quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | Jacques Prévert:: escritura coletiva e palavras em movimento


1. A escritura coletiva de Jacques Prévert com surrealistas

Ce fut au surréalisme où j’ai fait mes humanités.
Jacques Prévert

Pouco importa ou exporta: Jacques Prévert é surrealista. Sua poesia transita pelos mesmos caminhos que os surrealistas seguem: o “umor”, a revolta contra os que oprimem o ser humano, a exaltação do amor e do sonho que levam à revolução.
Para determinar o encontro de Jacques Prévert com o Surrealismo (depois ele se encontraria com os surrealistas), podemos marcar três momentos. O primeiro se dá no fim de 1924 na livraria Les amis du livre, de Adrienne Monnier onde, além de entrar em contato com a revista La Révolution Surréaliste, a qual muito lhe impressiona e entusiasma, Prévert tem acesso a uma literatura surrealista avant la lettre: os Cantos belos e terríveis de Maldoror, do Conde de Lautréamont, os Campos Magnéticos, de Philippe Soupault e André Breton, Le mariage du Ciel et de l'Enfer, de William Blake, Le refrain du Décervelage, do Roi Ubu de Alfred Jarry.
O segundo encontro com o Surrealismo ocorre quando, de um ônibus, pelo fim do mesmo ano de 1924, Prévert e o pintor Yves Tanguy, que então moravam com Marcel Duhamel na famosa Rue du Château 54, avistam numa vitrine da galeria Paul Guillaume em Paris o quadroCerveau d’enfant, de Giorgio de Chirico, o qual lhes mostra a escritura dos sonhos. De acordo com Yves Courrière, Yves Tanguy sofreu um inpacto tão grande ao ver essa tela que, ao chegar em casa, destruiu alguns de seus quadros por considerá-los ingênuos demais.
No início de 1925, Marcel Duhamel conhece Breton e o leva para uma visita na Rue du Château; Breton fica tão entusiasmado com Prévert, Duhamel e Tanguy que passa a utilizar a casa como um dos locais de reunião do grupo surrealista.
Durante sua passagem pelo grupo de 1925 a 1929, Prévert não publica nada, não participa de sessões de hipnose, não relata seus sonhos nem exerce qualquer tipo de escritura automática. Participa apenas das “pesquisas sobre a sexualidade”, recolhidas nos “Archives du bureau surreáliste”. Os únicos manifestos que subscreve voltam-se para a defesa de dois artistas com quem mantém afinidades poéticas. Um deles é: "Hands off love", publicado na edição de outubro de 1927 da revista "Révolution Surrealiste", a favor de Charles Chaplin, que era acusado, judicialmente, de maltratar sua esposa; o outro é "Permettez", no qual Raymond Queneau protesta contra a inauguração de uma estátua em homenagem a Arthur Rimbaud.
Ajuda a criar o "cadavre exquis", atividade que consistia em produzir um texto coletivo em que cada participante continuava um texto, acrescentando uma parte da frase sem saber o que vinha antes, daí resultando em criações livres de qualquer associação lógica. No primeiro texto, Prévert escreveu "le cadavre exquis", em um papel dobrado e o passou a um outro participante que, em segredo, prosseguiu acrescentando "boira"; um terceiro, nas mesmas condições, concluiu o jogo e o texto com "le vin nouveau".
Gérard Guillot considera que, graças ao grupo surrealista, Prévert pôde experimentar coisas novas e entrar em contato com várias modalidades de arte. Nas palavras do próprio Prévert, o surrealismo era

une rencontre de gens qui n’avaient pas de rendez-vous mais qui sans se ressembler se rassemblaient. Militaires, religieuses, policières, les grandes superencheries sacrées les faisaient rire. Leur rire, comme leurs peintures et leurs écrits, était un rire agressivement salubre et indéniablement contagieux. (Prévert, 1996)

Em 15 de janeiro de 1930, Prévert rompe com Breton, ao participar com seu primeiro texto “Mort d’un Monsieur, no panfleto “Un cadavre”, que ele e outros 11 dissidentes do Surrealismo dirigem como resposta aos ataques pessoais que Breton promovera no Segundo Manifesto. Em “Mort d’un Monsieur”, num estilo e num humor que caracterizarão seus poemas, Prévert começa lamentando o desaparecimento daquele que o fazia rir: “Hélas, je ne reverrai plus l’illustre Palotin du Monde Occidental, celui qui me faisait rire! (Prévert, 1996).
Depois, Prévert ataca os relatos de sonhos de Breton, dizendo que um dia num sonho, após se olhar seriamente (ou seja, sem humor) no espelho, ele se achou belo. Para Prévert, foi o fim de Breton, que passou a confundir “le désespoir et le mal de foie, la Bible et les Chants de Maldoror, Dieu et Dieu, […] la Révolution Russe et la Révolution Surréaliste. (Encore… et toujours la plus scandaleuse du monde) (Prévert, 1996).
Depois de sua ruptura com Breton, Prévert decide fazer “route à part”, sem, no entanto deixar de se reencontrar com o Surrealismo nem com o próprio Breton, com o qual se reconcilia em 1937. A partir então de 1930, passa a escrever para revistas como Biffurs, Documents, Commerce. Em 1932, torna-se dramaturgo do Groupe Octobre, escrevendo peças teatrais inspiradas em acontecimentos, querendo fazer a Revolução por meio do teatro. Com o fim do Groupe Octobre em 1936, passa a participar ativamente como roterista de filmes com diretores como Jean Renoir e Marcel Carné, com o qual realizou sua obra-prima, Les enfants du Paradis (1945).
Ainda em 1945, lança seu primeiro e mais famoso livro, Paroles, no qual se dirige violentamente contra as instituições com letras maiúsculas: a Igreja, a Família, a Propriedade, o Estado. Seguem-se a Paroles: Histoires (1947), Spectacle (1951), Grand bal du Printemps (1951) Charmes de Londres (1952), La pluie et le beau temps(1954), Fatras (1966), Imaginaires (1970), com colagens do autor, e Choses et Autres (1972). Além desses livros, Prévert escreveu outros a 4 (quatro) mãos com artistas ligados ao Surrealismo como: Max Ernst (Les chiens ont soif), Picasso (Portraits de Picasso), Miró (Miró e Adonides) e Georges Ribemont-Dessaignes (Arbres).
De acordo com Bersani, em seus poemas, Prévert realiza a síntese de duas correntes que atravessam o Surrealismo: as correntes “dos jogos de linguagem” e “a libertária”. Para Bersani, Prévert é um “poète qui joue des mots, qui sait, comme le recommandait Breton, leur laisser “faire l’amour” pour mieux engendrer la merveille, Prévert est aussi et en même temps celui qui se joue des mots pour mieux se jouer de la société d’exploiteurs et d’oppresseurs qu’il vitupère”.
Por causa de seu humor (subversivo), Prévert figura na Anthologie de l’humour noir, organizada por André Breton. De Prévert, Breton seleciona “Tentative de description d’un dîner de têtes à Paris-France”, poema que abre Paroles. A propósito de Prévert, escreve Breton que “il dispose souverainement du raccourci (atalho, caminho abreviado) susceptible de nous rendre en un éclair la démarche (conduta) sensible, rayonnante de l’enfance, et de pourvoir indéfiniment le réservoir de la révolte”. (Breton, 1998).
Em toda sua obra poética, Prévert empreende a busca surrealista pelo surreal, com a criação de uma realidade de liberdade, amor, poesia, sonho e revolução. Em um dos mais belos poemas de Fatras, "La veille au soir", são as crianças que ao sonhar sopram apagando a vela do vigilante da noite e dos sonhos. Eis o poema:

La veilleuse du surveillant s'est éteinte
Et le surveillant dans la nuit
S´est éteint aussi
Les enfants en rêvant
Avaient soufflé sur lui. (Prévert, 1996).

