O artista (o pintor brasileiro Antônio Bandeira) é hoje menos
considerado - do ponto de vista crítico - do que as inumeráveis vedetes
fortuitas, como por exemplo um Siron Franco ou um Hélio Oiticica, sobretudo se
levamos em conta uma dicotomia traçada por Frederico Moraes entre artistas que
praticam "uma arqueologia da própria vida" e "a arqueologia da
história da arte", característica esta última de que está repleto o indefectível
mercado de arte contemporâneo.
Floriano Martins
A mão é ferida que é história. O traço de uma dor que não cessa, e
sangra.
Víctor Sosa
Abre, grande, tua mão./Na abertura está a salvação.
Edmond Jabès
Pois tendo estendido para ele a minha mão rude, eis que tenho agora nesta
mão aberta e com muitos arrepios de júbilo ando lendo e relendo e me ensimesmei
nele como um caracol humano um livrinho raro que com raivosa lucidez nos faz a
exigência mais radical que na arte como em tudo um Criador deve se fazer a si
mesmo: A Pincelada
Única, do pintor e poeta e calígrafo, que se fazia tudo isso num só
ser, Shitao, o Monge da
Abóbora Amarga, ser esse que mudava de nome a cada Estação de sua
vida e também se denominava Sobrevivente da Antiga Dinastia mas na próxima metamorfose já era o Discípulo da Grande Pureza e na seguinte troca de pele de seu
uróboros se tornara o Venerável Cego e assim ia sempre cambiante e
no entanto eternamente fiel a Si Mesmo fluindo por debaixo de suas escamas
supérfluas, o que não se dá com os que somente praticam a arqueologia da história da arte pois sendo essa a fórmula para melhor
se recobrir com a Pele do Mundo da cultura e, certamente, como se verá mais
adiante, só pode se dar, não naqueles,
mas àqueles que praticam
a arqueologia da própria vida em permanente demanda do Si Mesmo onde
quer que o Si Mesmo esteja, e ainda que soterrado sob os Fardos da cultura em
nossos lombos acumulados de escamas e peles supérfluas, escamas e peles
supérfluas essas que Shitao já havia largado pelos Caminhos dos Passos Sólidos
quando abandonou seu nome real, Zhu Ruoji, e passou a se chamar Shitao e tomou
uma vereda oblíqua e ingressou no Descaminho Que Se Desvia Das Coisas
Tropegamente Nítidas e passou a estudar pintura, sim: Pintura, pela dupla via do ser não-ser e
não mais pelas falsas vias das pinceladas tão cheias da aparente solidez do ser
que não sobra nenhum espaço nem para que aí o ente habite em sua dimensão
ontológica pois é mais fora da arte do que dentro dela que o artista acha a vida
secreta-em-si, como se sabe um pouco ainda e muito sabia Heráclito, o Obscuro
quando dizia Vida ama se
ocultar, mas não foi com ele, Heráclito, e sim com um mestre budista Chan, o nome chinês
do Zen antes de emigrar para o Japão, que Shitao foi estudar antes de iniciar
uma vida de errâncias, viajando e
pintando as mais belas paisagens da China, como informa o prefácio
do tal livrinho que lança de suas páginas labaredas de Dragão no Iceberg da
minha já chamuscada mente ocidental que vai mais e mais se descongelando em
seus Caminhos dos Passos Sólidos, graças ao tal livrinho recentemente traduzido
que eu saiba pela primeira vez para o português, em Lisboa, prefácio esse que
também nos informa que, mas por qual dos mais de trinta nomes que adotou o chamar,
Shitao ou Zhu Ruoji ou Monge da
Abóbora Amarga viveu sua vida nesta Bela Terra Submersa Em Sonhos
