Victor García foi um encenador argentino (1934-1982) que estava radicado em
Paris fazendo teatro na década de 1960 quando veio para o Brasil a convite da atriz
e empresária Ruth Escobar, onde encenou, entre 1968 e 1974, dois espetáculos que
fizeram um sucesso retumbante: Cemitério de Automóveis (1968), do dramaturgo
espanhol Fernando Arrabal, e O Balcão (1969), do escritor francês Jean Genet.
Cabe mencionar também Autos Sacramentais (1974), coletânea de vários textos
de Calderón de la Barca, que nunca foi encenada no Brasil, apenas em festivais internacionais.
O nome Victor García sempre esteve, naquela época, associado a um movimento de vanguarda
no teatro brasileiro.
Filho de uma abastada família, dona de vastas extensões de terras, Victor
nasceu em Tucumán (Argentina) e cresceu ao lado da mãe, nove tias e quatro irmãs,
sob vigilância severa do pai. Seus parentes católicos e conservadores queriam vê-lo
engenheiro agrônomo para continuar a tradição familiar. Mas ele não queria isso
e sem que a família soubesse começou a freqüentar aulas de escultura e pintura.
No entanto, ao terminar o ensino médio cede em parte à vontade dos pais e entra
para a faculdade de Medicina, mas como gostasse muito mais de artes dramáticas e
dança contemporânea, que também freqüentava secretamente, abandona o curso após
quatro anos, desvincula-se da família e assume atitude de andarilho.
Seu objetivo era a Europa, mas para chegar lá fez uma breve escala no Brasil,
onde criou uma fábrica de jeans e couro: foi com a renda adquirida neste trabalho
que embarcou de navio para a França onde apresentou um projeto de pesquisa na Universidade
Internacional de Teatro, ocasião em que conviveu com estudantes de trinta paises
diferentes. Em parceria com Jean-Marie Seraud montou o espetáculo inaugural do Teatro
do Museu do Louvre: Ubu-Reide Alfred Jarry, espetáculo multimídia com seis
horas de duração que utilizava várias artes: televisão, cinema, música e dança,
com o qual ganha o primeiro lugar no Concurso de Jovens Companhias. Daí em diante
Victor García começa a circular pela Europa encenando peças em Milão, Bruxelas e
Belgrado.
Como diz Newton de Souza, citando Odette Aslan (Le
cemitiére des voitures. In: JACQUOT, J. (Org.) Les voies de la création théâtrale. Paris. CNRS,
1970), pesquisadora do trabalho do encenador argentino, seus primeiros trabalhos
“eram desprovidos de um sistema ou método”, mas a verdade é que ele, premido pela
falta de recursos-tempo e dinheiro para os ensaios se dava melhor trabalhando com
atores jovens e inexperientes. A pobreza - interessante relembrar que ele era de
família abastada - o levava a produzir espetáculos de grande efemeridade, o que,
aliás, ressaltam os estudiosos, não o desagradava. “Umas poucas apresentações lhe
bastavam e tampouco preparava os atores através da exaustão dos ensaios repetitivos”.
Sua intenção era excitar o ator, para que ele “saltasse a arena”, partindo logo
para realizar outra “das vinte ideias que lhe vinham à cabeça simultaneamente”.
Outra característica notável no trabalho
de Victor García em Paris foi o desprezo pela palavra ou pelo texto, e isso se devia
mais e principalmente ao desconhecimento quase que absoluto da língua francesa e
formação multicultural dos seus elencos. Assim, quer dizer, com essas condições
precárias Victor montou Cemitério de Automóveis, coletânea de textos do espanhol
Fernando Arrabal (1932) em junho de 1966, para ser apresentada no Teatro de Dijon.
Remontada em 1968 no Theâtre des Arts em Paris, a peça foi vista por Ruth Escobar
que acabara de montar no Brasil, com grande repercussão e sucesso, Roda Viva,
de Chico Buarque de Hollanda, e que, encantada com suas possibilidades, convida
o encenador para remontá-la aqui. Então começava uma relação de Ruth Escobar com
Victor García - “relação de amor e ódio”, segundo ela -, que duraria até o fim de
1974.
Na capa do programa de O Cemitério de Automóveis vemos uma cena chocante
e bela: um homem deitado de costas sobre o tanque de uma motocicleta e com os braços
abertos sobre o guidão, amparado por uma mulher risonha, numa clara e irônica alusão
à imagem de Cristo na cruz. “A máquina, o veículo, o símbolo de uma era, a era industrial”,
diz Newton de Souza, “servindo de suporte para o sacrifício arcaico do Mártir”.
Mas esta era a intenção do autor Fernando Arrabal, à época com 37 anos, dramaturgo
espanhol que vivia em Paris e contava já com mais de trinta peças escritas, além
de vários livros publicados, sendo considerado o mais estranho escritor dos cinco
continentes e que assim falava a seu respeito: “se eu fosse normal não seria normal”.
Considerado “pontífice máximo” do Teatro Pânico, a escola nasceu em Paris
no famoso Café de la Paix, em 1960 e então já produzia espetáculos que a revista
francesa Realités definia como “festas estravagantes e primitivas, a meio
caminho entre a maravilha e o horror”. Um teatro obsessivo, violento, erótico e
por vezes macabro e também de uma ternura quase infantil. Dentro dessa concepção
estava, portanto, Cemitério de Automóveis, transposição voluntariamente ingênua
do mistério da Paixão. Emanu (uma brincadeira com o nome Emanuel) toca pistão para
entreter os pobres, que moram em automóveis abandonados, como em palácios. Ele é
também ladrão e assassino, rouba os ricos e mata gente que o aborrece. Denunciado
à polícia por seu companheiro Tope, é crucificado em uma bicicleta.
Sendo representado nos cinco continentes, os discípulos de Arrabal diziam,
com um toque de megalomania, que combinava à perfeição com a atitude pânica: “sobre
o teatro do mestre como sobre o império espanhol de Carlos V o sol nunca se põe”.
Fernando Arrabal era descrito no texto do programa como sucessor do Teatro do Absurdo,
e sua obra, “um ritual teatral” que unia “humor e poesia, pânico e amor”, obras
de um homem profundamente marcado pela Guerra Civil que assolou a Espanha entre
1936 e 1939 e que Picasso imortalizaria em Guernica.
Acontece que o espetáculo Cemitério de Automóveis, criação de Victor
García não era apenas a peça do dramaturgo espanhol; era uma composição de quatro
peças de Arrabal cujo tema era a Guerra Civil Espanhola: 1º Ato: Oração, Cemitério
de Automóveis (1ª parte) e Os dois carrascos; 2º Ato: Cemitério de
Automóveis (2ª parte) e A primeira comunhão. Em A Oração um homem
e uma mulher (Fídio e Libe) dialogavam em torno do cadáver de uma criança que eles
haviam assassinado, mas que a partir daquele ato começam a refletir sobre a necessidade
de serem bons.Cemitério de automóveis é uma reinvenção da paixão de Cristo
por Emanou, e se passa em um “hotel, bordel e cidade” nos quais os habitantes adotavam
“maneiras de grandes senhores, hóspedes de hotel de luxo”. Emanou acabava preso
por um homem e uma mulher que atravessavam a cena, e que se exercitavam em bater
um no outro, a certa altura da encenação assumindo postura de policiais.
