quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Das Experiências de Além Mundo ao Supra-real


Digo comigo mesmo que não devo voltar a página sem associar o ano de 1924, em que Freud publicou a Autobiografia, ao aparecimento do primeiro manifesto do surrealismo, da autoria de André Breton. É o momento crucial da fundação do movimento, com um texto fundador, se bem que desde 1919 se possam detectar e em larga escala os trabalhos preparatórios de grupo. No magma em que estou a trabalhar esse texto interessa muito pelas relações com a teoria freudiana – os trabalhos preparatórios acima referidos, com textos automáticos e anotações de sonhos, foram todos concebidos e desenvolvidos debaixo do influxo das técnicas psicanalíticas que Breton conhecia desde o meado da guerra de 1914-18 – e pelo que nele se encontra, ao menos em estado embrionário, relativo a Platão e aos seus desenvolvimentos.
Começo pela designação do movimento que aparece no letreiro do primeiro manifesto, surrealismo, manifeste du surréalisme. O nome, que na portuguesa língua teve hesitações várias – O’Neill numa carta a Cesariny de Setembro de 1947 diz por exemplo: passo a expor os meus projectos quanto a um possível movimento super-realista (creio ser este o vocábulo a adoptar) português (in As Mãos na Água a Cabeça no Mar, 1985: 294) – antes de se fixar naquela que acabou por vingar e que hoje é corrente, adaptação directa do francês, surrealismo, tem informes vários no manifesto de 1924, de modo a explicitar o seu sentido, ou o que com ele pretendia Breton, o que se entende pela novidade muito recente do vocábulo e o seu pouco ou nenhum uso, já que havia sido criado em 1917-8 por Apollinaire para classificar em subtítulo, drame surréaliste, sem mais, um livro seu, Les Mamelles de Tirésias. Significativa nesse capítulo é a aproximação que Breton faz entre o que pretende dizer com a palavra e aquilo que dois autores do século anterior, Carlyle em 1833-4 e Nerval em 1853, disseram quando usaram a palavra super-naturalismo, o primeiro no oitavo capítulo de Sartor Resartus e o segundo na dedicatória das Filhas do Fogo. Em relação a Nerval, Breton chega mesmo a dizer que ele possuiu no seu tempo, não a letra da palavra, que cabe a Apollinaire, mas o seu espírito.
O prefixo tal como Nerval o usa em supernaturalisme quer dizer acima de, o que de resto coincide com o prefixo da palavra escolhida por Breton, o que dá no primeiro caso acima do naturalismo e no segundo acima do realismo. Entende-se assim a escolha de O’Neill ao procurar adaptar a palavra à língua; super-realismo como aquilo que excede ou está acima do real. Posso ainda aceitar que o elemento de formação inicial da palavra pode ser traduzida pela ideia que está num outro prefixo da língua, supra, o que dá, e talvez melhor, que o super-realismo é também o supra-realismo, e digo melhor já que super-realismo se pode confundir, o que desastroso seria, por via da hipérbole, com hiper-realismo. Neste caso tenho simplesmente um realismo grande, no outro um além do realismo; a diferença é como se poder ver abissal. Nada de tão estranho pois ao realismo, seja hiper ou mini, ou apenas médio, como o surrealismo.
