São merecedoras
de atenção cuidada, por tão curiosas e singulares, as páginas que Breton dedica
à Magia, em particular a Flamel, no Sécond Manifeste du Surréalisme
(1930). Nada da adorável ingenuidade lapidar que levara Breton seis anos antes,
quase incógnito, a propor aos dicionários do tempo a sinonimia do surrealismo
com o automatismo psíquico puro. O nível da pesquisa surrealista atingira já em
1930 outro patamar, mais sólido e mais largo, os dicionários haviam ficado para
trás, bem como o público, esse público que no mesmo manifesto se exige que não
entre, que não passe sequer da porta, e nenhuma surpresa em perceber Breton na
ante-câmara do mundo, ou nos seus subterrâneos, a estabelecer as pontes entre o
surrealismo e a Magia, entre o supra-real e a pedra filosofal.
Desses passos, o
que mais admirável me parece é aquele em que o autor reporta o momento em que
Nicolas Flamel, assistido por um poder superior, recebe das mãos dum anjo, o
livro de Abraão Judeu. Mas não menos tocante é o passo em que ele, Breton,
confessa humildemente não ser ainda capaz de aceitar que Flamel, nascido no
século XIV, continuasse vivo na segunda metade do século XVIII. E já agora que
dizer quando convoca Agrippa para saudar de passagem (ou em permanência?) o
regresso, pela mão do surrealismo, do furor?
Aqui, na ideia de inspiração, tão afim da divina
loucura de Platão, se fecha o círculo que começa na descida dum livro por
intermédio dum anjo – dum daemon digo eu. Fecha-se sem se fechar, pois será de
ver como Mário Cesariny toma em mãos este Flamel e trabalha com ele em 1964 na
margem direita do Sena. De Cesariny ficaram felizmente as anotações do “Diário
da Composição”, inserto no final do livro A
Cidade Queimada, onde de resto cita o Fedro
de Platão; nelas interessa muito a torre fálica, ornada dos símbolos da ciência oculta, a torre de Saint
Jacques, cravada por Flamel no coração de Paris, como uma outra seta à espera
do seu alvo ou um outro daemon encoberto
à espera da sua revelação interior.
Aquilo que aqui
me interessa é porém outra coisa; as considerações de Breton sobre a magia são
apenas colaterais ao ponto que aqui me vai. O fecho desse segmento do Segundo Manifesto recorre a algumas
indicações rituais que o praticante deverá ter em conta nas operações mentais
alquímicas, antes de mais a nobreza de intenções, a pureza da alma e a clareza
do lugar onde tudo se opera. É pois a partir desse fecho que Breton parte para
as três ou quatro páginas finais do texto, dedicadas a Georges Bataille, um
contemporâneo, e que já nada têm a ver com o segmento anterior. Estas páginas
finais, sem o epílogo, interessam-me muito. Leio-as e releio-as com atenção.
Fervilha aí, à superfície, a virulência, a paixão do ajuste de contas que
caracteriza aqui e ali o manifesto, sob esse aspecto tão diferente do primeiro.
Mas também não é esse grau de linguagem, a temperatura do discurso a ferver em
cachão, tão próxima do panfleto político partidário, que me interessa. O
diálogo entre Breton e Bataille tem outro motivo de ser e não perde nem ganha
com a veemência intempestiva da expressão. Por baixo desta, nas entranhas do
passo, esgrime-se um diálogo de ideias, melhor, joga-se um jogo muito mais
elegante e essencial.
Esse é o jogo
que Bataille começou a jogar na revista Documents
em 1929, acusando o surrealismo e Breton em particular duma sede de integridade que em tudo lhe
parecia, pela anti-sordidez, a verdadeira natureza do sujo. Entende-se melhor
agora por que razão Breton escolheu estrategicamente no momento de fecho do
segmento sobre a arte mágica passagens sobre a transparência interior e
exterior do praticante. É por aí, no trânsito para o excurso final, que Breton
começa a dizer a Bataille o que lhe interessa. Não é ainda a carta sobre a
mesa, carta de pinta preta, carta sobre carta, carta resposta à do outro
jogador, mas um preliminar, uma agulha que serve para mudar de linha e entrar
no jogo. Seja como for, a imagem desse preliminar é tão forte que a indicação
do jogo de Breton está dada; ele defenderá a todo o custo, e com uma veemência
que não põe nem tira ao caso, a integridade
ou a anti-sordidez de que é acusado, deixando o sórdido para Bataille.