Os dois Carrascos era um “melodrama autobiográfico”
cujos personagens simbólicos representavam algumas peças do jogo político fascista:
Conceição, a mãe representando valores tradicionais: Família, Pátria, Moral Cristã,
denunciara o marido à polícia fascista e seus dois filhos: Benito, que a apoiava,
e Mauricio, que se rebelava, mas, no entanto, lhe era submisso, representando, portanto,
o povo espanhol humilhado. Finalmente, naPrimeira Comunhão, a Avó dava conselhos
a uma menina paramentada como comungante sobre os valores tradicionais, sobre o
comportamento dela como mulher na sociedade, uma mulher casada que devia se submeter
em tudo ao marido.
Portanto tínhamos assim uma junção
que resultaria explosiva: um autor considerado difícil, e um encenador hipercriativo.
O próprio Victor García assim apresentava o dramaturgo espanhol e sua concepção
do espetáculo:
“Arrabal é antifranquista, tem um irmão militar que trabalha na Aeronáutica
da Espanha e o pai, desaparecido na Guerra Civil Espanhola, teria sido denunciado
pela própria mãe. Desse desencontro, com metade da família voltada para uma posição
política e a metade para outra, nasceu a revolta de Arrabal que a introduz em suas
obras teatrais. O cemitério de automóveis retrata as misérias existenciais, morais
e psicológicas de pessoas - notadamente as de nível social mais baixo - que vivem
nos automóveis abandonados - da Europa e sobretudo dos Estados Unidos, como se fossem
suas próprias residências.Os automóveis abandonados tem duplo sentido, pois na realidade
as pessoas vivem, procriam , dormem,amam e odeiam dentro dos carros, mas têm também,
um sentido vago, pois o teatro de Fernando Arrabal não é realista, mas abstrato…
No Cemitério de Automóveis não há argumento preciso, os personagens são cafajestes
místicos, preocupados em destruir o elemento humano mais próximo de sua maldade.”
(O. Kruse, Folha de S. Paulo, 26/08/68).
Assim é que Victor García, quando começou a apresentar seu projeto para esta
encenação no Brasil, falava em principio em “teatro total”, ou seja, uma encenação
que envolvia três palcos simultâneos, onde os espectadores sentados sobre poltronas
giratórias, poderiam se mover de um lado para outro para acompanhar as três cenas;
repetia-se em São Paulo a proposta realizada em Paris. Defendia o diretor argentino:
“O cenário será formado com carcaças de autos: neles, como numa favela, vegetam
várias famílias” e considerava que para tal bastariam duas salas. Victor era modesto.
Mas não foi isso que Ruth Escobar
promoveu para O Cemitério de Automóveis que programado para estrear em agosto
de 1968 só foi aberto ao público em fins de outubro daquele ano e já sendo anunciado
como “o mais difícil espetáculo até hoje montado no Brasil” (Diário de São Paulo,
21/09/1968): ela reformou duas oficinas mecânicas na Rua Treze de Maio, no bairro
da Bela Vista em São Paulo e com a ajuda de uma equipe de engenheiros montou um
verdadeiro cemitério de automóveis com uma bela soma de dinheiro, coisa em torno
de cem mil cruzeiros novos e um enorme elenco de 27 atores.
Estava criado um novo teatro em São Paulo: o Treze de Maio. “Não existia
sala de espera”, descreve Newton de Souza. E seguia:
“Assim, ao ultrapassar a bilheteria, transpondo apenas um pequeno biombo
o espectador se encontrava no interior do espaço cênico, aparentemente não havendo
delimitação entre as áreas de público e de representação. Logo na entrada da sala
havia quatro carcaças de automóveis anos 50, suspensas no ar, presas ao madeiramento
do telhado por correntes e ganchos de guindaste. As aludidas carcaças eram dispostas
com aparente displicência acima da altura da cabeça dos espectadores e no centro
da largura da sala.”
“Como o teto não possuía revestimento, as instalações elétricas, os refletores
e as telhas sobre madeiras sujas e mal pintadas ficavam expostas. Logo abaixo do
conjunto de carcaças, um praticável inclinado de madeira com cerca de 6 metros de
comprimento, partia do chão atingindo 90 centímetros de largura no centro do recinto.
Esse praticável se unia a um palco, posicionado perpendicularmente medindo 6 x
4 metros. A área do público era composta por dois conjuntos de cadeiras giratórias
de plástico rígido, ao redor do conjunto palco praticável ou em cadeiras fixas,
posicionadas junto da parede esquerda do galpão e voltadas para o centro, ao nível
do chão ou num nível superior, formando uma espécie de balcão”.
“À frente das cadeiras superiores havia uma passarela cerca de dois metros
e meio acima do solo, sustentada por colunas com intervalos regulares. Essa passarela
com largura de dois metros, cobria o perímetro da sala, com exceção da parede do
fundo, ponto em que um praticável declinava até o chão. As paredes laterais estavam
revestidas com chapas metálicas e por todos os lados eram vistas peças de funilaria
amontoadas. A área total, ocupada pelo espaço cênico, media apenas 10 x 30 metros
o que intensificava ‘o entulhamento’. Os pontos de vista dos espectadores seriam
diferentes dependendo da posição que ocupassem nesse ambiente em que estavam imersos”.
As cenas se desenvolviam alternada ou simultaneamente ao longo do praticável
inclinado e sobre o palco central, em meio e abaixo das carcaças próximas à entrada
e sobre o mezanino. Os objetos que compunham o ambiente não eram totalmente fixos,
de modo que algumas peças eram movimentadas pelos contrarregras ou pelos próprios
atores, sem recursos eletromecânicos.
O cenógrafo Wladimir Pereira Cardoso, na época casado com a empresária Ruth
Escobar, fala do espaço de forma simples e compreensível:
“Tivemos que inventar um tipo de palco que rompe com todos os modelos conhecidos.
As cenas se desenvolvem numa plataforma central a qual os atores chegam por uma
rampa, e também uma passarela elevada que contorna toda a sala, junto às paredes.
A representação, portanto, envolve o público por todos os lados e em vários planos
simultâneos. Sobre a passarela circulará até uma motocicleta, o que nos obrigou
a usar materiais resistentes e caros.”
Com tanta despesa, um dos atores observou que seria preciso “faturar alto”.
Mas parece que a ideia de ganhar dinheiro não é mal vista pelos aficionados do teatro
do pânico e mesmo segundo o próprio Arrabal, que tem entre um dos objetivos da sua
escola “o conforto na liberdade.”
No entanto esta não era a posição de Victor García, então com 33 anos. Definido
por jornalistas como “baixo, nervoso, longos cabelos encaracolados, vestido exoticamente
- calça justa, colete florido e casaco de pele - sendo que aparece de vez em quando
com uma margarida atrás da orelha e um colar de contas brancas do qual pende um
macaquinho no lugar do medalhão”, Victor não ambicionava riqueza com esta arte.
Newton de Souza anota que “um espetáculo com tais características se destacava
claramente do padrão vigente, bastando lembrar que a grande maioria dos espetáculos
teatrais ainda hoje, se realiza frontalmente, sendo, portanto compreensível que
o simples abandono dessa relação tradicional fosse um estimulo à curiosidade do
público” E lembrava que neste ano de 1968, pelo menos na cidade de São Paulo, a
hegemonia da frontalidade já havia sido pelo menos “arranhada” pelas propostas do
Teatro de Arena e Teatro Oficina que vão ampliar projetos iniciados em 1951 na Escola
de Arte Dramática de São Paulo com espaços cênicos desenvolvidos pelo arquiteto
Joaquim Guedes para o Oficina, formados por duas plateias paralelas e convergentes
com a área de representação no centro, além do espaço de Roda Viva, que marcou
uma mudança importante não só na proposta cênica, tendo sido espetáculo altamente
agressivo no sentido de provocar a plateia naqueles anos de chumbo que vivíamos
desde 1964 com o Golpe Militar.
