Encontro em Freud, que estou a ler por acaso, um
passo que me pode interessar e muito. Está na Autobiografia escrita em
1924, numa altura em que a psicanálise já chegara à idade adulta, ou mesmo
madura, e em que era fácil ao autor rememorar em sinopse, sem explicações
demoradas e sem recurso à descrição pormenorizada de casos empíricos, tão
comuns na fase inicial, os passos do aparecimento e do primeiro desenvolvimento
da teoria psicanalítica. Ao tratar do período relativo à colaboração com
Breuer, Freud aponta o momento em que formulou a noção de inconsciente
psíquico como decisiva para a passagem do método catártico tal como Breuer
o praticava a partir da hipnose – libertação dos sintomas patológicos da
nevrose através da rememoração verbal deles – ao método analítico.
O que aqui me
interessa não é o que pode haver de específico neste, quer dizer, a etiologia sexual
das nevroses tal como a análise as detectou, mas muito mais o espaço intervalar
entre os dois momentos. No intervalo, como ponte de passagem, encontro a teoria
do recalcamento, em que conteúdos manifestos, até aí admitidos na consciência
vigilante, são expulsos desta, retraindo-se num segundo compartimento, onde
permanecem latentes e sem existência aparente. O facto desses novos conteúdos
latentes resistirem ao recalcamento, procurando forçar caminho para se voltarem
a manifestar à superfície, levou Freud a formular a ideia duma segunda
consciência, interdita à primeira, pelo menos de forma aberta e livremente
reconhecida, mas não por isso menos viva, actuante e consciente. A noção de
inconsciente psíquico, crucial ao nascimento da psicanálise, foi deduzida desta
ideia duma segunda consciência, onde actuam, vivem e se desenvolvem os
conteúdos latentes, desconhecidos da primeira consciência.
Retenho pois a
ideia duma segunda consciência, que existindo com realidade própria,
inexorável, é porém um território defeso e desconhecido à primeira,
aquela que tem lembrança e noção de si, pelo menos como se entende de forma
vulgar esta noção de si. A ideia duma dupla consciência, desconhecida ao
pensamento do dia-a-dia, uma consciência inconsciente para usar a expressão de
Freud, interessa-me muito para abordar um livro de Teixeira de Pascoaes dado a
lume em edição magra de autor no ano de 1942, Duplo Passeio.
Mas antes de
falar do livro talvez valha a pena dizer que em Platão, de resto citado na Autobiografia
de 1924 como o primeiro elo de Freud, ou em textos dele, como o Fedro,
o composto humano resulta da sobreposição de dois planos distintos, que nunca
se fundem por inteiro, corpo e alma, o primeiro pertença absoluta da natureza
terrestre e o segundo chegado de paragens distantes ou ignoradas. Em Platão
estes dois planos, o da alma e o do corpo, aparecem referidos ao mundo das
ideias, luminoso e esplêndido, e ao da caverna escura, onde as coisas materiais
surgem como apagadas sombras das ideias. Camões glosou em vários passos esta
visão duma alma alienígena aprisionada num vaso de argila que não lhe
corresponde. Na glosa camoniana a Terra é uma estação que fabrica vestes
materiais ao fogo luminoso que receberá, mas vestes desajustadas, já que
opacas, à natureza translúcida da essência imaterial. Daí a noção de exílio que
a alma vive na Terra junto do corpo, quer dizer, a incomodidade, a estranheza e
a dificuldade que ela sente num meio tóxico e corruptível que não é o seu.
Onde este
platonismo me parece ter tido o seu florescimento mais avançado foi num autor
como Sohravardi (sec. XII), que no seio da filosofia árabe fundiu Platão com
antigas tradições persas. O que daí resultou foi um entendimento distinto da
manifestação dos dois planos de conhecimento, o das ideias e o das coisas. Por
um lado o corpo, embora permanecendo um vestuário desajustado à alma, capaz
apenas de focar um conhecimento sensível, perde algo da oposição tenaz com a
alma e que logo se verá o quê e como; por outro lado, a alma, se bem que mantendo
a sua natureza de alienígena, adapta-se o seu tanto ao corpo, podendo até
perder de todo a memória do lugar de origem. No platonismo de Sohravardi a alma
quando chega à Terra para encarnar no corpo que esta lhe fabrica deixa um duplo
no lugar de origem. Da relação entre a alma encarnada e o duplo que nunca
abandonou o mundo original resultam situações distintas: se o diálogo existe, a
memória da pátria original não desaparece, antes se desenvolve, arrastando
nesse encontro faculdades próprias ao corpo ou ao que neste há do mundo
sensível; se a alma perde o contacto com o duplo, a memória da origem apaga-se
e em vez de ser a alma a sublimar o corpo é o corpo a condensar a alma.