Bataille nessa
época havia já publicado, sob pseudónimo, Histoire
de L’Oeil e preparava-se para dar a lume, com o seu nome, um texto escrito
em 1927, L’Anus Solaire, texto
fundador daquela parte mais característica da escrita de Bataille, que levará
no início da década seguinte, 1943, à publicação do livro capital, L’Experience Intérieure, que virá a
constituir o primeiro volume da soma
ateológica. A ateologia foi a
palavra encontrada por Bataille para designar uma via paralela à mística,
enquanto experiência do êxtase, mas também da dor e da angústia, e que com ela
se não confunde nem nunca se encontra por um motivo de monta: a experiência
ateológica não desemboca em nenhum além, não supõe a existência de qualquer
outro mundo, não concebe qualquer absoluto nem qualquer diálogo transcendente,
não aceita nenhum plano divino. É tão-só, através da exacerbação de certos
comportamentos, uma experiência dos limites humanos, com o único fito de
experienciar a possibilidade de viver o impossível dos seus limites.
Percebe-se pois
a obsessão com que Bataille agitou e sacudiu o erotismo para dele tirar essa
aproximação ao impossível. É óbvio que num erotismo vivido sem condicionantes
morais de nenhuma espécie, nem edipianas nem outras, o horror e o horrível se
fazem a cada passo presentes, sobretudo se esse erotismo supõe como quadro de
contexto, como acontece em todas as narrativas de Bataille, o Eu social tal
como ele é depois de seis ou sete milénios de civilização. Se o horror
dificilmente se imiscui numa narrativa como O
Empecido de Pascoaes, apesar da zoofilia de Albino pela Ruça, e até do
semi-incesto da mãe com o filho, é que se está diante duma comunidade arcaica,
ligada à terra e à pastorícia, que não perdeu ainda no dia-a-dia, pelo
isolamento em que vive, memória residual das práticas ancestrais, anteriores à
imposição moral da proibição do incesto parental. Nas narrativas de Bataille é
o contrário que está em causa, pois todas elas se passam em meio urbano e
respeitam à classe alta, a que mais fez e se bateu, talvez por razões de
eugenia, pela criação das proibições morais que determinaram o início do actual
estádio civilizacional.
Mas é no horror,
no horror com que Eu social, o Eu da primeira consciência, se confronta, que o
homem segundo Bataille se excede para encontrar uma pureza inominável que o
compensa de toda a repugnância sentida. Daí o protagonista de Ma Mère, um dos textos mais
significativos desta experiência,
dizer, no momento em que tem a certeza que mais tarde ou mais cedo a mãe se lhe
entregará por vontade própria, que na
fundura do meu desgosto, sentia-me idêntico a um Deus. As lágrimas que
então se choram, diz algures o narrador, não são só de terror mas de abençoada
alegria.
O jogo entre
Breton e Bataille, tal como ele surge nos textos deste da revista Documents, segunda metade do ano de
1929, primeiros meses de 1930, e na resposta que Breton lhe dá nas páginas
finais do Segundo Manifesto, não é
apenas um jogo entre dois comparsas abstraídos do mundo, perdidos num qualquer
recanto do tempo, concentrados apenas no tampo da mesa onde saem as cartas do
baralho que está entre os dois, mas uma cena muito mais ampla e complexa que se
torna o palco gigantesco onde se representam alguns dos dramas fundamentais da
humana condição pensante. Do lado de Bataille está a recusa de qualquer
transcendência, a afirmação dum materialismo feroz e um retomar da experiência
de Sade, sem no entanto pagar por isso o preço que o marquês teve de
desembolsar e perseguindo uma meta de alegria desconcertante, toda interior e
solitária, que talvez não existisse no autor de Justine. Seja como for, tudo em Bataille se passa do lado de cá, o
único que existe, do lado do corpo e das sensações e mesmo essa alegria
superior, essa alegria que tudo alivia e justifica, objectivo de todas as
provações do horrível, não é mais do que sensação corporal, que se obtém pela
exaustão de outras sensações. Nesse sentido, a linha de pensamento de Bataille
é intransmissível, tem um valor pessoal exclusivo e não sofre qualquer
possibilidade de socialização. Serei mesmo tentado a perguntar se esta linha não
é, pela hiperbolização a que está sujeita, uma experiência destinada apenas a
ser vivida por dentro da literatura e
até da literatura naturalista, a mais
apta a reportar as sensações naturais,
que o corpo experimenta. Se assim for, experiência estética, não mais, e por
isso inofensiva – por mais perigosa que seja a aparência ou o invólucro
intelectual em que é dada.