A encenação de Roda Viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa,
anota Newton de Souza, pretendia servir de alerta contra os meios de comunicação
de massa que evoluíam no Brasil e eram percebidos na pele pelo jovem cantor
e compositor Chico Buarque de Hollanda, autor da peça; especialmente as emissoras
de televisão que começavam a substituir o rádio e tinham como principal item do
cardápio a ser oferecido ao público o artista, “temperado” segundo os interesses
dos proprietários dos veículos e que iam sendo substituídos também ao sabor do gosto
da clientela. Uma vez banalizados eram descartados.
Enfim, vivíamos plenamente a sociedade de consumo e a ditadura militar corria
solta. Assim o principal ingrediente de Roda Viva era a provocação que se
pretendia contra a plateia e aqui eram largamente usados o palavrão, os gestos obscenos,
a blasfêmia e a heresia, que tinham por alvo a classe média, a família e a moral
cristã aliados ao novo poder: a mídia. Por tudo isso o espetáculo foi acusado por
deputados conservadores e pelos meios de comunicação como obsceno e libertino. Em
julho de 1968, Roda Viva foi alvo de violento ataque do Comando de Caça aos
Comunistas (CCC), grupo paramilitar que atuou durante a ditadura.
“Do ponto de vista dos artistas”, diz Newton de Souza, “sobretudo do diretor,
sufocado pelo regime militar, Roda Viva era uma tentativa de romper com a
passividade do público que não se sentia atingido pela opressão gerada pelo sistema
político e pelo modelo econômico. As palavras neste sentido não cumpriam o papel
de atingir as consciências, fazendo-se necessário um contato mais direto com o espectador.
Nesses termos a distância e as reservas entre áreas de representação e de público
precisavam ser desfeitas. O espaço cênico precisava ser modificado - uma passarela
então saía do palco e avançava para a plateia, e era utilizada como área de representação.”
Ou seja, inspirado nas manifestações da contracultura europeia e norte-americana
José Celso dava os primeiros passos tentando não apenas aproximar fisicamente o
intérprete do espectador - o CPC e o Arena já haviam feito isso - mas procurando
atingi-lo diretamente por meio da agressão. Da perspectiva dos produtores essa fórmula
atraía o interesse de um público emergente e de grande potencial, formado principalmente
por jovens da classe média e estudantes universitários, o que vai fazer do espetáculo
um dos maiores sucessos de bilheteria do ano.
Isso para dizer que a proposta de Victor García em Cemitério de Automóveis
apresentava particularidades não encontráveis em outras companhias profissionais.
Não se tratava aqui apenas de um novo tipo de palco, mas de um novo conceito de
espaço cênico, na medida em que o ambiente original - uma oficina mecânica - fora
preservado em suas características fundamentais para atender às exigências da montagem.
Neste sentido, Newton de Souza anota que o espetáculo “era a primeira experiência
registrada no Brasil, onde o espectador era envolvido pelo ambiente sugerido pela
encenação nos moldes daquilo que em artes plásticas se pretende com a instalação”.
As críticas eram, em geral, positivas, mas havia discordâncias; um dos mais
entusiastas era Sábato Magaldi que então usava termos como: “delírio da imaginação”,
“ritual artaudiano”, “apelo aos sentidos em mostra mediúnica de horror cósmico”,
já que “a mais profunda irrisão se ordena numa plasticidade de beleza invulgar,
e referia-se ao Victor García como um “encenador sacerdote”. Quanto ao texto dizia:
“as quatro peças, enfeixadas sob o nome da última, têm a sua unidade própria, em
uma organização íntima que basta a si mesma. Não será exagero afirmar que a disposição
cênica nova que lhes deu Victor García, fundindo-as e interpondo-as entre os dois
atos originais de Cemitério o ato dos Dois Carrascos, e deslocando o seu
desfecho para o fim da Primeira Comunhão, talvez obscureça um pouco o sentido já
bastante hermético dos textos, mas atinge uma expressão muito mais violenta e compacta
do universo de Arrabal.” [Jornal da Tarde, SP, 16/10/68]
Mas Sábato não deixava de constatar um grau de hermetismo no espetáculo que
parecia que tinha uma vontade de opor a essa cerimônia pânica “…um mundo de clareza
e lógica e daí que o resultado, ele constatava - proibia um juízo de desempenho
em termos rotineiros o que legitimava qualquer possível incompreensão”.
Já a crítica Regina Helena [A Gazeta, SP, 16/10/68], não fazia concessões,
e declarava seu desconforto com a liberdade do encenador, alegando que Victor García
havia montado “um espetáculo pirotécnico, barulhento, em ritmo completamente maluco,
ensurdecedor, que deixava o público desnorteado e sem fôlego para prestar atenção
ao texto”, sugerindo que em alguns momentos o diretor tenha decidido mesmo “fazer
sensacionalismo, não resistindo à tentação de espantar os burgueses”. Enfim, ela
acusava produtores e diretor de não terem feito qualquer esforço para esclarecer
o público que não se tratava apenas de uma única peça e completava dizendo: “Arrabal
já é um autor difícil. As verdades que ele diz precisam ser procuradas dentro do
texto. É preciso pensar sobre suas peças. No meio de todo o seu absurdo, há um misticismo
coerente, há uma linha de pensamento, de raciocínio, que jamais poderá ser encontrada
pelo público que for ver O Cemitério de Automóveis”.
A verdade é que o espetáculo gerou polêmica entre os críticos que com menores
ou maiores restrições salientavam a autonomia da encenação em relação ao texto.
Assim, Paulo Mendonça (Folha de S. Paulo, 03/11/68), que já julgara legítimo
o procedimento de Victor García voltou a escrever e se apoiou em Décio de Almeida
Prado em defesa da montagem que já tinha se referido “ao deslocamento do teatro
de texto para um segundo plano, com a presente predominância do teatro-espetáculo”.
Isso para concluir que afinal a encenação tinha mesmo “uma tendência para atingir
o espectador mais pelos sentidos do que pela inteligência” e acentuava a semelhança
com experiências que buscam recuperar “os valores primitivos da atividade dramática,
como nas festas e nos rituais religiosos”.
Os críticos João Apolinário (Última Hora, RJ, 12/10/68) e Carlos Alberto
Christo (Folha da Tarde, SP, 22/10/68) fizeram referência a Meyerhold ainda
que houvesse certa unanimidade entre eles em considerar que pelo aspecto ritualístico
da encenação o espetáculo de Victor García se filiasse mesmo a Artaud. Esta linha
era seguida pela pesquisadora francesa Odette Aslan que, em estudo aqui já referido,
aventou a hipótese de que este vínculo tivesse sido estabelecido por precaução já
que o próprio Victor García alegara que qualquer influência com o criador o Teatro
da Crueldade seria improvável, pois ele conhecera bem mais tarde as propostas de
Artaud. Suas referências, dizia, “eram mais o folclore indígena e a cultura brasileira”.
Aslan vai alertar que a referencia a Artaud admitia ambiguidades, uma vez que considerava
possível encontrar em Cemitério de Automóveis traços de Stanislavsky e de
Brecht. Enfim, a verdade é que o espetáculo revolucionário de Victor García suscitava
a crítica que se desdobrava para enquadrá-lo em alguma corrente, movimento ou tendência
do teatro universal.