De Sermos de 1641 a 1720 d.C e, e
é aí que não apenas a serpente troca de pele mas a porca torce o rabo, graças à sua formação budista, taoísta e confucionista:
ó hemisfério
esquerdo deste grande Cérebro: a Terra, ó Oriente: fez de sua vida artística uma
permanente busca, não só em torno de questões técnicas, mas também à volta do
próprio mistério da criação artística e do destino do Homem, busca
que acabou por o conduzir à Grande Síntese do Corpo-Espírito em Ação, em breves
trintas páginas imensas, Espelho do Cosmos, de A Pincelada Única onde nos doou, generosamente, tudo o
que aprendeu, mas oh tão poucos terão as mãos com que pintam suficientemente
longas para estender e receber esse presente, Pincelada
Única
que é
tão admirável em seu Contágio de lâmina de descamações libertadora, como os elefantes de Dadá são contagiosos, que eu vou
assim jorrando este Texto já sem meus sirgadores e deixo meu barco ébrio ir por
si-mesmo não apenas para dizer alguma coisa a vocês sobre ela com frases autônomas atadas
por junções convencionais da sintaxe que nos mata a pontos de asfixia, mas indo
todo inteiro nela numa frase só, Ser boiando na
linguagem, em sua intrínseca homenagem prestada pela própria Escrita, e tão
atada vai vogando já esta frase única a si-mesma que, Vejam: nem mesmo quando passo a lhes
falar com as próprias palavras de Shitao, mas convertidas em escolhos, pois
traduzidas, ela se desata e desfaz o seu Nó,
embora aqui passe a ganhar uma Solenidade, uma espessura hierática de teatro Nô, quando suas palavras de águas rasas
se misturam às águas fundas da dicção do Discípulo da
Grande Pureza ou
do Venerável Cego que Cíclope de olhos rasgados
tudo vê com um Único Olho interior como poderíamos nós se quiséssemos também
ver mas oh quantos querem ver nas coisas
que ele nos diz, quando nos diz: Na mais remota
Antiguidade, não havia regras, a Suprema Simplicidade não havia sido ainda
dividida. Ao dividir-se a Suprema Simplicidade, estabeleceu-se a Regra. Em que
se baseia a Regra? A Regra se baseia na Pincelada Única. A Pincelada Única é a
origem de todas as coisas, raiz de todos os fenômenos, a sua função é manifesta
para o espírito e se encontra oculta no homem, todavia o vulgo a ignora. A
Regra da Pincelada Única deve ser estabelecida pelo próprio. A base do método
da Pincelada Única reside na ausência de regras que, por sua vez, produz a
Regra, assim a Regra abarca a multiplicidade de regras. A pintura emana do
Intelecto (1): quer se
trate da beleza de montes, rios, pessoas e coisas, ou da essência e carácter de
pássaros, animais, ervas e árvores, quer dos tamanhos e proporções de tanques,
pavilhões, edifícios e pátios, só se poderá perceber as suas proporções e
esgotar os seus vários aspectos possuindo esta medida imensa da Pincelada
Única. Por muito longe que se vá, por muito alto que se suba, se começa sempre
por um simples passo. Por isso a Pincelada Única abarca tudo, até o mais
longínquo e inacessível, e de dez mil milhões de pinceladas, não há uma só cujo
início e fim não resida nesta Pincelada Única, cujo controle pertence
exclusivamente ao homem. Mediante a Pincelada Única, o homem pode restituir, em
miniatura, uma entidade maior sem a diminuir (2), se, em primeiro lugar, o
espírito nasce de uma mesma e só visão clara, o pincel chegará à raiz das coisas.