Um dos artigos
mais notáveis deste platonismo é a forma como ele concebe o diálogo entre a
alma e o seu duplo. E talvez mais do que diálogo seja adequado falar aqui em
conhecimento, já que a alma ao encarnar conhece o corpo e perde parte do
conhecimento que antes tinha; essa parte perdida é o duplo que não a acompanha
no momento da encarnação. Para reconquistar o que perdeu, para voltar ao
convívio daquilo de que se separou, a alma humana precisa de desenvolver um
modo próprio de conhecimento. Se os sentidos corporais conhecem o mundo
empírico da realidade material e o intelecto racionaliza em leis esse primeiro
e imediato conhecimento, a imaginação é o órgão da alma encarnada capaz
de activar o contacto com o duplo. É pela imaginação que a alma encarnada pode
regressar ao contacto com o mundo original donde veio. Se não quiser perder a
ligação estabelecida, se quiser aprofundar as relações com o duplo, a alma
precisa de valorizar a imaginação, tornando-a cada vez mais activa e
presente.
Isto quer dizer
que o lugar de origem das almas tem um estatuto análogo ao da imagem ou é ele
mesmo uma imagem. E por ser nem mais nem menos do que uma imagem é que o duplo
se deixa apreender ou conhecer pela imaginação. A imagem não se confunde com a
ideia mas está dela muito mais próxima do que a realidade sensível. Na
gnoseologia de Platão há o exterior da caverna com o oceano de luz das ideias e
há o seu interior com as pálidas e apagadas sombras que são as coisas. A ponte
entre estes dois mundos é quase inexistente; só a reminiscência, a memória
residual que toda a sombra tem no fundo de si da luz exterior de que é afinal a
última projecção, cria uma ténue linha, que não chega a ser passagem, entre as
ideias e as sombras, o interior e o exterior da caverna. Em Sohravardi em vez
de duas realidades antagónicas, há pelo menos três realidades em jogo: as
ideias, as imagens e as coisas. A alma não chega directamente do mundo das
ideias, do extra-mundo se assim posso dizer, mas do mundo das imagens, que está
intimamente referido ao das ideias mas dele se distingue por uma corporeidade
subtil. É um plano intermédio, um entre-mundos, por contraponto ao extra-mundo
das ideias e ao intra-mundo da matéria, um plano que tanto participa pela
encarnação na realidade sensível das coisas como pelo duplo, que nunca abandona
o plano subtil das imagens, na realidade luminosa das ideias.
Regresso agora
ao livro de Teixeira de Pascoaes. Logo no título encontro a ideia de duplo ou
de desdobramento, que tanto me traz à lembrança, até por dentro da obra de
Pascoaes, em primeiro lugar essas sombras do livro de 1907, que abro agora
e onde deparo ao acaso com estes versos, quarta estrofe do poema “A Sombra do
Passado”: Sou como vós, ó árvores! A sonhar,/ Desço aos seios da Noite, a
ver se encontro/ Algum veio de luz, onde matar/ Esta sede infinita em que me
abraso!/ (...)/ Ai, tendes fome e sedes! Assim eu/ Tenho sede de luz. E
depois, ainda ao acaso, com estes, no poema “Além-Mundo”: (...) além desta
carne contingente,/ Que nos cobre estes ossos de miséria,/ Outra existe, mais
bela e transcendente,/ Para onde foge e emigra a nossa alma. Nestes quatro
versos deparo com o desdobramento da realidade material tal como o encontro em
Platão e nas glosas platónicas que se lhe seguiram; é aquilo que o sujeito
chama de outra carne, nem contingente nem miserável, e que por sua vez
não anda longe da segunda consciência elaborada por Freud. Uma nota:
esta outra carne diz respeito à totalidade do mundo natural, a tudo o
que existe em matéria, da pedra ao homem, da bactéria à mulher, da formiga à
criança, e não apenas à esfera humana. O antropomorfismo não tem aqui lugar;
seria irrisório ver sob este aspecto o homem separado da natureza. Por isso o
sujeito destes versos pode gritar que é árvore. E por isso num poema desta
mesma época, publicado em Vida Etérea (1906), “A Uma Ovelha”, o sujeito
foi capaz de ver num animal de rebanho um ser faminto dessa relva que
enverdece/ Os outeiros e os vales do Outro Mundo. Essa ovelha mostra que
todo o corpo corruptível e denso recebe um sopro alienígena, uma alma
incorpórea; qualquer corpo material, do mais ínfimo ao maior, é uma sombra
projectada por uma ideia. Tudo na Terra reflecte o seu arqueu ordenador; tudo
na Terra se projecta no infinito; tudo na Terra tem uma alma e aspira a entrar
em contacto com a parte dela que não encarnou. A anima mundi é terrena e
não apenas humana.