Newton de Souza acredita ser possível aceitar algumas semelhanças entre as
proposições de Artaud, mas Cemitério de Automóveis em hipótese alguma levava
à radicalidade do encenador francês no tocante a sua recusa total à arte como entretenimento.
Para ele, Cemitério de Automóveis “podia, talvez, em sua montagem parisiense
ter tido ligações com Artaud”, mas esta montagem brasileira era uma produção comercial
da produtora na qual Victor García propunha um trabalho de ordem estética, atribuição
completamente afastada do Teatro da Crueldade. O sentido quase sagrado pretendido
pelo teatro e a possibilidade de produzir na plateia algo semelhante ao que faz
o “encantador de serpentes”, exigia um envolvimento orgânico e particular com a
arte.
Já Victor García segundo ele mesmo dissera “criava arquiteturas” e ainda
detestava ensaiar - era o Silvio Zilber, ator e assistente de direção, quem fazia
as répetitions. Enfim, para Newton as raízes de Cemitério de Automóveis
podem ser melhor entendidas se comparadas a uma manifestação que se dinamizava no
final dos anos 60 e que de alguma maneira guardava certas correspondências com Artaud:
o happening. “Os happeners, como são conhecidos os realizadores deste evento, renunciam
totalmente ao texto escrito e operam sobre o público uma espécie de terrorismo sensorial
e nervoso através de jatos violentos de luzes espasmódicas, ruídos ensurdecedores,
objetos que são atirados, em geral sujos sobre a plateia”.
De qualquer forma aqui também é uma tentativa de interpretação, porque em
Cemitério de Automóveis ninguém jogava nada na plateia. Newton de Souza explica
a possível aproximação do espetáculo com este movimento teatral pelo fato da manifestação
ter sido uma das propostas do teatro pânico de que Arrabal fazia parte. Ele vai
lembrar também que o happening não podia ser ensaiado ou repetido, não podia ser
totalmente premeditado, ou seja, era uma espécie de comunhão coletiva e possuía
um caráter efêmero. Diz ainda que o que distanciava a versão paulistana de Cemitério
de Automóveis da proposição original do happening é justamente a abolição da
efemeridade: se foi apresentado poucas vezes em Paris e se esta era uma característica
dos espetáculos de Victor García lá, na versão paulistana ele acredita ser possível
encontrar o tema social metaforizado em uma dimensão trágica.
Depois de Cemitério e seu sucesso Ruth Escobar e Victor García resolveram
montar alguma coisa maior, mais grandiosa - O Balcão de Jean Genet onde novamente
o encenador argentino vai dar sua marca: partir da arquitetura para conceber seus
espetáculos, fazendo do espaço cênico, como constata Newton de Souza, “o principal
alicerce de sua criação teatral”. E O Balcão, pela grandiosidade e complexidade
mecânicas empregadas, vai merecer o reconhecimento de Denis Bablet (Les révolutions
scéniques du Xxo. Siècle. Paris: Société Internacionale d’Art, 1975), como a
única produção brasileira a figurar entre as denominadas Revoluções Cênicas do século
XX.
As críticas agora eram deslumbradas. O crítico, professor e autor de teatro
Sábato Magaldi escrevia:
“Só no Brasil - que, felizmente, está aberto para o imprevisível e a criatividade
- seria possível realizar a montagem de O Balcão, agora oferecida no Teatro
Ruth Escobar. As rigorosas leis do profissionalismo nunca permitiriam esse esbanjamento
de imaginação fora da realidade, e a tarefa amadora é forçosamente mais modesta,
sem recursos para animar o universo encantado da obra de Genet e do encenador Victor
García. Anotemos sem retórica: estamos vivendo uma experiência teatral única no
mundo, em que ao menos a curiosidade deveria provocar filas para a entrada nessa
casa de ilusões.”
“Assim como o bordel de Mme. Irma apresenta todos os
prestígios da fascinação e da fantasia para os seus clientes, a majestosa e poética
estrutura metálica do cenário de Wladimir Pereira Cardoso instala os espectadores
como voyeurs desse jogo ilusório, tornados participantes de um ritual de
frustrações e de sonhos que nos desnudam as nomenclaturas míticas da humanidade.
O brilho falso da pompa, que permite pobres mortais converterem-se em bispo, juiz
e general, na casa de ilusões acionada por mecanismos cenográficos, materializa-se
em quase brinquedo na maquinaria engenhosa e sedutora exposta ao público. Magnífica
e desvanecente casa de ilusões para as personagens e para nós, voyeurs. (Jornal
da Tarde, SP, 31/12/69)
No entanto, apesar deste início deslumbrado, ele aponta problemas do espetáculo:
riqueza ainda irresoluta de duas linguagens que, juntas, ultrapassam a capacidade
receptiva das pessoas - a verbal de Genet e a visual de García. Anota que preso
ao tempo da maquinaria faustosa, o encenador foi obrigado a sacrificar diálogos
belíssimos, o que dificultava para o espectador acompanhar o desenvolvimento do
texto. “Para a cerimônia de Victor García talvez fosse recomendável um autor menos
inspirado, que não concebesse a peça como único estandarte da palavra. A contradição
se encontra no fato de que ou Genet precisaria reescrever o texto para integrá-lo
melhor na concepção de Victor García ou o encenador deveria humildemente expor o
dramaturgo, para a literatura não parecer às vezes um ornamento demasiado.”
Mas de qualquer forma fazia o elogio dos atores que, depois de terem ensaiado
durante seis meses, foram obrigados a parar e buscar outras formas de sobrevivência
para retornarem ao espetáculo e cita o time escolhido de atores brasileiros: Raul
Cortez, Sérgio Mamberti, Dionizio Azevedo, Célia Helena, Thelma Reston, Neide Duque,
Vera Lúcia Buono, Carlos Augusto Strazzer, Paulo César Pereio, Jonas Mello. Conclui
afirmando que “pelas vicissitudes de seu preparo e pela coragem épica da empresária
Ruth Escobar, pelo resultado artístico alcançado com criação de beleza pura e austera,
O Balcão marca a história do nosso teatro e faz de nós espectadores prosaicos,
beneficiários de um raro privilégio”.
Sergio Viotti, por sua vez, reconhecia:
“É difícil comentar o fantástico sem fugir ao equilíbrio racional e metódico
que acompanha o habitual. Nesta montagem de O Balcão de Genet, que agrediu
São Paulo com impacto muito mais impressionante do que as tempestades de janeiro,
tudo é tão magnífico, de tamanha qualidade de beleza visual, de uma vibração sensual
tão densa e sufocante, de um ardor de imaginação desenfreada tal que se irmana aos
excessos de visões místicas indecifráveis e à loucura que não teme a matéria, a
forma, o som ou a palavra.” (O Estado de S. Paulo, 18 e 20/01/70)
Continuava dizendo que um convite era feito aos espectadores: penetrar numa
escultura no interior da qual os atores representam suspensos no ar e onde todos
ficaremos desconfortáveis, mas
“fascinadamente mesmerizados às bordas de um abismo, sentados ao longo de
um espiral que sobe contornando as paredes internas de um funil de negros fios de
ferro. O espaço cenográfico é o mesmo espaço da arquitetura teatral: o teatro é
o próprio cenário, apenas protegido do ar livre pela casca das paredes externas
do prédio. Quem conheceu o Teatro Ruth Escobar não o reconhecerá mais, pois deixou
de existir. Em seu lugar, ergue-se O Balcão, a Casa de Ilusões de Mme. Irmã.”