Num maravilhoso jogo de palavras, Prévert aproxima semanticamente veille (vigília, privação do sono à noite), veilleuse (lanterna, vela e também o feminino de veilleur, guardião da noite) e surveillant (vigilante). Nesse jogo, imagina-se que um vigilante, um guardião do sono, munido de sua vela e ao mesmo tempo sua companheira, vigia os sonhos das crianças, para depois puni-las. Entretanto, estas são mais fortes que os guardiães, e, sonhando, destróem a realidade que as oprime, apagando – isto é, eliminando seus opressores. Nas palavras de Breton, no Primeiro Manifesto: “L’esprit qui plonge dans le surréalisme revit avec exaltation la meilleure part de son enfance. […] C’est peut-être l’enfance qui approche le plus de la “vraie vie” (Breton, 1986).
No poema “Ministère du ludique-action-publique” (que também dá título a uma colagem de Prévert), o poeta apresenta um artigo dos direitos universais da criança (e do ser humano), conforme o qual ela tem total liberdade:

Art. I
L’enfant n’a pas de contrat, il n’a pas signé son acte de naissance. Il est libre de refuser tôt ou tard l’âge qu’on “lui donne” et d’en choisir un autre, d’en changer selon ses désirs, comme de le garder le temps qu’il lui plaît. (Prévert, 1996)

Assim, não estaria Prévert realizando o que Breton disse no Primeiro Manifesto: que os surrealistas deveriam reescrever os direitos do ser humano para libertá-lo totalmente?
No último poema de Paroles (1946), “Lanterne magique de Picasso”, Prévert demonstra que sua obra procura a surrealidade, o ponto onde as contradições deixam de ser percebidas:

Les idées pétrifiées devant la merveilleuse indifférence
d’un monde passioné
d’un monde retrouvé
d’un monde indiscutable et inexpliqué
d’un monde sans savoir-vivre mais plein de joie de vivre
d’un monde sobre et ivre
d’un monde triste et gai
tendre et cruel
réel et surréel
terrifiant et marrant
nocturne et diurne
solite et insolite
beau comme tout.
(Prévert, 1992)

Assim, a busca pela surrealidade continua a ser o ponto de contato entre aqueles que querem, através da união entre o Amor, a Poesia, o Sonho, o Humor e a Revolução, transformar o mundo e mudar a vida. Neste mesmo poema, a lanterna mágica de Picasso ilumina “le visage d’André Breton et de Paul Éluard”.
Nas entrevistas de Breton a André Parinaud, ao ser perguntado se a grande fonte do Surrealismo nos anos 1920 e 1930 seria o amor, Breton responde: “Oui: indépendamment du profond désir d’action révolutionnaire qui nous possède, tous les sujets d’exaltation propres au surréalisme convergent à ce moment vers l’amour”. (138) Para Prévert, não existem nem cinco ou seis maravilhas, mas apenas uma: o amor. Em outro poema, Jacques Prévert aproxima amor e revolução por sua cor vermelha:

Rouge, le mot rouge révolution reste rouge

malgré les décorations et les décolorations,
dissequé et nié le mot amour garde toute sa beauté. (Prévert, 1996)

Rouge (vermelho) é a cor pela qual Breton e Éluard no Dictionnaire abrégé du surréalisme definem Jacques Prévert: “Celui qui rouge de coeur” .
Para nós, o reencontro com os surrealistas ocorre quando Prévert os convoca tanto para questionar a linguagem, as instituições, a guerra, quanto para buscar a surrealidade. Numa entrevista a André Pozner, Prévert revela, ao falar de sua amizade com Breton, que nunca escreveria sobre (sur) um amigo, mas sim com (avec), expondo dessa maneira uma poética da criação coletiva, que se constrói com a ajuda do outro, mesmo que esse outro esteja morto: "Breton, ou André plutôt, avait tant de choses à dire, on a tant écrit sur lui! On dit toujours ça, écrire sur quelqu'un. Moi, si j'écrivais, j'écrirais avec lui". (Prévert, 1996). Lembro aqui o preceito de Lautréamont: A poesia deve ser feita por todos. A seguir, veremos exemplos de escritura coletiva de Jacques Prévert com Max Ernst, o criador das colagens, André Breton, Paul Éluard, Phillipe Soupault e Robert Desnos.
Com Max Ernst, Prévert escreve a quatro mãos o livreto Les chiens ont soif (paródia do título do livro Les Dieux ont soif, de Anatole France), ilustrado com 27 litografias e 2 águas-fortes de Ernst. No início do texto, Prévert retoma o sentido que os surrealistas haviam dado à palavra littérature quando lançaram a Revista Littérature: J’écris au raturant de la plume d’un stylo. Ou seja, em litté-rature (rasura da letra), Prévert escreve contra a literatura, a letra “oficial”, não escrevendo num belo estilo.
A Ernst Prévert deve seu gosto pelas colagens. Em Imaginaires, Prévert dedica a Ernst o poema Roi image du collage: Max Ernst. No título lê-se não Roi mage (Rei mago) mas Roi image (Rei Imagem). Para compor seu poema, primeiro Prévert apresenta-nos a definição dicionarizada de colagem, a definição oficial, petrificada, que não apreende a revolução que a colagem imprime em nosso modo de ver a realidade:

Collages

Collage: Situation d’un homme et d’une femme qui vivent ensemble sans être mariés.
Papiers collés: Composition faite d’éléments collés sur la toile.
(Petit Robert) (Prévert, 1996)

Depois, mostra suas definições, até mesmo a de décollage (que em francês pode-se ler como “descolagem” ou “decolagem”):

Roi image du collage: Max Ernst
Chiens collés: Châtiment infligé aux chiens n’ayant pas d’âme et vivant en concubinage.
Décollage: Image d’un avion arraché de l’image de l’aéroport (ou aérodrame s’il s’écrase sur le sol).
Image réconfortante s’il s’agit d’un bombardier.
(Prévert, 1996)

De um título de um livro de colagem de Ernst, La femme 100 têtes, Prévert cria "La femme acéphale", um de seus poemas que mais questionam a sociedade com seu autoritarismo, seus lugares-comuns. Vejam que Prévert inclui esse livreto em Fatras, seu primeiro livro que traz colagens de sua autoria. Entendemos que assim Prévert presta uma homenagem a Ernst, o criador da colagem.
Em Spectacle, Prévert transforma o livro em espaço de convocação coletiva. Na seçào “Intermède”, além de outros escritores, Prévert convoca, entre outros surrealistas, André Breton, Paul Éluard, Philippe Soupault e Robert Desnos para escreverem juntos. De André Breton e Paul Éluard, Prévert cita poemas do livro L’Immaculée Conception que Breton e Éluard escreveram a quatro mãos, reforçando assim a coletividade na ação de escrever:

J’ai ma femme avec moi dans mon lit même quand je suis debout.
J’ai scalpé le public. J’ai mis ma verge dans toutes les cheminées le jour de Nöel.
Je signe la paix et je vais porter le buvard aux Invalides.
André Breton et Paul Éluard. (In Prévert, 1992)

Com Soupault, Prévert escreve:

Un éléphant dans sa baignoire
Et les trois enfants dormant
Singulière singulière histoire
Histoire du soleil couchant.
Philippe Soupault. (In Prévert, 1992)

A este poema, Prévert coteja um poema de Minoutte, sua filha, no qual três gatinhos se banham também numa banheira, a fim de enfatizar o caráter infantil que deve constar na ação poética.

Trois petits chats dans une baignoire

Tournent la manivelle de satin
Et s’en vont dans les broussailles
Et partir et revenir, et partir et revenir
Et partir et revenir.
Et mangèrent leur déjeuner.
Ton... Ton....
(In Prévert, 1992)

De Desnos, Prévert apresenta um trecho do poema “Au bout du monde”, da seção “Les portes battantes”, do livro Fortunes (1942), no qual um desertor parlamenta com sentinelas que não entendem sua linguagem:

Quelque part dans le monde
Au pied d’un talus (escarpado)
Un déserteur parlemente
Avec des sentinelles
Qui ne comprennent pas son langage. Robert Desnos (In Prévert, 1992)

A linguagem da vida, do desertor, não é compreendida por aqueles que falam a linguagem da guerra, da guerra que matou Desnos. Ao utilizar um poema de uma seção chamada “as portas que batem”, Prévert retoma uma das imagens que Breton atribui à poesia surrealista: aquela que deixa as portas sempre batendo, para dentro e para fora.
Aliás, dentre os surrealistas é com Robert Desnos que a obra de Prévert mantém maior afinidade. Tanto Prévert quanto Desnos são conhecidos por sua militância política, sendo que, enquanto o primeiro militava apenas através de sua obra, o segundo participou ativamente de grupos de resistência, tendo um fim trágico em 1945, durante a Segunda Guerra. Em suas obras, há partes dedicadas a jogos com palavras, como o “Rrose Selavy”, de Desnos, e os graffitti, de Prévert. Se Desnos escreveu Trente chantefables pour des enfants sages, Prévert escreveu, mas não ironicamente, Contes pour enfants pas sages, uma vez que a simples leitura dessas obras demonstra o respeito que os poetas tinham por seu público infantil.
Em um depoimento de Michel Leiris a Jean Paul Corsetti, Leiris afirma que no surrealismo Desnos e Prévert haviam criado juntos um ramo original de poesia que apresentava uma verve popular, a qual destoava do restante da poesia praticada pelos surrealistas:

Il était avec Desnos, qu’il ne faut pas oublier, le creáteur de ce rameau original du surréalisme dont nous parlions tout à l’heure et, en ce sens, il échappait à la menace de “littératurisme” qui pesait sur le mouvement. […]
En tout cas, Prévert incarnait pour nous une poésie du “merveilleux”, mais du “merveilleux populaire”. C’est son innovation en tant que surréaliste. (Corsetti, 1991)

