A atriz Liv Ullmann, representante fundamental da filmografia do gênio Ingmar
Bergman, agora também cineasta de prestígio, recebeu um prêmio honorífico na última
edição dos Prêmios Europeus de Cinema, em reconhecimento por sua excelência dramática
durante mais de quatro décadas e 50 filmes.
Nascida casualmente em Tóquio, Japão, na sua juventude
brilhou no Teatro Nacional Noruego de Oslo interpretando Ofélia, Julieta, Margarida
(de “Fausto”), Joana D’Arc e personagens de Brecht. Após modestos papéis no cinema,
tornou-se, com Persona (1966) - intitulado pateticamente no Brasil de Quando
Duas Mulheres Pecam -, uma das atrizes de maior prestígio internacional. Bergman
continuou utilizando a “luz interior” de Liv em mais oito filmes, culminando em
2003 com Saraband, continuação trinta anos passados do clássico Cenas
de um Casamento (1973).
Em Barcelona, a sensível intérprete falou de sua
carreira vitoriosa, de Bergman e do seu mais novo projeto, a adaptação cinematográfica
de Casa de Bonecas, de Ibsen, com Kate Winslet e John Cusack. Liv Ullmann,
aos 66 anos, de profundos olhos azuis, falando pausadamente com forte sotaque nórdico,
transmite uma sabedoria serena e uma vitalidade interior juvenil. (ANJ)
ANJ | Faz parte da história do cinema o seu primeiro
encontro, acompanhada de Bibi Andersson, com Ingmar Bergman. Este, impressionado
com a semelhança de vocês, imaginou, a partir de seus rostos e suas personalidades,
o enigmático Persona. É lenda ou realidade?
LU | Totalmente realidade. Em Persona fiz
uma atriz de teatro que repentinamente deixa de falar, um papel quase mudo. Eu tinha
25 anos e não tinha a menor ideia do que ele queria dizer. Olhava a Bergman e sentia
que a mulher que eu estava representando tinha muito que ver com ele: alguém muito
famoso que não queria falar nem explicar quem era, e se escondia atrás de uma fachada.
Copiei a expressão facial de Bergman. Creio também que trabalhamos tanto tempo juntos
porque eu não fazia perguntas, apenas seguia suas orientações.
ANJ | Você tem uma filha com Bergman, a escritora
Linn Ullmann, e ele a tornou um dos rostos mais famosos do mundo. Poderia nos contar
um momento íntimo de vocês?
LU | Certa vez disse a Ingmar que ele era “um gênio”,
enquanto que eu era simplesmente “um talento”. A reação dele foi uma metáfora musical
que nunca esqueci: “Você é meu Stradivarius”. Foi o mais belo que alguém me disse.
LU | Eu já havia abandonado o cinema como atriz em
1994, tinha bem claro que só voltaria a atuar caso fosse convidada por Ingmar. O
nosso reencontro foi natural, como regressar a terra natal… É um filme muito forte,
e autobiográfico como todos os seus filmes, sem dizer que sejam cópias de sua própria
vida. Sarabandexplora as horríveis relações entre pais e filhos, e quando
um deles não sabe pedir perdão.
ANJ | Bergman sempre foi um diretor de mulheres.
Deu papéis maravilhosos para você, Harriet Andersson, Ingrid Thulin ou Bibi Andersson.
Havia competitividade entre vocês?
LU | Nunca. Bibi Andersson, que poderia ter me odiado
porque ela era a favorita de Ingmar até que eu cheguei, continuou sendo a minha
melhor amiga. As mulheres são capazes de um grau de intimidade e aceitação que os
homens desconhecem.
ANJ | Qual o filme de que sente mais orgulho?
LU | Talvez Os Imigrantes, de Jan Troell,
onde fiz uma jovem camponesa obrigada pela miséria a fugir de sua terra natal e
partir a conquista de territórios ainda virgens do Middle West norte-americano.
O segundo seria Face a Face, de Bergman.
ANJ | Sempre desejou ser atriz?
LU | Atuar é absolutamente uma extensão do que sou.
Quando era muito jovem e vulnerável, não via a atuação como um trabalho, era simplesmente
a paixão de uma adolescente que não era a mais bela nem a mais popular da escola,
e que se divertia fazendo os melhores papéis em produções estudantis. Pouco a pouco,
vi que poderia levar a sério o que tanto gostava. Mas ainda hoje fico um pouco assustada
com isso, que na realidade era um prazer… Não sei como consegui sobreviver e ter
uma vida maravilhosa com a minha família fazendo o que gosto. Atuar é uma alegria.