“Dentro da maravilhosa estrutura fixa de Wladimir Pereira
(um trabalho de inventiva e paciência orientais) processa-se um jogo de formas móveis
que baixam do alto para serem içadas, variando constantemente a área espacial: outras
deslizam verticalmente sobre os eixos de sustentação nas faces internas da estrutura;
em determinado ponto, parte desta se abre, como um portal de duas folhas, cheio
de espectadores que se movem também, e nos comunicamos com o que foi o fundo da
plateia em degraus do transformado teatro, agora o caminho que leva da prisão da
Casa de Ilusões de Mme. Irma (que se recusa a chamá-la de bordel) à prisão do vasto
mundo onde os revolucionários lutam.”
Comparando as duas montagens do diretor argentino no Brasil, Sergio Viotti
constata que enquanto no primeiro - O Cemitério de Automóveis - o problema
espacial e o ritmo haviam sido resolvidos horizontalmente, aqui neste O Balcão
ele foi organizado verticalmente, mas sempre com um ritmo próprio liturgicamente
solene. Diz ele:
“Através da imaginação e riqueza de meios de expressão (o gesto significante,
os rituais assombrosos, a coreografia das máquinas), O Balcão vai deixando
entrever sua profundidade: ilusão e realidade se confundem, devoram-se e a conquista
do real nas bases da ilusão aprisiona da mesma forma. O resultado em termos de envolvimento
é tão grandioso que qualquer comentário sobre alterações no texto de Genet torna-se
vão e sem propósito. É muito raro ver-se um diretor que vá além do texto que trabalhe
sobre ele com a fúria de um selvagem fascinado pelo rito sangrento que inventou
(do qual não pode mais se libertar; que tem de levar até o fim) e que assim fazendo,
recrie este mesmo texto em um plano anterior à criação do próprio autor. García
não encenou o texto de Genet: foi às suas origens e trouxe à luz o essencial, sobre
alicerces de criação paralela. Não é dado a todos os diretores idêntico privilégio
sem castrar o autor distante. Em sua ousadia, Victor García nos mostrou uma grandeza
que a peça não teria se fosse montada no acanhamento de um cenário (como sugerido
pelo autor) ou nas linhas realistas da primeira montagem no Arts de Londres, em
1957, onde a obediência sabia a inconfortável Grand Guignol.”
Viotti continua dizendo que o duelo entre o corpo humano e a máquina é incessante.
“Ela o ergue, baixa, suspende, balança, recurva, sorve (há instantes em que
os corpos parecem estar sendo sugados pela fossa da luz prateadamente infernal)
e ascende (como na inesquecível cena final em que o Homem Liberto emerge dos infernos
e sobe, em gloriosa ascensão, crucificado no espaço, com um sorriso no rosto e um
laivo de eternidade no olhar fulgurante); enquanto outros, emergindo da concavidade
luminosa no fundo do cenário - visão de um fosso sistino, não de um teto - sobem
pela armação afunilada, eles também galgando e atingindo a uma liberdade à qual
o Homem tem direito, evocando uma gravura dantesca de Gustave Doret em movimento.
Por vezes, esta luta (carne versusmáquina) torna-se quase intolerável, como
na longa cena de Irma e Carmem.”
Viotti ressalta ainda que o resultado final seja de uma unidade de interpretação
de grande densidade.
“Raul Cortez (com um arrojo e grandeza); Célia Helena (voz-lágrima cheia
de tristeza humaníssima); Sérgio Mamberti (um furor cheio de espantos); Dionizio
Azevedo (com um vigor angustiado); Ruth Escobar (a rigidez e o propósito das Grandes
Donas de Balcões e Tronos); Jonas Mello (a brutalidade sensual indiferentemente
macha); Paulo César Pereio (autoridade perdida); Nilda Maria (arfante procura de
várias liberdades); e Carlos Augusto Strazzer (que tem, como pede Genet, um rosto
assez triste et assez farouche) - todos unidos dão uma contribuição vital
ao espetáculo.”
“Escravos daquela estrutura medonhamente maravilhosa, de um realismo fantástico
além da imaginação, de gravuristas sombrios, os atores, parte de uma única imagem
total, executam feitos de uma ousadia física que já se torna coragem.”
Sergio Viotti conjectura que provavelmente no Brasil, a exemplo do que ocorrera
como outras encenações desta peça, Genet tivesse se amargurado, pois não aprovara
propostas de diretores como Peter Zadek, em 1957, em Londres; Mathurins, em 1960,
em Paris; a do Circle in the Square, em Nova York; a de Berlim; entre outras que
ignorou, isto considerando que também Victor García não lhe respeitou o texto. “Trabalhou
sobre ele, recriou, cortou falas e personagens”… “mas afinal tudo isso um diretor
total pode fazer sendo que esta lição nos deixou Meyerhold, que já torcia e retorcia
textos sacrossantos. E quem lucra com isso? O teatro.”
É verdade que Victor García fez isto, interferiu loucamente no texto de Genet,
mas com o aval do autor francês que a empresária Ruth Escobar trouxe para o Brasil
à época. O diretor argentino conta como isto aconteceu no programa do espetáculo
(O Balcão, Teatro Ruth Escobar, 1969), que vale ser citado na íntegra, por
ser um dos poucos disponíveis dele:
“Depois de analisar demoradamente com Genet, a montagem de O Balcão,
ele me disse: ‘Se for preciso Victor, traia-me’. Eu tinha autorização para cortar,
introduzir falas de outras peças e de romances no espetáculo. Mas no momento de
realizá-lo, senti que bastava o texto original de Genet. Aliás, interessava-me sua
essência, porque sua forma permanece antiga, presa às convenções do palco italiano.
O Balcão, sob certo aspecto, lembra Pirandello. Hoje Genet sabe que se assiste
ao fim da literatura teatral, e que a expressão dramática passa por uma metamorfose,
não por uma crise.”
“Concebi O Balcão com valores
cósmicos e seria ideal que a peça se passasse inteiramente no vazio: como alguém
que não pudesse mais viver na terra e não conseguisse deslocar-se ainda dos invólucros
terrestres. Mas não há nada de vago e impreciso nisto. A liberdade de expressão
que almejo exige muito mais disciplina do que o ato de criar na certeza e na segurança
das coisas. Eu detesto destruir, detesto a agressão. Adoraria que meu espetáculo
fosse como que o testemunho do instante. Agrada-me preencher o vazio. O ruído de
carcomido que existe na montagem é para que acreditem na construção.”
“Quando sinto, estouro e explodo. Nossa contemporaneidade é a ruptura de
estilos, mas não aceitaria que isso se tornasse um maneirismo. Hoje não pode haver
preconceitos. É preciso enobrecer as coisas, até o excremento. Isso eu quis mostrar
em O Balcão.”
“Necessito de um mínimo espaço cênico, condicionado ao meu magnetismo, à
minha cerimônia. Ainda não estamos preparados para atuar no deserto, sem nada. Utilizo
os elementos mais primários da civilização, como a máquina, a roda. O importante
é o estímulo que esses elementos provocam na gente - se são generosos, carregados
de amor. Não me interessa a arte como representação do cotidiano. Era necessário
injetar no espetáculo sangue, sêmen e lágrimas. Uso instrumentos de uma alta cirurgia
espiritual que nada tem de anedótico. O artista hoje não cria o objeto, mas o assinala.
A cama ginecológica é um excelente praticável para os atores. Tenho horror do cenário
de telão pintado. Trabalho com um instrumental do século XX.”
