criminais, assenta na manipulação e no arbítrio expandidos através dos anos.
Quem não conhece os casos, mais do que relevantes, de políticos ou
operadores endinheirados medíocres, onzeneiros e com suficientes provas dadas
da sua incapacidade formal, que se mantêm anos e anos nos canapés do poder, ora
sendo isto, ora aquilo – com o maior relevo e proveito, apesar de já não
despertarem qualquer excitação no imaginário societário do homem comum (e cuja
opinião, segundo eles, justifica a sua democrática vilegiatura)?
Numa sociedade criminosa tal não é possível, porque há que refrescar o
sistema, há que dar lugar a outros protagonistas, há que livrar os cadeirões
para que outros eventuais parvenus talentosos os usem e ocupem com consistência
e imaginação (ainda que oportunista e muitas vezes velhaca). É por isso que
nessas sociedades, a que se chama abertas, um que tombe não mais se aguenta no
alazão – é afastado naturalmente (fica reformado…).
Nesta conformidade já se entende porque é que a Literatura Policial é
epigonal ou imitativa nas sociedades criminais. Não é realista e autónoma –
para que tal existisse era necessário que, como referiu adequadamente Louix
Vax, “a regra fosse sensível”. Ou seja, que o jogo “acumulação/posse”
assentasse na assumpção do risco. Em países onde tal não se verifique, os
criminosos de alto coturno não têm necessidade de efectuar angustiantes
manobras de ejecção, o sistema mantido pelos seus pares políticos ou judiciais
encarrega-se de o camuflar racionalmente (excepto se interessa “liquidar” o
fulano, que agiu com ingenuidade – ou que se tornou indefensável por ter “dado nas
vistas” excessivamente – ou, não tendo de facto prevaricado, ser útil como bode
expiatório para entregar aos “paisanos”).
Assim sendo, eis porque em Portugal a única “literatura policial” que
tem existido com propriedade e consistência tem sido o género ou subgénero a
partir do “hardboiled” e do “whodunit”, mas claramente à maneira de. Não existe
o “social-thriller” nem o “thriller político” (a não ser como encenação
inconsistente, como as rosas de Malherbe). Como podia encenar-se uma novela, ou
mesmo um filme – como na sociedade aberta se faz a cada passo – em que por
exemplo um juiz fosse um assassino? Ou um antístene um torturador sádico? Ou um
banqueiro um matador de crianças? Isso não existe, esses esteios sociais são
todos gente de bem! O país é pequeno, somos todos primos e primas e todos
sabemos que não há cá pervertidos desses! Ainda que até só na literatura de
mistério…
b. Existe, todavia, osmose – diríamos que por intrínseca capilaridade
– no vector “sociedades criminosas” e “sociedades criminais”. Como as
sociedades criminosas são filhas, tal como a Literatura Policial, do chamado
capitalismo privado e da civilização industrial progressiva ou de ponta (ou
seja, avançada ou tecnologicamente interessada), tem capacidades de seduzir,
com as modificações sociais que o tempo forja, outras sociedades. As sociedades
criminais podem tornar-se sectorialmente (senão de todo) sociedades criminosas
e vice-versa, seja por evolução ou involução. Veja-se o caso da Espanha,
tornada sociedade criminal durante a maior parte do consulado de Franco (os
casos protagonizados pelos irmãos do caudillo, por alguns notáveis civis ou do
meio castrense, etc.). Também Portugal, paulatinamente e ao invés, devido a sua
adesão à união europeia e ao capitalismo mundial de ponta já tem laivos da
outra sociedade, ainda que muito tenuemente. Mas o reaccionarismo, o fechamento
incrementado pelas associações confessionais (igrejas e seitas) e a mentalidade
tacanha dos dirigentes faz desta nação um muito desagradável “melting pot”, onde
campeia a injustiça descarada, a exacção e o arbítrio que já tem um claro sinal
cripto-fascista que custará a erradicar pelos mais “progressivos”. Ou seja: o
crime emana dos próprios esteios do Estado, quer por defeito quer por excesso.
Será necessário recordar os consabidos actos escandalosos, mas não de tostões
ou jantares da bola, em que se têm distinguido respeitabilíssimas altas
personalidades? (Tudo segredado pelas esquinas…).
Em suma: há sociedades criminais quando se verifica corporativismo
tácito e efectivo, ainda que dissimulado ou resguardado; cimentação dos foros
mentais mediante a acção muito marcada de uma entidade administradora de ritmos
espirituais; existência de um capitalismo fraco ou incipiente, normalmente
periférico ou integrado por valetes; laxismo nos actos decorrentes de leis
ainda que “justas”, mas que os próceres sufocam.
Há estados criminosos quando existe corporativismo oficializado e/ou
doutrina de Estado imperativa e leis visando apenas a permanência do regime
político (ao passo que nas primeiras se visa a permanência do regime social).
Há sociedades criminosas quando existe jogo democrático e mistura de
classes, capitalismo forte e utilização das leis na dirimição dos conflitos
(comerciais, industriais, pessoais daí decorrentes).
DO CRIME COMO OCULTAÇÃO
QUALIFICADA | Pelo que
atrás ficou articulado, pode e é lícito deduzir-se que: a) Não
existe Literatura Policial consistente nos “estados criminosos”, porquanto o
crime é uma entidade flutuante e verdadeiramente do foro da política. A
aparente LP que se dá a lume nesses estados é propaganda involucrada de
literatura policial, muitas vezes bem articulada mas na realidade fantasista -
encenando uma sociedade de facto não existente ou habilmente distorcida. b).