Embora, em vida, Desnos nunca tenha escrito nenhum texto com Prévert, consideramos que, em alguns dos poemas de Prévert dedicados a Desnos, pela magia da criação poética, podemos ler textos que trazem ao mesmo tempo as marcas desnosianas e as prevertianas.  Para nós, no poema “Aujourd’hui”, podemos ver claramente a presenç dessas marcas. A princípio, para entendermos que o poema se constitui como uma criação coletiva de Prévert com Desnos, devemos observar que, além de ser dedicado a Desnos, ele traz uma epígrafe retirada do poema “Aujourd’hui je me suis promené”, de Desnos, escrito em 1936, mas só publicado em État de veille em 1942. Eis a epígrafe:

Aujourd’hui je me suis promené avec mon camarade
Même s’il est mort
Je me suis promené avec mon camarade
. Robert Desnos. État de veille, 1936, (Prévert, 1996)

Em relação ao diálogo entre seu texto e a epígrafe, Prévert dissemina pelo texto trechos da epígrafe a fim de marcar enfaticamente a presença tanto de Desnos quanto do poema desnosiano. Logo no primeiro verso de “Aujourd’hui”, Prévert dialoga diretamente com o poema desnosiano ao utilizar o termo “Aujourd’hui”. Note-se que nesse poema “Aujourd’hui” entra numa rede de referência tripla. Primeiro, remete imediatamente ao poema desnosiano. Segundo, refere-se à revista homônima em que Desnos trabalhou como crítico literário no início dos anos 1940. Terceiro, marca o momento da enunciação, chamando a atenção para o fato de que, para Prévert, Desnos continua.
Em seguida ao termo Aujourd’hui Prévert faz seguir lugares e datas ligados à vida de Desnos, como a Rue Mazarine onde Desnos viveu durante muito tempo e seu período de militância que começou em 1936 e terminou tragicamente em 1945, quando Desnos morre contaminado pela febre tifoide.
Depois, Prévert apresenta o segundo verso da epígrafe, porém com a substituição do termo “mon camarade” pelo nome de Robert Desnos: “je me suis promené avec Robert Desnos” (PRÉVERT, 1996). Quatro versos depois, Prévert cita o “même s’il est mort”.
Ao retomar o último verso da epígrafe, Prévert também opera uma modificação acrescentando-lhe na primeira enunciação um “moi aussi” e na segunda, que vêm no verso seguinte em elipse, substitui o “mon camarade” pelo termo “mon ami”. Na primeira modificação Prévert nos diz que, além dele, vários outros também passeiam com Desnos, ou seja, que tal passeio é possível a todos aqueles que entram em contato com a obra desnosiana e aceitam empreender a caminhada poética. Já na segunda modificação, Prévert estabelece uma maior intimidade com Desnos, pois o autor de Paroles prefere o termo “mon ami” ao termo “mon camarade”, uma vez que este termo traz uma conotação de militância.
Assim, em “Aujourd’hui”, ouvimos dos poemas de Prévert e de Desnos um canto ao amor, de saudação à amizade. Vemos a exaltação da poesia como uma das formas de se chegar a esses momentos de confraternização que ultrapassam a vida e a morte.
Termino convocando André Breton e Jacques Prévert. Com Breton cito um trecho do poema “Hommage-hommage”, contribuição de Prévert para o número especial “Hommage à Picasso”, da Revista Documents (março de 1930): o surrealista está com “un pied sur la rive droite, un pied sur la rive gauche et le troisième sur le derrière des imbéciles”. Com Prévert, rendo uma homenagem aos surrealistas:

ils aimaient la vie. Pour les uns, c’était la poésie, pour les autres, c’était l’humour, pour d’autres n’importe quoi, mais pour tous c’était l’amour. En souriant ils envisageaient la mort, mais c’était pour mieux dévisager la vie. Pour la rendre plus libre, plus belle, plus heureuse même. Beaucoup d’entre eux ont disparu. Mais grâce à eux, cette vie réelle, comme leurs rêves, continue. (Prévert, 1966)

2. Palavras em movimento: jogos de palavras na obra poética de Jacques Prévert
Eclair Antonio Almeida Filho

Neste artigo, estudaremos os procedimentos que põem a obra prévertiana num movimento de retorno e renovação. Mostraremos apenas os casos em que Prévert utiliza figuras de linguagem e procedimentos retóricos de sua poética de modo a “ne pas faire comme tout le monde” (BERGENS, 1969). São eles:

a) as repetições ditas  inúteis, como a batologia, as reticências, os etc, epanástroles e epanadiploses;
b) os processos anagramáticos;
c) e o emprego de bilingüismos.

Antes de analisarmos a presença e a função de cada um desses procedimentos em Prévert, devemos ver como a crítica compreende os jogos de linguagem nos poemas prévertianos.
Segundo Régis Boyer, em seu artigo “Mots et jeux de mots chez Prévert, Queneau, Boris Vian et Ionesco”, os jogos de palavras, jamais gratuitos, implicam um sentido segundo, subjacente. Em suas palavras,

En règle générale, il y a jeu de mots quand un sens second vient se superposer au premier, porte ouverte aux allusions perfides, à la satire, à l’ironie, à l’absurde ou tout simplement à la bonne humeur. En ce sens, un jeu de mots est rarement gratuit: il tient avant tout de l’ironie parce que, comme elle, il est chargé de faire entendre plus qu’il ne dit expressément (1968).

De acordo com Jacques Bersani et alli, em seus poemas, Prévert realizaria a síntese de duas correntes que atravessam o Surrealismo: as correntes “dos jogos de linguagem” e “a libertária”. Para Bersani, Prévert é um

poète qui joue des mots, qui sait, comme le recommandait Breton, leur laisser “faire l’amour” pour mieux engendrer la merveille, Prévert est aussi et en même temps celui qui se joue des mots pour mieux se jouer de la société d’exploiteurs et d’oppresseurs qu’il vitupère”. (1995)

Vários pesquisadores dos jogos de linguagem na obra prévertiana apontam para a renovação e inovação que Prévert aplica em suas construções verbais. Para Andrée Bergens, em seu livro Prévert, a obra prévertiana surpreende pela inovação verbal, pelo detalhe inesperado e pela apresentação irreverente, renovando ininterruptamente a atenção e o interesse do leitor:

En dépit de la variété des sujets qui s’offrent à lui, on est étonné du petit nombre de thèmes qu’il traite et fait constamment revenir dans ses poèmes. C’est par l’invention verbale, le détail inattendu qui surprend, la présentation irrévencieuse qu’il renouvelle sans cesse l’interêt du lecteur.(1969)

Para Roger Bordier, em seu artigo “Esquisses pour le portrait d’un meneur”, as construções verbais de Prévert são sem equivalentes. Conforme Bordier, Prévert soube dar ao trocadilho (calembour) e aos jogos de palavras um tom que não existia até então:

ces constructions verbales [qui] demeurent sans équivalent. Le calembour, qui n’est certes pas une nouveauté mais auquel il sut donner un ton et un sens qui n’existaient pas jusqu’alors. (1991)

Por sua vez, Vittorio Sereni, em seu artigo “La vocation de la joie”, aponta os mecanismos que tornam as construções verbais prévertianas tão singulares. Citem-se entre eles: o emprego natural da gíria, jogos de palavras e duplos sentidos, os quais criam um efeito de desagregação e dissociação:

Il est facile d’en vérifier les mécanismes: emploi tout à fait naturel de l’argot (mais l’argot a-t-il une vertu poétique?), phrases à tiroirs, jeux de mots et doubles sens. L’effet de désagrégation, de dissociation, implicitement polémique – au sens où la poésie est en soi une attitude critique – est incontestable. (1991)

Acrescente-se que, neste efeito de desagregação e dissociação, Prévert opera uma nova associação de sons, idéias e palavras.
Conforme Pierre Parlebas, em seu artigo “Synthème dans Paroles de Prévert”, Parlebas observa que Prévert inverte, revira termos e expressõesfigés, provoca os sons e as palavras de maneira a, inicialmente, deformá-los, desintegrá-los para depois reformá-los. De acordo com Parlebas, o ataque que Prévert empreende à tradição literária é tal que muitas vezes se hesita em nomear “poemas” os textos prévertianos:

Les termes et les expressions sont retournés sur le gril. Prévert s’attaque aux mots et aux sons; il les provoque, les entrechoque, les déforme, les transforme, les reforme. Une telle refonte du langage dans un creuset souvent irrévérencieux ne va pas sans heurter quelque peu la tradition littéraire: on hésite souvent à nommer “poèmes” les textes prévertiens. (PARLEBAS, 1976)

De acordo com Bersanni et alli, entre as várias formas pelas quais a poesia prévertiana  transita,  ela soube encontrar na canção seu melhor meio de expressão:

poésie qui a su trouver dans la chanson, parmi une infinie variété de formes (contes, inventaires, charades, monologues, saynètes) son moyen d’expression – et de diffusion – privilégié. (1995)