Em Breton o jogo
é diferente. Não lhe interessa a experiência pela experiência e muito menos
para atingir uma sensação. Aquilo que o move é o mundo da alma, que ganha uma
espessura própria, com as suas leis e o seu funcionamento paralelo. Esse mundo
ganha uma tal autonomia em relação à realidade empírica que se pode falar duma
outra realidade, muito mais absoluta, que ele chama supra-real e os românticos alemães de real absoluto. Ele não nega a existência do mundo sensível; aceita
é a realidade dum segundo plano, onde o sensível é substituído pela imagem, que
não sendo uma abstracção do intelecto não tem consistência material nem
possibilidade de ser abordada pelos sentidos sensoriais. Só a imaginação está
em condições de abordar esse segundo plano, imaginação que equivale assim a um
sentido meta-sensorial, capaz de estabelecer o contacto do sensitivo com o
mundo da alma.
Ora assim sendo,
a actividade humana, e até tão-só natural, desemboca em Breton num além, supõe
a existência dum outro mundo, concebe o absoluto e chega a aceitar um plano
divino, se por este se entender não um Deus antropomórfico, como o das
religiões reveladas, mas uma realidade supra-sensível. O que interessa Breton é
o contacto com esta outra realidade; o seu objectivo último não é uma sensação
(de prazer, de horror ou de alívio como em Bataille) mas o mundo paralelo da
alma, a segunda realidade, o supra-real, a que se acede pelo imaginar, visto a
homologia, a da imagem, por ínfima que seja, entre esta faculdade e essa outra
realidade. Uma meta deste tipo só tira da literatura
ou da pintura ou de qualquer outra arte o necessário para alimentar o seu
desejo de além, o seu anseio de absoluto, não mais. Convém até perceber que um
tal objectivo pode existir sem passar obrigatoriamente por qualquer arte verbal
ou não. O sonho nocturno leva o homem que dorme ao supra-real sem para isso
necessitar mais do que o transe do sono. Nenhuma arte, pois, a não ser a maior,
a de Flamel, na procura do Eu interior.
Quando se alude
à conquista dos conteúdos da primeira consciência, através daquele bailado de
símbolos que lá para trás se referiu, fala-se mais duma posição ética do que
estética, para usar uma terminologia pouco precisa mas que pode dar a entender
quanto a aventura de Breton foge aos terrenos da arte. E de tais terrenos,
quando existem, o que se pode tirar na procura do supra-real nunca pode ser,
como em Bataille, uma arte naturalista, sensorial, que seja capaz de reportar
sensações físicas, mesmo extremas, como as da ponta final do horror, mas uma arte sobre-natural, que
seja ela já, como num sonho, uma expressão do mundo da alma. É mais fácil
receber assim um livro como Malpertuiss –
procuro um equivalente deste livro entre nós sem êxito – do que La Nausée, esse sim com equivalentes e
em legião.
Há um momento no
jogo entre Breton e Bataille em que tudo se faz claro. É o momento em que
Breton comenta uma imagem de Bataille – uma rosa sem pétalas, uma rosa
desfolhada não passa dum pedúnculo deselegante com um tufo sórdido e escuro no
cimo – e diz que uma rosa mesmo sem pétalas continua a ser uma rosa. Quem não
vê aqui a ideia sobre a forma e a forma sobre a matéria? Quem não vê aqui a perenidade
da ideia sobre a volubilidade da matéria? O surreal sobrepõe-se à realidade
física, perceptível com os sentidos sensoriais, como essa rosa universal de que
fala Breton paira sobre a rosa transitória, que desapareceu. Depois disto
percebe-se que nas vazas que saem sobre a mesa o empate é o único destino
possível para este jogo; tão irredutíveis são os mundos em confronto, que
nenhum deles pode gritar vitória. Não admira por esse motivo que Bataille, em
texto posterior, de 1931, mas só dado à luz em 1968, acuse Breton dum complexo
de Ícaro, sempre à procura de bater asas para o além. Reconheço aqui, nestas
asas de Ícaro, não tanto o anseio de evasão do labirinto, que também existe,
mas a necessidade de trocar a realidade sensível pelo fluido inefável e
luminoso da corrente da alma.