Nesta pesquisa sobre o valor da palavra no momento da sua criação vale a pena trazer aqui um outro parágrafo do manifesto, que reputo talvez o de maior alcance em todo o conjunto. Breton abre o manifesto com considerações sobre o sonho, o que se entende dada a importância do sonho na vida geral e nos trabalhos preparatórios a que o autor e os seus amigos se entregavam desde há anos. Demais o sonho fora o instrumento de que Freud se servira para justificar a presença autónoma da segunda consciência e a pressão da sua lógica junto da primeira. Se os conteúdos manifestos recalcados conseguiam furar o interdito do esquecimento que a primeira consciência lhes impunha isso se devia em primeiro lugar ao sonho. O sonho era a solução de compromisso que a primeira e a segunda consciência estabeleciam entre si; nesse pacto, a primeira consciência abria a porta aos conteúdos recalcados desde que estes procedessem por deslocamentos de sentido, quer dizer, desde que recorressem a metáforas ou símbolos de disfarce para se manifestarem; pelo seu lado a segunda consciência, para furar o bloqueio a que estava sujeita, acedia em disfarçar os seus conteúdos, criando tramas desconexas e sem sentido. O trabalho da análise era assim deslindar os símbolos de disfarce, peneirando ou revelando os conteúdos recalcados que sob forma simbólica a primeira consciência acedera em receber.
Depois de tecer algumas considerações sobre o sonho, de permeio com outras sobre a realidade e a consciência acordada, que com o sonho contrasta, o autor tem a seguinte exclamação: Creio na resolução futura destes dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer. Espantoso, não posso deixar de exclamar! Antes mesmo de falar de surrealismo Breton fala de surrealidade, quid do surrealismo, se assim posso dizer. E que diz ele? Que a surrealidade é uma realidade absoluta, que resulta da conciliação entre a realidade sensível, da primeira consciência, e o sonho, que é a realidade, mesmo que disfarçada ou travestida, da segunda consciência.
Novalis falou dum real absoluto; Frederico Schlegel dum real autêntico por contraste com o real sensível. Como não ver essa espécie de realidade absoluta de que fala Breton, resultante da conciliação entre a realidade dos sentidos e o sonho, como o real absoluto de Novalis, de resto citado no texto de 1924 a partir do paralelismo, mas não da homologia, entre séries ideais de acontecimentos e séries reais. E já agora como não ligar, ao menos por um cordão de luz, essa surrealidade ao mundo das ideias platónicas e à topografia do extra-mundo, com um litoral próximo e bem demarcado e um oceano distante e indefinível, tal como a regista um platónico como Sohravardi? A ligação é por demais evidente, para precisar de insistir nela. Ainda assim paga a pena acrescentar que a surrealidade está referida ao surreal e que este se entende como supra-real, quer dizer, o além mundo tal como o encontrei nas experiências do sujeito lírico de Teixeira de Pascoaes no livro Sombras.
Sombras, noto agora? Sim, espera do entardecer do dia, anseio crepuscular, e exaltação febril da noite escura pelo autor que pouco depois, por certo no seguimento deste livro de 1907, escreveria Senhora da Noite (1909). Quer ver o leitor um exemplo desta exaltação? Pois aí o tem no poema “A Sombra de Deus”, que continua “A Sombra da Noite”: Noite maravilhosa que, em seu ventre,/ Dilatado, sentia germinar/ Um braseiro de sóis, donde saíam,/ Como extintas faúlhas a voar,/ Grandes lágrimas de água e terra escura.// A Noite anterior, primeiro estado/ Fluídico e invisível da Matéria;/ Um sentimento apenas, desmaiado/ Sopro de sombra, errando no Infinito.../ A Noite originária, espectro enorme,/ Que em si continha a estranha Natureza;/ (...)// Aquela Noite universal de outrora,/ Donde tudo descende; e em nosso corpo,/ Humanizado e vivo, grita e chora/ E em nosso coração é sombra pálida!// Ó resíduos da Origem, do Princípio!/ (...)// Ó Noite universal, Noite de horror;/ Mas Noite criadora e maternal!/ (...)// O tempo é noite; o espaço é noite; a luz/ É noite; o som é noite... Ó Noite imensa/ Feita de sóis, de pedras, de alvoradas!/ (...)// Ó Noite criadora! Ó Noite escura!/ Ó tenebrosa mãe de Satanás!