Se não se pinta com o pulso livre (3), surgirão erros de pintura, e esses
erros, por sua vez, farão com que o pulso perca a sua inspirada destreza. As
curvas da pincelada devem ser executadas num só movimento, a untuosidade deve
nascer dos movimentos circulares, reservando uma margem para o espaço. O fim da
pincelada deve ser claro e incisivos os seus arranques. O pintor deve ser
igualmente hábil nas formas circulares e angulares, nas retas e nas curvas, nas
ascendentes e descendentes, o pincel vai à esquerda, à direita, para cima, para
baixo, brusco e decidido, se interrompe bruscamente, se alarga obliquamente,
quer fluindo até às profundezas, como a água, quer se alçando às alturas, como
a chama, e todo ele com naturalidade, sem forçar nada em absoluto. Onde quer
que o espírito esteja, a regra o refletirá. Se a razão o penetra, poderão ser
expressados os mais diversos aspectos. Ao se deixar levar pelos inspirados
movimentos da mão, de um só gesto poderá captar a aparência formal, assim como
o impulso mistura de águas: ó, Shitao, em nossa língua esse in-pulso me revela que os montes e os rios, as
pessoas e objetos já estão
contidos no pulso humano interno dos montes e rios, pessoas e objetos, etc., os
pintará naturalmente ou aprofundará o seu significado, expressará o seu
carácter ou reproduzirá a sua atmosfera, os revelará na sua totalidade ou os
sugerirá elipticamente. Supondo ainda que o homem não conseguirá captar a
totalidade, tal pintura responderá às exigência do espírito. Quando a Suprema
Simplicidade se dissocia, se estabelece a Regra da Pincelada Única. Uma vez
estabelecida a Regra da Pincelada Única, se manifesta a infinidade de
criaturas. Por isso, alguém disse: "O meu caminho é o da Unidade que
abarca o Universal" cita
Shitao, e outra vez se separando das dele as minhas águas, lhes digo que
seguramente não fui eu esse que disse isso, não fui eu, que agora retomo o fio
da meada da primeira Palavra que antes lhes falava, eu não disse isso assim com
essas palavras embora tenha dito, bem antes de ter saboreado a abóbora amarga
de Shitao e ver que ela era doce, quando ainda rastejava nas páginas nascentes
de um novo livro visível de Viagem
a Andara, o livro invisível, que quis se chamar Sonhos da lua e do sol, livro
esse que vem me sonhando, inscrevendo, sonhando fazem já três um tanto longos
anos, embora nele tenha dito estas outras palavras, ou são as mesmas, que dizem - Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como
sombra/Aqui, na breve Residência, a vida, imersos nesta luz cheia de penumbras
em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até
parece que somos, as sombras estão no Vários/e se tornam coisas, e
retornando então ao fio da meada que como se vê não se partiu eu:
Teseu que
Shitao Ariadne veio trazendo até aqui ainda queria, aqui, me desfazer de júbilo
por ter havido no Ocidente um Plotino, que dedicou sua vida ao Uno e com um
gesto da mente hábil nas
formas circulares, como recomenda o Discípulo
da Antiga Dinastia, nos fez ver para além & aquém dos nossos olhos que uma circunferência cujo centro está
em toda parte é infinita, mas devo retomar nas minhas palavras essas outras
palavras de Shitao que asperamente açoitam aqueles que em vez de praticarem "uma arqueologia da
própria vida" se limitam a praticar "a
arqueologia da história da arte", pois ele diz, se referindo aos mestres
que os antecedem, que eles em
lugar de se valerem desses pintores se convertem em seus escravos, e acrescenta que o afã desmedido de se assemelhar a
um qualquer mestre equivale a comer os restos da sua sopa, demasiado pouco para
mim, e, cintilante em seu Si-Mesmo único mas que contém e é contido pelo
Todo, e crepitante, diz que eu
existo por mim mesmo e
para mim mesmo. As barbas e sobrancelhas dos mestres da Antiguidade não podem
crescer no meu rosto, nem as suas entranhas se instalarem no meu ventre, tenho
as minhas próprias entranhas e barbas, e por fim em meio a muros &
muralhas que por toda parte vão ruindo à sua passagem enquanto de sua boca
cresce cada vez mais a longa cabeleira que o ata à outra voz também descabelada