“Nesse ambiente, os atores devem perder a individualidade, para recuperar
depois sua identidade. Eles representam como se vendessem sua alma ao diabo. Do
contrário seriam tragados pela máquina. Com esse procedimento eles humanizam a máquina,
afeiçoada ao homem. Minha tarefa, como encenador, não é mais que a de um elo da
corrente. Organizo os fluidos, a energia anímica. Assim é possível realizar um ritual.
Na cerimônia que O Balcão, agarro o coração do público.”
Mas afinal se Victor García pretendia uma coisa despojada - “um mínimo espaço
cênico” - novamente não devia ser levado ao pé da letra, porque não foi isto que
ocorreu. O espaço cênico criado foi dos mais complexos realizados até hoje no Brasil
e com certeza no mundo, já que segundo os críticos isso foi possível aqui justamente
por falta de leis que proibissem tais aventuras. E isso se pode constatar na descrição
do cenário-genial feita pelo próprio cenógrafo, o arquiteto Wladimir Pereira Cardoso,
publicado no mesmo programa do espetáculo.
Wladimir conta que ele e 18 outras pessoas trabalharam durante cinco meses,
20 horas por dia para realizar o cenário de O Balcão, sendo que dormiam no
Teatro Ruth Escobar, distribuídos até o teto, e até instalaram um cozinha para que
uma cozinheira que chegava às sete horas da manhã, fizesse lá mesmo as refeições.
“Desde meu primeiro cenário para Soraya, Posto 2, de Pedro Bloch eu tinha
a preocupação das soluções verticais. Ali, dentro do palco italiano construí um
edifício de cinco andares. Na verdade, eu já havia imaginado um cenário semelhante
ao Balcão para o espetáculo shakespeareano que o diretor inglês Mike Bodganov
deveria montar a convite da Ruth Escobar. Daí como no Globe Theatre de Londres a
solução eram cinco andares. Esta forma afunilada se presta muito para que os espectadores,
ao mesmo tempo em que têm uma visão global do bordel, fiquem como que suspensos
no ar.”
Continua dizendo que o estilo do Teatro Total o motivou para a forma primitiva
da casca do ovo e da gema, que se encontra no seu cenário. Aliás, “esta é uma das
formas primitivas da arquitetura, existente nas ruínas de Tietzing, que datam de
12 mil anos”. Segue:
“Quando estive em Praga, dialoguei muito com o cenógrafo Svoboda, que fez
um palco acrílico iluminado de baixo para cima. Em O Balcãoutilizo uma ideia
semelhante, iluminando-se o ambiente por meio de um espelho parabólico, escavado
no concreto do porão, que está cinco metros abaixo do palco. Ficou uma concha elipsoidal
com plástico espelhado, desempenhando função semelhante à de um farol de automóvel.”
“Há ainda um módulo que sobe e desce.
Neste palco móvel passam-se muitas cenas, mas os atores distribuem-se por todo o
teatro, inclusive nos passadiços inclinados em que fica o publico. Dos urdimentos,
desce uma rampa em espiral com nove metros de altura, sendo utilizada em alguns
quadros (do espelho parabólico aos urdimentos há uma distância de 20 metros). Além
disso, foram instalados cinco elevadores individuais e dois guindastes suspendem
duas gaiolas, onde dialogam Irma e Carmem.”
“Os atores usam também plataformas que são pequenos palcos individuais, verdadeiros
trampolins. Há ainda uma mesa ginecológica que entra no módulo sem necessidade de
quem a empurre.”
Finalmente ele descreve: uma parte da estrutura metálica, de seccionamento
trelissado, se abre para a entrada dos revolucionários. E dá as cifras do custo
do engenho que fez com toda sua arte: 275 mil cruzeiros novos e ainda: como este
funil foi concebido para O Balcão, “o ferro vai virar sucata, quando terminar
a carreira do espetáculo”.
Depois dos seis meses da temporada de O Balcão, Victor García concedeu
longa entrevista a Márcia Saochella (O Bondinho, SP, 1972) onde ele revelava
a vontade de montar O Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade que tinha para
ele certas semelhanças com o trabalho de Jarry e Apollinaire, mas do qual estava
desistindo em face das dificuldades com a censura. Aliás, sobre isso declarava:
“estou com uma enorme crise teatral, como todos estão, e já não me interessa mais
fazer uma peça a mais”. Quando a entrevistadora perguntou sobre a sua proposta para
esta futura, quase improvável - o futuro diria: não realizada - encenação, Victor
disse que não conseguia trabalhar com os atores e pensar na encenação ao mesmo tempo:
“me é pernicioso”.
“O que interessa é ver a reação do
ator no ambiente já pronto, como um peixe num aquário, a água limpa, a cor, a temperatura
certas, e me agrada apanhar o ator de improviso.” Reafirmava que não era um diretor
de equipe e, lembrando seu trabalho com Peter Brook, dizia que não assumia procedimentos
semelhantes ao do diretor inglês, cujo trabalho considerava retrógrado e individualista,
e que não mudaria sua postura só porque isso era o “quente do momento”.
Chegou a dizer “que a sociedade o
enfeara” e “lamentava não poder adotar princípios coletivos, dificultados por dez
mil anos de civilização judaico-cristã de seus ancestrais”. De qualquer forma não
demonstrava ódio por suas origens, mas procurava se livrar dos valores agrários
da sua família:
“uma vida camponesa árida, em que se está condicionado a não ser feliz, porque
a felicidade é algo vergonhoso, um negócio meio místico… tinha que agüentar a vida…
- uma espécie de estoicismo: amassar o pão com o suor da sua fronte, e não sofrer
com esse suor, ignorá-lo”.
Afinal, mesmo com todos os esforços de Ruth Escobar não se conseguiu montar
O Homem e o Cavalo e Victor García volta para a Europa em 1972, onde dirige
a Companhia de Núria Espert. Em 1973 é novamente contratado pela Ruth, para a remontagem
de O Cemitério de Automóveis em Portugal nos mesmos moldes da encenação de
São Paulo.
No começo de 1974, Victor García voltaria a São Paulo como convidado do Festival
Internacional de Teatro promovido pela empresária para comemorar os dez anos do
Teatro Ruth Escobar e que seria o primeiro de uma série que ficaria conhecida com
os FIACS e que passaria a ser a principal atividade dela, tendo por objetivo promover
o teatro de vanguarda. Victor participa com Yerma, de Federico García Lorca,
que ficaria em cartaz de 12 a 19 de março de 1974 no tradicionalíssimo Teatro Municipal
de São Paulo, surpreendendo público e crítica: neste espetáculo não havia nada do
gigantismo dos anteriores.
Jefferson Del Rios (Folha de S. Paulo, 11/01/74) escrevia: “Em Yerma
o encenador sem violentar o texto, sem desviar a atenção do público para efeitos
espetaculares… trouxe à superfície toda a trágica, sensual e telúrica poesia de
Federico García Lorca”. Ainda que a cenografia fosse arrojada era muito mais comedida
que as anteriores e a critica Ilka Zanoto assim escrevia (citada pro Fernandes em
Teatro Ruth Escobar: 20 anos de resistência. São Paulo, Globo, 1991):
“A encenação de Victor García é de uma beleza rara, áspera e seca como os
gestos dos camponeses que povoam o mundo de Lorca… García provou ainda uma vez que
sabe dominar plenamente um espaço cênico e construir obras de plasticidade ímpar,
mas pela primeira vez despojou-se da espetaculosidade que era marca registrada de
suas encenações e nos ofereceu um espetáculo enxuto, em que o texto e os atores
assumem o primeiro plano e no qual o cenário extraordinariamente inventivo, traduz
de forma completa as intenções do autor. A plasticidade é a tônica do espetáculo,
presente que está na flexibilidade do teto a fios que a ligam ao chão…”
Conforme anota Newton de Souza, Yerma traz a São Paulo uma face desconhecida
de Victor García, um encenador despojado sem ser conservador. “A tão decantada necessidade
de atingir o espectador ‘mais pelos sentidos que pela razão’, não se constituía,
portanto, uma declaração de princípios.”