Para Andrée Bergens, o estilo de Prévert corresponde ao da canção, com suas retomadas de palavras, frases e refrões, sendo sua estrutura de repetição a melhor maneira de enfatizar algo que se tem a dizer:

D’ailleurs, le style de Prévert correspond assez à celui de la chanson qui, avec ses redites de mots, de phrases, de refrains, est proche du parlé; et la répétition est un des procédés favoris de  notre auteur qui, lorsqu’il a quelque chose à dire, n’hésite pas à le répéter haut et souvent. (1969)

No entanto, Bergens considera apenas a relação interna que a canção mantém com os poemas prévertianos. Por nossa vez, entendemos que Prévert expande esta relação canção-poemas para toda a sua poética. Assim, como numa partitura, ecos sonoros, refrões, frases musicais, ritornelos podem perpassar vários poemas na obra prévertiana.
A seguir, veremos como o poeta trabalha em seus poemas a repetição nas formas da batologia,  etcs e reticências, de maneira a mostrar o que seria mesmo redundante. Tais recursos situam a repetição na poética prévertiana do movimento, porém implicando um retorno com renovação. Em seu livro Estudo analítico do poema, na parte em que estuda a rima, Antonio Candido observa que a redundância é um recurso muito usado na poesia moderna:

Além da rima, há outras homofonias, como a repetição de palavras, de frases e de idéias que se chama Redundância - recurso muito usado na nossa poesia moderna. (2004)

Em seu artigo “Poésie et redondance”, Jean Cohen estuda as relações entre redundância e discurso poético. Para ele, há na língua uma regra tácita conforme a qual, depois de se ter, por exemplo, escrito “Racine”, se é obrigado de escrever duas linhas depois em seu lugar “o autor de Fedra”, de tal modo que o escritor deve evitar repetições. (1976)
Diz Cohen que a redundância é mais tolerada na poesia (em verso) que na prosa:

Le vers (versus), est par sa essence un retour, “un discours répétant totalement ou partiellement la même figure phonique”. Cette récurrence systématique viole, on vient de le voir, une loi du langage au niveau du signifiant. Mais le phènomène  a également un aspect positif, constituant le second temps de ce mécanisme à deux temps qu’est le processus de poétisation. Quel est cet aspect? Le fait est que l’homophonie soit proscrite par la prose, même lorsqu’elle vise au “bien écrire”, montre l’inanité de toute conception “esthétique” du vers, qui tendrait à faire de l’homophonie une “euphonie”. En fait, dans le langage, tout signifie. (1976)

Para Cohen, a redundância é o próprio mecanismo da poesia. Em suas palavras:

Mais la répétition proprement dite, malgré sa fréquence, reste un phénomène marginal. Ce que cette analyse cherche à démontrer, c’est que la redondance est la loi constitutive du discours poétique. Ce qui veut dire que la cohérence du poème est obtenue au niveau de la synonymie pathétique, ou équivalence des pathèmes de termes noétiquement différents. (1976)

De acordo com o crítico, há 3 (três) tipos de redundância: do signo, do significante, do significado. (1976)
A redundância do signo seria  “la répétition proprement dite, qui peut aller du mot à la strophe”. Cohen dá como exemplo um verso de Verlaine em que a palavra “triste” é repetida  2 (duas vezes).

Ó triste, triste était mon âme
À cause, à cause d’une femme
(Verlaine).

Haveria “tautologia” toda vez em que os “termes répétés sont le sujet et le prédicat d’une proposition”, ou seja A é A.
A redundância do significante pode ser total ou parcial. Quando a redundância é total, há homonímia, a qual Cohen define como “identité des signifiants et différence des signifiés”. Ex: “il tombe dans la seconde tombe”. (PRÉVERT, OC I, 1992). No caso da redundância parcial, envolvem-se os traços prosódicos constitutivos do verso: tais como a rima, a aliteração, o metro, etc. (1976)
A redundância do significado também pode se apresentar de maneira  total ou partial. A total é representada pela sinonímia, definida “comme l’identité des signifiés et la différence des signifiants”. (1976)
A parcial apresenta-se na forma da figura conhecida como pleonasmo, que consiste em que “l’un des sèmes du mot est repris sous forme d’un autre mot”. Exemplo: subir para cima. Salienta Cohen que, embora proibido, não há nenhuma lei que explique porque não se usar o pleonasmo.

La redondance n’informe pas mais elle exprime et c’est pourquoi tout langage émotionnel tend à prendre la forme répétitive, qu’il s’agisse de l’émotion poétique, ordinaire ou religieuse. (1976)

Embora aponte observações pertinentes em relação à redundância na poesia, Cohen mostra ter uma percepção restrita ao opor “poesia” e “prosa”. Num poeta como Prévert que não distingue gêneros artísticos, tal separação não funciona.
Em Prévert seria melhor dizer que há uma aparência de redundância. Muitas vezes em seus poemas, Prévert usa como recurso poético a  repetição de uma palavra em diferentes sentidos. Ao analisar seu conceito de pun (trocadilho) em Prévert, Anne Hyde Greet, autora de Prévert’s word games, considera que na obra prévertiana  há

repetition of a single word in different senses, or even tighter yoking effected by a word that suggests another word entirely: that is the pun. (1968)

Para tal, Prévert utiliza-se de relações sonoros como “rhyme and alliteration, assonances”. Concorrem para a realização de um pun, de acordo com Greet, em Prévert “Homonyms, homophones and paronomasia”, os quais  “are based on accidental resemblances” a fim de produzir efeitos ou de seriedade ou de zombaria (1968).
De acordo com  Dante Tringali, em sua Introdução à Retórica, o trocadilho (ou calembur, do francês calembour), é “um jogo espirituoso de palavras para se fazer efeito” (1988),  e se consegue por diferentes caminhos baseia-se em  3 (três) procedimentos retóricos, a saber: a paronomásia, a antanáclase (ou diáfora) e a reunião de sílabas. Para Roberto de Oliveira Brandão, 3 (três) figuras produzem efeito de sentido a partir da repetição de um mesmo vocábulo. São elas:

a parelha (silepse, na classificação de Fontanier, ou seja, “utilização da mesma palavra em sentido próprio e em sentido figurado”), a antimétabole (“repetição de uma palavra ou de sinônimos, formando uma simetria”), a antanáclase (“repetição da mesma palavra, estabelecendo-se uma relação paradoxal”). (1989).

No poema “Midi certitude butée”, dedicada a Jean-Claude Lévy, Prévert emprega os homófonos “cerf” (cervo), que o Senhor caça, e “serfs” (servos), que o Senhor comanda, para não deixar dúvidas de que Lévy está sempre do lado deles. É como se tanto “cerf” como “serf”  fossem caçados e comandados pelo Senhor:

La voix radieuse du soleil ne s’accorde pas avec les voix impénétrables du Seigneur, et quand le Seigneur chasse à courre, Jean Claude Lévy est toujours du côté du cerf, du côté des serfs, du côté de la vie. (PRÉVERT, OC II, 1996)

No poema “Suivez le guide”, de Fatras, para que ninguém siga o guia, o mestre, Prévert promove um quiproquó com as formas homófonas e homógrafas de “suis”, que em francês tanto pode ser a primeira pessoa do singular do presente dos verbos “être” e “suivre”:

         LE GUIDE
Suivez le guide!
         UN TOURISTE
Je suis le guide.
         SON CHIEN
Je suis mon maître.
         UNE JOLIE FEMME
Je suis le guide. Donc je ne suis pas une femme, puisque je suis un homme.
         LE TOURISTE
Je suis cette jolie femme.
         SON CHIEN
Et moi aussi, je suis cette femme, puisque je suis mon maître.
         LE GUIDE
Suivez le guide. Moi, je ne suis pas le guide, puisque je suis le guide.
         LE TOURISTE
Je voudrais bien savoir qui est cette jolie femme que je suis.
         SON CHIEN
Je ne suis pas mon maître, puisque je suis mon maître et que cela m’ennuie.
         LA JOLIE FEMME
Je suis le guide, je suis la foule, je suis un régime, je suis la mode, je ne suis plus un enfant.  Oh!J’en ai assez! Je ne suis plus personne.
                                                        Elle disparaît.
         LE GUIDE
Oh! J’en ai assez! Je démissione.
                                                        Il disparaît.
         LE TOURISTE
Oh! Je ne suis plus le guide, je ne suis plus un homme, je ne suis plus une femme, je ne suis plus rien.
                                                        Il disparaît.
         LE CHIEN
Enfin! Je ne suis plus mon maître, donc je suis mon maître et je ne visiterai pas les châteaux de la Loire!