de Chuang-Tzu ei-lo, este outro cego, o Venerável
Cego arrebentando seus últimos grilhões num aparente Paradoxo, mas paradoxo
só para quem se mantém isolado na vida do Vários e ainda não se tornou um
Pincel Único em-si, na vida Una, que explode nesta afirmação iluminante, de uma insólita
sabedoria: Mesmo quando, em
certas ocasiões, a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue,
e não eu quem o busca, palavras estas com que agora já vou aos poucos
interrompendo o desfiar do fio desta meada de palavras para propor que outra
meada tenha início, sem palavras, jornada solitária em cada um de vocês que lê
isto: é por dentro, ela, da Imaginação de cada um que se dispuser a imaginar a
hipótese tão bela de um Diálogo que aconteceria no Tempo-Espaço abolido em que
se desse um encontro (4) entre o Van Gogh das Cartas a Théo que disse podem ir louvando a técnica, com
palavras de fariseu, ocas e hipócritas, os verdadeiros pintores se deixam guiar
por esta consciência que se chama o sentimento. Sua alma, seu espírito, não
estão a serviço de seu pincel mas seu pincel a serviço de seu espírito. Além
disso a tela tem medo do bom pintor e não o pintor da tela (5) e o Shitao da Pincelada Única, o Cegado pela Paisagem em Revoada & o Venerável Cego
da Paisagem Imóvel, e aqui, nesta Bela Terra Submersa Em Sonhos de
Sermos, eu proporia que esse Encontro se desse sob uma Noite Estrelada, num Trigal com Corvos: dentro da palma
aberta da mão de Jabès, pois.
NOTAS
1. Xin, ou coração. A base da criação é, pois, de ordem filosófica e espiritual e não técnica ou estética.
2. Aqui, Shitao cita Mengzi, para dizer que a Pintura está para o Universo como o microcosmos está para o macrocosmos.
3. Xuwan, ou pulso vazio. Também se refere à mão alçada, regra primordial da caligrafia e da pintura. A pincelada resultando em rica em Chi [que o Ocidente precariamente traduz por energia vital], já que o único contato do artista com o papel é a ponta do seu pincel, receptáculo direto dessa energia proveniente do coração.
4. Convergência equivalente a essa já aconteceu: abolindo fortuitamente o Tempo-Espaço para que pudesse ocorrer o encontro de Almas Gêmeas, ela se deu entre Shitao e Zhu Da, o Eremita dos Oito Grandes Horizontes, desde criança voluntariamente mudo, palavra que escreveu num leque que abria quando alguém a ele se dirigia, para que a lesse, zen e taoísta, pintor genial e bêbado sublime, contemporâneo e parente quinze anos mais velho de Shitao. Os dois só souberam de suas existências luminosas e simétricas no fim da vida, trocaram apenas idéias, cartas e quadros. Tudo isso, e nada mais. Mas essa é outra ou a mesma pincelada, que um dia eu lhes contarei.
5. Carta 426.
1. Xin, ou coração. A base da criação é, pois, de ordem filosófica e espiritual e não técnica ou estética.
2. Aqui, Shitao cita Mengzi, para dizer que a Pintura está para o Universo como o microcosmos está para o macrocosmos.
3. Xuwan, ou pulso vazio. Também se refere à mão alçada, regra primordial da caligrafia e da pintura. A pincelada resultando em rica em Chi [que o Ocidente precariamente traduz por energia vital], já que o único contato do artista com o papel é a ponta do seu pincel, receptáculo direto dessa energia proveniente do coração.
4. Convergência equivalente a essa já aconteceu: abolindo fortuitamente o Tempo-Espaço para que pudesse ocorrer o encontro de Almas Gêmeas, ela se deu entre Shitao e Zhu Da, o Eremita dos Oito Grandes Horizontes, desde criança voluntariamente mudo, palavra que escreveu num leque que abria quando alguém a ele se dirigia, para que a lesse, zen e taoísta, pintor genial e bêbado sublime, contemporâneo e parente quinze anos mais velho de Shitao. Os dois só souberam de suas existências luminosas e simétricas no fim da vida, trocaram apenas idéias, cartas e quadros. Tudo isso, e nada mais. Mas essa é outra ou a mesma pincelada, que um dia eu lhes contarei.
5. Carta 426.
***
Agulha Revista de Cultura # 20. Janeiro de 2002.
Página ilustrada com obras de Shitao.
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