Victor García volta a associar-se a Ruth Escobar, agora para a realização
de Autos Sacramentais, de Pedro Calderón de la Barca, dramaturgo espanhol
já conhecido do encenador argentino, que tinha feito O Grande Teatro do Mundo
em seus primeiros anos na França. A montagem seria apresentada no Festival de Shiraz,
no Irã e posteriormente faria tournée pela Europa. Aqui de novo seria dada ênfase
à monumentalidade: o cenário deveria ser uma máquina; e a proposta da encenação,
contar a história do nascimento, vida, morte e ressurreição do homem.
Já o texto guardava, segundo Newton
de Souza, semelhanças com O Cemitério de Automóveis na medida em que o roteiro
era constituído de uma colagem: dividido em duas partes, na primeira estavam interpolados
A criação do mundo, A criação do Homem e O casamento da alma e
do corpo; na segunda, O grande teatro do mundo e O mistério dos mistérios.
Vejamos o ator e diretor Sérgio Britto descrevendo a máquina:
“Dia 3 de agosto: vamos a Folha de S. Paulo, onde a máquina-cenário
está sendo construída. É praticamente o diafragma de uma máquina fotográfica. Essa
máquina-diafragma tem movimentos constantes: as pazinhas que abrem e fecham o diafragma,
abrem e fecham nossa máquina-difragma-cenário. Victor nos imagina pulando de pá
em pá, acompanhando o ritmo do movimento desse diafragma. A máquina começava bastante
inclinada e no final do espetáculo, quando o Homem corre para o seu destino eterno,
devia ficar complemente na vertical aberta, diafragma aberto para o Homem na sua
busca de Deus.” (Fábrica de Ilusões: 50 anos de teatro. Rio de Janeiro: Salamandra/Funarte,
1996)
Newton dá mais detalhes: explica que os atores trabalhariam ao redor, sobre
e através desta máquina, nus, e que, apesar da complexidade e da engenhosidade do
cenário, Victor García retrocedia à frontalidade e pedia uma “postura contemplativa
do espectador. Todo o espetáculo estava baseado na exploração do sofisticado praticável.”
E cita a única referencia de García quanto ao que deveria representar o seu cenário:
“simbolizaria o olho de Deus”.
Refletindo sobre esta escolha Newton
anota que Victor evidencia suas contradições - põe em pé de igualdade a máquina
e a divindade, dois temas que lhe são recorrentes - denúncia e submissão à tecnologia,
eleita como novo deus, e amplia suas dimensões, exaltando suas propriedades, logo
a venerando. Diz ele:
“Paradoxalmente a crítica de Victor García contra Deus e contra a máquina
revela a dependência que ele tem de ambos. O texto de Calderón de la Barca guarda
correspondência com o de Genet, porque ambos empregam recursos metalingüísticos.
Em O grande teatro do mundo, o Mundo é apresentado como um diretor de teatro.
Deus é o autor da peça e pede que sejam convocados os atores, que na forma de alegorias,
representam seus papéis na vida. A morte, portanto, encerra o espetáculo.”
Um trágico incidente dá início a uma série de alterações no programa previsto.
Quando desembarca em Shiraz, para apresentação no Festival da Rainha, o elenco,
que até então não havia ainda conhecido o cenário, recebe a notícia de que o mesmo
havia sido extraviado em Roma. Que o elenco não conhecesse ainda o cenário, isto
não constituía o problema, pois haveria tempo para as apresentações e ensaios em
Teerã. O dilema era não poder mais contar com a misteriosa máquina.
Ocorre que o espetáculo estava programado para ser feito em Persépolis, numa
planície considerada sagrada pelos iranianos, onde estão localizadas as ruínas dos
palácios dos reis do antigo império persa, Xerxes, Dario e Ataxerxes. Sem a máquina,
segundo conta Sergio Britto, Victor García não conseguia criar. Mas ninguém desiste
e continuam os ensaios. A máquina finalmente é localizada, trazida e montada em
uma plataforma à frente do Palácio das 50 Colunas. Porém não funciona. Todas as
tentativas são inúteis. Quando as autoridades iranianas chegam ao local Victor exige
que os atores fiquem nus para chocar o que ele chamava de hipocrisia.
A situação piora a tal ponto que o engenheiro Élcio Cabral, responsável técnico,
não chega a acordo com os engenheiros iranianos e a máquina sucumbe, o que obriga
o elenco a representar a peça em círculo em um palco nu, dizendo o texto branco
e tudo terminando muito mal. Parece que a mão de Deus fez o “olho de Deus” não funcionar,
porque o espetáculo poderia resultar mortal para os atores saltando em cima daquelas
pás e sendo lançados para o ar e caindo dentro da máquina!
O elenco voltou ao Brasil; Victor García, não. Consta que ele montou ainda
na Europa: As Divinas Palavras em 1976, Gilgamesh em 1979, Bodas
de Sangue em 1980; sendo que em 1981 tornou a montar Autos Sacramentais
com a companhia Núria Espert.
Em 1982 Victor García morreu de morte não revelada e seu caixão lacrado foi
acompanhado praticamente por atores brasileiros.
Fundamental para a preparação deste ensaio e, sobretudo, para a compreensão
da visão poética de Victor García é o estudo de Newton de Souza, aqui já citado
várias vezes. Newton de Souza é mestre e diretor artístico do grupo teatral Atrás
do Grito, do Instituto de Artes da UNESP (Universidade do Estado de São Paulo).
Vive atualmente em Paranapiacaba, interior de São Paulo, onde integra o Coletivo
de Cultura do Grande ABC. Aqui me utilizei de seu livro, para as citações e apoio
às minhas reflexões. Este livro – A roda, A engrenagem e a moeda - Vanguarda
e espaço cênico no teatro de Victor García, no Brasil (Fundação Editora da UNESP,
2003) - é o único documento concentrado e de teor crítico que existe a respeito
do cenógrafo argentino.
Já em termos conclusivos, recorro uma vez mais às observações de Newton de
Souza, para quem Victor García
“foi transformado num mito que ele não preparou, ele foi moldado principalmente
aqui no Brasil, porque lá fora ele era um grande criador, importante como muitos
outros. Mas aqui no Brasil ele era o gênio tanto que para os críticos faltou instrumental
de análise: as análises críticas dos seus espetáculos eram muito precárias porque
mesmo não entendendo nada os críticos achavam tudo maravilhoso.”
Por tudo que estudou sobre ele, Newton considera que García não foi uma pessoa
que tivesse a convicção e a certeza de todos os elementos que estavam permitindo
este sucesso. Suas ideias, especialmente as colocadas em O Cemitério de Automóveis,
tinham tudo para serem censuradas, considerando que vivíamos sob a ditadura militar
iniciada pelo Golpe de 1964, a exemplo da crítica ao fascismo, bem como os ataques
dele à Igreja Católica. Então o paradoxo é este: ele falando de coisas, abordando
temas perigosos para a época, e sendo aclamado como um gênio da vanguarda nacional;
enquanto outros diretores eram censurados e até presos ou obrigados a sair do país,
como foi o caso de Augusto Boal, policiais invadindo teatros e prendendo atores,
diretores, e até mesmo querendo localizar aquele tal de Sófocles ou o Shakespeare
- situação cômica se não fosse trágica.