Curioso que ao
ver Breton como uma águia sempre
desejosa de habitar os píncaros do mundo, e por isso sempre ansiosa de se
evadir da realidade, elevando-se para a luz do Sol, Bataille reserve para si a
imagem da toupeira ou do rato, que vive nos intestinos da terra e tira dos seus
excrementos o alimento e a saúde. É a vitalidade da podridão ou do horror
natural, num segmento que a química de Lavoisier já conhecia, contra a ilusão
fotista da ideia ou do ultra-mundo
tal como um Breton de asas aquilinas e poderosas o concebe sob a forma do
supra-real.
Há porém um
ponto em que Bataille e Breton coincidem – e não sei se terá sido esse ponto a
ponte de passagem para o passo do terceiro manifesto em que Bataille aparece ao
lado de Péret e Leonora Carrington, mas também de Callois. Esse ponto de
coincidência é o seguinte: do lado de Bataille há o horror, tão dele, e do lado
de Breton o desgosto da realidade sensível. A abordagem negativa ao sensível é comum a ambos. Há porém uma
diferença de monta: o horror de Bataille, se for exaurido, leva à satisfação,
ia dizer à iluminação, ao passo que a
realidade sensível, amputada da imaginação, que é a asa da alma, fica para
Breton prisão sem saída. A única atitude digna dum homem aprisionado no real de
primeiro nível, que por qualquer razão desconhecida não pudesse recorrer à
imaginação para viver no mundo da alma a verdadeira vida, seria o desgosto
fundo, seguido dum estado de revolta permanente – mas tão desesperada e tão
impotente como aquela que se pode conceber para uma alma condenada para sempre,
por mandato superior, às labaredas do Inferno. Por esse motivo para Bataille o
real sensível pode salvar – apesar de salvação
ser palavra desconhecida no vocabulário no autor de L’Experience Intérieure – e para Breton esse mesmo real pode ferir
de morte.
Isto não é
despiciendo para se entender um dos segmentos mais característicos do
surrealismo em Portugal, o abjeccionismo. Ao que se diz passa este por ser uma
criação própria do surrealismo português. Cesariny fala dele no texto “Para uma
Cronologia do Surrealismo em Português” (1973), já aqui nestas notas referido.
Atribui o seu trilho a Pedro Oom, na viragem da década de quarenta para a
seguinte, século de Hiroxima, e de ficou a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa,
que Oom sacolejaria em 1962 (que pode
fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos), e
um poema título do mesmo Oom, “Um Ontem Cão” (1949). Seja como for, a ideia,
esta muito de Cesariny, de que num país que vivia amordaçado por uma ditadura
qualquer intervenção surrealista colectiva organizada se fazia impossível é
também um ponto maior a favor da abjecção. Daí o específico português do
abjeccionismo, ou pelo menos o favor que ele teve no único país – com o vizinho
do lado, entenda-se – do ocidente da Europa que continuava a viver sem
liberdade de expressão, mesmo mínima.
Começo pela
noção de que o abjeccionismo foi criação portuguesa. Quando se lê e reflecte
sobre a passagem final do segundo
manifesto fica-se com a ideia de que se encontra aí um precedente
importante para ele; a palavra não está criada, nunca aparece no discurso de
Breton, seja sob a forma de substantivo ou de adjectivo, e no entanto ele
serve-se de outras próximas (sujo, senil, rançoso, sórdido, estragado), mas o
significado está já em movimento. Não é tanto porém na oposição entre Bataille
e Breton, entre a águia que se eleva sedenta de luz e a toupeira que se compraz
com a escuridão dos subterrâneos, que eu posso ver no passo do livro de 1930 o
contraste entre surrealismo e abjeccionismo; é antes na oposição de Breton com
ele mesmo, quer dizer, entre o plano sensível e a sua ideia, entre o curso da
realidade e o supra-real, entre a rosa desfeita e a rosa perene, que eu sinto a
ligação dos dois momentos. Com isto quero dizer que aquilo que pode haver de
surrealista no abjeccionismo nada deve ao horror
de Bataille; o credor dessa parcela é antes e em exclusivo o sufoco daquela realidade sensível que Breton quer
superar a todo o custo e que por vezes, caso a imaginação não compareça, faz a
vez de prisão insuperável.
