A
frase encontra-se no texto já citado “Para uma Cronologia do Surrealismo em
Português” – escrito e publicado em 1973 e reproduzido hoje no livro As Mãos
na Água a Cabeça no Mar (1985) – e é a seguinte: Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que
Fernando Pessoa. (1985: 261) Servi-me dela, ao lado de três outras, para
abrir o livrinho Teixeira de Pascoaes nas
Palavras do Surrealismo em Português (2010) e volto agora a pegar nela,
desta vez isolada, para a tomar como epígrafe solitária deste que ora entrego
ao leitor. Pela importância que lhe tenho dado, pelo que apresenta de tão
inaudito e de tão inesperado, ofensivo mesmo, a frase fica a merecer da minha
parte um excurso interior de comentário ou um tentame de esclarecimento.
A
primeira pergunta a fazer é a seguinte: que quererá Cesariny dizer com ela? A
afirmação não tem na aparência sentido obscuro ou dúbio. A resposta é pois
imediata – mas não é mansa: Teixeira de Pascoaes é para Cesariny um poeta mais
importante do que Fernando Pessoa. Posso deixar de lado o sujeito singular da
afirmação, que não a restringe a si, universalizando o sentido: Pascoaes é
poeta mais importante do que Pessoa. E posso, sem trair, traduzir a expressão
por uma nova, que a alarga e esclarece: Pascoaes
é um poeta superior a Pessoa.
A
segunda pergunta, tendo em atenção a direcção do significado encontrado, no
mínimo surpreendente, não pode deixar de ser: a afirmação é a sério ou a
brincar? Nada me leva a questionar a seriedade da frase, nem o que vem antes
nem o que vem depois. Não posso esquecer o quadro em que ela aparece, um dos
mais sérios em que Cesariny se meteu: um texto que ensaia ser um contributo
avantajado à história do surrealismo português, “Para uma Cronologia do
Surrealismo em Português”. A afirmação vem no primeiro capítulo, na zona dos
precursores, e abre os períodos dedicados a Teixeira de Pascoaes, aqueles que o
leitor já conhece e onde se fala dum livrinho rimbaldiano sem Rimbaud e
surrealista sem o surrealismo, O Bailado
(1921), e dum homem que praticou ao longo de mais de meio-século a poesia como
pedra filosofal.
Não
parece pois que seja de tomar a brincar a afirmação de Cesariny, como fez
Osvaldo Silvestre ao falar do pai tardio
de Cesariny. Até se aceita a ideia de relação filial entre Cesariny e Pascoaes,
mas sem querer aplicar nela qualquer estratégia de luta edipiana entre Cesariny
e Pessoa. A luta edipiana com o pai situa-se no plano chão da primeira consciência
e resulta da interdição do incesto; não é mais do que um contra-investimento
traumático da líbido, penalizada que esta foi pela impossibilidade do incesto
parental. Quando a prática do incesto era corrente, em pleno matriarcado, num
período de promiscuidade sexual sem limite, como aquele que se vê em todos os
mamíferos, a luta do pai e do filho pela posse da mãe, ou da filha pela posse
do pai, não fazia qualquer sentido, já que essa posse estava ao alcance de
qualquer um. No plano do surreal ou do sobrenatural, onde se situa por exemplo
a cosmologia masdeísta da criação incestuosa do homem, a luta edipiana não
existe, pois o conflito psíquico originado pela interdição do incesto nem
sequer se apresenta. Ora Cesariny, mesmo sem incesto, que a liberdade dele não chegou aí, e o sonho
com Lisboa é em tal ponto revelador, não é homem nem poeta para ser visto no
plano comezinho e apertado da primeira consciência, onde vive e escouceia
qualquer careta de colarinho branco; ao fazer profissão de fé no surrealismo,
ao manter-se-lhe fiel até ao fim da vida, é à (ou para a) segunda consciência
que Cesariny se dirige e é à luz dela que o intérprete, se quiser entender algo
desta experiência, o há-de ler.