Para Prévert, não seguir o guia implica não repetir o que ele diz e não fazer o que ele manda.
Quanto às transformações que Prévert opera no uso de figuras de linguagem, é interessante citar o artigo de Michel Collot, “Le vers dans Paroles”. Nele, Collot aponta para as transformações que Prévert imprime em certas figuras de repetição, tais como anadiploses, anáforas, paralelismos. Para Collot, o que chama atenção é a maneira como Prévert emprega tais figuras, de maneira a que não haja repetição, mas sim transformação:

Encore faut-il préciser que, chez Prévert, la reprise n’est jamais une pure et simple redite; elle s’accompagne d’un déplacement formel ou sémantique. (2004)
Pode-se citar como exemplo o seguinte diálogo do poema Diurnes, de Fatras:
                   URBI
Sans doute, je suis celui qui peut être.
                   TORBI
Peut-être, je suis celui qui s’en doute.

Nesse diálogo, utilizando a epanástrofe (repetiçãona frase seguinte as mesmas palavras da frase anterior mas em ordem inversa) com os significantes “/sâ/ /dut/ e / /pøtetr”, Prévert faz-nos passar da certeza à dúvida. Enqaunto, na fala de Urbi, esses dois significantes remetem a “sem dúvida” e “pode ser”, na de Torbi remetem a “talvez” e “se duvida disso”. Prévert renova os sentidos repetindo os sons, mas não as classes gramaticais, escapando assim a uma simples repetição.
Já na primeira página de Paroles, pode-se encontrar um jogo de palavras baseado na repetição do verbo “croire” de maneira que ele possa ter ao mesmo tempo seus sentidos de certeza e de dúvida:

Ceux qui croient croire.

Em “Théologales”, de Spectacle, Prévert faz acompanhar de um comentário este mesmo jogo diafórico. Para fazê-lo, Prévert o põe na boca de um ábade, um representante da fé, o qual não pode(ria) ter dúvida:

                                      L’abbé, entre ses dents
Tss… Tss… (hochant la tête) Je crois en Dieu… Je crois qu’il va pleuvoir… C’est agaçant… Tss… Tss… le même mot pour affirmer la certitude et le doute.

Em “Performances”, de Imaginaires, Prévert relaciona a extensão do tempo marcado por uma ampulheta (sablier) com a extensão de um areal de praia (sablier) contra o qual se corre. Tal relação se realiza por contaminação semântica. No primeiro verso: “Sur une plage déserte un homme court contre le sablier, mais la plage n’en finit pas”, criamos em nossa mente a imagem de um homem que corre contra o areal de uma praia interminável. No entanto, ao lermos o segundo verso “L’homme a tout le temps devant lui, mais tout le temps c’est si loin. (PRÉVERT, OC II, 1996)”, ao notarmos  que  o poeta fala do tempo que está diante dele, percebemos que o areal (sablier) torna-se  ampulheta (sablier) por contaminação semântica.  Para o poeta, o tempo é algo que só conseguimos ver ao longe, sendo inalcançável.
Ao analisar o poema “L’amiral”, de Paroles, Michael Collot considera que Préver joga com as homofonias da língua francesa à sa manière. De acordo com o estudioso:

alors que la rime a traditionnellement pour fonction de marquer les frontières du vers et/ou de la strophe, de fixer la signification en la retrempant dans la répétition des sonorités, le jeu prévertien sur les homophones efface les limites du mot, du syntagme ou du vers, au profit de l’équivoque ou de l’inversion du sens. (2004)

Em geral, Prévert ora usa a batologia para evidenciar o discurso repetitivo e morto da Igreja, do Estado, da Sociedade, ora usa as reticências ou os etc. para dizer que já se conhece o que se irá dizer mesmo antes de ele ser dito. De acordo com o Dicionário Eletrônico Aurélio, a batologia é a “repetição inútil de uma palavra, frase ou pensamento”. Parece que a “repetição inútil” é necessária para afirmar ou a identidade ou o poder de uma autoridade constituída. Citem-se como exemplos as diversas aparições de “vieux vieillards”, provavelmente militares:

Le temps des vieux vieillard est fini.
[…]
Nous étouffons dans le brouillard
Dans le brouillard des vieux vieillards.
[…]
Sur la Place de la Muette
J’ai vu un vieux vieillard.
Le vieux vieillard de la chanson traverse la place en faisant des moulinets avec sa canne.

Em Prévert, apenas a repetição “inútil” daria aos atos dos representantes da Igreja, do Poder ou do Exército algum sentido, o qual se tornaria ao mesmo tempo desnecessário pela redundância. Assim, por exemplo, o papa deve fazer um gesto com sua mão de papa: Le pape fait avec sa main de pape un geste.
No poema “Les anneaux de Saturnes”, de  Imaginaires, um rei, figura autoritária e vitalícia, fica feliz como um rei:

En raison des services rendus, Saturne permit à Janus de convoler avec lui-même en justes noces sans être contraint de se demander sa main et le roi fut heureux comme un roi mais sans plus et même beaucoup moins que les témoins amoureux qui, à eux deux, ne faisaient qu’un.
                                                                  Annales de la complexité
Chapitre II, “Le voici l’anneau si doux”.

Para também marcar as repetições ditas “inúteis”, Prévert se utiliza de recursos como as reticências e os etc. No Dicionário eletrônico Aurélio, “reticências”, além de significar os 3 (três) ou mais pontos que indicam interrrupção do pensamento, podem ser uma
omissão intencional de coisa que se devia ou podia dizer, mas apenas se sugere, ou que, em certos casos, indica insinuação, segunda intenção, emoção. Ex.: &   [Sin.: pontos de reticência, pontos de suspensão e (fam.) pontinhos, três-pontinhos. Cf. reticencias, do v. reticenciar.] 
De acordo com Dante Tringali, as reticências e os etc, além de interromper o que se dizia, deixam para o leitor a tarefa de imaginar o resto:

RETICÊNCIA – interrompe-se repentinamente o que se dizia, para que o leitor imagine o resto. É, pois, uma frase inacabada de propósito, uma parte fica elíptica. (1988)

Na língua francesa, as reticências tomam o nome de “points de suspensions” (pontos de suspensão). Conforme o Petit Larousse, o ponto de suspensão pode indicar uma interrupção por conveniência, emoção ou reticência:

Points de suspension: signe de ponctuation (.) indiquant que l'énoncé est interrompu pour une raison quelconque (convenance, émotion, réticence, etc.).

Acrescente-se que as reticências podem servir para apresentar o fim de um pensamento ou de uma história, deixando subentedido o que teria vindo antes. Em geral, as reticências são seguidas das conjunção aditiva et. Citemos como exemplo os seguintes poemas de Prévert em que as reticências deixam pistas para um jogo autotextual na obra prévertiana:

…et le verbe s’est fait cher, et il a quêté parmi nous.

É o final, porém em prosa, do poema “Avant la lettre”:

Avant la lettre
il y avait le mot
avant le mot le son
En même temps la musique
et puis le verbe s’est
fait cher et il a quêté
parmi nous

O trecho que Prévert atribui a um “Napoléon bon apôtre”:

…du peuple français que j’ai tant aimé

bem poderia fazer parte das “primeiras e últimas palavras de um grande homem”, de Spectacle:

Pipi… caca… maman… papa… tombé sur la tête… Napoléon bobo…
Soldats, du haut de ces pierres humides Vingt mille lieues sous les Mers vous
contemplent.
Je viens comme Thémistocle…
Je désire que mes cendres reposent auprès du peuple français que j’ai tant aimé.

Geralmente, em Prévert, as reticências vêm acompanhadas de etc. Em “Les paris stupides”, poema de Paroles, as reticências e os etc. servem para dizer quais são as apostas estúpidas de Blaise Pascal:

Un certain Blaise Pascal
        .... etc.... etc.....

Para Pierre Parlebas, os pontos de suspensão (…) criam uma relação entre Prévert e seus leitores, levando-os a contribuir para completar o enunciado ou mesmo preencher aquele “vazio”:

Les points de suspension sont révélateurs: il est inutile d’ajouter ce qui est évident; ce serait pure redondance. […] Le lecteur est donc sollicité; il n’est pas que récepteur passif: l’auteur le met à contribution en lui suggérant de compléter son énoncé. Il se crée une sorte de connivence entre Prévert et le lecteur, connivence qui s’articule autour d’une communauté de culture. (1976)