Um bom ator ou um bom filme ajudam o espectador a ser mais consciente de si mesmo.
Quando isso ocorre, as pessoas se sentem mais valorizadas e tentam fazer coisas
mais importantes na vida.
ANJ | Bergman, que dá tão poucas entrevistas, certa
vez declarou que você é uma grande atriz. O que sentiu?
LU | Sou boa atriz, tenho talento. Sei que Bergman
me considera uma grande atriz e eu sei que ele é um gênio: essa confiança foi muito
importante para o nosso trabalho. Mesmo assim, não creio que sou melhor atriz que
muitas outras. Não sei porque era escolhida entre tantas outras melhores, talvez
porque seja uma pessoa fácil, tranqüila.
ANJ | 1992 foi a sua estréia como diretora, com Sofie,
e nunca mais parou…
LU | O problema é que quando as atrizes envelhecem
nos oferecem somente papéis estúpidos, que não permitem transmitir nada, e então
já não é divertido. Eu tive sorte e pude mudar de rumo, passei a dirigir. Creio
que algo aconteceu dentro de mim que não podia passar antes, porque veio com a idade.
Minha vida entrou numa renovada época criativa. Quero dirigir ainda muitos filmes
e escrever muitos livros. Essa intensidade surgiu com meu sentido de mortalidade.
Agora sinto que tenho algo que dar que não tinha antes.
ANJ | Existe uma continuidade temática em seus filmes…
LU | Sim, com certeza. Creio que está diretamente
relacionada com a busca do amor: o amor desejado, o amor recebido e o amor que abandona
as pessoas.
ANJ | Filmou também dois roteiros de Bergman.
LU | Foi a pedido dele. Fiquei muito comovida. Com
eles provei que uma mulher pode narrar uma história de uma maneira muito distinta
da que contaria um homem. Algumas idéias desses filmes são minhas e outras de Bergman,
e isso é que tem de excitante no cinema, já que se podem fazer diferentes interpretações
de um mesmo caso.
ANJ | Está pronta para iniciar as filmagens de Casa
de Bonecas?
LU | Quase. Falta finalizar uma coisa ou outra. Serei
fiel ao texto de Ibsen. Casa de Bonecas narra a hipocrisia e convencionalismos
da sociedade do final do século XIX. Nora, salva a vida do marido doente graças
a um empréstimo conseguido falsificando a assinatura de seu pai. Como conseqüência,
a protagonista acaba abandonando esposo e filhos.
ANJ | A Kate Winslet fará a Nora?
LU | Sim. Pensei inicialmente na atriz australiana
Cate Blanchett, que não pôde aceitar por estar grávida. Admiro o trabalho da Kate.
Temos conversado por telefone e ela me disse que está impaciente para iniciar as
filmagens. O seu marido, Torvald, será representado por John Cusack. O Stellan Skarsgard
também está no elenco e possivelmente Tim Roth.
ANJ | Nos anos setenta, você era um modelo a seguir:
européia, intelectual, independente e liberal. Por que não deu certo em Hollywood?
LU | Escolhi muito mal meus filmes. Porém não foi
decepcionante a experiência. Me diverti muito e ganhei dinheiro. As portas da Broadway
se abriram e quando a aventura se acabou voltei à Europa e continuei trabalhando.
Fui duas vezes nominada ao Oscar, e fiquei decepcionada com a derrota. Era jovem,
ingênua, ambiciosa. Mas tudo caminhou bem, possivelmente se tivesse ficado em Hollywood
seria uma dessas estrelas esquecidas com o rosto esticado e inexpressivo para agradar
os produtores.
ANJ | Você é atriz, escritora, roteirista e diretora.
Qual o mais difícil?
LU | Dirigir. Principalmente porque sou mulher. No
meu primeiro filme, já tinha mais de 50 anos, tentava ser simpática com todos e
riam da minha ingenuidade. Porém já fiz cinco filmes, aprendi: não é que tenho que
ser dura, tenho que crer em mim mesmo. Não ter complexo de mulher madura, e sim
orgulho.
*****
Antonio Naud Jr (Brasil, 1970). Escritor. Autor de livros como O aprendiz do amor (1993), Caprichos (1998) e Artepalavra
- Conversas no velho mundo (2003).
A série de entrevistas que vem realizado com distintos nomes da arte e da cultura
em todo o mundo encontra-se em El Gitano (www.elgitano.blig.ig.com.br). Contato: antonio_junior2@yahoo.com. Página ilustrada com obras de Iván Tovar (República Dominicana). Agulha
Revista de Cultura # 44. Março de 2005.
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