Existe forte Literatura Policial, que reflecte os traumas societários e os
ritmos daí decorrentes, nas “sociedades criminosas”. c). É epigonal
ou imitativa a eventual LP existente nas “sociedades criminais”. Dos
subgéneros, só são possíveis/credíveis o “thriller psicológico”, geralmente de
ordem passional e o “thriller de acção”, pondo em cena detectives filiados no
hardboiled e criminosos crapulosos. Numa fase intermédia, o que sucede agora em
Portugal, de passagem lenta e paulatina para “sociedade criminosa”, existirá o
“social thriller” e, numa fase posterior, se não acontecer nenhum golpe
autoritário, o “thriller político”. Devido a essa fase, existente aliás “au
contraire” nas sociedades em processo involutivo intermitente, apareceu há um
par de anos o chamado “thriller metafísico”, abordando com grande dose, aliás,
de colorido fantasista e algum eficaz oportunismo os aspectos subterrâneos e
“mal contados” (ou decididamente falsos) que cifraram pelos anos o perfil de
esteios religiosos, culturais, referenciais…(Ex.: Código da Vinci, Equação
Dante, Lápide Templária, entre muitos mais).
Vejamos agora a questão fulcral do “crime”, nomeadamente o mais
tenebroso deles ou, pelo menos, o que assume um carácter mais assustador ou
penoso: o assassinato.
Este usa ser, nas sociedades criminosas, fortemente penalizado porque –
como atrás ficou dito – introduz uma perturbação extrema no livre jogo da
concorrência (vital, social, comercial/industrial). O que subjaz a um mistério
policiário não depende do crime em si, que apenas introduz a inquietação ou a
dúvida, mas sim da sua ocultação qualificada. Ou seja, numa novela policial o
cerne da questão é não o crime mas sim a sua descriptação. Dito de outro modo:
o que importa na LP não é que tenha havido um crime (só assim podia ser LP…) mas
que haja progressão narrativa visando saber-se o como, e o porquê adicional ou
subsidiário, que são a antecâmara, em geral, do quem. É isso que explica que
uma estória policial “invertida” – os inquéritos do tenente Columbo ou o
célebre “A casa da flecha” de A.E.Mason – desperte interesse mesmo
conhecendo-se de antemão o assassino.
A ocultação qualificada assenta na existência do “fulcro hipócrita”,
serve dizer: a verdade, logo a realidade, é camuflada em detrimento dum “facto
suposto” que é apresentado como tendo sucedido. (Ex.: o suspeito “não estava”
no local do crime; ou “não tinha razões para o fazer”, portanto não foi ele). O
“fulcro hipócrita” é pois determinante, tanto na vida quotidiana relapsa como
nos relatos policiários – por razões muito diferentes, claro. E uma vez que os
factos, dum ponto de vista filosófico, são reversíveis, temos pois que a
hipocrisia inça toda a sociedade criminal sendo a sua característica
fundamental, enquanto na sociedade criminosa a característica é o acto ilícito.
Ou seja: é problemática, mas passível de tratamento, uma sociedade onde o crime
e a violência prévia ou envolvente recebe sanção adequada ou apaziguadora; vive
mergulhada em angústia sufocada, desiquilíbrio camuflado e bloqueio (o
tristemente célebre fechamento da sociedade portuguesa) a população das
sociedades criminais. Por outras palavras: nas sociedades criminosas há riscos,
mas também há as justas expectativas de punição dos ofensores, o que permite a
criação de comunidades criativas; nas sociedades criminais vive-se num ambiente
social penoso, desencorajador, “podre”, uma vez que os instintos dinâmicos se
atrofiam devido à problematização do “fulcro hipócrita”, que assim passa de
possivelmente momentâneo para o todo social (nos tempos salazaristas tinha-se
medo da “própria sombra”, por mor do “safanão a tempo”). Se por acção de uma modificação
súbita (como sucedeu em Portugal após o golpe de Abril), a caixa de Pândora se
abre, permanecendo os entraves sociais (desqualificação e corrupção ética do
sistema judicial, acção espúria da classe política) a potencial violência
cresce a pouco e pouco, sendo as populações mal protegidas que sofrem os mais
rudes embates. Crescem também as depressões e os suicídios, uma vez que não é
normalmente canalizada a pulsão sádica existente em qualquer ser. E, como um
abutre sinistro, vai-se adensando sobre a sociedade a sombra devastadora do
fascismo e da vertigem autoritária. Enfeitada, enquanto não chegam os tempos,
pela violência crapulosa (assaltos a bancos, violação de crianças, impune
existência de díscolos que os corrompidos ou incompetentes próceres tentam
referir como incontroláveis…).
Como qualquer observador sério e consciente verifica, é isso que hoje
está a suceder na sociedade lusitana. Assim como nas outras sociedades
criminais.
Teme-se, assim, que não seja preciso que os islâmicos nos destruam. Nós
próprios, por desvergonha de políticos e outros operadores de topo, colocaremos
teimosa e sordidamente a corda no pescoço. Não esqueçamos, como dizia Vítor
Hugo, que “cada povo tem aquilo que merece”…ou não teve o talento e a dignidade
de evitar.
***
Agulha Revista de Cultura # 60. Novembro de 2007.
Página ilustrada com obras de Otto Apuy (Costa Rica), artista convidado desta
edição.
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