Vê-se, pois, que os pontos de suspensão, ao invés de suspender um discurso, o continuam.
Para estudarmos os processos anagramáticos [1] em Prévert, baseamo-nos em 2 (dois) importantes trabalhos sobre o anagrama e os processos anagramáticos. São eles: a tese “Processos anagramáticos em Jacques Prévert. Uma poética da recri(e)ação”, de Maria Thereza Redig de Campos Barrocas, defendida em 1990, na UFRJ, e o artigo “Postérité littéraire des Anagrammes”, de Jan Baetens, publicado na Revista “Poétique” n. 66. Ambos os trabalhos partem dos estudos sobre anagramas empreendidos por Ferdinand de Saussure.
Em sua tese, Thereza Barrocas percebe que o procedimento anagramático poderia se estender, além do nível da palavra, para os níveis do sintagma e do discurso. No entanto, nota a estudiosa que ela não poderia aplicar o termo “anagrama” aos processos de decomposição-recomposição utilizados por Prévert, uma vez que, conforme o conselho de  vários linguistas,  o termo “anagrama” tem “um sentido bem preciso que designa um tipo de desconstrução/reconstrução ao nível da palavra” (1990). Assim, Barrocas optou por criar o termo “processos anagramáticos” Depois de inúmeras consultas e pesquisas chegamos à conclusão de que não havia um termo lingüístico para designar, em todos os níveis, esses processos” (1990). Para Barrocas, o nível do sintagma é o mais utilizado (1990), sendo baseado na homonímia (1990).
Por nossa vez, também consideramos pertinente  o uso do termo “processos anagramáticos” para os casos em que Prévert decompõe para recompor sintagmas, palavras e discursos, porém não de um modo tão abrangente quanto o que propõe a pesquisadora. Em nosso enfoque, os processos anagramáticos constituem uma modalidade de procedimento a serviço de sua poética do movimento.
De certo modo, Barrocas ajuda a traçar uma relação de analogia entre os processos anagramáticos e a escritura prévertiana de movimento. Em sua análise, a estudiosa distingue em Prévert poemas “a favor” e poemas “contra”. Os primeiros tratam da natureza, do amor, das crianças e da liberdade, ao passo que os segundos atacam a guerra, a submissão pela religião,  o ódio, o capital, conforme se lê:

“De um lado, estariam os poemas da Liberdade e da Natureza: do amor, dos animais, dos clochards, da ruas de Paris, de tudo o que foge à regra. [...] Em oposição, estão os poemas contra o sistema, a Cultura – se são contra o campo de cima estão a favor do campo de baixo. O campo é o mesmo, mas a posição é outra: a primeira é de defesa, a segunda é de ataque. Ataque contra o exército, a guerra, a polícia, a Igreja, a Escola, a Crítica e j’en passe”. (1990)

Nota a estudiosa que os processos anagramáticos aparecem com maior freqüência nos poemas “contra”, nos quais eles têm como função desconstruir, descongelar. Conforme Barrocas:

“Ora a anagramatização supõe uma desmitificação desses ‘mitos’ burgueses, através da quebra de associações previsíveis e estereotipadas, de clichês, de lugares-comuns supostamente eternos e naturais. E essa recriação se faz por meio de um jogo que desmonta, modifica (insere na história) e, por ser jogo, contraria, por sua gratuidade e desperdício, a ideologia burguesa da seriedade, da troca e do lucro.” (1990)

Em seu artigo, Jan Baetens chama a atenção para a fragilidade teórica da noção de “palavra-tema” (mot-thème) empregada por Ferdinand de Saussurre. Segundo Baetens, uma questão que preocupava Saussure (e que o levou a abandonar seus estudos sobre o anagrama) era a do limite da palavra-tema: seria o anagrama uma propriedade textual ou uma quimera do leitor? (BAETENS, 1985). Para Baetens, o problema estaria em que num texto longo é possível encontrar qualquer combinação de palavras, uma vez que numa língua formam-se palavras com um pequeno número de letras e fonemas. Assim, o estatuto do anagrama seria indecidível. Esta dispersão de elementos fônicos de uma palavra-tema ficaria restrito a textos pequenos.
Em relação aos limites espaciais da palavra-tema, afirma Barrocas que:

“no caso do anagrama, o espaço limitado torna menos possível o efeito do acaso. Mas, com o paragrama, logo que se ultrapassam dez linhas, o cálculo das probabilidades nos diz que, numa tal massa fônica, e tendo em vista o número restrito de fonemas de uma língua, torna-se cada vez mais fácil encontrar qualquer hipograma.
[…] Para Saussure, o importante era provar que a presença da palavra-tema era intencional por parte do autor.” (1990)

Pode-se citar como exemplo de palavra-tema em Prévert um seqüência do poema “Fastueuses épaves…”, de La pluie et le beau temps. Neste poema, todo um verso se constrói a partir da palavra-tema “sommeille”. Desta palavra, extrai-se a seqüência “sommeille sous l’oeil seul du soleil” (PRÉVERT, OC I, 1992). De “sommeille” chega-se a “soleil” , passando-se por “l’oeil seul”, que se forma da decomposição sonora e silábica de “soleil”. O mesmo jogo entre “soleil” e “seul oeil” retorna num poema que Prévert dedica ao fotógrafo Robert Doisneau:

La vie vue à l’oeil nu
à l’oeil neuf
le seul oeil
le soleil
de connivence avec la nuit.

De acordo com Thereza Barrocas, diferentemente da noção tradicional de anagrama como transformação gráfica de uma palavra e/ou de uma frase em outros palavras ou frases ao longo de um texto, para Saussure, pode-se fazer a distinção entre “anagrama” (ou anagrama perfeito), como a recombinação de todos os elementos de uma palavra ou de uma frase, e a “anafonia”, em que a transformação se dá no nível sonoro. Saussure empregava a palavra anagrama para
“designar a forma combinatória perfeita, em que todos os elementos do hipograma são reutilizados; enquanto que Anafonia designa não – como parece – um anagrama oral, e sim uma forma imperfeita em que os fonemas encontrados não são exatamente os da palavra-tema, só mantendo com eles uma relação de semelhança fônica imperfeita, e não de identidade.” (BARROCAS, 1990)
Assim como a homonímia e a paronomásia, deve-se acrescentar como procedimentos de anafonia a metátese e a contrepèterie, ambos baseados em deslocamentos de letras ou sílabas.
Como exemplo de anagrama perfeito em Prévert, podemos citar 2 (dois), a saber: o poema “LA SAGESSE OU LES POUX DANS LA TÊTE”, e “Économie Militaire”, de Choses et autres. O primeiro poema  é formado de 2 (dois) versos com uma palavra cada. No primeiro verso lê-se “Minerve” (a deusa da Guerra), no segundo lê-se Vermine (verme). Na leitura anagramática, passa-se da Guerra aos vermes nos corpos dos mortos:
Minerve
Vermine
Note-se que, para criar um anagrama perfeito, Prévert manteve as mesmas letras de Minerve em Vermine, alterando a formação das sílabas que compõem Minerve, mantendo apenas a sílaba mi. Assim, o r de ner de Miverne passa para a sílaba ver de Vermine.
Já em  “Économie Militaire”:

Couteaux généreux supprimant les généraux coûteux

por meio de metátese entre os fonemas finais “eaux” e “eux” das palavras “couteaux” e “généreux”, Prévert forma os sintagmas: “généraux coûteux”. Ou seja, à base “Cout” e “Génér” acrescenta os fonemas “eaux” e “eux”. Quando se dá a inversão no poema, Prévert também inverte a posição das bases e dos fonemas.
Como exemplo de anafonia, cite-se o poema “Sceaux d’hommes égaux morts”, de La pluie et le beau temps. Neste poema, embora o poeta não escreva as palavras Sodome e Gommorre, pode-se ouvi-las nos seguimentos “Sceaux d’hommes égaux morts” e “Seaux d’eau mégots morts”. No poema, o título “Sceaux d’hommes égaux morts” reaparece como “Seaux d’eau mégots morts”, como se se tentasse escapar a uma censura:

Seaux d’eau
Mégots morts
Deux corps sous les décombres
dans l’ombre du décor.

Nos 2 (dois) versos finais do poema, os corpos de 2 (dois) fuzilados (deux corps) sob os escombros (sous les décombres)  passam a fazer parte anagramaticamente da sombra do cenário (l’ombre du décor)

Deux corps sous les décombres
dans l’ombre du décor.

Com um mínimo de recursos (palavras) o poeta obtém um máximo de efeito. Neste poema, Prévert, por meio do anagrama poético, transpõe 2 (duas) regras fundamentais da palavra humana: a do laço codificado entre o significante e o significado, e a do linearidade dos significantes.
Ao termo “palavra-tema” Baetens prefere “Infratexto” (infratexte), criado por Jean-Pierre Vidal. O infratexto, que engloba “anagramas, plágios, estereótipos e procedimentos à la Raymond Roussel” seria um segundo texto, um outro texto:
autre texte (occulte et occulté) sous le texte, lieux communs ou formules (au sens algébrique ou chimique) le “chiffrant”, l’accompagnant, le relançant, le désignant. Sous le texte, mais non hors le texte, transcrit en le texte par des équivalents, travaillant selon le mode de sa disparition.(1985)
Para Baetens,  a pertinência do anagrama como funcionamento textual é “le fruit d’une construction lectorale, d’une lecture qui récrit le texte (1985).
No poema “OÙ CELA NOUS  MÈNE  ou OÙ CELA NOUMÈNE”, as várias possibilidades de se ler o infratexto já se apresentam desde o título. Prévert joga com 2 (duas) seqüências homófonas, porém com sentidos diferentes. Para o poeta, importa saber onde o númeno (a coisa-em-si kantiana) nos leva. O poema também apresenta 2 (duas) possibilidades de leitura, uma gráfica e outra gráfico-sonora. Na possibilidade gráfica, lê-se:

Cette cravate est un objet en soie mais
sur moi comme sur toi ou sur vous
elle se noue.