Isto leva ao
segundo ponto, o da especificidade portuguesa do abjeccionismo por via da
ditadura política que amordaçava o país. A mordaça em termos freudianos
significa o recalque sem possibilidade de compromisso simbólico, o que por sua
vez leva a encarar a ditadura como uma séria ameaça à comparência da
imaginação. Sem esta os portugueses que haviam aderido à demanda do supra-real
ficaram apenas com um palco a arder, sem saída, um gigantesco auto-de-fé, onde
estavam destinados a torrar antes de todos os outros, e com mais desespero do
que eles, já que ninguém tinha como eles a consciência certa de que existia o maravilhoso de outro mundo. Neste quadro
percebe-se assim o favor que o abjeccionismo teve em Portugal e como em certos
momentos, quando a ditadura apertava o prego e o palco fechava qualquer saída,
ele se acabou mesmo por sobrepor ao surrealismo.
Seja como for, é
ingenuidade pensar que a percepção da abjecção
da primeira consciência – assim digo para que se perceba a extensão e até a
universalidade do fenómeno – é um caso circunscrito a situações políticas de
ditadura. O abjeccionismo é a face inferior mas necessária do surrealismo; ele
está para o surrealismo como a primeira consciência está para a segunda ou o
supra-real para o real sensível. Não há supra-real sem realidade sensível, tal
como desde há sete ou oito mil anos não há segunda sem primeira consciência – e
esta é primeira não por ser primordial ou preceder no tempo a segunda mas
porque se sobrepõe hoje, por vezes na totalidade, e quase sempre à bruta, à
outra. Na linguagem de Breton, o supra-real é já uma síntese entre o real
inferior e o sonho – como este em termos freudianos, que aliás não coincidem
aqui na exactidão com os de Breton, é um compromisso entre as duas
consciências. A impugnação do real sensível limitado a si, a crítica dos
limites do mundo sensitivo material, está sempre presente no surrealismo, como
está, no rasto de Dadá, pela valorização do primitivo, a percepção e o processo
da toxicidade da primeira consciência.
O perigo do
abjeccionismo – presente em qualquer círculo onde as imposições de primeiro
nível existam com algum peso, haja ou não haja ditadura política, pois na
verdade basta a escolar ou tão-só a familiar – é o da radicalização das
exigências de primeiro nível ser tão impositivo que se dê o esquecimento da
consciência do supra-real ou do real absoluto e da sua demanda, ficando apenas
em seu lugar a dicotomia entre a ordem e a chacota ou entre a norma e o seu
retrato caricatural. Quando isto assim acontece, os que caricaturam, presos ao primeiro nível, mais que não seja para fazer
dele o traço grotesco, esquecidos do outro mundo, tendem a deslizar para um
abjeccionismo que se torna um fim em si mesmo, deixando de ser a contrapartida
necessária da demanda do mundo da alma. Nesse momento o abjeccionismo
desliga-se do surrealismo, ganha autonomia e, pela perda do plano sobrenatural,
aproxima-se da literatura naturalista. Os supostos da nova expressão fazem-se
assim afins duma filosofia que tanto pode ter a ver com o sensualismo – todo o
pensamento vem das sensações – como com o existencialismo – ser é existir.