Daí que Newton de Souza considera que uma das cenas mais inteligentes do
Cemitério de Automóveis é a da Primeira Comunhão em que há um jogo de contradições
incrível - a ideia de como uma mulher deve ser para servir o marido. “Naquele momento
isso era extremamente forte porque ele justamente vai criar a ideia da libido que
está enrustido, do desejo em torno da degradação da menina que vai mudando diante
do publico.”
Esta sacada do Victor García é genial
segundo o Newton porque é um convite ao não conservadorismo o que faz com que Cemitério
seja mais coeso que O Balcão.
“O gigantismo de O Balcão envereda por dois universos e é aí que eu
falo da roda, a engrenagem e a moeda, porque na verdade é o Brecht quem diz isso,
quando ele se refere à relação da ópera tradicional e à função da ópera no contexto
mais crítico na sociedade alemã entre guerras.”
“O produtor, o artista muitas vezes
se insere num mecanismo de produção no qual ele acredita dominar o processo, ele
acredita dominar a máquina. Na verdade ele fica sendo uma peça nesta engrenagem.
E isso aconteceu com Victor García - ele não entendia, não teve a visão do todo
e ele não foi a engrenagem, ele foi convidado, ele foi tendo prazer, ele foi instigado,
estimulado a entrar no processo. Como estava dando resultados ele estava envolvido
de tal maneira que não conseguiu se desvencilhar.E o Brasil oferecia condições que
ele não encontraria em outros lugares.”
“E de qualquer forma”, ele conclui, “era o Wladimir Pereira Cardoso quem
solucionava as ideias, o sonho, o delírio todo – lógico, a criação era do Victor,
mas era ele, Cardoso, quem pegava no pesado. Ele ficava a noite toda trabalhando,
soldando junto com os técnicos”.
Por mais chocante que possa parecer para quem não apenas viu os seus espetáculos,
mas participou de um deles, Victor García na verdade, não fez um trabalho de vanguarda
no sentido da palavra, ou seja, se formos entender vanguarda como busca de alternativas
para os modelos capitalistas de produção. Estudando a concepção de espaço cênico
do diretor nessas montagens, Newton vai constatar que os espetáculos de Victor García,
embora tenham marcado época, eram desprovidos dos elementos contestadores ou revolucionários
inerentes às vanguardas. Ele argumenta que essa denominação só seria correta se
o diretor buscasse, de fato, formas alternativas de criação e de disseminação da
obra - o que para ele não ocorreu.
Segundo Newton, Victor García “teria alcançado grande impacto formal pela
engenhosidade e pelo aspecto monumental de suas encenações, mas seu caráter vanguardista
seria reduzido, pois as soluções pelas quais buscou criar impacto sobre a plateia
continuaram seguindo os interesses capitalistas em relação ao produto artístico”.
E embora as montagens de García realizadas no Brasil tenham causado impacto no público
pelo uso do espaço cênico e pela nudez, não poderiam ser consideradas efetivamente
de vanguarda, pois ele sempre produziu seus trabalhos dentro das normas capitalistas,
procurando, com esses recursos, disputar espaço no competitivo mercado do entretenimento.
E Newton justifica sua tese colocando o que era, de fato, o projeto das chamadas
“vanguardas artísticas”: revolucionar o mundo por meio da implosão dos valores burgueses
e da emancipação do homem. “Daí que os artistas abandonavam a produção solitária
e passavam a se organizar ao redor de ideias comuns, alguns se definindo programaticamente
através de Manifestos, que nem sempre revelavam um ideário político nitidamente
definido e apenas tangencialmente, alguns deles vinculavam-se a um programa político
partidário.”
E cita alguns movimentos que mais se aproximaram do futuro sonhado: o cubo-futurismo
e o construtivismo russos que, segundo ele e outros estudiosos das vanguardas, inflamados
pelas perspectivas revolucionárias que culminaram em outubro de 1917, exaltaram
a tecnologia e as ciências como estatutos emancipadores do Homem, posto que o principal
empecilho à liberdade, o capitalismo, havia sido finalmente superado. “A dinâmica
das máquinas se estendia à produção artística por meio da geometrização das formas
e pela mecanização do gesto entendido como expectativas libertárias. Encontramos
a mesma condenação à falta de dinamismo da arte tradicional, identificada com museus,
galerias e bibliotecas.”
As obras de vanguarda pretendiam valorizar a tradição popular, daí a escolha
da feira, do mercado, da praça como ambiente de ação e produção de arte, inclusive
pela valorização do linguajar de rua, do neologismo e do anedotário. E ainda lembra
que como traço comum a todos os movimentos “encontramos também em maior ou menor
grau, as atitudes antiburguesas: entre elas a conhecida fórmula épater le bourgeois”.
Enfim, os movimentos vanguardistas pretendiam mesmo: “escandalizar o burguês, aprontar-lhe
umas boas, fazer o filisteu tropeçar, colocar na berlinda o esclarecido, rir nos
funerais e chorar nos casamentos… ”.
Em síntese, Newton diz que as reflexões expressas em seu livro “parecem suficientes
para demonstrar, que ao menos nos seus pressupostos iniciais, a adoção do termo
vanguarda corresponde à elaboração de um projeto muito mais amplo do que a novidade
formal, assumindo a pretensão de arquitetar o futuro, rompendo com o passado, e
a tradição e libertando os homens das formas opressivas de sobrevivência baseadas
no domínio da burguesia sobre os meios de produção. Seja por meio da negação, do
desprezo, da ridicularização, seja por meio do confronto, o alvo das Vanguardas
Artísticas foi o burguês. Assim podemos dizer que para esses movimentos, o artista
era o Arquiteto de um mundo em devir.”
No entanto, mesmo considerando inadequado o termo vanguarda para as produções
de Victor García no Brasil, considera indiscutível que o seu teatro corresponde
ao emprego de soluções inspiradas nas Vanguardas. “Em Cemitério de Automóveis,
o espaço cênico reúne coerência com os propósitos de integração entre público e
atores diante da crueza e da repugnância de um universo onde prevalece o paroxismo
da atitude anti-humana. As dimensões gigantescas de O Balcão, paradoxalmente
anularam o encontro entre atores e público, sendo que essa distância se torna ainda
maior para a realização de Autos Sacramentais, em que a criação de Victor
García pautou-se na coisa, na máquina, a ponto de dispor de um elenco formado por
atores experientes e outros jovens, mas todos disponíveis, sobretudo levando em
conta as adversidades que cercaram a montagem desde o início, até a exigência da
completa nudez. O material humano, a despeito das condições particulares, foi relegado
ao segundo plano, a ponto de não dar indícios suficientes de que tenha conquistado
relevância na temporada europeia. Completa desumanização.”
Ana Lúcia Vasconcelos (Brasil, 1944). Atriz, dramaturga, ensaísta. Atuou
em montagens brasileiras de O tempo
e os Conways (Priestley), O delator (Brecht), e Cemitério de automóveis(Arrabal). Autora
de textos teatrais como A cor descontente e O
dia que o amarelo sumiu das caixas de lápis de cor, e das adaptações O jardim das flores vivas [de O
rapaz de bronze, de Sophia de Mello Andresen], As aventuras de Alma no mundão afora [de Os
porquês da inveja e da generosidade, de Conceil Corrêa da Silva]. Contato: analuvasconcelos@globo.com. Página ilustrada com obras
de Iván Tovar (República Dominicana). Agulha Revista de Cultura # 56. Abril
de 2007.
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