Por sua vez, na possibilidade gráfico-sonora, pode-se ler:

Cette cravate est un objet en soi mais
sur moi comme sur toi ou sur vous
elle c’est nous.

Este jogo com “soie/soi” também aparece em “Opéra Tonique”, dedicado a Isidore Ducasse, numa reescritura sonora do verso “Ó Poulpe, au regard de soie”, do primeiro canto de Maldoror, porém com “soi” no lugar de “soie”:

Poulpe au regard de soi, l'homme-pieuvre dans la glace
apparaît et ses tentacules roses, blêmes et frémissants,
font des signes de croix endiablés.

A escrita anagramática é dotada de um poder  de evocação considerável. No seu artigo “Sete proposições sobre o sétimo anjo”, sobre Jean-Pierre Brisset, Foucault afirma que sob as palavras  da língua francesa há frases, fragmentos de discursos, que ecoariam num murmúrio infinito:

“As palavras são fragmentos de discursos traçados por elas mesmas, modalidades de enunciados imobilizados e reduzidos ao neutro. Antes das palavras, havia as frases: antes do vocabulário, havia os enunciados; antes das sílabas e da organização elementar dos sons, havia o infinito murmúrio de tudo o que se dizia.
[…]  De forma que sob as palavras de nossa língua atual frases se fazem ouvir – pronunciadas com essas mesmas  ou quase – por homens  que ainda não existiam e que falavam do seu futuro nascimento.” (2001)

Nos versos finais do poema “Romancero Miró”, do livro Miró, a partir dos sons das sílibas “é-lé-men-taire” da expressão figé “C’est élémentaire” (é elementar), Prévert ouve a frase “Elle l’aime en terre”. O significante “terre” “puxa” os outros 3 (três) elementos da natureza: “air” (ar), “feu” (fogo) e “eau” (água”:

Miró aime la vie
La vie aime Miró
La vie aime l’amour
C’est élémentaire
Oui elle l’aime en l’air
Oui elle l’aime en feu
Oui elle l’aime en l’eau
Oui elle l’aime en terre
Élémentairement.

No poema “ET QUE FAITES-VOUS, ROSETTE, LE DIMANCHE MATIN?”, de La pluie et le beau temps, percebe-se o mesmo poder de evocação da escrita anagramática. A partir da decomposição silábica da palavra “Concupiscence”, proferida no poema por um   pregador (sermonneur), Prévert se reporta a outras 5 (cinco) palavras:

Concupiscence
Quel beau mot disait le sermonneur
et qui évoque tant de choses
le mot conque […]
le mot huppe […]
le mot Is […]
le mot Hans […]
D’ailleurs le mot anse évoque aussi l’anse du panier
     qu’autrefois  les petites bonnes n’hésitaient pas à faire
     danser et même (petit rire libre et primesautier) […]

No mesmo poema, o poeta transforma a sílaba-palavra con  em palavra-tema dos últimos 8 (oito) versos:

Con-cu-pis-cence
Il parla aussi d’autre chose
Nous conseillant d’aller à confesse
Pour éviter le concubinage
Et nous apprit qu’on appelait autrefois concuré
Le prêtre exerçant la charge de curé
Concurrement avec d’autres abbés.

de maneira que estas palavras fiquem contaminadas pelo sentido de con. Em relação ainda a con, vê-se, em Prévert, que esta palavra está ligada à “conscience”, ou melhor à “conscience tranquille”. Prévert transforma em seus poemas “conscience” em “science des cons:

La conscience d’aujourd’hui c’est la science des cons instruits.
Et cette conscience redeviendra encore pour un temps
    Science des cons
.
[…]
Quando vous citez un texte con, si c’est indispensable, n’oubliez pas le contexte.

Para Herbert Marcuse, a arte, a verdadeira arte, seria uma “contraconsciência: a negação do pensamento realístico-conformista” (1981).
Vê-se, em Prévert, o mesmo processo desconstrutor-reconstrutor com con na expressão “Société de consommation” (sociedade de consumo). No poema “TROPHÉES ET PERTES”, de Choses et autres, Prévert a transforma em “société de cons et de sommations”:

Saciété des notions
Société des nations
Et de détonations
Société de cons
Et de sommations

Num jogo anagramático, Prévert gosta de aproximar rêve (e)  de vrai (e), a fim de o sonho seja verdadeiro. Para fazer esta aproximação, se Prévert parte da palavra vrai (e), ele divide vrai (e) em 2 (duas) sílabas: o seguimento rai(e), que soa como /ré/, passa a ser grafado “rê”, enquanto o “v” transforma-se em “ve”, que soa como /v’/. Temos assim “rêve”. Mas se ele parte de rêve, ele inverte as sílabas “rê” e “ve”, mantendo o som /v’/ de “ve”, e transforma graficamente o “rê” em “rai (e)”. Temos assim “vrai(e)”.
A seguir citaremos 4 (quatro) poemas em que Prévert torna o sonho verdadeiro. No poema “1917”, do livro Miró, Prévert afirma que a liberdade dos sonhos  (rêves) de Miró era verdadeira (vraie)

et la liberté de ses rêves (de Miró)
était vraie à en crier.

No poema “La fleur”, de Choses et autres, Prévert diz que uma flor “ancienne toute neuve” é verdadeira como sonho:

La fleur ancienne
toute neuve […]
vraie comme un rêve

No poema “Smig-smag”, Prévert declara que apenas  “ils” (aqueles que oprimem, como os “Ceux” com maiúsculas do “Dîner de têtes”) não podem (não são capazes de) sonhar verdadeiramente:

Ils n’ont pas de quoi rêver vraiment.
Lui aussi était vrai
Ce rêve quand je l’ai fait.

Por meio de um jogo anagramático, pode-se saber, por exemplo, a que palavra Prévert se referiria. Em “L’amour”, de Choses et autres, Prévert apresenta o “amour” como “éternité étreinte” (eternidade abraçada fortemente). Note-se que “étreinte” é um anagrama perfeito de “éternité”.

      L’amour
Éternité étreinte.
Anna Gram.

O jogo anagramático é tão perceptível que Prévert atribui tal poema justamente a “Anna Gram”. Ao se ler o verso “Furtive étreinte de l’éternité” (PRÉVERT, OC II, 1996), do poema “La cinquième saison”, de Fatras, pode-se inferir que o poeta vai se referir ao amor:

Furtive étreinte de l’éternité
Coup de foudre
L’éclair déshabille l’amour

Vê-se, pois, que Prévert não se limita a utilizar um jogo anagramático apenas num poema, preferindo, por sua vez, inseri-lo numa rede autotextual, em que se pode ler um poema juntamente com outro.
Um belo exemplo da força de movimento que os processos anagramáticos representam é o poema “RENCART DES MOMIES”, de Le jour des temps.  Por meio de uma epanástrofe à la Prévert (ou seja, com modificação gráfica, sonora e semântica), o “rencart des momies” (encontro das múmias) transforma-se em “mot mis au rencard” (palavras postas em inatividade).

Rencart des momies
Mots mis au rencard

Note-se que Prévert emprega aleatoriamente as 2 (duas) grafias de rencard, ou seria rancard ou rencart?. Entre as palavras postas em inatividade por Prévert, citem-se

Le mot coeur moqueur
Le mot tête moqué
Le mot nu mental
Mot-mot révolté

Vê-se que Prévert joga paronomásticamente com as palavras. O “mot coeur” (a palavra coração), ao se repetir, transforma-se em seu homófono “moqueur”  (zombeteiro). A combinação sintagmática  “mot nu mental” soa como “monumental”; lembre-se aqui o mesmo jogo em

Le monde mental
          Ment
Monumentalement

Em “mot-mot révolté”, de acordo com uma nota da Pléiade, Prévert ter-se-ia referido à revolta dos Mau-Mau (que em francês soa como “mot-mot”) do Quênia contra os colonos ingleses entre 1952 e 1956 (PRÉVERT, OC II, 1996).
À medida que se vai lendo as palavras “mises au rencard”, pode-se perceber que Prévert as vai liberando de um sentido mumificado. No poema, a palavra “viscéral”, que, conforme o Petit Robert, pode significar, além de relativo às vísceras,
- Profond, intime, inconscient (opposé à réfléchi). "Ces profondeurs viscérales de l'être humain" (Aymé). Une haine viscérale, irraisonnée. Avoir une peur viscérale des araignées -
é enfim liberada:

Le mot viscéral
Enfin libéré
Plus bas que la ceinture
Plus haut que la sainteté

As palavras vão além da moral, da santidade. Os versos

Plus bas que la ceinture
Plus haut que la sainteté

remetem ao poema “Les images des Milles et une nuits”, de Imaginaires, em que Prévert cita um texto de Alfred Jarry em que o criador do termo “patafísica” explica o domínio das “morais da história”. De acordo com Jarry:

 “et peut-être même n’y  a-t-il de morales que les histoires qui traitent des choses situées au-dessous de la ceinture” (PRÉVERT, OC II, 1996).