A noite apaga a realidade sensível e revela o além mundo, o supra-real ou o real autêntico e absoluto dos românticos alemães; a noite é o lugar origem, um mundo de anti-matéria, de vazios ou de fogos estelares. Experiências de além mundo só de noite se experimentam. Sem essa câmara escura, exterior ou interior, impossível contemplar as estrelas ou as ideias. As viagens ao supra-real são nocturnas, quer dizer, a resolução da oposição entre a realidade sensível e o sonho necessita dum estado crepuscular, translúcido, em que as tinturas profundas da noite se misturem ao brilho de esmalte, opaco, do dia. Vejo agora que esta resolução a favor dessa nova realidade absoluta que é o supra-real tem tradução em linguagem freudiana. Assim: resolver a oposição entre o sensível e o sonho imaterial, chegar ao estado translúcido crepuscular, é permitir e incentivar o pacto e a ponte entre as duas consciências. É a mascarada dos símbolos a invadir a primeira consciência, a poesia a tomar conta da vidinha, a noite a beber o dia.
O bailado dos símbolos fica já a um passo de distância deste mundo; a atmosfera onde eles dançam é rarefeita, perdeu espessura e gravidade. Que baile de máscaras! Que corso carnavelesco! Que fábula! Dito doutro modo: a mascarada dos símbolos que a segunda consciência tece para invadir a primeira, trabalho fabuloso, pertence já ao mundo das imagens, ao inter-mundo, essa superfície exterior e perceptível do extra-mundo platónico, e não ao chão material, grave e denso, da Terra. Posso daqui tirar um novo fio: a terra do inter-mundo, mesmo não sendo ainda a das ideias, é a terra das imagens ou dos arcanos. Terra? Porventura não. Se quiser um símile adequado, direi mais nuvem que terra, mais éter que pedra, mais sublimação da matéria que condensação ou solidificação dela.
Não posso fechar sem associar o bailado dos símbolos que aqui se intrometeu, e que em linguagem freudiana é a possibilidade contratual que os conteúdos da segunda consciência têm de aceder à primeira, ao manifesto do surrealismo de 1924. Às tantas, no momento em que dobra o meridiano do texto, Breton define, como um dicionário o faria, de forma sintética, o surrealismo. E a definição que apresenta para esse nome masculino (n.m.) é a seguinte: automatismo psíquico puro pelo qual se exprime, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento. E ainda: Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, à margem de qualquer preocupação estética ou moral. O automatismo psíquico puro que o autor aqui apresenta como sinónimo de surrealismo implica o contrato das duas consciências, pois não pode haver funcionamento real do pensamento, ou captação deste fora de qualquer censura, sem a possibilidade de dar lugar aos conteúdos da segunda consciência. E pouco interessa a natureza destes para aquilo que aqui se explicita. Na verdade pergunto-me se em Freud os conteúdos sexuais da segunda consciência, tanto ou nada valorizados, não são afinal homólogos daqueles que se agitam no extra-mundo de Platão, em cujo centro está o Amor.
Não importa! Importa, sim, para já reter o quanto a poesia como trabalho de imagens analógicas, construção de metáforas, é idêntica ao sonho e ao automatismo psíquico puro. Talvez o leitor ainda não tenha alcançado o sentido deste. Tente-se uma derradeira aproximação. O automatismo psíquico é o que permite a mascarada dos símbolos; sem ele não há baile de máscaras.
E já agora a propósito de símbolos paga bem a pena recorrer a Pítágoras de Samos e a um tempo anterior a Platão. Consciente de que as coisas sensíveis são mensuráveis, Pitágoras viu na expressão dessa medida a possibilidade de contactar com a alma de cada coisa. Formou-se assim nos eleáticos, a ideia de que conhecer é encontrar um número e que o número, revelando aspectos essenciais do mundo das coisas, participa já da alma oculta dessas mesmas coisas. Não deixa de impressionar a possibilidade de traduzir ou até de decalcar o pitagorismo em linguagem freudiana: o número é o símbolo que a segunda consciência produz se para poder manifestar no nível básico da consciência ou do mundo sensível.


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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.






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