quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ANTONIO NAUD JR. | O cinema aos olhos de Liv Ullmann


A atriz Liv Ullmann, representante fundamental da filmografia do gênio Ingmar Bergman, agora também cineasta de prestígio, recebeu um prêmio honorífico na última edição dos Prêmios Europeus de Cinema, em reconhecimento por sua excelência dramática durante mais de quatro décadas e 50 filmes.
Nascida casualmente em Tóquio, Japão, na sua juventude brilhou no Teatro Nacional Noruego de Oslo interpretando Ofélia, Julieta, Margarida (de “Fausto”), Joana D’Arc e personagens de Brecht. Após modestos papéis no cinema, tornou-se, com Persona (1966) - intitulado pateticamente no Brasil de Quando Duas Mulheres Pecam -, uma das atrizes de maior prestígio internacional. Bergman continuou utilizando a “luz interior” de Liv em mais oito filmes, culminando em 2003 com Saraband, continuação trinta anos passados do clássico Cenas de um Casamento (1973).
Em Barcelona, a sensível intérprete falou de sua carreira vitoriosa, de Bergman e do seu mais novo projeto, a adaptação cinematográfica de Casa de Bonecas, de Ibsen, com Kate Winslet e John Cusack. Liv Ullmann, aos 66 anos, de profundos olhos azuis, falando pausadamente com forte sotaque nórdico, transmite uma sabedoria serena e uma vitalidade interior juvenil. (ANJ)

ANJ | Faz parte da história do cinema o seu primeiro encontro, acompanhada de Bibi Andersson, com Ingmar Bergman. Este, impressionado com a semelhança de vocês, imaginou, a partir de seus rostos e suas personalidades, o enigmático Persona. É lenda ou realidade?

LU | Totalmente realidade. Em Persona fiz uma atriz de teatro que repentinamente deixa de falar, um papel quase mudo. Eu tinha 25 anos e não tinha a menor ideia do que ele queria dizer. Olhava a Bergman e sentia que a mulher que eu estava representando tinha muito que ver com ele: alguém muito famoso que não queria falar nem explicar quem era, e se escondia atrás de uma fachada. Copiei a expressão facial de Bergman. Creio também que trabalhamos tanto tempo juntos porque eu não fazia perguntas, apenas seguia suas orientações.

ANJ | Você tem uma filha com Bergman, a escritora Linn Ullmann, e ele a tornou um dos rostos mais famosos do mundo. Poderia nos contar um momento íntimo de vocês?

LU | Certa vez disse a Ingmar que ele era “um gênio”, enquanto que eu era simplesmente “um talento”. A reação dele foi uma metáfora musical que nunca esqueci: “Você é meu Stradivarius”. Foi o mais belo que alguém me disse.

ANJ | O que diz do último filme que fizeram juntos, Saraband?

LU | Eu já havia abandonado o cinema como atriz em 1994, tinha bem claro que só voltaria a atuar caso fosse convidada por Ingmar. O nosso reencontro foi natural, como regressar a terra natal… É um filme muito forte, e autobiográfico como todos os seus filmes, sem dizer que sejam cópias de sua própria vida. Sarabandexplora as horríveis relações entre pais e filhos, e quando um deles não sabe pedir perdão.

ANJ | Bergman sempre foi um diretor de mulheres. Deu papéis maravilhosos para você, Harriet Andersson, Ingrid Thulin ou Bibi Andersson. Havia competitividade entre vocês?

LU | Nunca. Bibi Andersson, que poderia ter me odiado porque ela era a favorita de Ingmar até que eu cheguei, continuou sendo a minha melhor amiga. As mulheres são capazes de um grau de intimidade e aceitação que os homens desconhecem.

ANJ | Qual o filme de que sente mais orgulho?

LU | Talvez Os Imigrantes, de Jan Troell, onde fiz uma jovem camponesa obrigada pela miséria a fugir de sua terra natal e partir a conquista de territórios ainda virgens do Middle West norte-americano. O segundo seria Face a Face, de Bergman.

ANJ | Sempre desejou ser atriz?

LU | Atuar é absolutamente uma extensão do que sou. Quando era muito jovem e vulnerável, não via a atuação como um trabalho, era simplesmente a paixão de uma adolescente que não era a mais bela nem a mais popular da escola, e que se divertia fazendo os melhores papéis em produções estudantis. Pouco a pouco, vi que poderia levar a sério o que tanto gostava. Mas ainda hoje fico um pouco assustada com isso, que na realidade era um prazer… Não sei como consegui sobreviver e ter uma vida maravilhosa com a minha família fazendo o que gosto. Atuar é uma alegria. Um bom ator ou um bom filme ajudam o espectador a ser mais consciente de si mesmo. Quando isso ocorre, as pessoas se sentem mais valorizadas e tentam fazer coisas mais importantes na vida.