Fica
pois afastada a possibilidade analítica de ler a frase em causa como uma
estratégia da luta edipiana entre Cesariny e Pessoa. E já agora pai tardio porquê? Haja mais atenção,
senhores! Cesariny leu um livro marcante de Pascoaes aos vinte e seis aninhos,
no princípio das suas lides, e foi tocado por ele; disso até registo ficou em
carta de António Maria Lisboa, que na segunda metade do ano de 1953 já cá não
estava. E tudo fez na época em que o seu grupo surrealista estava activo, e
bem, com peixinhos de vinte anos, para conhecer cara a cara o Poeta, não hesitando
mesmo em se deslocar a Amarante e em subir a Gatão, à Casa de Pascoaes.
Pascoaes, pai de Cesariny? Aceite-se! Serôdio? Nunca, nem por sombras. Bem
temporão foi ele; basta ver com um pouco de atenção a questão.
Passado
este cabo, faça-se a terceira e última pergunta: que significado tem para
Cesariny Pascoaes ser um poeta superior a Pessoa? É a pergunta decisiva, aquela
de cuja resposta depende o descascar a frase, dando a provar o interior do seu
miolo. As hipóteses são tão variadas que os caminhos, se bem que cheios de
piada, com tanta silva, se fazem labirinto. Pascoaes é superior a Pessoa porque
fumava tabaco de enrolar e Pessoa cigarros de pacote? Pessoa é inferior a
Pascoaes porque bebia no Vale do Rio e Pascoaes na pipa de Gatão? Pascoaes é
superior a Pessoa porque comia castanha pilada e Pessoa se ficava pela batata
de Caneças? E por aí fora, até ao Tâmega e ao Tejo, dois rios que começam pela
mesma letra, chegam do mesmo país e vão dar ao mesmo mar. Pessoa inferior a
Pascoaes porque não tem onda em Cascais para surfar com tanta altura como
Pascoaes tem em Matosinhos? Pascoaes superior a Pessoa por causa da asa delta
do Marão? Os trilhos são infinitos e quase sem enfado de tão piadéticos.
Uma
coisa é segura para mim na frase de Cesariny: tenho de afastar a leitura mais
vulgar e imediata em que qualquer leitor cairá quando a lê. Qual é ela?
Pascoaes é superior a Pessoa porque tem mais talento literário do que ele. Não!
Concedo desde já que não era esse o significado que Cesariny emprestou à frase
e que não é nesse sentido que a uso. Concedo até mais: no plano da literatura o
inverso parece-me mais certo; Pessoa é mais talentoso que Pascoaes. A
habilidade linguística, a capacidade de manobrar palavras, o virtuosismo do
instrumento literário é em Pessoa imbatível
e sem paralelo à altura. No estrito plano da literatura Pessoa bate qualquer
outro.
Sobrevive
pois por resolver a questão: de que modo e onde Pascoaes é superior a Pessoa?
Note-se que Cesariny não diz que Pascoaes é um literato ou mesmo um letrado superior
a Pessoa; diz antes que é um poeta. É
pois no campo da poesia que Pascoaes
é superior a Pessoa. A poesia não é apenas feita de palavras e de emoções
vividas; a poesia para ser inteira e ter largo alcance precisa de algo mais.
Não lhe basta ser virtuosa no plano da literatura ou da vida (deste mundo). Uma
poesia feita apenas de palavras e de emoções não chega a ser uma arte real; não vai além, no melhor dos
casos, duma gramática. Esse algo em falta é a imaginação. Só com esta faculdade
a poesia se faz criação da segunda instância e trilho de acesso ao supra-real;
só com ela se pode falar de automatismo psíquico e de criação simbólica ao
nível do poético. Em última visão, uma poesia constituída apenas por palavras e
por emoções está ao nível dos conteúdos da primeira consciência, ou das
ambições do Eu social, e não chega sequer a entrar em contacto com o mundo da
alma.