O tópico do
sujeito como árvore, com raízes, leva-me à primeira citação, na qual muito me
toca a acção aí referida, sonhar. Dito doutro modo, o sujeito é como uma
árvore mas só quando sonha, pois sonhar é fazer da noite um húmus onde se bebe
a luz. Se levar adiante o raciocínio obtenho: o dia, sem sonho, traz o corpo
material e a noite, com o sonho, traz a alma ou a segunda consciência de
que fala Freud. O veio de luz que o ser a sonhar procura é o extra-mundo
platónico. Convém perguntar: mas por quê a sonhar? Com certeza porque o sonho
faz parte daquele órgão da alma encarnada que a põe em contacto com o lugar de
origem. Isto traz à colação, quer dizer, cola, o que atrás se disse sobre o
papel da imaginação em Sohravardi. A imaginação tem natureza análoga a partes
próximas do extra-mundo; por esse motivo pela imaginação a alma encarnada pode
regressar ao lugar de origem. O sonho é pois parcela importante da imaginação e
não apenas pelo tempo que ocupa na vida de cada um mas pela natureza contínua e
real das imagens em que o sonhador mergulha. Não admira pois que seja a sonhar
que o sujeito do poema de 1907 procure o veio de luz do extra-mundo.
Recordo que a
propósito de Sohravardi alertei para a necessidade de valorizar a imaginação.
Sem isso o contacto com o além mundo perde-se ou quebra-se. Isto quer dizer que
a alma necessita de tornar cada vez mais real, cada vez mais presente, cada vez
mais sentido o mundo das imagens que lhe é aberto pela imaginação. O que se vê
em imaginação não pode ser degradado pelo intelecto, ou desvalorizado por ele,
como em geral hoje acontece. A civilização da imagem é um sofisma, uma
impostura descarada, porque ninguém acredita hoje na imagem, nem os que a fazem
nem os que a vêem, nem os que a vendem nem os que a compram. A imagem está na
civilização da mercadoria ao nível duma simples brincadeira inconsequente, duma
imbecilidade triste. É a Disneylândia do espírito, sem espessura de realidade,
a não ser a facturação da indústria cultural ou da do entretenimento.
Mesmo uma criança, para quem a imaginação parece ser a única força actuante do espírito, porventura porque a alma acabou de encarnar no vaso, fica apática ante a cinemática de Hollywood; nem uma beliscadura, nem um grito, apenas a ruminação interessada, o estalar na boca da pipoca com a calda de açúcar refinado. Quão longe vão os tempos, sem cinema, sem animação de bonecos, sem electricidade, em que as meras histórias da carochinha, contadas boca a boca, entre analfabetos, ou transpostas por actores anónimos, providos de máscaras, para um simples tablado de madeira carunchosa, podiam produzir no ouvinte ou no espectador, fosse pequeno ou grande, homem ou mulher, um suor lívido de terror ou mesmo um grito de pavor.
Mesmo uma criança, para quem a imaginação parece ser a única força actuante do espírito, porventura porque a alma acabou de encarnar no vaso, fica apática ante a cinemática de Hollywood; nem uma beliscadura, nem um grito, apenas a ruminação interessada, o estalar na boca da pipoca com a calda de açúcar refinado. Quão longe vão os tempos, sem cinema, sem animação de bonecos, sem electricidade, em que as meras histórias da carochinha, contadas boca a boca, entre analfabetos, ou transpostas por actores anónimos, providos de máscaras, para um simples tablado de madeira carunchosa, podiam produzir no ouvinte ou no espectador, fosse pequeno ou grande, homem ou mulher, um suor lívido de terror ou mesmo um grito de pavor.
Nos antípodas da
desvalorização da imagem está a experiência do autor que escreveu As Sombras.
Leia-se a realidade que ele empresta ao sonho, fruto de muito convívio tomado a
sério com ele: O Sonho e o amor/ são tão reais que, às vezes, nos parecem/
tangíveis e palpáveis; podem ver-se! (em “A Sombra da Vida”, décima
estrofe) As imagens no caso dele tocam-se; são tão sensíveis e tão verdadeiras
como a realidade material. Não são um simples passatempo, para entreter tempos
mortos, que só por ironia se chamam também livres, como sucede na Disneylândia
moderna, mas um mundo real no qual o ser se pode instalar com todas as bagagens
para viver e para se transformar.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor.Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
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