Nos versos finais, Prévert se refere à “Femme” (mulher) palavra nua verdadeira (mot vrai) que se opõe a palavra “nu mental”; e à “Fleur” (flor), a palavra movida alegre ou “lírio-do-vale” (muguet). 

Femme le mot nu vrai
Fleur
Le mot mû gai

A palavra “muguet” ou “mû gai” simboliza não só os jogos de palavras em Prévert como também sua poética. A seguir, analisaremos o fenômeno do bilingüismo em Prévert como uma maneira de cruzar as barreiras lingüísticas.
Há na língua francesa há três níveis possíveis, a saber: os níveis semântico, sintático e fonológico. Tudo aquilo que violar um ou outro ou o conjunto destes 3 (três) componentes é, em princípio, agramatical. Em Prévert, pode-se perceber que o poeta tende a misturar, em alguns de seus poemas, palavras de língua inglesa e francesa, de modo que elas, mesmo numa tradução, se remetam sem cessar.
Em "MESSE MÉDIA", de Imaginaires, as palavras francesas do título se travestem sonoramente nas palavras inglesas que designam a mídia de massa: “mass media”. Eis o poema
Mass for the massacre of Mass.
Nesta aproximação, o poeta condensa no significante (mess) os sentidos de “missa” em francês e inglês e de “massa” em inglês. Com os sentidos de “mass” como “missa” e “massa”, a sua leitura torna-se indecidível. A simples troca de um sentido por outro altera bruscamente a significação no poema prevertiano. Vê-se que, além da ambiguidade semântica e fonológica bilíngue de “mass”, o poeta aproveita-se da ambiguidade da preposição inglesa “for”, que pode significar “para” e “a favor”, “pró”. A  seguir, apresentamos as 8 (oito) possibilidades de leitura deste poema:

Missa pelo (a favor do) massacre da massa.
Massa pelo (a favor do) massacre da missa.
Massa pelo (a favor do) massacre da massa.
Missa pelo (a favor do) massacre da missa.
Massa para o massacre da missa.
Massa para o massacre da massa.
Missa para o massacre da missa.
Missa para o massacre da massa.

No poema “La grasse matinée”, de Paroles, a passagem da expressão francesa “café-crème” para a expressão inglesa “café-cream”, que em francês soa como café-crime,  precede justamente o anúncio de um crime:

L’homme titube
Et dans l’intérieur de sa tête
Un brouillard de mots
Un brouillard de mots
Sardines à manger
Oeuf dur café crème
Café arrosé rhum
Café-crème
Café-crème
Café-crime (cream) arrosé sang!…
Un homme très estimé dans son quartier
A été égorgé en plein jour.

De acordo com Marina Yaguello, é justamente “a violação as regras da sintaxe e da semântica que dá origem à poesia, isto é, a um desvio em relação à normalidade cultural e social. A competência tanto comporta o respeito pelas regras como a aptidão para as violar” (1997).  Romper com a gramática é questionar a função de comunicação baseada sobre a norma, o consenso social que funda a língua.
O biligüismo chama a atenção para a realidade lingüística. O que nos faz aceitar ou rejeitar uma seqüência como sendo uma mistura de línguas? O maior poema (em extensão) bilíngue de Prévert é “Chant Song”, de Spectacle, escrito em forma enumerativa com palavras francesas e inglesas. Nele, Prévert exige de seu leitor um conhecimento tanto da língua francesa quanto da inglesa. Eis o poema na íntegra:







Moon lune
chant song
rivière river
garden rêveur
petite house
little maison   
Chant song
chant song
bleu song
et oiseau bleu
blood song
and bird oiseau
bleu song red song
chant song
chant song





Moon lune
chant song
rivière rêveur
garden river
rêve dream
mer sea
thank you
moon lune
thank you
mer sea
Moon lune
chant song
rivière river
garden rêveur
children enfant
mer sea
time temps



Chant song
chant song
blue song
et oiseau bleu
blood sang
and bird oiseau
blue song red sang
Oh girl fille
oh yes je t’aime
oh oui love you
oh girl fille
oh flower girl
je t’aime tant
Oh girl fille
oh oui love you
 
Oh flower girl
children enfant
oh yes je t’aime
je t’aime tant
t’aime tant
t’aime tant
time temps
time temps
time temps
time temps
et tant et tant
et tant et tant
et tant
et temps.

A princípio, pode-se notar desde o título que o poeta joga na combinação franco-inglesa “Chant song” com a sonoridade da palavra francesa chanson. Veja-se que o sintagma bilíngue enfatiza a presença do som (son) no canto (chant). De uma tradução do francês para o inglês, Prévert retorna para a língua francesa.
Na primeira estrofe do poema alternam-se irregularmente palavras francesas com palavras inglesas e vice-versa. Nem sempre ao termo francês corresponde uma tradução para o inglês, de maneira que o poeta quebra a expectativa numa constante remissão da língua francesa para a língua inglesa. Cite-se por exemplo

Garden rêveur
Petite house
Little maison

Garden (jardim) não significa em francês rêveur (sonhador). Em “Petite house” e “little maison”, o poeta chama a atenção para um cruzamento das línguas, que se pode visualizar no poema.
Em “Chant song”, as palavras,embora tenham sentidos diferentes, podem se aproximar ora pelo sentido, ora pela sonoridade, como nos exemplos a seguir. Prévert aproxima pela sonoridade “Blood” de “bleu” (azul) (sangue). “Blood” se traduz em francês por “sang”, que é homófono de “song” em inglês, o qual por sua vez remete pelo sentido a “chant”. Vale lembrar que, em outros 2 (dois) outros poemas, Prévert havia feito a aproximação entre “son” “song” “sang”: no título de um poema de Paroles “Chanson dans le sang” (PRÉVERT, OC I, 1992), e nos seguintes versos do poema “Chanson pour Labisse”:

La chanson de Samson
Dans le son il y a du sang
Dans le sang il y a du son.

A combinação bilíngue “mer sea” pode remeter à expressão inglesa “thank you”. Note-se que o poeta não escreve o cumprimento francês “merci”, homófono de “mer sea”, mas o sugere fonicamente.
Ao dizer “sim eu te amo”, o poeta mistura o “yes” (sim) com a expressão francesa “je t’aime”. Na repetição da expressão, mas com a inserção do advérbio “tant” (tanto), homófono em francês de “temps” (tempo), pode-se observar que tanto o sintagma “t’aime” pode remeter à pronúncia da palavra inglesa “time” [taime], quanto o advérbio “tant” pode remeter a  “temps”, e por sua vez a “time”, originando assim a seguinte seqüência:

oh yes je t’aime
Je t’aime tant
t’aime tant
t’aime tant
time temps
time temps
time temps
time temps
et tant et tant
et tant et tant
et tant
et temps.

Em “Quand Sir Jack l’Éventreur”, de Charmes de Londres¸ao se referir a inúmeras edições do jornal inglês “Times” (tempos), Prévert emprega o sintagma “tant”: “Tant de Times” (PRÉVERT, OC I, 1992). Por essa aproximação, o leitor pode ouvir uma remissão à palavra que significa “tempo” em inglês e em francês.
Assim, o poeta remete sem cessar seu leitor de uma língua à outra, criando uma rede de sentidos e sonoridades bilíngues, cruzando “linguistic barriers” (GREET, 1968). Assim, mesmo ao traduzir, tentando repetir uma palavra de uma língua em outra, Prévert opera uma transformação de significado.
Para terminar este artigo sobre as palavras em movimento, citaremos a seguir o poema “Silence de vie” para mostrar que o movimento continua mesmo no silêncio do poema e da vida:

Je ne veux rien apprendre
Je ne veux rien comprendre
              ni retenir
De morte voix
Je ne veux plus entendre
              ce vacarme sourd et muet
              de phrases et de chiffres
              de nombres et d’idées
Depuis longtemps déjà
               et même en se taisant
               la vie chante avec moi
               quelque chose de beau
Je n’entends pas votre langage
Je refuse un autre cerveau
               dit l’enfant
L’enfant sauvage

NOTA
1. Termo criado por Maria Thereza Barrocas em sua tese de Doutorado “Processos anagramáticos em Jacques Prévert. Uma poética da recri(e)ação”, defendida na UFRJ em 1990.



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Eclair Antonio Almeida Filho (Brasil, 1974). Ensaísta e notável pesquisador da obra de Jacques Prévert. Contato: eclairfilho@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras de Iván Tovar (República Dominicana). Ensaio 1:  Agulha Revista de Cultura # 43. Janeiro de 2005. Ensaio 2: Agulha Revista de Cultura # 47. Setembro de 2005.






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