Ora
Pessoa, pela extraordinária habilidade linguística que tinha, fez uma poesia de
palavras e de emoções – mesmo que estas muitas vezes mentais. A sua capacidade
imaginativa é medíocre ou só sofrível; está muito longe de atingir a
luminosidade lapidar, a cristalização mágica, que se encontra em Pascoaes ou
até em Sá-Carneiro. Ele próprio confessa em certos momentos a pouca apetência que
tinha pelo imaginar, que lhe parecia forma de expressão confusa, incómoda,
embrulhada. Quando se quer exprimir, ele prefere de longe o raciocínio do
intelecto à imagem da imaginação, que se lhe apresenta sempre um grau abaixo do
juízo lógico. É a raciocinar que ele se encontra à-vontade e não a imaginar, e
isto até quando escreve versos. Tome-se como exemplo Alberto Caeiro. É a secura
raciocinante em exaustão, levada ao extremo, recusando através da tautologia em
bruto um mínimo residual que seja de imagem metafórica ou de aproximação
analógica. Uma tal poesia obtém-se, como revelou o seu criador, virando do
avesso Pascoaes; é pôr em acção um anti-Pascoaes através duma anti-imaginação.
O
antídoto da escaldante imaginação pascoaesiana é pois o intelecto descarnado do
raciocínio pessoano. E o pouco que há em Pessoa de imaginação deve-se mais à
possibilidade de intelectualizar a imagem do que em imaginar esta em estado
virgem. O intelecto de Pessoa é tão poderoso, foi tão musculado momento a
momento, praticou tanto e de tão variados modos, que o seu possuidor tenta
mesmo suprir com ele as falhas que percebe nas faculdades sensitivas e
psíquicas. Pessoa faz por isso de conta que imagina, organizando e esclarecendo
com o intelecto algumas imagens que vai buscar por via erudita aos poetas
imaginativos. Parecem-me raras e pobres as imagens que se coam na poesia de
Pessoa por contacto directo da alma.
Faz
agora mais sentido a frase em causa. Vede. Pessoa interessa menos Cesariny do
que Pascoaes, já que a força da expressão não reside nele na imagem mas no
raciocínio; Pascoaes interessa mais do que Pessoa, já que a esfera da
imaginação se sobrepõe nele ao mundo empírico dos sentidos e ao universo
abstracto do intelecto. O bailado simbólico da imaginação de Pascoaes, mesmo
sem o talento literário-sintáctico de Pessoa, importa mais do que tudo o resto;
um tal bailado equivale ao automatismo psíquico que um poeta surrealista deve
exigir da poesia. Ao invés o talento literário de Pessoa, mas sem o génio
imaginativo de Pascoaes, tem irrisório valor, pois não chega sequer para ou a
descolar da realidade empírica dos sentidos ou da abstracção do intelecto. Para
um poeta surrealista a poesia sem o automatismo psíquico, a poesia sem contacto
directo com o mundo da alma, a poesia feita apenas de palavras ou de emoções, a
poesia amassada com a terra da primeira consciência, é apenas literatura e esta
tem uma importância tão nula como qualquer outro material do Eu social.
Pascoaes,
como batedor da imagem, como vedor dos veios interiores que levam ao perdido
continente alma, é pois um poeta para Cesariny mais importante do que Pessoa.
Entende-se. A inferioridade dum em relação a outro é apenas a diferença de grau
que para um poeta surrealista existe entre a imagem fulgurante, a ferver, que
põe o ser em contacto com o Eu interior, o daemon do mundo da alma, e o
raciocínio frio, que um ser de invulgar inteligência sabe brilhantemente, sem
mais, ordenar em palavras. A literatura é esta letra dura que não descola do mundo, a palavra sensível ou
abstracta, mas sem rasgo de supra-real, enquanto a poesia é aquela imagem que
voa num lugar livre do entre mundo, onde a palavra fogo não é apenas a palavra
fogo mas o arquétipo, a labareda que queima a boca.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
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