ANJ | Bergman, que dá tão poucas entrevistas, certa vez declarou que você é uma grande atriz. O que sentiu?

LU | Sou boa atriz, tenho talento. Sei que Bergman me considera uma grande atriz e eu sei que ele é um gênio: essa confiança foi muito importante para o nosso trabalho. Mesmo assim, não creio que sou melhor atriz que muitas outras. Não sei porque era escolhida entre tantas outras melhores, talvez porque seja uma pessoa fácil, tranqüila.

ANJ | 1992 foi a sua estréia como diretora, com Sofie, e nunca mais parou…

LU | O problema é que quando as atrizes envelhecem nos oferecem somente papéis estúpidos, que não permitem transmitir nada, e então já não é divertido. Eu tive sorte e pude mudar de rumo, passei a dirigir. Creio que algo aconteceu dentro de mim que não podia passar antes, porque veio com a idade. Minha vida entrou numa renovada época criativa. Quero dirigir ainda muitos filmes e escrever muitos livros. Essa intensidade surgiu com meu sentido de mortalidade. Agora sinto que tenho algo que dar que não tinha antes.

ANJ | Existe uma continuidade temática em seus filmes…

LU | Sim, com certeza. Creio que está diretamente relacionada com a busca do amor: o amor desejado, o amor recebido e o amor que abandona as pessoas.

ANJ | Filmou também dois roteiros de Bergman.

LU | Foi a pedido dele. Fiquei muito comovida. Com eles provei que uma mulher pode narrar uma história de uma maneira muito distinta da que contaria um homem. Algumas idéias desses filmes são minhas e outras de Bergman, e isso é que tem de excitante no cinema, já que se podem fazer diferentes interpretações de um mesmo caso.

ANJ | Está pronta para iniciar as filmagens de Casa de Bonecas?

LU | Quase. Falta finalizar uma coisa ou outra. Serei fiel ao texto de Ibsen. Casa de Bonecas narra a hipocrisia e convencionalismos da sociedade do final do século XIX. Nora, salva a vida do marido doente graças a um empréstimo conseguido falsificando a assinatura de seu pai. Como conseqüência, a protagonista acaba abandonando esposo e filhos.

ANJ | A Kate Winslet fará a Nora?

LU | Sim. Pensei inicialmente na atriz australiana Cate Blanchett, que não pôde aceitar por estar grávida. Admiro o trabalho da Kate. Temos conversado por telefone e ela me disse que está impaciente para iniciar as filmagens. O seu marido, Torvald, será representado por John Cusack. O Stellan Skarsgard também está no elenco e possivelmente Tim Roth.

ANJ | Nos anos setenta, você era um modelo a seguir: européia, intelectual, independente e liberal. Por que não deu certo em Hollywood?

LU | Escolhi muito mal meus filmes. Porém não foi decepcionante a experiência. Me diverti muito e ganhei dinheiro. As portas da Broadway se abriram e quando a aventura se acabou voltei à Europa e continuei trabalhando. Fui duas vezes nominada ao Oscar, e fiquei decepcionada com a derrota. Era jovem, ingênua, ambiciosa. Mas tudo caminhou bem, possivelmente se tivesse ficado em Hollywood seria uma dessas estrelas esquecidas com o rosto esticado e inexpressivo para agradar os produtores.

ANJ | Você é atriz, escritora, roteirista e diretora. Qual o mais difícil?

LU | Dirigir. Principalmente porque sou mulher. No meu primeiro filme, já tinha mais de 50 anos, tentava ser simpática com todos e riam da minha ingenuidade. Porém já fiz cinco filmes, aprendi: não é que tenho que ser dura, tenho que crer em mim mesmo. Não ter complexo de mulher madura, e sim orgulho.

*****

Antonio Naud Jr (Brasil, 1970). Escritor. Autor de livros como O aprendiz do amor (1993), Caprichos (1998) e Artepalavra - Conversas no velho mundo (2003). A série de entrevistas que vem realizado com distintos nomes da arte e da cultura em todo o mundo encontra-se em El Gitano (www.elgitano.blig.ig.com.br). Contato: antonio_junior2@yahoo.com. Página ilustrada com obras de Iván Tovar (República Dominicana). Agulha Revista de Cultura # 44. Março de 2005.






Nenhum comentário:

Postar um comentário