Que se passou no
caso português, onde o abjeccionismo tomou nome e tanta projecção ganhou? A
princípio, naquela transição da década de quarenta para cinquenta, com as obras
de António Maria Lisboa, de Mário Cesariny e do Pedro Oom do “Um Ontem Cão”, o
abjeccionismo, talvez ainda sem cristalizar na palavra, é apenas a consciência
do que se abandona ou do que se troca, a parte de sombra que todo o voo
extra-real carreia e pede. Assim Discurso sobre a Reabilitação do Real
Quotidiano de Mário Cesariny,
escrito em 1948 e editado em 1952, nada tem para reabilitar como o seu autor
fez questão de indicar. O título glosa com catártica ironia a literatura
realista da época, muito marcada pelo marxismo, um pouco ao modo do que ele
fará mais tarde com o título de O Virgem Negra ou até com o de 19
Projectos de Prémio Aldonso Perdigão. Nem prémio, nem virgem, nem
reabilitação nenhuma, mas o contrário disso. De resto a obra de Cesariny é
sempre, no mais pequeno sinal, nos títulos ou fora deles, um exemplo modelar de
como a parte sombria do real, existindo e comprimindo, magoando e maltratando,
não pode nem deve sobrepor-se, menos ainda abafar, a pesquisa do mundo da alma
que caracteriza e identifica a aventura surrealista.
E por aqui se
percebe como aqueles, e tantos e tão bons foram eles, que tentaram piedosamente
recuperar a obra de Cesariny para o realismo,
rasurando dela a crucial trasladação para o arquétipo, a pedra filosofal do Eu
interior, tomaram entre nós o lugar daqueles sacristães com mandato exterior
que tentaram a todo o custo ler Rimbaud do ponto de vista do catolicismo romano – e sabe-se quanto a
empresa foi de todo perniciosa para o poeta.
Mais tarde, ao
longo da segunda metade da década de cinquenta e da primeira de sessenta, com a
perpetuação da ditadura e da vida política do ditador para além daquilo que
seria na mais negra das hipóteses de considerar, o abjeccionismo em Portugal tendeu
porventura a deslizar para um novo patamar, muito mais autónomo, em que a
ligação com o supra-real parece ter, pelas condições em que o país vivia,
afrouxado um tanto.
Quando Pedro Oom
na entrevista fundadora do abjeccionismo (1962), momento em que glosa e reforma
a pergunta final de Erro Próprio de
António Maria Lisboa, adianta que a diferença fundamental entre surrealismo e
abjeccionismo está em que
Breton diz que há um ponto do espírito onde as antinomias deixam de ser
contraditoriamente apercebidas e eu digo que, mesmo idealmente, duas
proposições antagónicas não se podem fundir sem que logo nasça uma proposição
contrária a essa síntese (Jornal de Letras e Artes, ano II,
nº 75, 6 de Março, 1962, pp. 1 e 15; Cesariny recolheu-a em A Intervenção
Surrealista) é possível, mas não é certo, que o contacto com o real absoluto, com a terra dos mitos, se
tivesse já perdido. O que pode existir nesse momento é só o real abjecto, a terra teratológica, a
terra dos monstros, em que tanto os carrascos como as vítimas são máscaras
desfiguradas do horror. O que existe nesse instante é a estampa de Goya, do
avesso, sem pinga de sono, comentando pela imagem dum homem autómato, máquina sem
sonho, o mote de o sono da imaginação
cria uma realidade monstruosa.
Daí a auto-repulsa e a negação sistemática,
tão típicas do abjeccionismo português nessa fase, que é a do suicídio em
cadeia (João Rodrigues, José Manuel Pressler, D’Assumpção, Manuel de Castro,
José Sebag), mais própria talvez dum mundo negro, condenado em dimensão
perpétua à baixa reclusão do real, tal como Bataille ou Sartre o podiam ver sem
metafísica surreal nenhuma, do que da pesquisa surrealista marcada pelo oiro
solar e quente do contacto com a alma e com o Paraíso dos Arquétipos.
De qualquer modo
é preciso ter em conta o retruque que na mesma entrevista Oom deu quando lhe
perguntaram qual a resposta para a pergunta que Lisboa fizera (que pode
fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos).
Nada de desistências, nada de esquecimentos, nada de palcos fechados e sem
saída. Ao invés, tudo fica aberto para a paisagem do além. Diz ele: sobreviver
livre, possuir a capacidade de lutar contra as forças que nos contrariam não
colaborando com elas. Neste caso o contacto com o real absoluto, com a terra dos mitos, não se perdeu; a qualquer
momento ele irrompe soberano desta desobediência às forças que algemam. Mais: o
surreal é ele mesmo o sinal da não colaboração com estas forças.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário